2. Do princípio da proibição da proteção deficiente (üntermassverbot[24]) como parâmetro de controle de constitucionalidade.
Superada a fase histórica centrada no eu e a presunção de que as relações individuais são equilibradas, a sociedade e a própria noção de Estado evoluíram. O desiquilíbrio das relações individuais se agravou. Novos direitos foram apreendidos da realidade. Noções de coletividade e de fraternidade trouxeram novos coloridos para a definição de bens jurídicos. O plural era tão senão mais importante do que o singular no contexto contemporâneo de sociedade. Aos direitos fundamentais individuais, portanto, agregaram-se os direitos fundamentais transindividuais, cujo traço característico é justamente a compreensão de que o ser humano é um ser social e de que há bens e valores que se sobrepõe ao interesse individual, devendo por todos ser preservados.
Contudo, enquanto ao Estado bastava, inicialmente, a adoção de uma postura negativa (garantismo negativo) para a conservação dos direitos e liberdades individuais, a complexidade da dinâmica social, agravada pela disparidade econômico-social e pela existência de poderes sociais que atuam no plano da realidade de forma desequilibrada, fez despertar a necessidade de que o Estado passasse para uma atuação proativa, seja para garantir o próprio exercício dos direitos e liberdades individuais, seja para albergar os novos direitos reconhecidos (de terceira dimensão). Assim, ao papel clássico do Estado (respeito às garantias individuais por abstenção) agregou-se uma atuação destinada a proteger e concretizar esses direitos, tendo por objetivo a promoção da igualdade social e a dignidade da pessoa humana em sentido amplo.
É aqui que reside o núcleo do princípio da proibição da proteção deficiente (üntermassverbot), outra face do princípio da proporcionalidade: prevendo a Constituição Federal direitos fundamentais, é atribuição do Estado a adoção de postura tendente a concretizar esses direitos e colocá-los a salvo de investidas ilegítimas, seja de parte dos particulares ou do próprio Estado. Em assim não agindo, incorre em inconstitucionalidade por não tutelar, de forma eficaz, os direitos postos. Isso porque os direitos fundamentais, na condição de normas que incorporam determinados valores e decisões essenciais que caracterizam sua fundamentalidade, servem, na sua qualidade de normas de direito objetivo e independentemente de sua perspectiva subjetiva, como parâmetro para controle de constitucionalidade das leis e demais atos normativos estatais[25].
Reforço que há direitos que exigem uma postura ativa por parte do Estado para fins de suas salvaguardas e para sua própria promoção. Prestigiar os direitos fundamentais é dar concretude ao princípio da dignidade da pessoa humana. Por isso, é defeso ao Estado omitir-se desse mister. Daí porque o princípio da proibição da proteção deficiente também alcança as condutas omissivas ou insuficientes do Estado à tutela desses direitos. Nas palavras de Ingo Wolfgang Sarlet:
O Estado - também na esfera penal - poderá frustrar o seu dever de proteção atuando de modo insuficiente (isto é, ficando aquém dos níveis mínimos de proteção constitucionalmente exigidos) ou mesmo deixando de atuar, hipótese por sua vez, vinculada (pelo menos em boa parte) à problemática das omissões inconstitucionais. É nesse sentido que como contraponto à assim designada proibição de excesso expressiva doutrina e inclusive jurisprudência têm admitido a existência daquilo que se convencionou batizar de proibição de insuficiência (no sentido de insuficiente implementação dos deveres de proteção do Estado e como tradução livre do alemão Untermassverbot). Neste sentido, o princípio da proibição de insuficiência atua como critério para aferição da violação de deveres estatais de proteção e dos correspondentes direitos à proteção.[26]
Em sentido muito semelhante, Alexandre Moreira Van Der Broocke assevera que:
(...) conclui-se que o dever de proteção, já consagrado pela jurisprudência e pela doutrina em relação aos direitos fundamentais, deve ser levado em consideração, também, em relação aos demais direitos constitucionais, posto que não há espaço de discricionariedade para a atuação do legislador em relação à efetivação do direito previsto na Lei Maior. Ou seja, se existe previsão constitucional que respalde um direito qualquer, fundamental ou não, é imperativo que o Estado-Legislador desempenhe seu mister, conferindo-lhe o regramento normativo infraconstitucional que possibilite sua plena efetivação. Agindo de forma diversa, seja pela sua postura omissiva (untermassverbot) ou comissiva (übermassverbot), o legislador incide em antinomia inconstitucional.
