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Prisões e medidas cautelares à luz da Lei nº 12.403/11

Prisões e medidas cautelares à luz da Lei nº 12.403/11

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Mais uma vez assistimos à jurisdicionalização de problemas que não são principalmente judiciais. A Lei nº 12.403/11 vem no escopo de favorecer ao esvaziamento das prisões, para desafogar os presídios, mas as prisões cautelares já vinham sendo aplicadas como último recurso.

Sumário: 1- Introdução. 2- Uma Análise Crítica. 3- Situação Anterior 4- Alterações da Lei nº 12.403/11: Disciplina Geral das Medidas Cautelares. 5- Prisões: Regras Gerais. 6- Prisão em Flagrante. 7- Prisão Preventiva. 8- Prisão Domiciliar. 9- Outras Medidas Cautelares. 10- Fiança. 11- Prisão Preventiva Decorrente do Descumprimento de Medidas Cautelares e outros Aspectos. 12- Conclusões.


1- INTRODUÇÃO

Em maio de 2011, teve advento a nova disciplina das prisões e medidas cautelares, via alteração do CPP, através da Lei nº 12.403. O processo penal era um dos últimos bastiões que se mantinha infenso às modificações legislativas que já vinham se operando no seu congênere civil havia pelo menos quinze anos. Salvante os casos de leis extravagantes direcionadas à tratativa de espécies delitivas específicas, que eventualmente traziam disciplina processual[1], a única grande modificação de amplo espectro que tinha se verificado no processo penal tinha sido, até então, a lei dos juizados especiais e algumas relativas aos procedimentos codificados.[2]

É, porém, fato notório que a criminalidade também evolui e se altera no mesmo ritmo que a sociedade. Embora os pilares constitucionais da persecução penal sejam mais ou menos estáveis, fundamentados na ampla defesa, no contraditório, no direito de liberdade como regra, respeito aos direitos humanos, e na oficialidade, era certo que o processo penal não tardaria a demandar por mudanças.

Mas admitir estas mudanças como necessárias não significa, por outro lado, asseverar que aquelas que estão sendo paulatinamente inseridas no processo penal estejam corretas ou sejam as mais eficazes.

De qualquer sorte, modificações foram operadas no tocante à cautelaridade no âmbito do CPP, demandando reflexão, e isso se faz ainda mais necessário na seara processual penal do que em outros quadrantes, pois o número de profissionais que têm contato direto com a matéria é significativamente menor do que aqueles que labutam no campo cível, por exemplo.

A proposta deste trabalho é trazer uma análise crítica a partir da visão de quem conta com alguma experiência na área processual penal, transcendendo à mera glosa dos dispositivos e buscando perquirir, com a mesma ênfase com que se costuma tratar normalmente das questões técnicas, as conseqüências concretas das modificações legislativas operadas pela Lei nº 12.403/11.


2- UMA ANÁLISE CRÍTICA

A quem quer que seja que acompanhe a produção legislativa brasileira, em especial a da última década, desponta, de forma evidente, como conclusão de uma análise do contexto, um problema preocupante, o qual eu denomino de jurisdicionalização dos problemas.

Sinteticamente, se pode afirmar que a tônica central deste problema reside na tendência de tornar problemas jurisdicionais questões que, a rigor, não o seriam, ou o seriam apenas secundariamente, residualmente, ou, ainda, questões que, embora apresentando um viés que as torna passíveis de serem encaradas como problemas de repercussão jurídica e jurisdicional, na verdade teriam melhor solução a partir de outra abordagem.

Simplificando, e tornando clara a idéia, o que se tem visto é a transformação de problemas que são antes dependentes de solução a partir da ação do Poder Executivo em problemas cuja solução buscada passa a ser primordialmente jurisdicional, em verdadeira deturpação. Produzem-se, a partir desta premissa, normas pouco funcionais e direcionadas a dar apenas soluções paliativas a problemas antes sociais ou administrativos que jurídicos, no sentido de jurisdicionais.

Aqueles que operam diariamente na justiça brasileira sabem que a cada dia o Judiciário tem ocupado, de forma indevida e forçada, mais e mais espaço na resolução de problemas em cuja alçada somente por exceção deveria interferir. Tem havido uma verdadeira transferência de problemas e responsabilidades que deveriam ser atacados primordialmente pelo Poder Executivo.

Alguns exemplos são emblemáticos. Veja-se a questão da saúde. Hoje tramitam milhões de demandas judiciais buscando atendimento médico. Falha e omissão de quem? Não menos significativo é o número de demandas envolvendo remuneração e vantagens de servidores públicos decorrentes do descumprimento, por parte do poder público, especialmente o executivo, em suas três esferas, das políticas salariais. Mais questões administrativas.

As hipóteses supra espelham situações onde a inércia pura do Poder Executivo acabou por transferir o problema para a esfera judiciária. Há outras, porém, onde esta transferência é comissiva e legislativa. Refiro-me, aqui, especificamente ao problema da violência doméstica, cuja lei foi alardeada aos quatro ventos com pompa e cerimônia como o apanágio de todos os males e que, na prática, além de inconstitucional[3], não passa de um engodo populista. Reporto-me diretamente às medidas protetivas, que são, na prática, inócuas, meros pedaços de papel, desprovidos de eficácia por absoluta falta de estruturas executivas que lhes possam dar concretude empírica[4], cuja implementação caberia ao poder executivo[5]. Problemas que poderiam ser resolvidos ainda na fase administrativa, com a correta intervenção de estruturas adequadas, acabam sendo judicializados a alto custo e sem a produção de soluções efetivas.

Mas qual a pertinência da menção destas hipóteses em vista da nova disciplina das prisões? Simples: Penso eu que mais uma vez um problema eminentemente executivo está sendo abordado primordialmente pelo viés jurisdicional. Este problema é a falta de vagas nas instituições prisionais, e a resposta que está sendo visivelmente buscada é facilitar as liberações de presos para esvaziá-las.

Parte-se de duas premissas equivocadas. A primeira, em parte motivada pelo discurso de intelectuais teóricos, muitos dos quais nunca estiveram em uma sala de audiência ou tiveram, em suas, mãos um PEC (processo de execução criminal), e que repetem surrados discursos superficiais e destituídos de base empírica, diz que o número de presos no Brasil é excessivo. A segunda, igualmente oriunda de pessoas que desconhecem a realidade, se baseia na assertiva de este pretenso excesso de presos decorrer da legislação demasiadamente rígida e da atividade judiciária que a interpreta.

