6. O papel do SUS no combate à violência contra a mulher
A violência contra a mulher constitui um grave problema de saúde pública, sendo que cerca de 30-38% das mulheres em todo o mundo que já estiveram em um relacionamento já foram vítimas de violência doméstica (WHO, 2013). Ainda que a mortalidade por violência afete mais os homens, a morbidade relacionada à violência doméstica e/ou sexual atinge majoritariamente a população feminina (BRASIL, 2004).
Sabe-se que a exposição à violência, além de contribuir para uma menor qualidade de vida da vítima (LUCENA et al, 2017), pode implicar em agravos para a saúde da mulher, como por exemplo: dores ou desconforto severo; problemas de saúde mental (tentativas de suicídio e uso de álcool); repercussões no funcionamento cognitivo, problemas de concentração e tontura; prejuízos no sistema imune, com maior risco para infecções virais e câncer (OMS, 2002; BLACK, 2011; MENDONÇA e LUDERMIR, 2017).
Tendo como princípios a integralidade e a promoção da saúde, a Política Nacional de Atenção Integral à Saúde da Mulher (PNAISM) apresenta dentre outros objetivos, combater a violência doméstica e sexual por meio de uma rede integrada de atenção às mulheres em situação de violência, além de um conjunto de ações preventivas (BRASIL, 2004).
A Organização Pan-Americana de Saúde (OPAS) propõe o conceito de “rota crítica” como todo o caminho percorrido pela mulher vítima de violência, desde a decisão em buscar ajuda, envolvendo as ações tomadas e respostas obtidas até sua chegada no Centro de Referência. Nessa trajetória existem fatores determinantes que podem estimular ou inibir as mulheres e suas ações (SHRADER e SAGOT, 2000).
Os serviços de saúde configuram-se como portas de entrada para as mulheres vítimas de violência, que geralmente procuram assistência devido as lesões decorrentes da agressão. Por sua vez, a Atenção Primária à Saúde apresenta papel importante dentro da rede de atenção, especialmente na detecção da agressão, no acolhimento da vítima e encaminhamento a outros serviços (BARAGATTI et al, 2018). O atendimento que oferece também acolhimento e tratamento aos homens perpetradores consiste em um diferencial para o desfecho da situação de violência, por outro lado, a falta de profissionais de saúde mental pode ser considerada uma fragilidade dos estabelecimentos de saúde, dificultando uma abordagem integral da mulher (BARAGATTI et al, 2018).
Apesar da criação de políticas públicas específicas e da expansão dos serviços, muitas mulheres em situação de violência ainda encontram dificuldades no acesso aos setores especializados. Essas adversidades podem estar relacionadas a pouca divulgação de serviços como os Centros de Referências, a falta de preparo dos profissionais em lidar com a temática da violência contra a mulher e ao atendimento fragmentado que dificulta e até mesmo inviabiliza a resolutividade dos casos (OMS, 2002; BARAGATTI et al, 2018). É necessária uma maior articulação e divulgação dos serviços em que as mulheres vítimas de violência doméstica e/ou sexual podem buscar ajuda, além de estratégias de educação permanente visando capacitar e sensibilizar os profissionais de saúde que atuam no cuidado direito a esse público (OMS, 2002; BARAGATTI et al, 2018).
7. Lei 13.104/2015 e o Feminicídio
A Lei nº 13.104, de 09 de março de 2015, introduziu a figura do feminicídio, que é o homicídio de mulher praticado em razão de seu sexo.
Dessa forma, o feminicídio passou a ser uma circunstância qualificadora do homicídio após a edição da Lei 13.104/2015, que alterou a redação do art. 121 do Código Penal, e alterou também o art. 1º da Lei 8.072/1990, para incluir o feminicídio no rol dos crimes hediondos.
O § 2º-A do art. 121 do CP dispõe que: “Considera-se que há razões de condição de sexo feminino quando o crime envolve: I – violência doméstica e familiar; II – menosprezo ou discriminação à condição de mulher”.
