10. Efeito secundário da condenação: incapacidade para o exercício da guarda ou tutela de animais
A sentença condenatória acarreta, além dos efeitos propriamente penais, efeitos secundários de natureza civil ou administrativa (extrapenais), que não possuem caráter punitivo, mas preventivo.
O art. 91 do Código Penal prevê efeitos extrapenais genéricos, automáticos e imediatos, ou seja, que não dependerão de declaração judicial.
Por outro lado, o art. 92 do mesmo diploma legal prevê efeitos extrapenais específicos, os quais, ao contrário dos efeitos genéricos, devem ser justificados na sentença.
Dessa forma, é importante constatar que a sentença penal condenatória, pelo crime qualificado previsto no art. 32, § 1º-A, da Lei 9.605/1998, pode produzir um efeito extrapenal secundário: como se trata de condenação por crime doloso sujeito à pena de reclusão, cometido contra animal sujeito à guarda e à tutela, o juiz, na sentença, pode declarar a incapacidade do condenado para o exercício da guarda e tutela de animais, nos termos do art. 92, II, do Código Penal.
Essa eficácia torna-se possível a partir do momento em que a Lei 14.064/2020 estabeleceu, expressamente, a guarda como um novo vínculo jurídico entre humanos e animais (ao menos em relação a cães e gatos). Acontece que a guarda é um dos elementos componentes da tutela (art. 1740, III, combinado com o art. 1634, II, ambos do Código Civil), instituto o qual, notoriamente, se associa à relação entre humanos e animais domésticos, especialmente no âmbito das chamadas famílias multiespécies: não se fala mais em dono do cão ou do gato, fala-se em tutor do cão ou do gato. A possibilidade de se aplicar institutos do Direito das Famílias à relação entre humanos e animais já foi legitimada pelo Superior Tribunal de Justiça, em importante precedente (STJ, 4ª Turma, REsp 1713167/SP, Rel. Min. Luis Felipe Salomão, julgado em 19/06/2018, publicado em 09/10/2018). Além disso, o enunciado 11 do Instituto Brasileiro de Direito de Família (IBDFAM) afirma que “Na ação destinada a dissolver o casamento ou a união estável, pode o juiz disciplinar a custódia compartilhada do animal de estimação do casal.”
Ora, o art. 92, II, do Código Penal estabelece como efeito secundário da sentença penal condenatória, “a incapacidade para o exercício do poder familiar, da tutela ou da curatela nos crimes dolosos sujeitos à pena de reclusão cometidos contra outrem igualmente titular do mesmo poder familiar, contra filho, filha ou outro descendente ou contra tutelado ou curatelado.”
A presente hipótese se amolda perfeitamente a esse dispositivo legal: incapacidade para o exercício da tutela nos crimes dolosos, sujeitos à pena de reclusão, cometidos contra o tutelado (no caso, o animal).
Essa eficácia sentencial é muito importante porque é a partir dela que se protegerão os animais contra o condenado cujo comportamento se revela incompatível com a guarda e tutela de animais, pois essa incapacidade pode ser estendida para alcançar outros animais, além da vítima do crime. Afinal, não é razoável que o condenado perca a guarda do animal abusado, maltratado, ferido ou mutilado, permitindo-se que o mesmo crime venha a ser praticado contra os outros animais que estão, ou que venham a estar, sob a guarda do condenado. Essa possibilidade violaria a regra da proibição da crueldade, disposta no art. 225, § 1º, VII, da Constituição Federal e o correlato princípio da dignidade animal.
Como esse efeito da sentença condenatória não é automático, exigindo fundamentação específica (art. 92, parágrafo único, Código Penal), permite-se ao juiz considerar as peculiaridades de cada caso para definir, com mais justiça, a extensão dessa eficácia incapacitante. Em outras palavras, o juiz, na sentença condenatória, perquirindo o que o caso concreto revela (especialmente as circunstâncias judiciais do art. 59 do Código Penal), poderá definir a amplitude dessa incapacidade, visando a proteger outros animais de futuras vulnerações à sua dignidade individual.
Quanto ao animal vítima do crime qualificado, em relação ao qual se operou a perda da guarda, essa incapacidade para guarda e tutela será permanente, pois é vedada a reintegração na situação anterior, mesmo em caso de reabilitação criminal do condenado (art. 93, parágrafo único, CP). No tocante a outros animais, a incapacidade é provisória, podendo o condenado, caso reabilitado, reaver a sua capacidade para guardar e tutelar animais (art. 93 et seq., CP), por meio de nova decisão judicial.
Reafirme-se que se tratam de efeitos extrapenais, de natureza não punitiva, mas sim preventiva, não havendo que se falar, nessa hipótese, de bis in idem entre a pena do tipo qualificado e o efeito extrapenal do art. 92, II do Código Penal.