Quanto à primeira afirmação, o número de presos no Brasil é absolutamente proporcional a sua população e não tem, absolutamente, relação com rigores demasiados da legislação. Pelo contrário. Tomados paradigmas de proporcionalidade entre quantidade de presos e população de algumas nações democráticas, se poderia afirmar o contrário, ou seja, que a legislação brasileira é até benevolente. Esta equivocada premissa de um rigor exacerbado é ainda difundida por conta do irreflexivo repetir de frases feitas e conceitos que pretendem ser “politicamente corretos”, mas que não correspondem à realidade, como, por exemplo, o de que a cadeia no Brasil é somente para pobres e isso se deveria a um tratamento diferenciado da Justiça para com pessoas mais abastadas.

Ora, se há mais pessoas pobres nas cadeias isso nada mais reflete a realidade de que há proporcionalmente mais pessoas nesta condição do que abastadas, e, proporcionalmente, elas, a maioria, também se lançam com mais facilidade à pratica de crimes graves, especialmente o tráfico[6], hoje responsável por quase um terço das prisões, ou crimes que envolvem violência contra a pessoa. Quando pessoas em melhores condições financeiras cometem crimes graves como estes, especialmente, repito, aqueles praticados com violência contra a pessoa e o tráfico, também acabam presas, seja cumprindo pena, seja cautelarmente[7].

A outra premissa equivocada reside em se atribuir o número de presos aos rigores da lei. Na verdade, com as penas alternativas e com o juizado especial criminal, somente delitos com penas acima de quatro anos ou casos de delinqüentes reincidentes implicam em prisão como resultado de uma condenação. Com maior razão, também são estas situações as que hoje podem ensejar prisão cautelar.  

Já no que concerne às prisões cautelares, tema que diz mais de perto com esta abordagem, igualmente se obrou a partir de uma perspectiva errada. Ao elaborarem a nova legislação ora em análise, parece que desconheceram, os legisladores, que a aplicação das prisões cautelares, ressalvadas raríssimas exceções, já era tratada como uma medida absolutamente excepcional, condicionada sempre não só à legalidade, mas à constatação da sua imperativa imposição como medida extrema e última alternativa no caso concreto.

O indisfarçado escopo da lei é reduzir a quantidade de presos, criando alternativas à prisão cautelar e alterando sua disciplina. Desconhecem os legisladores que aqueles que estão presos cautelarmente assim estão, em sua quase totalidade, em vista do cometimento de crimes graves ou do reiterado cometimento de infrações. Por outras palavras, são indivíduos em vista dos quais a custódia cautelar se faz efetivamente necessária, e que somente seriam beneficiados por modificações legislativas que, de forma irresponsável, desconsiderassem esta realidade que lhes é própria. A maioria não será atingida pela nova lei.  

O Judiciário, ciente da realidade prisional melhor do que ninguém, pois é em quem os problemas acabam por desembocar, já vinha, de forma geral, aplicando com parcimônia a legislação acerca da prisão cautelar, em todas as suas modalidades. Assim, as alterações da nova lei, almejadas como uma solução ao menos parcial do problema da superlotação das cadeias e presídios, ataca as causas erradas e terá pouquíssima repercussão concreta na realidade.

As causas do problema crônico da superlotação e decadência de nossas prisões não está na legislação das prisões, está na inércia dos administradores e na falta de investimentos[8]. Mais uma vez se busca a jurisdicionalização de uma solução que não pode ser dada pelo Judiciário.

A questão é: Quando as Corregedorias irão se mover para informar juízes, promotores e delegados[9] para que se manifestem concreta e previamente acerca destas alterações legislativas  ou quando irão as pessoas que trabalham com os problemas diretamente ser consultadas a fundo quando da efetivação de um projeto de lei? Por quanto tempo continuaremos a ter legislações fadadas a não funcionar, feitas sem conhecimento efetivo da realidade ou com finalidade meramente de dar uma satisfação formal à sociedade?


3- SITUAÇÃO ANTERIOR

Antes de evoluirmos para a atual disciplina das prisões e medidas cautelares, mister darmos uma breve olhada em como era antes da modificação legislativa.

Anteriormente, tínhamos, basicamente, cinco espécies de prisões cautelares, sendo quatro codificadas e uma constante de legislação extravagante. Eram elas as prisões em flagrante, preventiva, decorrente de sentença de pronúncia, decorrente de sentença penal condenatória e temporária, esta última prevista em lei própria.

Tais prisões eram as únicas formas de cautela que atuavam diretamente sobre a pessoa do acusado.   

A prisão em flagrante é a única que pode ser efetuada por qualquer pessoa, havendo dever em relação à autoridade e seus delegatários. Tradicionalmente foram identificadas três situações de flagrância, configurando os flagrantes próprio, impróprio e ficto. Durante algum tempo, houve certa celeuma doutrinária se uma vez que o julgador recebesse o flagrante, o despachasse e não concedesse a liberdade provisória, estaria apenas mantendo a prisão em flagrante ou decretando a prisão preventiva, pois ambas passaram a ter os mesmos requisitos, nos termos da redação do parágrafo único do artigo 310 do CPP. Hoje, conforme veremos, esta dúvida restou expressamente dissipada.

A prisão decorrente de pronúncia decorria da sentença que encerrava a fase do judicium acusationis nos procedimentos do júri. Ali podia ser mantida a custódia já decretada anteriormente ou feita a decretação no momento da decisão. Outra prisão que decorria de sentença era aquela oriunda da sentença penal condenatória recorrível. A princípio, o recolhimento do acusado à prisão era conditio sine qua nom para conhecimento do eventual apelo interposto por ele, circunstância que foi afastada pela interpretação do princípio da presunção de inocência.

A prisão preventiva podia ser decretada na fase inquisitorial ou após existente processo judicial, fosse a requerimento da acusação, representação da autoridade policial ou mesmo de oficio pelo julgador. Deveria ter como fundamento um dentre os seguintes: garantia da ordem pública ou econômica, conveniência da instrução criminal ou para assegurar a aplicação da lei penal.

