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Acesso à Justiça e pandemia

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20/01/2021 às 15:00
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A pandemia de Covid-19 afetou o Judiciário em todo o mundo. Transformações foram operadas para garantir o acesso à Justiça no cenário de emergência sanitária e podem ser incorporadas no futuro do Judiciário.

Resumo: A pandemia de Covid-19 afetou o Judiciário em todo o mundo. Transformações foram operadas para garantir o acesso à Justiça no cenário de emergência sanitária. Os novos métodos indicam não ter havido prejuízo à prestação jurisdicional e apontam para um caminho de inovação perene, com aptidão par melhorar o acesso e o funcionamento da Justiça.

Palavras-chave: Acesso à Justiça. Pandemia. Tecnologia. Processo eletrônico. Audiência virtual. Inteligência artificial.


Introdução

Como garantir o acesso à justiça em meio a pandemia de COVID-19, que priva as pessoas da possibilidade de se locomoverem a seus trabalhos, de ingressar nas sedes do Poder Judiciário e de manter contatos físicos próximos, como os exigidos para a realização de uma audiência de instrução?

Esta é a questão central que o presente artigo, baseado no método indutivo[2], se propõe a analisar. Porém, dela decorre outra, não menos intrigante: se os meios tecnológicos permitem, em caráter emergencial, a continuidade da atividade jurisdicional, mesmo diante das graves restrições criadas pela pandemia, pode a tecnologia induzir alterações perenes no sistema judiciário, que ampliem o acesso à justiça?   

Para refletir sobre estes questionamentos, importa investigar o vetor ‘acesso à justiça’, para, a partir dele, analisar algumas respostas que vêm sendo apresentadas para manter o Judiciário em funcionamento nos tempos de pandemia.

Com base em tal investigação, competirá estudar a silenciosa revolução tecnológica já em curso no sistema de Justiça e que foi sensivelmente acelerada pela pandemia, para, com isto em mente, examinar quais mecanismos ou mudanças de mentalidade implantados em caráter emergencial podem se estabelecer em definitivo no Poder Judiciário.

1. Acesso à Justiça

Não basta enunciar direitos. Se não houver um canal para reclamá-los, os enunciados serão palavrar mortas. Por esta razão, o acesso à justiça é catalogado como “o mais básico dos direitos humanos de um sistema jurídico moderno e igualitário que pretenda garantir e não apenas proclamar os direitos de todos”, sobretudo em cenário de capilaridade dos direitos, que é destituído “de sentido na ausência de mecanismos à sua efetiva reivindicação”[3].

Disto decorre a clara advertência de que o acesso à justiça é uma espécie de “direito charneira (...) cuja denegação acarretaria a de todos os outros”[4].

Nesta esteira, o acesso à justiça tem duas faces. Primeiro, a de “sistema pelo qual as pessoas podem reivindicar seus direitos e/ou resolver seus litígios sob os auspícios do Estado”, o que impõe seja acessível a todos. Mas também se norteia por um critério finalístico, devendo “produzir resultados que sejam individual e socialmente justos”[5].  

Deste modo, o “princípio é entendido como a possibilidade de um sistema jurídico acessível indistintamente a todos que dele necessitem, independente de capacidade financeira para tanto”. Mas, para além de abrir portas, se impõe respostas efetivas, “porquanto o poder jurisdicional não se limita mais em apenas dirimir os conflitos apresentados, mas sim, eliminá-los de forma rápida e efetiva, buscando-se a pacificação com justiça e garantindo a equidade entre as partes”[6].

Este é o vetor que guia, ou deve guiar, a atividade do Poder Judiciário do mundo inteiro[7]. Contudo, como compatibilizar este valor fundamental com o imperativo sanitário que impõe o fechamento dos Foros e Tribunais ao redor do globo?

2. Acesso à justiça na Pandemia COVID-19

Para evitar a disseminação do vírus, Cortes no mundo todo fecharam suas portas. No Brasil, o Conselho Nacional de Justiça (CNJ), através da Resolução 313 de 19 de março de 2020, estabeleceu regime de plantão extraordinário, segundo o qual fora suspenso o trabalho presencial de magistrados e servidores de todos os ramos da Justiça, mantidas, porém, as atividades essenciais e o atendimento às partes e advogados de forma remota.