Ao que parece, a corrente garantista se mostra mais condizente com os desafios que se colocam diante do Estado Democrático de Direito, uma vez que nela a Constituição da República se reveste de maior coercibilidade em relação não só ao Estado-Legislador, como também em face dos demais poderes. Sendo assim, partindo-se da premissa de que o dever de proteção (schutzpflicht) é condição de possibilidade da incidência da proibição da proteção deficiente (untermassverbot), e que, segundo o viés garantista, pode-se afirmar que o dever de proteção se estende para além dos direitos fundamentais, a proibição da proteção deficiente abrange os direitos constitucionais em geral.[27]
Logo, a proibição de proteção deficiente pode ser definida, segundo Carlos Bernal Pulido, como um critério estrutural para a determinação dos direitos fundamentais, a partir do qual poderá ser constatado se um ato estatal viola ou não um direito fundamental de proteção. Trata-se de compreender, assim, o duplo viés do princípio da proporcionalidade: de proteção positiva ou de proteção de omissões estatais. Em outras palavras, tem-se que a inconstitucionalidade pode advir de um ato excessivo do Estado, ou pode advir de uma proteção insuficiente de um direito fundamental por parte deste (e. g., quando o Estado abre mão de determinadas sanções cujo objetivo é a proteção de direitos fundamentais). Esta dupla face do princípio da proporcionalidade decorre da necessária vinculação de todos os atos do poder público à Constituição, e tem como consequência a redução do espaço de conformação do legislador[28].
Dos conceitos e definições fixadas, pode-se concluir pela existência de uma relação simbiótica entre o princípio da proibição da proteção deficiente e o ato de legislar. Ainda que caiba ao legislador, por excelência, o dever constitucional de estabelecer a forma como a proteção e promoção dos direitos fundamentais irá ocorrer (o que se dá, via de regra, por meio de leis), esse exercício terá que ser realizado dentro das balizas constitucionais, funcionando o princípio da proibição de proteção deficiente como um limite mínimo a ser atentado por aquele. Juarez Freitas, equaciona bem a questão: Guardando parcial simetria com o princípio da proibição de excesso (Übermassverbotes), a medida implementada pelo Poder Público precisa se evidenciar não apenas conforme os fins almejados (Ziekonformität), mas, também, apta a realizá-los (Zwecktauglichkeit). Igualmente se mostra inadequada a insuficiência ou a omissão antijurídica causadora de danos.[29]
Aduza-se que sequer há cogitar de interferência indevida na atividade legislativa. O legislador, embora investido pelo povo, não goza de liberdade absoluta para o exercício do seu mister. Deve irrestrita atenção aos preceitos constitucionais no desenvolvimento de sua atividade, a qual, como já exaustivamente exarado, consiste na busca pela promoção e proteção dos direitos fundamentais.
Outrossim, é assente que a democracia não se expressa somente por meio do princípio majoritário, esse considerado a maioria necessária no Congresso Nacional para a aprovação de atos legislativos. A mesma Constituição Federal que garante o direito das maiorias põe a salvo e em igualdade de relevância e importância os direitos das minorais. E, havendo sobreposição indevida e/ou ilegítima de um sobre outro, é inerente à função do Poder Judiciário reequilibrar a balança dando voz àqueles que a tiveram subtraída de forma irregular. Nesse sentido, é a ponderação realizada pelo Ministro Luís Roberto Barroso ao assentar que é da competência do Poder Judiciário promover os valores constitucionais, superando o déficit de legitimidade dos demais Poderes, quando seja o caso. Nas suas palavras:
O déficit democrático do Judiciário, decorrente da dificuldade contramajoritária, não é necessariamente maior que o do Legislativo, cuja composição pode estar afetada por disfunções diversas, dentre as quais o uso da máquina administrativa nas campanhas, o abuso do poder econômico, a manipulação dos meios de comunicação.