Destarte, não é qualquer homicídio de mulher que será considerado feminicídio. O crime deverá se enquadrar nas hipóteses dos artigos 5º e 7º da Lei Maria da Penha, ou quando houver menoscabo ou discriminação da mulher em razão de seu gênero.
Conforme explicação de Cezar Roberto Bitencourt, pode-se constatar que o texto legal qualifica o homicídio em duas hipóteses distintas, quais sejam, (1) quando se tratar de violência doméstica e familiar, ou (2) quando for motivado por menosprezo ou discriminação à condição de mulher:
“Na primeira hipótese o legislador presume o menosprezo ou a discriminação, que estão implícitos, pela vulnerabilidade da mulher vítima de violência doméstica ou familiar, isto é, o ambiente doméstico e/ou familiar são as situações caracterizadoras em que ocorre com mais frequência a violência contra a mulher por discriminação; na segunda hipótese, o próprio móvel do crime é o menosprezo ou a discriminação à condição de mulher, mas é, igualmente, a vulnerabilidade da mulher tida, física e psicologicamente, como mais frágil, que encoraja a prática da violência por homens covardes, na presumível certeza de sua dificuldade em oferecer resistência ao agressor machista”. (BITENCOURT, 2017)
Bitencourt faz um relevante questionamento: quem pode ser considerada mulher para efeitos da tipificação da presente qualificadora?
“(...) pelo critério de natureza psicológica, isto é, alguém mesmo sendo do sexo masculino acredita pertencer ao sexo feminino, ou, em outros termos, mesmo tendo nascido biologicamente como homem, acredita, psicologicamente, ser do sexo feminino, como, sabidamente, acontece com os denominados transexuais. Há, na realidade, uma espécie de negação ao sexo de origem, levando o indivíduo a perseguir uma reversão genital, para assumir o gênero desejado.” (BITENCOURT, 2017)
Assim, o penalista considera perfeitamente possível admitir o transexual, desde que transformado cirurgicamente em mulher, como vítima da violência sexual de gênero caracterizadora da qualificadora do feminicídio.
Com a vigência da lei, o STJ foi provocado a se pronunciar sobre alguns aspectos da nova regra. Um dos questionamentos foi sobre a possibilidade de um crime de feminicídio ser considerado também homicídio qualificado por motivo torpe.
Importante destacar que no julgamento do HC 440.945, o Colendo Superior Tribunal de Justiça assim decidiu: "É devida a incidência da qualificadora do feminicídio nos casos em que o delito é praticado contra mulher em situação de violência doméstica e familiar, possuindo, portanto, natureza de ordem objetiva, o que dispensa a análise do animus do agente. Assim, não há se falar em ocorrência de bis in idem no reconhecimento das qualificadoras do motivo torpe e do feminicídio, porquanto a primeira tem natureza subjetiva e a segunda, objetiva”.
Para finalizar, ressalto que o governo criou a Central de Atendimento à Mulher – Ligue 180, que presta uma escuta e acolhida qualificada às mulheres em situação de violência[5]. O serviço registra e encaminha denúncias de violência contra a mulher aos órgão competentes, bem como reclamações, sugestões ou elogios sobre o funcionamento dos serviços de atendimento.
8. A representação da mulher na literatura: “O papel de parede amarelo” e “Um teto todo seu”
No livro “O papel de parede amarelo”, a narrativa discorre sobre uma mulher que vive com seu marido em uma casa alugada, enquanto se vê acometida por uma doença que não sabe ao certo qual é. A casa demonstra o pequeno mundo em que vive: o mundo das mulheres oprimidas.
Em um trecho da história, a heroína diz: “Em particular, discordo da opinião deles. Em particular, acredito que um trabalho adequado, com estímulos e variedade, iria me fazer bem. Mas o que se pode fazer?” (GILMAN, 2018, p 13)
O marido representa a figura da ciência, do racional, enquanto a mulher representa a irracionalidade da histeria. O marido é o senhor que controla o estado físico e mental de sua esposa.