Ainda que a declaração judicial da incapacidade para o exercício da guarda e tutela de animais, como eficácia da sentença condenatória, possa se operar de ofício, é recomendável que o Ministério Público o requeira expressamente, dada a novidade que a nova Lei representa na prática do foro criminal.
11. Busca e apreensão do animal
Dentre outras razões, o Código de Processo Penal autoriza a busca visando a apreender pessoas vítimas de crimes (art. 240, § 1º, g).
Ainda que nos dias atuais sejam encontrados obstáculos jurídicos para se afirmar que os animais sejam pessoas, dada a ausência de atribuição legal de personalidade civil (tema controvertido, no entanto), é certo que são seres vivos dotados de valor intrínseco e dignidade própria (art. 225, § 1º, VII, in fine, Constituição Federal) e que são as vítimas do crime previsto no art. 32 da Lei 9.605/1998.
Dessa forma, também pelo permissivo da alínea g do parágrafo primeiro do art. 240 do CPP pode ser requerida a busca e apreensão dos animais envolvidos no crime do art. 32 da Lei 9.605/1998, considerando, além do mais, que o art. 3º do CPP admite interpretação extensiva e aplicação analógica, bem como o suplemento dos princípios gerais de direito, para a aplicação do Direito Processual Penal.
Essa medida se apresenta ainda mais adequada quando se tratar de cães e gatos, dado que a proibição da guarda é prevista como pena definitiva em resposta ao cometimento do crime qualificado (art. 32, § 1º-A, Lei 9.605/1998), além da possibilidade de declaração da incapacidade para o exercício da guarda e tutela de animais, como efeito secundário da sentença penal condenatória, conforme visto anteriormente.
A restrição decorrente dessa medida processual deve persistir durante todo o processo (art. 118, CPP) e, no caso de cães e gatos, será substituída pela pena de perda da guarda, aplicada pela sentença penal condenatória, após seu trânsito em julgado (art. 147, Lei 7.210/1984 – Lei de Execuções Penais). Caso o animal vítima do crime (simples ou qualificado) seja tutelado por outro humano que não o réu ou o indiciado, é cabível o pedido de restituição, fundado no art. 120 do CPP.
Em função do princípio da primazia da liberdade natural, extraído do art. 25, § 1º da Lei 9.605/1998, os animais apreendidos “serão prioritariamente libertados em seu habitat ou, sendo tal medida inviável ou não recomendável por questões sanitárias, entregues a jardins zoológicos, fundações ou entidades assemelhadas, para guarda e cuidados sob a responsabilidade de técnicos habilitados.” E, até que os animais sejam entregues às instituições mencionadas nesse parágrafo, “o órgão autuante zelará para que eles sejam mantidos em condições adequadas de acondicionamento e transporte que garantam o seu bem-estar físico.” (art. 25, § 2º).
No caso dos animais domésticos, porém, especialmente os animais de companhia, como cães e gatos, descabe sua reintegração ao “habitat”, dado não serem animais silvestres, devendo ser encaminhados a programas de acolhimento institucional ou familiar de animais.
Descabe nomear o próprio infrator como depositário do animal (art. 840, § 1º, Código de Processo Civil, por analogia), pois isso significaria devolver a vítima ao seu algoz, prática que contraria o espírito protetivo inspirador da própria medida (alínea g do parágrafo primeiro do art. 240 do CPP).
12. Responsabilidade penal da pessoa jurídica
O art. 3º da Lei 9.605/1998 determina que as pessoas jurídicas também sejam responsabilizadas administrativa, civil e penalmente, nos casos em que a infração seja cometida por decisão de seu representante legal ou contratual, ou de seu órgão colegiado, no interesse ou benefício da sua entidade. Nesse caso, a responsabilidade das pessoas jurídicas não exclui a das pessoas físicas, autoras, coautoras ou partícipes do mesmo fato.
Isso que dizer que, além do efetivo molestador do animal (cf. art. 32 da Lei 9.605/1998), a pessoa jurídica a que ele pertence também poderá sofrer responsabilização penal. Assim sendo, maus-tratos praticados no âmbito de petshops, canis ou gatis poderão atrair a responsabilização conjunta do responsável direto pelos maus-tratos e da respectiva pessoa jurídica.
As penas aplicáveis às pessoas jurídicas são previstas nos arts. 21 a 23 da Lei 9.605/1998, sendo que, de acordo com o art. 24 da mesma lei, “a pessoa jurídica constituída ou utilizada, preponderantemente, com o fim de permitir, facilitar ou ocultar a prática de crime definido nesta Lei terá decretada sua liquidação forçada, seu patrimônio será considerado instrumento do crime e como tal perdido em favor do Fundo Penitenciário Nacional.”