O fechamento dos foros foi tendência que se verificou em todo o globo. Mas se as portas físicas foram cerradas, as virtuais foram abertas, em níveis até então imprevistos.

Segundo a organização Global Access to Justice Project, já em abril de 2020, 78% das Cortes ao redor do mundo haviam implementado medidas especiais para execução dos trabalhos durante a pandemia, dentre as quais as mais recorrentes eram o uso de videoconferências para realização de audiências judiciais, a implementação de sistemas informatizados para peticionamento eletrônico, comunicação via telefone celular ou e-mail entre interessados e as Cortes. O quadro abaixo elucida as medidas adotadas[8]:

Nos Estados Unidos, o Judicial Conference of the United States, órgão de cúpula da Justiça Federal estadunidense, aprovou ainda em março o uso disseminado de videoconferência para manutenção dos procedimentos criminais e cíveis em curso[9]. Na mesma época, os Judiciários dos estados federados também já estavam usando em larga escala as audiências virtuais, o que é exemplificado por evento ocorrido no Texas, no qual, em apenas uma sessão, um único juiz ouviu 51 casos por videoconferência[10].

Bem distante dali, a Suprema Corte da Índia também regulamentou o uso de audiências virtuais para todos os tribunais do país, de modo a garantir a continuidade do serviço judiciário, mas sem contatos físicos[11].

Fenômeno semelhante se verificou na maior parte dos países. No primeiro semestre de 2020, Estados como Áustria, Austrália, Canada, Estônia, Holanda, Peru, Reino Unido e Suécia estavam empregando meios eletrônicos para manter a Justiça funcionando, mesmo a portas fechadas[12].

Voltando ao plano nacional, o uso de sistemas de processo eletrônico e de audiências virtuais mantiveram a Justiça operando em níveis próximos aos de normalidade. Só entre abril e agosto de 2020, por exemplo, já haviam sido realizadas mais de 360 mil videoconferências para audiências e reuniões, nos Juízos e Tribunais brasileiros, apenas pela plataforma disponibilizada pelo CNJ[13].

Interessante notar que, no plano das audiências por videoconferência (ou audiências virtuais), sua execução já era autorizada pelo Código de Processo Civil[14]. No entanto, a despeito da autorização legal, o mecanismo era normalmente preterido em favor de instrumentos mais custos e demorados, como a carta precatória. A pandemia, neste ponto, incentivou o uso de recurso legalmente previsto, mas subutilizado.

A realização de audiências virtuais foi, então, tornada regra pelo Conselho Nacional de Justiça, que, por meio da Resolução 314 de 20 de abril de 2020, passou a excepcioná-la apenas diante de comprovada impossibilidade técnica ou prática de sua realização, a ser constatada por decisão do juiz competente.

Esta previsão foi reforçada pelo CNJ na Resolução 322 de 1º de junho de 2020, ao enunciar que “as audiências serão realizadas, sempre que possível, por videoconferência” (art. 5º, IV). Assim, somente se técnica ou faticamente impossível, a audiência não se dará no plano virtual e, somente em tais hipóteses, pode ser adiada.

Com efeito, a pandemia acabou por forçar a implementação de tecnologias já previstas e disponíveis e acelerar transformações iniciadas, mas ainda incipientes. Junto com isto, instigou diversos atores a repensar como a Justiça tem funcionado e como pode funcionar melhor com o suporte de novas aplicações digitais.

Trata-se de uma tarefa difícil, contudo. Como lembra SUSSKIND. o medo da novidade é fator que desincentiva a inovação, sobretudo em campo naturalmente conservador, como o Judiciário. A isto se alia um ‘rejeicionismo irracional’, que repele novidades antes que possam ser minimamente avaliadas; e uma ‘miopia tecnológica’, que impede de enxergar além, pois o olhar está fixado no presente e nas possibilidades por este oferecidas, ignorando que as tecnológicas avançam rápido e constantemente, ofertando possibilidades múltiplas para quem tiver a mente aberta[15]

Um fato, entretanto, é inegável: o Judiciário se manteve funcionando durante a pandemia e isto se deve, essencialmente, à tecnologia. Trata-se de constatação que irrefutável e que pode, pelo menos, sensibilizar os céticos e impulsionar maiores investigações na área de intersecção entre acesso à justiça e inovação, tema a seguir abordado.