No final, após acompanharmos uma trajetória torturante, ainda rastejando, a mulher exclama: “Finalmente consegui sair (...) apesar de você e de Jane! E arranquei a maior parte do papel, então você não vai poder me colocar de volta!” (GILMAN, 2018, p. 69)
No livro “Um teto todo seu”, Virginia Woolf recebeu a encomenda de proferir uma palestra sobre o tema mulheres e ficção:
“Quando vocês me pediram para falar sobre mulheres e ficção, sentei-me às margens de um rio e ponderei sobre o significado dessas palavras. Elas poderiam significar simplesmente algumas menções a Fanny Burney; outras sobre Jane Austen; um tributo às irmãs Brontë e um esboço de Haworth Parsonage sob a neve; alguns chistes, se possível, sobre a senhorita Mitford; uma alusão respeitosa a George Eliot; uma referência à senhora Gaskell e pronto. Mas, à segunda vista as palavras não parecem tão simples. O título ‘As mulheres e a ficção’ poderia significar, e talvez vocês pensassem assim, as mulheres e como elas são, ou as mulheres e a ficção que elas escrevem, ou poderia significar as mulheres e a ficção que é escrita sobre elas (...) logo percebi que havia um obstáculo inevitável. Eu nunca conseguiria chegar a uma conclusão.” (WOOLF, 2014, p. 11)
Então, Woolf dá seu ponto de vista sobre o tema que precisava escrever: “(...) uma mulher precisa ter dinheiro e um teto todo seu, um espaço próximo, se quiser escrever ficção; e isso, como vocês verão, deixa sem solução o grande problema da verdadeira natureza da mulher e da verdadeira natureza da ficção” (WOOLF, 2014, p.12).
Para Woolf, o que a mulher precisa para escrever ficção é basicamente ter condições de sobrevivência para poder se dedicar ao ofício. O próprio tema mulheres e ficção seria, em si, uma ficção, pois quase não tivemos mulheres ficcionistas na história, já que estavam sempre ocupadas cuidando de filhos, do marido e da casa.
Woolf diz que os sábios nunca pensam a mesma coisa sobre as mulheres:
“Veja-se Pope: ‘A maioria das mulheres não tem nenhum caráter’. E La Bruyère: ‘As mulheres são extremo: elas são melhores ou piores do que os homens’, uma contradição clara entre dois observadores mordazes que eram contemporâneos. Elas são capazes de aprender ou incapazes? Napoleão achava que eram incapazes. O doutor Johnson pensava o contrário. Teriam alma ou não? Alguns selvagens dizem que elas não têm. Outros, por outro lado, afirmam que as mulheres são metade divinas e as idolatram por isso. Alguns sábios declaram que o cérebro delas é mais superficial; outros, que sua consciência é mais profunda. Goethe as honrava; Mussolini as desprezava. Para onde se olhava os homens pensavam sobre as mulheres, e pensavam diversamente. Era impossível encontrar sentido em tudo aquilo (...)” (WOOLF, 2014, p. 47).
Ainda, em um trecho relevante, Woolf ressalta quanta genialidade e integridade devem ter sido necessárias diante de toda a crítica e em meio à sociedade puramente patriarcal a que muitas escritoras tiveram que se submeter:
“Somente Jane Austem e Emily Brontë fizeram isso. (...) Elas escreviam como escrevem as mulheres, não como os homens fazem. (...) Elas eram as únicas surdas àquela voz persistente, ora angustiada, ora chocada, ora brava, ora tolerante, aquela voz que não deixa as mulheres em paz, que precisa ficar em cima delas, como uma governanta supercuidadosa, implorando a elas, como Sir Egerton Brydges, que sejam refinadas (...)” (WOOLF, 2014, p.108)
Para escrever uma mulher precisa apenas poder escrever. Parece simples, mas toda a história nos prova que para conquistar esse direito foram necessárias diversas lutas que, infelizmente, ainda são necessárias.