A possibilidade de decretação respeitava exclusivamente aos delitos dolosos, em regra nos punidos com pena de reclusão, e, excepcionalmente, os punidos com detenção, desde que, neste último caso, fosse o acusado “vadio” ou, se havendo dúvidas acerca de sua identidade, não fornecesse elementos para sua correta identificação. Ainda era possível a prisão se o acusado houvesse sido condenado por crime doloso, com sentença transitada em julgado, e ressalvada a reabilitação, ou em casos que envolvessem violência doméstica[10].

Também seria necessária a presença de prova da existência e indícios suficientes de autoria. Não era cabível a prisão preventiva quando o agente tivesse praticado o fato sob o pálio de excludente da ilicitude

Já a prisão temporária tem previsão em lei específica, a Lei nº 7.960/89, voltada a crimes cujo rol dela consta, e mediante concurso de pelo menos duas das três hipóteses de seu artigo primeiro. É espécie de prisão com limitação legal de duração[11]


4- ALTERAÇÕES DA LEI Nº 12.403/11: DISCIPLINA GERAL DAS MEDIDAS CAUTELARES

A primeira alteração de monta promovida pela Lei nº 12.403/11 reside na introdução das denominadas medidas cautelares.

A cautelaridade não é novidade no processo penal, visto que a prisão cautelar, sob todas as suas modalidades, é uma manifestação direta da cautelaridade. Ocorre que a cautelaridade voltada diretamente à pessoa do agente somente existia, no processo penal, sob a forma de prisão, de privação de liberdade. As outras formas de cautelaridade, presentes nas medidas assecuratórias, voltam-se à responsabilidade ex delicto, vale dizer, não atingem ao agente em si, mas ao seu patrimônio. Agora a epígrafe do título IX fala em “prisões, medidas cautelares e liberdade provisória”. Embora a epigrafe efetue a separação entre medidas cautelares e prisões, a tratativa da legislação deixa claro que a prisão é uma delas. Passam a existir, assim, outras formas de cautelaridade voltadas diretamente à pessoa do agente.   

O artigo 282 do CPP, que antes tratava da prisão em flagrante, passou a trazer a disciplina das medidas cautelares, que poderão ser aplicadas isolada ou cumulativamente, conforme o caso. Duas linhas de princípios devem ser observados na sua aplicação.

Primeiro, a “necessidade para aplicação da lei penal, para a investigação ou a instrução criminal e, nos casos expressamente previstos, para evitar a prática de infrações penais.” A redação repete, em parte, a disciplina anterior da prisão preventiva, evidenciando a possibilidade de utilização dos institutos ainda mesmo na fase inquisitorial. A redação é bem mais flexível do que a anterior relativa à prisão preventiva, no que se utiliza de melhor técnica. O importante é atrelar a aplicação das medidas à necessidade. A parte final do dispositivo reporta-se, de forma genérica, à possibilidade de cometimento de outras infrações em hipóteses expressamente previstas em lei. Na verdade, esta parte mira especificamente a prisão decorrente da necessidade de fazer cumprir medidas protetivas da lei de violência doméstica, única hoje existente prevista de forma expressa em lei, deixando aberta a possibilidade de que outros casos venham a ser criados por lei. Por outro lado, a tratativa da prisão preventiva estende a possibilidade de decretação dela a casos de violência contra outras categorias de pessoas, conforme se verá a seu tempo.

Ainda deverá ser levada em conta a “adequação da medida à gravidade do crime, circunstâncias do fato e condições pessoais do indiciado ou acusado.” Tais circunstâncias eram igualmente consideradas antes da alteração legislativa. Agora isso apresenta previsão específica. A nova redação também agrega mais flexibilidade ao julgador se comparada à anterior, que se reportava, ao menos no caso da prisão preventiva, a elementos de aferição objetiva (exemplo, a condenação anterior), permitindo melhor adequar a medida ao caso concreto.

Houve substancial mudança quanto à possibilidade de decretação oficiosa da prisão preventiva e agora das medidas cautelares que a abarcam. Como visto anteriormente, em relação à prisão preventiva havia a possibilidade de o magistrado impor a custódia cautelar de ofício, fosse na fase inquisitorial, fosse na judicial. Tal hipótese ordinariamente tinha azo nas situações de crimes graves ou envolvendo agentes reincidentes, não sendo necessária nem mesmo a oitiva prévia do MP para tanto. A redação do atual parágrafo 2° do artigo 282 do CPP eliminou a possibilidade de decretação de ofício na fase inquisitorial como regra. Diz ela que “as medidas cautelares serão decretadas pelo juiz, de ofício ou a requerimento das partes ou, quando no curso da investigação criminal, por representação da autoridade policial ou mediante requerimento do Ministério Público.” No curso de investigação criminal, não é mais possível a decretação de ofício de qualquer medida cautelar, especialmente prisão preventiva, salvo as exceções.

Há duas espécies de exceções à necessidade de pedido ou representação para que seja decretada a prisão preventiva na fase inquisitorial. A primeira consta do parágrafo 4º do artigo 282, que diz que “no caso de descumprimento de qualquer das obrigações impostas, o juiz, de ofício ou mediante requerimento do Ministério Público, de seu assistente ou do querelante, poderá substituir a medida, impor outra em cumulação, ou, em último caso, decretar a prisão preventiva.” Aqui, em caso de descumprimento de medida cautelar anteriormente imposta, é possível a decretação oficiosa, ainda mesmo que seja na fase inquisitorial. Adiante serão vistos outros aspectos (Item 11, abaixo). 

A outra está no parágrafo 5º, segundo o qual “o juiz poderá revogar a medida cautelar ou substituí-la quando verificar a falta de motivo para que subsista, bem como voltar a decretá-la, se sobrevierem razões que a justifiquem.” Tem-se aqui situação na qual o julgador, tomando ciência de que os motivos que ensejaram a decretação de prisão anteriormente retornaram, poderá decretar, mesmo sem que haja pedido, novamente a custódia cautelar, podendo ser durante a fase inquisitorial ou processual.

Outro aspecto antes inexistente (e estamos tomando sempre aqui o paradigma da prisão preventiva) reside na possibilidade de contraditório prévio. Na disciplina anterior, não estava prevista a possibilidade de contraditório prévio à decretação da prisão e tal possibilidade não vingou nem através de critérios pretorianos.