3. Tecnologia ampliando o acesso à Justiça

Há mais pessoas no mundo com acesso à internet do que a algum canal de Justiça que possa efetivar direitos de que são titulares. Apenas 46% das pessoas vivem sobre a proteção da lei, enquanto mais da metade da população mundial é usuária ativa da internet[16].

O mundo se digitalizou; e a maneira de viver e se relacionar também. O comércio eletrônico cresce exponencialmente[17]. Os meios de pagamento digitais se aproximam do ponto em que o dinheiro de papel ficará obsoleto[18]. As comunicações migram cada vez mais para aplicativos que aproximam pessoas que se acham fisicamente à distância[19].

O modo de trabalhar também vem sendo alterado no mundo todo, nos setores público e privado. Conforme o relatório “O futuro do trabalho - 2020”, realizado pelo Fórum Econômico Mundial, processos de digitalização, como uso de ferramentas digitais e videoconferência, aumento de oportunidades de trabalho remoto e aceleração da automação de tarefes vem sendo empregados progressivamente, especialmente como resposta à pandemia. O quadro abaixo espelha o processo em questão[20]:

Este processo redesenha o mapa das profissões, pois novos métodos exigem novos profissionais, além de ensejar a possível extinção de alguns ofícios, como operadores de computador, secretários e assistentes administrativos, arquivistas, balconistas, assistentes jurídicos, dentre outras profissões colocadas sob risco pela automação e inteligência artificial[21].

Neste cenário, de crescente aproveitamento e absorção de tecnologias no cotidiano das pessoas e no ambiente de trabalho, qual razão fundamentaria o alijamento do universo jurídico, e das instituições do sistema de Justiça, do caminho da digitalização? Colocando-se o mesmo problema por outro enfoque: existe impedimento para que as tecnologias modernizem os meios usados para dizer o Direito e resolver conflitos?

Com efeito, parece não haver motivos para blindar o Judiciário da onda de inovações tecnológicas, sobretudo daquelas soluções que podem aperfeiçoar o trabalho prestado pelas Cortes de Justiça. Neste passo, a pandemia, dentre seus inúmeros malefícios, pelo menos tem feito ruir algumas resistências e impulsionado a adoção de novas ferramentas e meios de trabalho consentâneos com a realidade experimentada por todos os demais setores da atividade econômica ou do serviço público.

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Exemplo disso é trazido pelo Tribunal de Justiça de Santa Catarina, cuja presidência, à luz da exitosa experiência de teletrabalho de seus magistrados e servidores, empregada em escala plena por força da pandemia, pretende perenizar tal método, mesmo quando terminado o estado de emergência sanitária[22].

Na Justiça Federal, o teletrabalho vinha sendo adotado para seus servidores desde 2013 (Resolução do Tribunal Regional Federal da 4ª Região - TRF4 nº 92, de 28/05/2013), com ampliações provocadas pelas resoluções 53, de 09/06/2015, e 134, de 12/12/2016; até que o trabalho à distância foi integralmente implementado, inclusive para magistrados, por força da pandemia (Resolução nº 18, de 19/03/2020).

Evidentemente, uma adoção tão disseminada do trabalho remoto só foi possível graças ao suporte fornecido pelo sistema de processo eletrônico em uso desde 2003 na Justiça Federal da 4ª Região (e-proc), ao que se somara o emprego amplo de audiências virtuais e sessões de julgamento virtuais e telepresenciais pelo Tribunal e Turmas Recursais da região sul do Brasil.