O papel do Judiciário, e, especialmente, das cortes constitucionais e supremos tribunais, deve ser resguardar o processo democrático e promover os valores constitucionais, superando o déficit de legitimidade dos demais Poderes, quando seja o caso; sem, contudo, desqualificar sua própria atuação, exercendo preferências políticas de modo voluntarista, em lugar de realizar os princípios constitucionais. Além disso, em países de tradição democrática menos enraizada, cabe ao tribunal constitucional funcionar como garantidor da estabilidade institucional, arbitrando conflitos entre Poderes ou entre estes e a sociedade civil. Estes os seus grandes papéis: resguardar os valores fundamentais e os procedimentos democráticos, assim como assegurar a estabilidade institucional.[30]
Aduza-se que utilização do princípio da proibição da proteção deficiente não se trata de novidade no âmbito nacional. O Supremo Tribunal Federal, em diversas oportunidades, já fez uso expresso dessa ferramenta de controle de constitucionalidade para afastar invalidar normas em descompasso com os preceitos da Carta Maior. Exemplificativamente, cito o RE 418.376, as ADIs 3.510, 6.031 e 5.874, e o HC 104.410.
Dessa feita, não transparece dificuldade alguma em se valer do princípio da proibição da proteção deficiente para fins de realizar controle de constitucionalidade sobre normas editadas pelo legislador que não observam os fins almejados, como também não se apresentam aptas a realizá-los.
3. Da inconstitucionalidade dos §§ 2º e 3º do art. 23 da Lei n. 8.429/92.
Segundo dispõem os dispositivos em comento, o Ministério Público passará a contar com o prazo exíguo de 1 ano (estendido motivadamente por mais 1 ano desde que confirmada pelo órgão superior) para iniciar e encerrar a investigação envolvendo ato de improbidade administrativa.
Contudo, a previsão não supera os juízos da adequação, necessidade e proporcionalidade em sentido estrito.
Primeiro, é de se observar que, se nos voltarmos para o processo criminal uma vez que o legislador, quando conveio, dele fez uso por analogia inexiste prazo decadencial ou prescricional próprio para encerramento da investigação criminal. O Código de Processo Penal estabelece os prazos de 10 dias (se o investigado estiver preso), ou de 30 dias, se solto (art. 10), para o encerramento do inquérito policial. Porém, no §3º do art. 10 do CPP deixa claro que, sendo o fato de difícil elucidação, e o indiciado estiver solto, a autoridade poderá requerer ao juiz a devolução dos autos, para ulteriores diligências, que serão realizadas no prazo marcado pelo juiz. Ou seja, é admitida, desde que de forma fundamentada, sucessivas e ilimitadas prorrogações de prazos na investigação até que se colham os elementos necessários para a formação do convencimento. O que barra o prosseguimento dessas investigações é, apenas, eventual prescrição da pretensão punitiva do Estado, dimensionada de acordo com a pena in abstrato de crime apurado, ou falta de motivação idôneo na realização de outras diligências.
No âmbito do processo administrativo disciplinador, há também previsão para o término do processo, prevendo a Lei n. 8.112/90 o lapso de 60 dias, admitida uma prorrogação pelo mesmo prazo (art. 152). Todavia, como consabido, é assente na doutrina e jurisprudência que inobservância desses prazos não impede o processamento da apuração administrativa disciplinar, ou mesmo gera qualquer tipo de nulidade do procedimento, a menos que demonstrado que o excesso de prazo trouxe prejuízos à defesa do investigado[31] (o que é de dificílima ocorrência). Ou seja, a investigação no âmbito administrativo também não se submete a prazo rígido para encerramento, sendo obstaculizada apenas pela prescrição da pretensão disciplinar.
Mesmo diante desses paradigmas, o legislador resolveu inovar em se tratando de investigação por atos de improbidade. Aqui, o legislador não só não levou em consideração a enorme complexidade dos casos envolvendo a prática de atos de improbidade (seja pela sua sofisticação, seja pelo fato de a burocracia dificultar a obtenção de dados para a comprovação dos fatos), como estipulou a possibilidade de se realizar apenas uma prorrogação, limitando a investigação ao período de apenas dois anos. Não há razoabilidade na disposição.
O legislador estabeleceu como prazo prescricional para a apuração dos atos de improbidade o lapso temporal de 08 anos. Então, indaga-se: por que a investigação apenas poderá se valer do prazo máximo de 2 anos para a apuração do fato? Não há lógica (a não ser a da impunidade) em se limitar o poder investigativo do Ministério Público a uma fração do prazo prescricional para o exercício da pretensão sancionadora. Mesmo que o agente público esteja em condições de ser responsabilizado judicialmente pela prática de conduta ímproba (porque ainda não prescrita a pretensão), caso o Ministério Público não logre êxito de obter provas consistentes de sua responsabilidade provas essas que deverão ser ainda mais robusta considerando as condicionantes impostas pelo legislador por meio da Lei n. 14.230/21 , restará ele impune.