Com o advento da lei de violência doméstica e das prisões decretadas a partir de medidas protetivas descumpridas, a inexistência de contraditório na prisão cautelar deu margem a muitas injustiças, criadas a partir da fraudulenta utilização da lei de violência doméstica com criação de acusações inverídicas voltadas a obtenção de fins predeterminados[12]. Esta condição é pouco conhecida pela população e mesmo nos meios jurídicos[13], tudo por conta da sistemática que vinha sendo observada, e ainda é utilizada na tramitação dos feitos criminais e cíveis (as medidas protetivas) previstas nesta lei.

De fato, uma vez feito registro de ocorrência envolvendo fato que, em tese, pode caracterizar caso de violência doméstica, dois procedimentos tem início, sendo um obrigatório e outro facultativo. Obrigatório é o procedimento criminal, facultativo a medida protetiva, que tem de ser pedida pela pretensa ofendida. Anteriormente a uma recente decisão do STF, a pretensa vítima poderia desistir de levar à frente o procedimento criminal. Por conta disso muitas vezes a pessoa que se dizia vítima desde já asseverava não desejar representar. Resultado é que o processo criminal, tramitando sob a forma de inquérito, estava invariavelmente fadado ao arquivamento quando este desejo de renúncia era ratificado em audiência. Consequentemente, na seara criminal, não teria o acusado o direito de produzir prova em sua defesa, quiçá para demonstrar a inverdade da acusação, ou outras circunstâncias relevantes acerca dos fatos.

Restava o procedimento de medida protetiva. Apesar de ele ser processado, na maioria dos Estados, em varas criminais ou especializadas, cuida-se de procedimento de natureza cível, coisa que passa despercebida a muitos. Aliás, esta natureza cível é a razão de ser do artigo 13 da Lei nº 11.340, que manda aplicar subsidiariamente o CPC aos procedimentos nela previstos. O único procedimento ao qual pode ser aplicada a disciplina do CPC é a medida protetiva.

Ocorre que os julgadores e operadores jurídicos têm desconhecido esta aplicação, que ensejaria conduzir-se o processo de medida protetiva como cautelar cível, de forma a permitir que, uma vez não logrando êxito na conciliação em audiência especialmente designada para esta finalidade, se propiciasse ao acusado a chance de apresentar defesa. O resultado prático desta generalizada omissão é que há medidas protetivas que duram anos sem que o acusado e prejudicado pudesse ter provado fatos em seu favor ou provado a inveracidade da acusação que ensejou a concessão desta forma de cautela cível.

O descumprimento destas medidas pode ensejar a decretação de prisão de natureza cautelar penal. E como a maioria dos envolvidos dispõem de pouco conhecimento acerca de seus direitos, não é raro prisões serem decretadas por descumprimento de medidas protetivas baseadas em acusações falsas ou mesmo sem conhecimento de que cometeu  uma ilegalidade, violando-a, por parte do preso.[14]

Embora a situação tenha se alterado substancialmente em relação ao processo criminal, pois a decisão do STF, proferida no início de 2012, considera as ações relativas à violência doméstica todas públicas incondicionadas, de forma que o acusado terá uma oportunidade de se defender, é certo que a possibilidade de contraditório antes da decretação de prisão cautelar ou de outra medida de natureza cautelar penal, vem em boa hora.

Este contraditório terá campo de aplicação principalmente nestas prisões relativas ao descumprimento de medida protetiva ou vocacionadas a dar efetividade a elas. No mais, a grande a maioria dos casos envolve urgência ou a utilização deste expediente pode comprometer a eficácia da medida. Todavia, observados os termos da nova redação, tem-se que a regra agora é a presença de contraditório e deverá, por conseguinte, o julgador fundamentar a opção pelo não deferimento de contraditório prévio, ainda que isso venha a acontecer na maioria das vezes.

As medidas cautelares, incluída a prisão, não serão aplicadas quando a infração em tese cometida não se cominar pena privativa de liberdade.


5-PRISÕES: REGRAS GERAIS

Do que se infere da nova redação do artigo 283 do CPP, agora existem somente três espécies de prisões cautelares: a prisão em flagrante, a prisão preventiva e a prisão temporária. As prisões decorrentes de sentença de pronúncia e de sentença penal condenatória ainda não transitada em julgado passam a ser prisões preventivas decretadas por ocasião destes atos processuais. À exceção do flagrante, as demais modalidades todas carecem de ordem escrita de autoridade judicial.

O artigo 289, que antes tratava da possibilidade de deprecar-se a prisão, teve acréscimo de dois parágrafos. Agora os parágrafos segundo e terceiro inseridos impõem ao juiz a obrigação de averiguar a autenticidade da ordem de prisão (juízo deprecado), bem como de promover a remoção do preso em prazo máximo de 30 dias (juízo deprecante).

Esta obrigação de promover a remoção certamente que se volta à tomada de todos os atos necessários, pois sua efetivação é coisa diversa, que não depende somente do julgador, estando atrelada a questões administrativas relativas à existência de vaga e ao traslado.

O artigo 289-A, igualmente inserido, cuida da possibilidade de que qualquer agente policial possa efetuar a prisão decorrente de mandado, havendo duas possibilidades. A primeira diz respeito a mandados registrados pelo juiz no cadastro do CNJ[15], no qual devem ser inseridos todos os mandados. A segunda diz respeito a mandados não registrados, em vista dos quais o agente, ao tomar conhecimento, deverá tomar as precauções necessárias para aferir sua autenticidade, e, uma vez realizada a prisão, deverá promover o registro no cadastro. Para tanto, comunicará o juiz da comarca onde realizada a captura, o qual além de providenciar a certidão de registro do mandado, também comunicará ao juízo de origem da ordem. Em caso de dúvida, seja quanto a respeito da autenticidade da ordem, seja quanto à pessoa do executor da prisão, as autoridades locais devem colocar o preso sob custódia até que se apurem devidamente os fatos.