Fundamental notar que o desempenho da Justiça Federal da 4ª Região não foi afetado pelo emprego das novas técnicas. Segundo relatório estatístico disponibilizado pelo TRF4 em sua intranet[23], foram proferidas 137.666 sentenças em 2020, ante 161.758 em 2019; contudo, o decréscimo no número de sentenças é compensado pelo aumento no número de decisões liminares (explicável pela ampliação das situações urgentes geradas pela pandemia), que saltou de 465.400 em 2019 para 487.777 em 2020[24].

Pode-se, com base nesses números, inferir que a mudança no regime de trabalho não implicou prejuízo à prestação jurisdicional. Pelo contrário, viabilizou a manutenção do acesso à justiça, em níveis plenos, mesmo diante da emergência sanitária decorrente da pandemia.

Considerando-se que os novos métodos foram implantados ‘com o carro andando’, sem a possibilidade de planejamento e treinamento adequados; e que houve certa alteração no perfil das ações apresentadas no curso de 2020, com muitos pedidos urgentes, como concessão de auxílio emergencial para pessoas privadas de renda, liberação de depósitos do FGTS, tratamentos médicos e liberação de importações referentes à insumos adquiridos para fazer frente à pandemia; não é demasiado otimista pensar que, com um pouco mais de tempo e aperfeiçoamentos, os novos métodos trarão incremento significativo da produtividade judicial.

Neste contexto, há de ser somado outro ingrediente, com potencialidade para revolucionar o modo como a Justiça é distribuída, a inteligência artificial (IA). Trata-se de campo do conhecimento que se dedica a “criar máquinas que possam raciocinar, aprender e agir de modo inteligente”[25]. Seus usos passam por robótica, reconhecimento facial, assistentes de voz e machine learning[26], processo pelo qual o próprio sistema, analisando banco de dados preexistente, identifica padrões e faz previsões. Quanto maior o banco de dados e quanto mais longa for a experiência, mais acertadas passam a ser as previsões realizadas. A inteligência pode se desenvolver a ponto de se autoajustar e aperfeiçoar o próprio desempenho, sem que os programadores sequer consigam explicar exatamente a maneira pela qual o avanço se realiza (deep learning)[27].

No campo jurídico, a inteligência artificial já encontra múltiplas utilizações, embora ainda esteja em fase incipiente. Por exemplo, pode ser empregada para extrair informações relevantes de textos legais (como as falhas mais recorrentes em contratos bancários, que levam a questionamentos judiciais); ou procurar argumentos frequentemente usados para basear decisões judiciais, ajudando a aumentar o sucesso dos que postulam na Justiça. Além de ganho significativo de tempo, é comum que as tarefas realizadas com a assistência de IA superem o desempenho da mesma atividade praticada por assistentes jurídicos ou advogados novatos[28].

Abre-se, assim, campo para a advocacia do futuro, através do emprego de IA que assista as tarefas dos advogados, prevendo o desfecho de uma possível ação judicial, auxiliando, inclusive, na decisão de propor uma ação ou fechar um acordo[29].

Já existem, inclusive, experiências bem sucedidas, como a que conseguiu prever com acerto de 79% as decisões tomadas pela Corte Europeia de Direitos Humanos[30]; ou a que conseguiu antecipar as decisões da Suprema Corte do Estados Unidos e os votos de cada Juiz com acurácia de 70.2% e 71.9%, respectivamente[31].

As possibilidades são várias e alguns usos da IA sequer foram divisados pela mente humana. Já se fala, contudo, que a IA possa mesmo substituir juízes humanos, encarregando a ‘magistrados robôs’ a tarefa de julgar ações judiciais, como se estuda fazer na Estônia, país com maior e-governance do planeta, que pretende encarregar máquinas de resolver processos de até € 7 mil, para, com isto, liberar a força de serventuários e juízes para exame de casos mais complexos[32].

Com efeito, trata-se de tema polêmico e esbarra em questões éticas importantes. Além da falta de um olhar humano sobre tarefa que demanda grau acentuado de sensibilidade, pode-se cogitar de um sistema de AI criado intencionalmente com vieses que favoreçam ou prejudiquem determinado grupo. Ou que não sejam criados com este fim, mas tenham em seu banco de dados ‘alimentador’ quantidade relevante de decisões permeadas por preconceitos, os quais serão potencialmente reproduzidos pela IA[33].