13. Prescrição da pretensão punitiva
Para o crime contra a dignidade animal, na sua modalidade simples (art. 32, caput e § 1º), a prescrição da pretensão punitiva se opera em 4 (quatro) anos, nos termos do art. 109, V, do Código Penal.
Para o crime qualificado contra cães e gatos, a prescrição é mais elástica, permitindo mais tempo para a persecução criminal: 12 (doze) anos, nos termos do art. 109, III, do Código Penal.
14. Concurso de crimes
Cada animal vítima de abuso, maus-tratos, ferimento, mutilação ou experimentação indevida ou abusiva é sujeito passivo de um crime doloso tipificado no art. 32 da Lei 9.605/1998, seja na sua forma simples, seja na sua forma qualificada.
Isso significa que a existência de mais de um animal vitimado pelo infrator produz mais de um crime, atraindo as regras sobre concurso de crimes.
Diante disso, constatada a prática de mais uma ação ou omissão, em contextos distintos, estando ausente os requisitos autorizadores da continuidade delitiva, o agente incorrerá no concurso material de crimes (art. 69, caput, CP), adotando-se, nesse caso, o critério da cumulação material de penas (somando-se as penas). A título exemplificativo, poder-se-ia pensar na hipótese em que o agente, em determinado dia, lesiona, mediante chutes, um cão, e, em dia distinto, estrangula um gato.
De outro modo, praticada uma única ação ou omissão e que atinja, concomitantemente, dois ou mais animais, será caso de concurso formal próprio de crimes (art. 70, 1ª parte, CP), hipótese em será aplicada uma única pena se iguais (concurso formal homogêneo), com acréscimo de um sexto até metade, ou a mais grave, se diferentes (concurso formal heterogêneo), exasperada nos mesmos índices (critério da exasperação de penas). Seria a hipótese de um agente que lança chumbinho venenoso para matar um gato, e acaba matando, além do alvo pretendido, outros animais que também se encontram visivelmente no local, para o que o agente assume o risco de produzir os demais resultados mortíferos (o dolo eventual). O agente, com sua conduta única, quer matar um gato, mas assume o risco de matar outros, o que de fato ocorre.
Esses crimes também poderão ser cometidos em concurso formal impróprio (art. 70, caput, 2ª parte, CP), na hipótese em que a ação ou omissão é dolosa e os crimes concorrentes resultam de desígnios autônomos, autorizando a aplicação cumulativa das penas. Imagine-se a hipótese em que o agente aguarda uma cadela parir seus filhotes e, ocorrido o parto, abandona todas as crias, deixando-as à própria sorte. Existem desígnios autônomos pois o agente tem o propósito de produzir, com uma única conduta (abandonar os filhotes), mais de um crime (maus-tratos em relação a cada um dos filhotes).
Ademais, ainda poderá ser caracterizada a continuidade delitiva (crime continuado), quanto o agente, mediante mais de uma ação ou omissão, praticar dois ou mais crimes da mesma espécie (no caso, os crimes do art. 32 da Lei 9.605/1998) e, pelas condições de tempo, lugar, maneira de execução e outras semelhantes, devem os subsequentes ser havidos como continuação do primeiro. Nesse caso, aplica-se-lhe a pena de um só dos crimes, se idênticas, ou a mais grave, se diversas, aumentada, em qualquer caso, de um sexto a dois terços (art. 71, caput, CP).
Na circunstância de ocorrer o concurso entre um crime no seu tipo simples e outro no seu tipo qualificado (o infrator maltrata um coelho e um cão que estão sob sua guarda, por exemplo), também haverá a cumulação de penas, caso caracterizado o concurso material ou concurso formal impróprio, ou a exasperação de penas na hipótese de concurso formal próprio ou continuidade delitiva.
Nessa última hipótese, ambos os crimes (mesmo o crime contra o coelho, ainda considerado de menor potencial ofensivo) serão processados perante a Justiça criminal comum, dada a conexão, mas remanesce a possibilidade de transação penal em relação ao crime de menor potencial ofensivo (art. 60, caput e parágrafo único da Lei 9.099/1995, com a redação dada pela Lei 11.313/2006). Não obstante, “O benefício da suspensão do processo não é aplicável em relação às infrações penais cometidas em concurso material, concurso formal ou continuidade delitiva, quando a pena mínima cominada, seja pelo somatório, seja pela incidência da majorante, ultrapassar o limite de um (01) ano” (súmula 243 STJ). No mesmo sentido: “Não se admite a suspensão condicional do processo por crime continuado, se a soma da pena mínima da infração mais grave com o aumento mínimo de um sexto for superior a um ano” (súmula 723 STF).