Há quase oito anos, a empresa Uber iniciou as suas atividades no Brasil e causou um enorme alvoroço ao oferecer um serviço de transporte privado por meio de seu aplicativo para smartphones. A ideia de facilitar a conexão entre clientes e motoristas particulares gerou discussões em todos os países onde a empresa americana se instalou, e no Brasil não foi diferente, principalmente com o rápido crescimento de sua atuação e com a entrada e criação de outras empresas do mesmo segmento.
Se, por um lado, em decorrência do preço e da qualidade dos serviços oferecidos, as empresas ganharam a simpatia de inúmeros consumidores, por outro, ganharam a repulsa de empresários e taxistas afetados com a migração de clientes para os aplicativos de transporte privado, o que gerou inúmeros conflitos e provocou a manifestação, de alguma forma, dos Três Poderes constituídos.
Em razão das diversas tentativas de regulamentação, e até de proibição, da nova atividade pelos poderes locais, o Congresso Nacional resolveu editar a Lei 13.640, de 26 de março de 2018, com a finalidade de “regulamentar o transporte remunerado privado individual de passageiros”, todavia a edição da referida lei ordinária federal não foi suficiente para obstar as restrições e proibições impostas pelo Poder Executivo e Legislativo de diversos municípios, além de decisões judiciais contrárias à atuação dos aplicativos de transporte.
Diante deste cenário de incertezas e de limitações da livre iniciativa e da livre concorrência, o Supremo Tribunal Federal teve a oportunidade de se manifestar sobre o tema no julgamento conjunto da Ação de Descumprimento de Preceito Fundamental nº 449 e do Recurso Extraordinário nº 1.054.110. Na ocasião, a Corte aprovou a tese formulada pelo Relator do recurso extraordinário, ministro Luís Roberto Barroso, com a seguinte redação:
1 – A proibição ou restrição da atividade de transporte privado individual por motorista cadastrado em aplicativo é inconstitucional, por violação aos princípios da livre iniciativa e da livre concorrência.
2 – No exercício de sua competência para a regulamentação e fiscalização do transporte privado individual de passageiros, os municípios e o Distrito Federal não podem contrariar os parâmetros fixados pelo legislador federal (Constituição Federal, artigo 22, inciso XI).
A acertada e importantíssima decisão da Suprema Corte serviu para reforçar algumas questões básicas sobre o sistema de mercado adotado pela Constituição da República de 1988. É importante, pois, reconhecer que, ao garantir o direito de propriedade e da livre iniciativa, a Lei Maior adotou o sistema de mercado capitalista. Da mesma forma, também é fundamental ter em mente que a Carta adotou o princípio da função social da propriedade, bem como permitiu e definiu expressamente as hipóteses de restrições do uso da propriedade privada. De acordo com o ministro Luiz Fux, relator da supracitada ADPF:
A Constituição impõe ao regulador, mesmo na tarefa de ordenação das cidades, a opção pela medida que não exerça restrições injustificáveis às liberdades fundamentais de iniciativa e de exercício profissional (art. 1º, IV, e 170; art. 5º, XIII, CRFB), sendo inequívoco que a necessidade de aperfeiçoar o uso das vias públicas não autoriza a criação de um oligopólio prejudicial a consumidores e potenciais prestadores de serviço no setor, notadamente quando há alternativas conhecidas para o atingimento da mesma finalidade e à vista de evidências empíricas sobre os benefícios gerados à fluidez do trânsito por aplicativos de transporte, tornando patente que a norma proibitiva nega “ao cidadão o direito à mobilidade urbana eficiente”, em contrariedade ao mandamento contido no art. 144, § 10, I, da Constituição, incluído pela Emenda Constitucional nº 82/2014.
Há, portanto, uma necessidade de conciliação entre os direitos fundamentais, tendo em vista a inexistência de hierarquia entre eles. Evidente, também, que o direito à propriedade privada e à livre iniciativa devem receber a mesma proteção que o Estado assegura aos outros direitos fundamentais.
No caso, apenas a livre concorrência efetiva será capaz de equilibrar as relações entre as empresas, os motoristas e os consumidores, senão vejamos: i) as empresas, naturalmente, visam à obtenção de lucro, ou seja, a maximização de seu faturamento e a redução de suas despesas; ii) os motoristas, de igual forma, também pretendem lucrar com a atividade, ter boas condições e trabalho e certa estabilidade financeira; e iii) os consumidores, por sua vez, querem pagar menos e obter um serviço de qualidade.
Com várias empresas atuando no ramo, os motoristas terão a oportunidade de escolher quais oferecem melhores condições de trabalho e, da mesma forma, os consumidores poderão escolher as que oferecem o menor preço com a maior qualidade. Desta forma, a autorregulação do mercado será responsável por definir quais empresas terão condições de permanecer na ativa, enquanto aquelas que não se adequarem à realidade e às exigências do mercado serão extintas.
Diante disso, a intervenção do Poder Público só se justifica para garantir a livre iniciativa e a livre concorrência, ou seja, para possibilitar a atuação de várias empresas. A restrição à atuação, por outro lado, apenas acarretaria a criação de monopólios e de pequenos grupos privilegiados, como é o caso dos táxis, e causaria prejuízo direto ao consumidor. Nesta linha, o ministro Luís Roberto Barroso consignou que:
A admissão de uma modalidade de transporte individual submetida a uma menor intensidade de regulação, mas complementar ao serviço de táxi afirma-se como uma estratégia constitucionalmente adequada para acomodação da atividade inovadora no setor. Trata-se, afinal, de uma opção que: (i) privilegia a livre iniciativa e a livre concorrência; (ii) incentiva a inovação; (iii) tem impacto positivo sobre a mobilidade urbana e o meio ambiente; (iv) protege o consumidor; e (v) é apta a corrigir as ineficiências de um setor submetido historicamente a um monopólio “de fato”.
Ademais, o Supremo Tribunal Federal compreendeu que a inovação e a evolução tecnológica, além de benéficas, são essenciais ao crescimento da sociedade.
O ponto principal da decisão, portanto, consiste na (re)afirmação do princípio da livre iniciativa, que durante muito tempo foi deixado em segundo plano, como se não fosse um fundamento da República previsto na Constituição. Destarte, ao dar a devida importância ao referido princípio, o Supremo Tribunal Federal reestabeleceu, de certa forma, a importância e a segurança jurídica à sociedade e aos investidores nacionais e estrangeiros, tendo em vista que a intervenção do Poder Público nas atividades econômicas deve se dar nos exatos termos da Lei Maior, de forma a garantir a liberdade econômica, lembrando que este importante princípio não pode servir de escudo para a precarização das relações entre as empresas e os prestadores de serviço.