Como lembra o relatório elaborado pelo MCKINSEY GLOBAL INSTITUTE, “uma vez que o mundo real é racista, sexista e sujeito a viesses de muitas outras maneiras, os dados do mundo real que alimentam algoritmos também terão essas características”, de modo que quando os sistemas de IA aprendem com base em dados permeados por vieses, estes serão internalizados, “exacerbando esses problemas”[34].

O CNJ, reconhecendo a importância da IA para a Justiça, editou a Resolução 332, de 21/08/2020. Nela, as preocupações éticas são destacadas, dispondo, por exemplo, o art. 2º que a IA tem por função, quando aplicada ao Judiciário, “promover o bem-estar dos jurisdicionados e a prestação equitativa da jurisdição”.

Na mesma esteira, os artigos 4º e 5º ressaltam preocupação com respeito aos direitos fundamentais, em geral, e com a igualdade, de modo especial. O art. 7º é mais enfático, enunciado os valores de igualdade, não discriminação, pluralidade e solidariedade, predispostos a auxiliar “no julgamento justo, com criação de condições que visem eliminar ou minimizar a opressão, a marginalização do ser humano e os erros de julgamento decorrentes de preconceitos”. Assevera, ainda, que “a impossibilidade de eliminação do viés discriminatório do modelo de Inteligência Artificial implicará na descontinuidade de sua utilização”.

No entanto, embora relevantes as preocupações éticas que cercam a IA e indispensável seja o acompanhamento constante de sua aplicação ao Direito, para evitar aplicação indevida; usos menos ousados, como o ‘classificador’, que se propõe a encontrar subsídios para que o juiz humano fundamente suas decisões, como precedentes e textos legais; e o ‘relator’, que extrai do processo informações relevantes e, com base nelas, sugere minutas de decisão ao magistrado[35]; podem ter aplicação imediata, reduzindo tempo, recursos humanos e ampliando a capacidade de trabalho dos atores do sistema de Justiça e o próprio acesso à Justiça rápida e efetiva.

Novamente o e-proc, sistema de processo eletrônico desenvolvido pelo TRF4, traz bons exemplos de utilização da IA. Com base em IA, o e-proc já consegue ‘ler’ as petições iniciais protocoladas e aferir se o assunto atribuído pelo advogado ao processo corresponde efetivamente à discussão em causa. A funcionalidade controla a competência em razão da matéria entre juízos de mesma competência territorial. Assim, se eventualmente uma ação que verse sobre direito à saúde for classificada como assistencial, por hipótese, ao invés de ser distribuída para uma Vara cível, a ação seria encaminhada a uma Vara previdenciária. Só em 2019, este sistema de IA evitou que 65.536 processos fossem enviados para juízo incompetente, com o que poupou forças dos serventuários e magistrados, eliminando a conferência manual e individualizada de cada assunto atribuído aos processos e a necessidade de elaborar despachos e atos de cumprimento em cada feito, para encaminhá-lo à Vara realmente competente.

Digna de registro, também, é funcionalidade que auxilia na admissibilidade de recursos especiais e extraordinários protocolados junto ao TRF4. A funcionalidade classifica os recursos por temas, com assertividade de 84% nos recursos especiais, 86% nos extraordinários e 95% naqueles endereçados à Turma Nacional de Uniformização dos Juizados Especiais Federais[36].

Também no Tribunal Regional do Trabalho da 4ª Região (TRT4), a IA auxilia na admissibilidade dos recursos de revista, representando aumento de produtividade nesta tarefa de 20%, apenas em 2020[37].

No Superior Tribunal de Justiça (STJ), a aplicação Sócrates auxilia os ministros relatores com informações relevantes, como por exemplo, se o caso se enquadra nos repetitivos do Tribunal, a legislação aplicada e até mesmo processos semelhantes já julgados com o mesmo assunto.