Assim como ocorre com o preso em flagrante, o preso decorrente de execução de mandado também deverá ser informado de seus direitos, notadamente o de permanecer calado sem que lhe cause prejuízo direto esta atitude, e de receber assistência da família e advogado. Não declinando, ele, nome de causídico que o acompanhe, a prisão deve ser informada à Defensoria Pública.[16]

Outra alteração, que quase passa despercebida ao menos atento, está no artigo 300 do CPP. Ela diz respeito ao local de prisão dos presos provisórios, vale dizer, dos presos cautelares. Na redação anterior, os presos provisórios deveriam ser mantidos em locais separados dos condenados definitivamente (assim entendidos os com sentença transitada em julgado), “sempre que possível”. A expressão sempre que possível foi suprimida, sendo a separação absolutamente cogente. Acresceu-se a locução “nos termos da Lei de Execução Penal”. A título de lembrança, a lei de execução prevê celas individuais para todos os presos, verdadeira utopia.

Outro artigo que recebeu alteração é o 306, que trata das providências a serem tomadas após a prisão. Na redação do caput do artigo foi incluída a figura do MP como um dos que, além do juiz e de membro da família ou pessoa indicada pelo preso, deverá ser comunicado da prisão. Na prática, quase sempre isso já acontecia, comunicando-se o MP para preparar-se para a chegada de auto de prisão em flagrante a ser apreciado logo após. Agora além da obrigatoriedade da comunicação, estão igualmente abarcadas as prisões decorrentes da execução de mandados.

O parágrafo primeiro do dispositivo foi mantido com uma tênue, mas significativa, mudança em uma locução adverbial de tempo. A redação anterior dizia que dentro de 24 horas depois de efetuada a prisão deveria ser encaminhado o auto de prisão em flagrante ao julgador e em igual prazo entregue a nota de culpa tendo em vista da redação do parágrafo segundo do mesmo artigo. Agora a redação fala em “até 24 horas”. Qual a diferença? A anterior redação poderia ser interpretada como concedendo certa discricionariedade à autoridade policial quanto ao momento em que enviaria o auto de prisão em flagrante à autoridade judiciária. Agora, falando-se em “até 24 horas” há indicativo de que esta remessa deva ser feita incontinenti, e impreterivelmente dentro de 24 horas.


6- PRISÃO EM FLAGRANTE

No que tange à prisão em flagrante, a alteração remonta ao artigo 310 do CPP. Este artigo era (e é) extremamente importante na sistemática da prisão em flagrante. Na redação anterior, ele continha duas linhas de disposições. O seu caput determinava que fosse concedida liberdade provisória ao acusado que tivesse praticado o ato sob o manto de uma excludente da ilicitude, o que deveria ser feito com prévia oitiva do MP e com termo de comparecimento do acusado a todos os atos processuais, sob pena de revogação da benesse.

O parágrafo único determinava que igual providência, vale dizer, a concessão de liberdade provisória mediante termo de comparecimento todas as vezes em que não houvesse motivo para decretação da preventiva, ainda mesmo que o ato não fosse praticado sob abrigo de excludente da ilicitude.

Escusado referir, pois na prática tal fato é notório, que esta redação acabou por sepultar a fiança. Realmente, se o preso tinha contra si circunstâncias que ensejariam a prisão preventiva, não faria jus à concessão de fiança ou de liberdade provisória ex artigo 310, parágrafo único, do CPP. Ele teria mantida sua prisão, fosse a título de decretação da preventiva, fosse a título de manutenção da prisão em flagrante.

Por outro lado, se não estivessem presentes os requisitos da preventiva ou o acusado tivesse praticado o fato sob cobertura de excludente da ilicitude, fatalmente lhe seria concedida a liberdade provisória, sendo o crime afiançável ou não. A única diferença é que se o delito fosse apenado com detenção, podia o delegado fixar fiança. O juiz o faria sem impor fiança com base no parágrafo único do 310.

Conseqüência deste fato somado à obsolescência dos valores da fiança é que ela caiu em completo desuso[17].

A nova redação do artigo 310 preconizada pela Lei nº 12.403/11 compõe-se de três incisos e um parágrafo. Segundo o preceptivo em sua nova redação, recebendo o auto de prisão em flagrante, deve o julgador fundamentadamente deliberar na forma dos incisos e parágrafo que seguem. A menção à necessidade de fundamentação é superlativa, pois todas as decisões judiciais devem ser fundamentadas, consoante determina o artigo 93, inciso IX, da CF/88.

A primeira providência que pode ser tomada é o relaxamento da prisão se ilegal. Será ilegal a prisão em que não tenham sido observados os requisitos formais ou na qual não estejam presentes as circunstâncias que ensejam a flagrância.

A segunda possibilidade consiste em converter a prisão em flagrante em preventiva, quando presentes os requisitos constantes do art. 312 e 313 do CPP, e se revelarem inadequadas ou insuficientes as medidas cautelares diversas da prisão. Este inciso veio por fim a longa celeuma que existia quanto à duração da prisão em flagrante durante o processo ou sua conversão em preventiva. Esta questão surgiu pela anterior redação do artigo 310, parágrafo único, que atrelava a manutenção da custódia do flagrante à presença dos pressupostos da preventiva. Há alguns parecia que a utilização dos requisitos da prisão preventiva implicava em que a prisão em flagrante se converteria, caso não deferida a liberdade provisória, ipso facto em prisão preventiva. A outros, dentre eles me incluo, parecia que a utilização dos mesmos critérios não desnaturava a continuidade da custódia como prisão em flagrante. A controvérsia não era meramente acadêmica ou semântica, tendo repercussões práticas. Mantida a prisão como e flagrante, a ulterior concessão de liberdade se daria ou por relaxamento ou por concessão de liberdade provisória[18]. Alterada a natureza da medida para prisão preventiva, a concessão de liberdade se daria ou por relaxamento ou por revogação. Agora, por expressa opção legal, a imposição da continuidade de prisão se dará pela conversão da medida de prisão em flagrante em prisão preventiva.

A terceira hipótese será conceder a liberdade provisória, com ou sem fiança. E para tanto, não mais há previsão de oitiva prévia do MP.  

Por fim, o parágrafo único do artigo 310 agora passa a tratar da possibilidade de concessão de liberdade provisória ao acusado que praticar o fato ao abrigo de excludente da ilicitude, mediante termo de comparecimento ao todos os atos do processo, obrigação cujo descumprimento implicará em revogação do benefício e decretação de prisão preventiva.


