As tensões entre os profissionais assistentes e os auditores dos planos de saúde (OPS) são cada vez mais notórias. A situação é agravada pelas dificuldades enfrentadas pelo mercado de saúde, como o excesso de profissionais com má formação, associado à má remuneração e à situação econômica precária do país.
O aliciamento de fornecedores de dispositivos médicos de implantação e materiais especiais (OPME) catalisa os abusos e fraudes em pedidos de procedimentos e eventos em saúde suplementar, pois envolve uma “reserva técnica” entre 20 a 40% dos custos totais da guia de solicitação de cirurgia. Trata-se de denominação mitigada para a infração ética de obtenção de lucro ou vantagem por meio de comercialização de medicamentos, órteses, próteses, materiais especiais ou artigos de implante usados em Odontologia ou Medicina, cuja compra decorra da influência de atividade profissional. Neste contexto, os profissionais facilmente se seduzem em sobreindicar terapias, indicar terapias precocemente, ou pedir material em excesso, ou de escolhas pelo mais caro, a fim de aumentar sua “comissão”. A conhecida “máfia das próteses” versa exatamente sobre este tópico.
Por outro lado, além de motivações escusas de parcela dos profissionais assistentes, temos número não desprezível de profissionais das operadoras despreparados, subservientes às OPS, e, até, igualmente antiéticos, aliciando beneficiários auditados para si ou sua própria equipe, em flagrante delito.
Esta guerra de entendimentos técnicos disformes deixa beneficiários à mercê de uma miríade de indicações clínicas contraditórias, não embasadas pela ciência, mas por interesses econômicos subalternos, revestidos de ciência. Colabora para este panorama o fato de que raras pautas em saúde têm entendimentos pacificados, sendo área de constante evolução, dinâmica e, não obstante, com possibilidade de mais de uma verdade coexistente.
O cenário descrito depende totalmente de regulação, normatização, controle e fiscalização das atividades que envolvem a assistência suplementar à saúde. Neste aspecto, a Lei nº 9.961, de 28 de janeiro de 2000, criou a Agência Nacional de Saúde Suplementar (ANS), instância reguladora do setor, a fim de cumprir a Lei nº 9.656, editada em junho de 1998, que dispôs sobre os planos e seguros privados de assistência à saúde, com a finalidade de promover a defesa do interesse público na assistência suplementar à saúde, regulando as operadoras setoriais, inclusive quanto às relações destas com prestadores e consumidores, contribuindo para o desenvolvimento das ações de saúde no País.
A sinistralidade crescente das OPS frente aos casos de abusos e fraudes atinge frontalmente o mutualismo em que se baseia a saúde suplementar do Brasil, ameaçando o direito coletivo dos beneficiários e a impossibilidade de arcar com os custos crescentes dos planos de saúde. Neste esteio, a ANS permite às operadoras de saúde (OPS) a implementação de mecanismos de regulação, ou seja, os meios ou recursos técnicos, administrativos ou financeiros utilizados pelas operadoras para gerenciamento da prestação de ações e serviços de saúde. São adotados pelas OPS com a finalidade de controlar ou regular a demanda ou a utilização pelos beneficiários dos serviços cobertos nos planos de saúde. Não obstante, estes devem estar previstos em contrato e informados clara e previamente ao beneficiário no material publicitário, no contrato e no livro da rede de serviços.
Dentre os mecanismos de regulação normalizados, a autorização prévia de procedimento de saúde consiste em avaliar a solicitação antes da realização de determinados procedimentos de saúde. Para isto, a auditoria interna da OPS é a ferramenta de controle dos custos e de avaliação da qualidade da assistência à saúde. Assim, o profissional da operadora, ou auditor, é o técnico especializado na sua área de conhecimento que avalia a adequação técnico-assistencial da indicação clínica de cada pedido em saúde suplementar.
Isto posto, temos que a função do auditor da operadora é avaliar a parte técnica e técnico-científica do pedido, por meio das documentações enviadas pelo assistente do caso. A descrição clínica e os exames complementares são a base de sua auditoria, com vistas à pertinência da: 1) classificação de internacional de doenças (CID-10), 2) da terminologia (Tabela 22 da TISS/2017) e códigos de procedimentos (TUSS) e da 3) lista de OPME indicada.
Deste modo, vê-se que o(s) CID-10 devem estar totalmente alinhados com os sinais e sintomas do caso e se o(s) código(s) escolhido(s) é(são) o(s) representante(s) fiel(eis) da problemática que o beneficiário apresenta. Muitos casos têm códigos trocados culposamente, por ignorância da classificação internacional de doenças, ou dolosamente, em tentativa de exagerar em diagnóstico, infração ética comum à Odontologia e Medicina.