No Supremo Tribunal Federal (STF), o sistema Victor, desenvolvido em parceria com a Universidade de Brasília (UnB), auxilia na aferição do requisito da repercussão geral (art. 102, § 3º, da Constituição Federal de 1988). Os testes realizados até agora, com os 27 temas mais recorrentes (que representam 60% do total de temas regularmente identificados), permitiu um nível de precisão na triagem de 84%. Espera-se que Victor possa fazer em apenas 5 segundos o trabalho que os servidores da Corte hoje levam 44 minutos para executar[38].

E isto é apenas o início do processo de integração da tecnologia com a advocacia e a prestação jurisdicional. Muitas pesquisas e projetos seguem em curso, não sendo de se duvidar que uma revolução no modo de fazer Justiça esteja a caminho. Neste campo, o humano continuará tendo papel central e fundamental. As tecnologias poderão auxiliar, contudo, com informações mais precisas, procedimentos mais automatizados, previsões mais acuradas, estatísticas aplicadas à solução de problemas concretos. Enfim, há amplo potencial para que a Justiça seja entregue de modo melhor e mais célere. Os humanos, todavia, precisarão readequar suas habilidades e aprender novos métodos para interagir, ao invés de competir, com as máquinas[39], de modo a aproveitar todo o potencial que a tecnologia oferece para poupar esforços humanos para aquelas tarefas que só estes podem executar.

4. Alguns questionamentos legais – e respostas – sobre a aplicação da tecnologia ao Direito

Toda revolução acarreta resistências. Há o medo do novo, a desconfiança com o desconhecido. No Direito, isto se manifesta mais claramente através de questionamentos quanto à legalidade de novos procedimentos estabelecidos. Nesta fase inicial de incorporação de tecnologias ao Direito, as audiências virtuais têm sido o maior alvo de impugnações.

Isto é espelhado por julgamento proferido no Habeas Corpus 590.140 pelo Superior Tribunal de Justiça (STJ). A impetração sustentava que a audiência virtual inviabilizava a plena defesa do acusado em processo penal (o procedimento de videoconferência não garantiria a paridade de armas nem o contato do acusado com seu advogado no momento do depoimento das testemunhas de acusação). A Corte Superior, porém, entendeu que “a conjuntura atual de crise sanitária mundial é excepcionalíssima e autoriza, no âmbito de processos penais e de execução penal, a realização de atos (por exemplo, sessões de julgamento, audiências e perícias) por sistema áudio visual sem que isso configure cerceamento de defesa”[40]. Medidas compensatórias, como a prática de atos em tempo real, a segurança da informação e da conexão, a garantia de comunicação do réu com seu advogado e a participação do acusado na integralidade do ato podem fazer da audiência virtual meio tão idôneo aos fins desejados como a própria audiência presencial.

A União Europeia se depara com a temática há mais tempo, como denota o caso MARCELLO VIOLA v. ITALY, julgado pela Corte Europeia de Direitos Humanos entre 2008 e 2009. Viola havia sido condenado criminalmente pela Justiça italiana. Nas sessões de apelação, sua participação ocorreu por videoconferência, o que, em sua ótica, contrariava seu direito a um julgamento justo, tal qual estabelecido pela Convenção Europeia de Direitos Humanos. A Corte entendeu, com base em normas da própria comunidade europeia, que havia substrato jurídico para permitir a oitiva por videoconferência e que o meio virtual se adequava ao parâmetro de garantia de um julgamento justo, previsto no art. 6º da Convenção[41].

Já no contexto da pandemia, o Conselho Consultivo de Juízes Europeus emitiu relatório sobre o papel dos juízes na pandemia e nos seus momentos seguintes[42]. O estudo ressalta que em situações de emergência, como a vivenciada na pandemia, o uso dos meios virtuais para procedimentos judiciais é ainda mais justificável, tendo a finalidade especial de demonstrar que “a Justiça está sendo prestada aberta e publicamente”.