7- PRISÃO PREVENTIVA

A prisão preventiva teve várias alterações introduzidas pela nova legislação.

A prisão preventiva antes poderia ser decretada pelo juiz de ofício tanto na fase inquisitorial como durante o processo. Agora, por força da redação do artigo 311 do CPP, somente poderá ser decretada de ofício, em regra, se já existente processo, vale dizer, se já houver sido recebida denúncia.

Tanto na fase inquisitorial como processual, poderá ser decretada em vista de requerimento do MP, do querelante (ação privada) ou do assistente, ou, ainda, por representação da autoridade policial. Os casos de requerimento de querelante são extremamente raros, pois a maioria das infrações sujeitas à ação privada é daquelas que não admite prisão preventiva, sendo infrações de pouca gravidade. De outro lado, mesmo na fase processual, pode a prisão se dar por representação da autoridade policial, embora isso seja muito mais comum quando ainda na fase de investigações.[19]

A exceção ao princípio da demanda, permitindo a decretação de ofício da prisão ainda na fase de investigações poderão se dar em caso de descumprimento de outra medida cautelar imposta, nos termos do artigo 312, parágrafo único, do CPP, ou de retorno dos motivos que ensejaram a decretação de prisão anterior.

Os requisitos e pressuposto da prisão preventiva encontram-se nos artigos 312 e 313. No artigo 312 do CPP, continuam previstas as finalidades a que deve ser direcionada a custódia: garantia da ordem pública, da ordem econômica, por conveniência da instrução criminal, ou para assegurar a aplicação da lei penal. Também foram mantidos os pressupostos da presença de comprovação da existência do crime e indícios de autoria.

O artigo 313 traz significativas inovações. Anteriormente, a prisão poderia ser decretada nos crimes dolosos punidos com reclusão, não importando quantum de pena abstratamente cominada. Agora somente os delitos punidos com penas de reclusão máximas superiores a quatro anos admitem a medida. Delitos punidos com detenção ou penas máximas menores de quatro anos, não mais sujeitam o acusado a prisão preventiva, salvo se invocados outros fundamentos constantes do inciso e parágrafos seguintes.

A hipótese de decretação motivada por reincidência em crime doloso, ressalvada a reabilitação, continua prevista sem alteração.

A terceira hipótese consiste em uma ampliação do que antes constava do inciso IV do artigo 313 CPP. Anteriormente, este preceptivo trazia os casos de violência doméstica contra a mulher, quando a prisão prestar-se a garantir a efetividade de medidas protetivas decretadas com base na lei de violência doméstica. Na nova redação, o agora inciso terceiro amplia esta possibilidade para os casos de violência doméstica e familiar envolvendo criança, adolescente, idoso, enfermo ou pessoa com deficiência.

A medida é de muito bom alvitre, pois, conforme ressaltei eu em dois trabalhos doutrinários[20] a nota diferencial nos casos de violência doméstica não é o sexo da vítima (fator tomado em linha de conta pela inconstitucional e pouco inteligente lei de violência doméstica), mas sim a condição de que vítima e agressor convivem em ambiente familiar, o que traz grande possibilidade de repetição da situação que ensejou a prática, em tese, de violência. Assim, a especialidade da situação abrange qualquer pessoa vulnerável que possa estar sendo vítima de violência doméstica ou familiar, seja homem ou mulher.[21]

O parágrafo único do mesmo artigo 313 assertoa que “também será admitida a prisão preventiva quando houver dúvida sobre a identidade civil da pessoa ou quando esta não fornecer elementos suficientes para esclarecê-la, devendo o preso ser colocado imediatamente em liberdade após a identificação, salvo se outra hipótese recomendar a manutenção da medida.” Como anteriormente esta circunstância estava relacionada aos delitos apenados com detenção e como não foi repetida na redação a menção à espécie de pena como pressuposto, surge a questão de se saber se mesmo em delitos apenados com detenção ou mesmo com reclusão em penas máximas inferiores a 04 anos seria possível a prisão.

A verificar-se a topologia do dispositivo, sendo parágrafo único de um caput que se reporta ao artigo anterior, é de se ter que a prisão por conta deste fundamento será possível em qualquer espécie de delito, seja apenado com reclusão seja com detenção, cuidando-se de uma prisão cautelar funcional, somente cabível quando imprescindível à elucidação da identidade do acusado.

Por força do artigo 314, remanesce a determinação de que não seja decretada a prisão preventiva quando o agente tiver praticado o ato ao abrigo de excludente de ilicitude, mas, conforme é cediço, esta vedação carece de que esteja a circunstância caracterizadora da excludente cabalmente comprovada. São casos relativamente raros.

Já o artigo 315 do CPP traz disposição de que as decisões relativas à prisão sejam fundamentadas. A disposição é apenas reforço ao artigo 93, inciso IX, da CF/88, mas é uma exortação que nunca é demasiada[22].

Vele lembrar que, conforme a disciplina geral das medidas cautelares, a prisão é aplicável somente na impossibilidade de aplicação de outra das medidas cautelares agora criadas. Desta forma, está criada a obrigação de o julgador sempre fundamentar o motivo de a prisão e não outra medida ser aplicada. Isso poderá ser feito rechaçando-se cada uma das demais medidas frente ao caso concreto e suas circunstâncias, ou indicando, de forma direta, fundamentos sólidos pelos quais indiretamente se afaste o cabimento de outra medida que não a prisão.

Outros aspectos da prisão preventiva serão vistos no tópico 11.


8- PRISÃO DOMICILIAR

A Lei nº 12.403/11 trouxe significativa inovação ao introduzir a prisão domiciliar. A disciplina do instituto agora consta dos artigos 317 e 318 do CPP. A prisão domiciliar ocorre quando o indivíduo resta preso em sua residência, dela só podendo sair mediante ordem judicial.

Ela somente terá azo quando:

O acusado for maior de 80 anos, presumindo-se que sua idade o coloca em situação de vulnerabilidade em um ambiente prisional, e que sua periculosidade é reduzida.

For extremamente debilitado por motivo de doença grave.

For pessoa imprescindível aos cuidados especiais de pessoa menor de 6 anos de idade ou com deficiência.

Em vista de gestante a partir do 7º mês de gravidez ou sendo esta de alto risco.