Ora, ao legislador deveria caber a função de, por meio da edição de leis, promover alterações sociais sensíveis, defendendo, promovendo, implementando e incrementado o exercício dos direitos fundamentais. Ao editar alteração legislativa que breca a apuração de condutas cujos resultados sociais são absolutamente graves para a comunidade, faz justamente o contrário: promove o ilícito; desprestigia o homem de bem; favorece o oportunista; incentiva os atos de improbidade; eleva a degradação dos menos favorecidos. Muito oportuna é a correlação entre corrupção administrativa e o comprometimento dos direitos fundamentais do indivíduo realizada por Emerson Garcia:
Esse ciclo [redução de receitas-corrupção-injustiça social] conduz ao estabelecimento de uma relação simbiótica entre corrupção e comprometimento dos direitos fundamentais do indivíduo. Quanto maiores os índices de corrupção, menores serão as políticas públicas de implementação dos direitos sociais. Se os recursos estatais são reconhecidamente limitados, o que torna constante a invocação da reserva do possível ao se tentar compelir o Poder Público a concretizar determinados direitos consagrados no sistema, essa precariedade aumentará na medida em que os referidos recursos, além de limitados, tiverem redução de ingresso ou forem utilizados para fins ilícitos.
(...).
A corrupção, assim, gera um elevado custo social, sendo os seus malefícios sensivelmente superiores aos possíveis benefícios individuais que venha a gerar.[32]
É isso. O custo social que a corrupção administrativa traz consigo é tão nefasto para a sociedade que sequer é possível dimensionar adequadamente os reflexos patrimoniais e sociais. O dano ao erário e eventual enriquecimento ilícitos apurados no processo retratam apenas uma pequena fração das mazelas causadas pela imoralidade. E, ao invés de combater esses malefícios de forma contundente assim como a comunidade internacional vem fazendo cada vez mais, o Brasil, que já fora protagonista no tema, se diminuiu, criando amarras, embaraços, empecilhos para a investigação e penalização daqueles que se mostram indiferentes com o plural, com o coletivo.
Ao assim agir, o Poder Legislativo, que editou a lei, e o Poder Executivo, que a promulgou, atuaram com manifesto déficit de legitimidade constitucional, priorizando interesses próprios e escusos em detrimento de valores de envergadura social e moral que deveriam, por si sós, garantir à sociedade a proibição de condutas dessa natureza. A moralidade administrativa é vetor do Estado Democrático de Direito. A desatenção para com ele coloca em xeque a própria democracia que é fundamento do Estado. Como bem observam Emerson Garcia e Rogério Pacheco Alves:
Numa perspectiva mais teórica, é possível construir a ideia de que os Poderes Legislativos e Executivo, no Brasil, teimam em não aceitar aquilo que o nosso texto constitucional tem de mais contemporâneo, vale dizer, o seu forte conteúdo normativo, a sua vocação para criar direitos fundamentais de plena e imediata fruição no caso, o direito fundamental à probidade e a consagração, fruto da experiência constitucional norte-americana, de ampla possibilidade de intervenção do Poder Judiciário na garantia de tais direitos fundamentais.[33]
Aduza-se que sequer há como interpretar que as normas contidas no § 2º do art. 23 versam sobre um prazo impróprio, isto é, aqueles prazos fixados na lei apenas como parâmetro para a prática do ato, sem consequências processuais ou materiais. É que o legislador, no § 3º do art. 23, impôs que, encerrado o prazo, competirá ao membro do Parquet ajuizar a ação, no prazo de 30 dias, sem qualquer outra possibilidade de prorrogação de prazo. Tal previsão tem justamente o escopo de inviabilizar interpretação dessa natureza.
Logo, o que se afere é que a limitação ao poder investigativo do Ministério Público dentro do próprio prazo para o exercício da pretensão sancionadora pelo Estado engendra a proteção deficiente da moralidade administrativa. Houve, claramente, uma omissão intencional do legislador na tutela de um direito fundamental na sua órbita objetiva uma vez que a drástica redução do prazo para a investigação de fatos ímprobos impedirá a exigibilidade e gozo otimizado do direito fundamental à moralidade administrativa. Como bem pondera Juliana Venturella Nahas Gavião:
Desse modo, em não havendo uma proteção normativa ao direito fundamental, no que tange à sua dimensão objetiva (ou seja, como imperativo de tutela), verifica-se ato de omissão estatal flagrantemente inconstitucional, porquanto impedirá a realização e o desfrute do direito fundamental por seu titular.