Expressa, também, preocupação com minorias, como crianças e mulheres sujeitas à violência doméstica, que tendem a ser os mais prejudicados com o fechamento físico dos prédios judiciários; bem como o papel do Judiciário na preservação da democracia e harmonia dos Poderes no momento de crise, recomendando que os Estados membros destinem os recursos necessários para a plena operação do Judiciário, a despeito da crise sanitária. Em relação ao futuro, destaca que o desenvolvimento de novas tecnologias e o progressivo incremento de sistemas de videoconferência no Judiciário criam novas possibilidades para garantir a oitiva de testemunhas, peritos e acusados, tudo de acordo com precedentes da Corte Europeia de Direitos Humanos.

A Comissão Europeia para  Eficiência da Justiça (CEPEJ), órgão ligado ao Conselho da Europa, também emitiu recomendações sobre o funcionamento da Justiça na pandemia e nos seus momentos posteriores[43]. Uma das reflexões é no sentido de que o abandono das tecnologias implementadas durante a pandemia, inclusive as audiências virtuais, deve ser estudado com cautela, especialmente diante do estoque de casos que pode ser gerado pelo momento de excepcional.

Quanto às audiências virtuais, ressalta que “algumas medidas pretendidas a curto prazo podem se tornar permanentes (por exemplo, audiências online, etc.)”. E acresce que a crise pode trazer “oportunidades positivas para o judiciário fazer algumas mudanças muito necessárias”.

Nos Estados Unidos, a tendência também é de que as audiências por videoconferência se tornem a regra; muito juízes expressam a intenção de manter as audiências virtuais após a pandemia, embora ainda existam preocupações com a harmonização deste meio com o acesso à Justiça. Na mesma linha, muitos advogados têm manifestado preocupação com a reabertura das Cortes enquanto não houver plena segurança sanitária[44].  

Enquanto uma nova realidade parece se impor, algumas cautelas são pertinentes. Por exemplo, se constatou que muitos juízes dispuseram de meios tecnológicos próprios e certa dose de improvisação para se adaptar ao cenário de pandemia. Este não é caminho ideal, pois traz implicações na seara da segurança digital e da privacidade. Também, é recomendável que contratações de novos funcionários aguarde uma melhor definição de cenário, haja vista que novas ferramentas e métodos estão sendo implantados, o que pode reduzir a necessidade de certos profissionais e ampliar a necessidade de outros[45].

Com efeito, há grande motivação baseada em relações de custo-eficiência para manutenção de ferramentas implementadas durante a pandemia. A elas, contudo, precisa-se aliar, com mente aberta e olhos para a frente, salvaguardas que permitam conciliar o novo com o império da Lei (Rule of Law)[46]. Isto alcançado, o acesso à Justiça será não apenas garantido, mas oferecido em maior e melhor escala.

Considerações finais

O acesso à Justiça precisa ser garantido e ampliado. Os direitos enunciados precisam ser efetivados quando violados ou negligenciados. Para tanto, não basta que o Judiciário seja acessível; é preciso que resolva os conflitos em tempo razoável, com equidade e justiça.

A pandemia pareceu ameaçar esta baliza. As Cortes de Justiça tiveram suas portas fechadas e muitas delas paralisaram os trabalhos por alguns momentos. Contudo, logo se viu que a tecnologia permitia o funcionamento do Judiciário, com portas fechadas no mundo real, mas abertas plenamente no virtual.

As novas tecnologias, algumas até nem tão novas, mas revigoradas na crise, trouxeram um ânimo de inovação e permitiram questionar o modo como a Justiça vinha sendo prestada e como pode ser melhorada. Processo eletrônico, audiências virtuais e o mundo novo e de fronteiras imprevisíveis da inteligência artificial podem transformar o Judiciário para melhor.

Neste caminho, é preciso não ceder ao receio da novidade, olhar para a frente, explorar outros horizontes, o que pode ser feito – e deve ser feito – com respeito ao império da lei e do Direito, que só tem a ganhar com a conciliação de novas ferramentas com as diretrizes legais.

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Sobre o autor
Tiago do Carmo Martins

Juiz Federal. Professor de Direito Administrativo na Escola da Magistratura de Santa Catarina. Doutorando em Direito.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

MARTINS, Tiago Carmo. Acesso à Justiça e pandemia. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 26, n. 6412, 20 jan. 2021. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/88048. Acesso em: 20 nov. 2024.

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