Obviamente que as circunstâncias elencadas devem encontrar cabal comprovação para que seja deferida a prisão, e a que parece mais se prestar à fraudes é a terceira, vale dizer, a que trata dos cuidados a criança menor de 06 anos ou deficiente, merecendo redobrados cuidados.

Sob o ponto de vista prático, trata-se visivelmente de uma medida absolutamente fadada à completa ineficácia por falta de meios de fiscalização. Veja-se que o Estado é absolutamente incapaz, por exemplo, de prover segurança às vítimas de violência domestica, beneficiárias de medidas protetivas, as quais, não obstante a concessão da medida, acabam sendo vitimadas.[23] Ora, se em situações emergenciais e, muitas vezes, de risco de vida, não logra o Estado dispor de meios de fiscalização e efetivação de comandos judiciais, o que se dirá em situações como esta, de prisão domiciliar. Quem fiscalizará o seu cumprimento? Mais utopia.


9- OUTRAS MEDIDAS CAUTELARES

Aqui chegamos ao que se pode chamar de núcleo da reforma preconizada pela Lei nº 12.403/11. São criadas, sob a denominação de outras medidas cautelares, nove espécies de medidas alternativas à prisão. Vejamos cada uma delas.

A primeira consiste em “comparecimento periódico em juízo, no prazo e nas condições fixadas pelo juiz, para informar e justificar atividades”. Esta imposição já consta associada a outros institutos, como, por exemplo, ocorre em relação ao artigo 89, inciso IV, da Lei nº 9.099/95, em relação à suspensão condicional do processo e também em relação ao sursis (art. 78, parágrafo 2º, alínea “c” do CP). A medida é mais de monitoramento, e isolada parece ter pouca eficácia prática no âmbito da cautelaridade. Agregada a outras medidas, pode ter relativa eficácia.

A segunda medida se materializa na imposição de “proibição de acesso ou frequência a determinados lugares quando, por circunstâncias relacionadas ao fato, deva o indiciado ou acusado permanecer distante desses locais para evitar o risco de novas infrações.”Aqueles que labutam junto à justiça criminal bem tem conhecimento que significativa parte das infrações envolvendo violência contra a pessoa, notadamente as lesões corporais e o homicídio, tentado ou consumado, originam-se associadas ao consumo de bebida alcoólica ou à freqüência a locais com aglomerações de pessoas. A bebida ou mesmo o uso de drogas debilita os freios inibitórios e as aglomerações de pessoas, ainda que pequenas, propiciam o estopim para o conflito, origem do ato criminoso. A partir desta premissa, a proibição de que o sujeito freqüente certos ambientes pode ser de extrema valia no impedimento de que novas infrações ocorram, sobretudo quando dito local pode servir de ponto de encontro com desafetos ou amigos e familiares da vítima, o que ensejaria, certamente novos atos de violência.[24]

O problema nodal na aplicação desta medida reside na sua efetivação concreta, ou melhor explicitando, na possibilidade de fiscalização. É induvidoso que oficiais de justiça não poderão fiscalizar os casos um a um, e tampouco a polícia o poderá. Todavia, se a existência da medida proibitiva puder ser inserida em cadastro ou banco de dados que possa ser acessado facilmente mediante concurso de mídias eletrônicas que possam acompanhar os agentes nas ações de patrulhamento ostensivo de rotina, é possível que alguma efetividade fosse conferida a ela. Também o monitoramento eletrônico pode auxiliar. Será de toda utilidade em conflitos originados de rixas.

A terceira medida cautelar alternativa à prisão se materializa em “proibição de manter contato com pessoa determinada quando, por circunstâncias relacionadas ao fato, deva o indiciado ou acusado dela permanecer distante.” A medida inconcussamente volta-se aos casos de violência doméstica, tendo, aliás, em seara muito mais adequada, a mesma eficácia de medida protetiva.[25] Mas a medida não se volta exclusivamente a casos de violência doméstica. Resta claro que também pode ser aplicada nas situações versadas na tratativa da medida antes vista, ou seja, situações onde seja necessário manter o afastamento do acusado de pessoas determinadas, ainda que não familiares.

Mais uma vez o problema central reside na fiscalização. Somente através de sistemas eletrônicos de monitoramente se poderá dar efetividade a medidas deste jaez, pois o acionamento da polícia em caso de violações não raras vezes tem se mostrado expediente que acaba por apanhar uma situação de violência consolidada. E pensar em efetivos policiais destacados para fiscalização permanente é algo absurdo.

A quarta medida diz respeito à “proibição de ausentar-se da Comarca quando a permanência seja conveniente ou necessária para a investigação ou instrução”. Volta-se a assegurar o comparecimento do acusado, bem como, embora não o diga o dispositivo, a aplicação da lei penal em eventual caso de condenação.

Sob o prisma estritamente jurídico, a medida constitui boa alternativa à prisão preventiva decretada por conveniência da instrução criminal ou para assegurar a aplicação da lei penal. Mas sob o pronto de vista prático, é inútil. Se a risco de o sujeito deixar o distrito da culpa, o caso é de prisão preventiva. Se não há, mera exortação é de valia alguma. A única utilidade prática decorreria da possibilidade de a medida cautelar em comento ser imposta em infrações que não admitissem, por força do artigo 313, prisão preventiva direta, e uma vez descumprida, se pudesse, mesmo elas não se enquadrando, a infração, nas hipóteses do artigo 313, ensejar a prisão. Isso será adiante visto.

A quinta medida é o “recolhimento domiciliar no período noturno e nos dias de folga quando o investigado ou acusado tenha residência e trabalho fixos.” Valem, aqui, os argumentos antes expendidos acerca da freqüência a certos locais ou exposição à certas circunstâncias como potenciais catalisadores para infrações. Mas valem, igualmente, as objeções acerca da dificuldade de fiscalização.

A sexta medida é de “suspensão do exercício de função pública ou de atividade de natureza econômica ou financeira quando houver justo receio de sua utilização para a prática de infrações penais.” Esta medida já consta, em parte, como pena alternativa, ex vi do artigo 47 do CP, porém, a redação da medida cautelar é mais ampla por um lado, já que a pena alternativa se reporta somente a atividades que dependam de autorização especial, e menos em outro, pois a pena alternativa abarca cargo, função ou atividade pública, inclusive mandato eletivo.