Uma segunda parte da auditoria em saúde suplementar envolve a avaliação da procedência técnica dos códigos TUSS escolhidos pelo profissional requisitante. Muitos casos apresentam troca deliberada de códigos para tornar um procedimento não coberto em rol mínimo de procedimentos da ANS em cirurgia/terapia cobertos. Esta manobra é vista comumente na prática diária da auditoria em saúde suplementar, razão pela qual o auditor precisa ser conhecedor profundo dos diagnósticos e terapias afetos à sua especialidade, a fim de entender a fraude/abuso de se indicar procedimento não relacionado ao correto diagnóstico do caso.
Muitas vezes, a troca deliberada é feita em ambos, CID e TUSS, o que torna a auditoria praticamente impossível a auditores sem formação específica na área de conhecimento médico, ou de Cirurgia Bucomaxilofacial abordada. Outros casos envolvem pedido de inúmeros códigos TUSS para inflar o reembolso do beneficiário, com uso de códigos em duplicidade ou de procedimentos já inclusos em outros códigos realmente procedentes. Temos clara ação de exagerar em terapêutica, demanda de alçada ética dos conselhos profissionais, se as OPS enviassem as documentações para este mister.
Contudo, a maior prática improcedente repousa na lista de OPME de alguns requisitantes, com itens em quantidade exagerada, itens sem relação com o TUSS do caso, itens com marca/fabricante exclusivos, e até inconcebível escolha de fornecedores dos OPME pedidos. Estas condutas são todas previstas na Tabela 38 da TISS/2017, de terminologia de negativas e glosas da ANS. Alguns casos específicos são tratados em Pareceres Técnicos da ANS, como a exclusão de cobertura de produtos personalizados, como as “próteses customizadas”. Assim, quanto mais sabedor das diretrizes legais, melhor será um relatório de pedido de procedimento ou de segunda opinião. Aqui, a ignorância da legislação envolvida fada o beneficiário às intempéries de uma cirurgia desnecessária ou de uma negativa infundada, ambas deletérias à saúde pública.
Se tivermos divergência técnica em CID, TUSS e/ou OPME entre o entendimento do assistente do caso e do auditor da OPS, esta deve ser avaliada por um terceiro profissional, denominado de desempatador, em uma junta. Os critérios para a realização de junta médica ou odontológica, formada para dirimir divergência técnico-assistencial sobre procedimento ou evento em saúde a ser coberto pelas operadoras de planos de assistência à saúde, são dispostos na Resolução Normativa da ANS no 424, de 26 de junho de 2017. O parecer da junta é acatada pela OPS e finda o processo, que dura até 21 dias úteis para procedimentos de alta complexidade e cirurgias. Entretanto, nada impede o assistente de ingressar com novo pedido, ajustado ou não, para nova regulação assistencial prévia.
Deste modo, é um erro a afirmação de que o profissional que assiste o beneficiário é o único e melhor para decidir qual é o tratamento adequado ao caso. Esse argumento ignora o enorme conhecimento e participação técnica depositados na elaboração do Rol de Procedimentos da ANS e nas suas diretrizes de utilização. Além disso, sem uma regulação técnica prévia há maior chance de atuações escusas, motivadas por promessas de ganhos fáceis e indevidos.
Já a judicialização em saúde criou mais desigualdade e injustiça, pois interpretações contraditórias pelo Judiciário, restando procedente toda e qualquer terapia existente, não importando seu custo ou eficiência, criaram interferências entre poderes, assimetrias e custos elevados, sempre repassados aos demais beneficiários. Hoje, temos que “é lícita a exclusão de cobertura de produto, tecnologia e medicamento importado não nacionalizado, bem como tratamento clínico ou cirúrgico experimental", segundo o Conselho Nacional de Justiça (CNJ). Entretanto, o Superior Tribunal de Justiça (STJ) e o Supremo Tribunal Federal (STF) ainda não possuem entendimento unificado sobre o tema, demonstrando tamanha diversificação de entendimento na área.
Por tratamento experimental, o Conselho Federal de Medicina entende como aquele que ocorre dentro de uma pesquisa determinada, vinculada a um pesquisador e a uma instituição de pesquisa, dentro de um contexto científico restrito. Quando há um tratamento experimental o paciente torna-se parte de uma pesquisa; é submetido a procedimento que ainda não foi aprovado pelo Conselho Federal de Medicina e que não conta com o reconhecimento da comunidade científica em geral.
Assim, “a cláusula contratual que exclui a cobertura de tratamentos experimentais exime a operadora de negativa indevida quando a técnica convencional se mostra suficientemente eficaz, segura e adequada para a salvaguarda da saúde ou da vida do paciente”. Mesmo assim, há falta de informação clara, ostensiva e precisa sobre essa limitação, o que gera as dissensões em nível administrativo e judicial sobre o tema.