Em outras palavras, não existe liberdade absoluta de conformação legislativa, ainda que deva ser reconhecido o espaço que é conferido ao legislador para adaptar os mandamentos constitucionais. E isso exsurge da própria interpretação sistemática do direito, que ensina que os atos estatais devem ser permanentemente pautados pelas diretrizes constitucionais, notadamente na quadra da história e da evolução dos direitos fundamentais que se encontra a humanidade.[34]
Não bastasse a inconstitucionalidade por falta de adequação, necessidade e proteção ineficiente da moralidade administrativa, a norma também padece de inconstitucional por interferir ilegitimamente na atuação do Ministério Público, quer por restringir o poder investigativa no tempo, quer por exigir que eventual prorrogação do inquérito civil deva passar pelo crivo de um órgão de controle.
A Constituição Federal prevê, no art. 127, § 1º, a independência funcional como princípio institucional do Ministério Público. Essa garantia, inerente ao Estado Democrático de Direito, é reproduzida pela Lei Orgânica do Ministério Público (art. 1º, parágrafo único, da Lei n. 8.625/93). Ela tem por desiderato conferir aos membros do Ministério Público o exercício livre e desimpedido das suas atividades-fim, podendo formar sua convicção com base na interpretação razoável da Constituição, das leis e dos fatos jurídicos que estão sendo apurados.
Logo, condicionar a atuação do Ministério Público a uma fração do tempo previsto para o exercício da pretensão sancionadora estipulada para o Estado acaba por, justamente, limitar o exercício livre e desimpedido da função ministerial, afrontando a norma-princípio prevista no art. 127, § 1º, CF.
Ademais, não se pode perder de vista que as alterações promovidas pela Lei n. 14.230/21 conferiram exclusividade ao Ministério Público para o manejo das ações de improbidade administrativa. Disso decorre que o Ministério Público, além de substituto processual de toda a coletividade (no tocante à proteção ao erário), também passou a figurar como único representante do próprio Estado sob o viés punitivo. Isto é, no momento em que o legislador fixou o prazo de oito anos para o exercício da ação de improbidade conferiu esse prazo ao próprio Ministério Público, titular da ação, sendo, no mínimo, incoerente previsão que estipule outro prazo, como se entes distintos fossem.
Também se revela inconstitucional a previsão que condiciona eventual prorrogação do inquérito civil à anuência do Conselho Superior (ou órgão equivalente). Tal exigência acaba por macular a independência funcional que é própria dos membros do Ministério Público. Não há razoabilidade na medida, tampouco há precedente no ordenamento jurídico interno. É nítida a intenção de se criar empecilhos para a apuração de atos tão gravosos para a sociedade. Exigir que haja uma revisão da promoção pela prorrogação das investigações interfere na própria atividade-fim do membro do Ministério Público que, dentre outras, jaz na defesa da moralidade e do patrimônio público (art. 129, III, da CF).
Veja-se que a presente situação ora tratada não possui paralelo com a hipótese de arquivamento do inquérito civil, em ação civil pública, quando há necessidade de reexame necessário pelo Conselho Superior (§ 3º do art. 9º da Lei n. 7.347/85[35]). Isso porque, quando há a opinio pelo arquivamento nas ações civis públicas, há uma potencial lesão ao patrimônio público, uma vez que dado fato supostamente violador do patrimônio público deixará de ser investigado.
Daí porque se exige o reexame da questão por órgão colegiado para averiguar se, realmente, aquele fato que deflagrou a abertura do inquérito civil é atípico ou, ao contrário, revela indícios de lesividade, quando, então, será designado outro promotor para continuar as investigações. Nessa hipótese (de arquivamento), a previsão de reexame necessário, antes de mitigar a tutela do coletivo, coloca-a em destaque. Aí reside a diferença do tratamento despendido pelo legislador: enquanto, na hipótese do arquivamento de ação cível pública, impôs o reexame necessário para salvaguardar direitos fundamentais, na ação de improbidade impôs o reexame necessário para obstar o prosseguimento das investigações, relegando os direitos fundamentais a um segundo plano.
Por todas essas razões, restam caracterizadas as inconstitucionalidades integrais dos §§ 2º e 3º do art. 23.