A medida volta-se a delitos cometidos no exercício da função ou atividade, ou valendo-se de condições deles advindas. Exemplos temos nos delitos funcionais, nos delitos contra consumidor, ou quando determinada a atividade é utilizada como ato executivo de delitos, exemplificativamente o transporte envolvido com tráfico ou contrabando, ou a movimentação financeira como meio de lavagem de dinheiro. É imperativo que a decisão que a decreta traga a lume fatos que ensejem crer-se que a continuidade do exercício de atividade ou função efetivamente implicará na possibilidade de novo cometimento de infrações, por outras palavras, fatos perceptíveis devem ser utilizados para comprovação do “justo receio”.

A sétima medida surge da possibilidade de “internação provisória do acusado nas hipóteses de crimes praticados com violência ou grave ameaça, quando os peritos concluírem ser inimputável ou semi-imputável.” Esta é, de fato, uma medida muito pertinente. É fato dos mais notórios a quem quer que não feche os olhos propositadamente para sua evidência, que não somente o Brasil, como boa parte do planeta sofre os males de uma epidemia de novas drogas, mais baratas, acessíveis, prejudiciais e agressivas[26]. No caso do Brasil, desponta o crack, um subproduto da produção de cocaína. No período em que estive à frente das jurisdições criminal e da infância e juventude pude testemunhar vividamente a avassaladora expansão do crack como motivador de crimes violentos e contra a pessoa, em especial, no primeiro caso, os ocorridos no seio familiar.

A equação é simples. Cuida-se de um entorpecente que tem preços acessíveis, exatamente por ser subproduto. Por conta disso, acaba tendo larga penetração nas camadas sociais de menor renda, embora hoje já esteja disseminado por todos os estamos sociais. De outro lado, é sabidamente dos entorpecentes mais viciantes. O resultado é que em curto espaço de tempo se formam legiões de viciados que, em não menos breve tempo, exaurem por completo suas parcas rendas com o vício. O aspecto visível manifesta-se, imediatamente, em um primeiro momento, no aumento de delitos de furto de pequena monta, que logo são seguidos de roubos e finalmente de latrocínios.

Na outra extremidade do fenômeno, jovens desesperados por dinheiro para nutrir seu vício consomem todos os bens que guarnecem suas casas e acabam por reagir violentamente à interferência de pais ou parentes, avós, tios ou irmãos. Cada vez mais costumeiros tem sido os crimes de extrema gravidade envolvendo ascendentes e descentes, ou parentes, estando o ofensor ou sob influência do entorpecente ou na condição de verdadeira síndrome de abstinência, que os conduz a atos desesperados. E não para ai. Formadas comunidades de usuários, hoje já conhecidas como “cracolândias”, há a violência de usuários contra si próprios.[27]

Neste contexto que hoje é uma realidade nacional, parece-me de muito bom alvitre que se crie uma medida cautelar penal que possa abarcas estas situações. E, no caso específico, deverá haver vivacidade dos operadores jurídicos, julgador, MP ou Defensoria, para suscitar o incidente a fim de aferir a inimputabilidade, tomando-se em conta a conclusão positiva, ainda que provisoriamente, para permitir que, quando necessário, a internação seja tornada efetiva, para proteção da sociedade em si, e principalmente do usuário de droga que delinqüiu, desde a fase inquisitorial, com máxima brevidade. A redação, aliás, deveria prever que havendo indício de associação com a droga em vista do delito, poderia ser determinada a internação, e não condicioná-la à constatação de inimputabilidade conclusiva.

A oitava medida é a fiança, que será tratada separadamente adiante.

A nona medida é o monitoramento eletrônico. Esta sim, se implantada, realmente é a medida de maior impacto concreto, pois permite efetivamente o controle do acusado e mesmo assegura a eficácia de outras medidas já tratadas anteriormente. Como visto, algumas das medidas são vocacionadas a afastar o acusado ou de outras pessoas ou de certos locais, e o monitoramento eletrônico fornece forma eficaz de efetuar um controle da execução das medidas. Sua efetivação esbarra em aspectos práticos, relativos à aquisição de equipamentos e implementação da tecnologia necessária, de forma a ser eficaz com o mínimo de exposição do atingido, até porque, quando aplicada a acusado e não condenado, não podemos esquecer que estamos diante de alguém presumidamente inocente em vista de quem as seqüelas e potenciais vexações de uma medida cautelar devem ser ao máximo minimizadas.

Adiante, nas conclusões, teceremos mais algumas avaliações às medidas.


10- FIANÇA

A fiança esteve em desuso por muitos anos no Brasil. Três fatores contribuíram decisivamente para que isso acontecesse. O primeiro fator é cultural. Nunca foi da tradição do direito penal de ascendência romano-canônica seu uso, ao menos não com a força com que se vê o instituto no Direito anglo-saxão, em especial o norte-americano, onde encontra largo emprego.

O segundo fator é mais recente, e decorre da defasagem dos valores constante do diploma de 1940, principalmente pelas freqüentes mudanças que se haviam promovido nas diretrizes econômicas nas décadas seguintes até que se lograsse, em meados dos anos noventa, obter a estabilização econômica.

O terceiro aspecto foi a redação do artigo 310, parágrafo único, do CPP, conferida pela Lei nº 6.416/77. A partir dela, a situação era a de que, se estivessem presentes os requisitos da preventiva, o indivíduo preso em flagrante não teria direito à liberdade provisória. Por outro lado, estando ausentes os requisitos da preventiva, duas situações podiam ocorrer. Na primeira, o delito era apenado com detenção, e, então, a autoridade policial poderia fixar a fiança. Ao revés, se o delito fosse apenado com reclusão, a fixação cabia ao magistrado. Como o expediente deveria, e deve, ser remetido o mais rápido possível ao juízo, a única diferença aparecia se o delito em tese cometido fosse apenado com detenção, pois neste caso o próprio delegado poderia fixar fiança e o acusado, se pagasse, seria liberado incontinenti ao pagamento. Mas se o delito fosse apenado com reclusão e chegasse ao juízo, este aplicaria o parágrafo único do artigo 310, que se reportava ao caput in fine deste mesmo artigo, de forma que a liberdade provisória era concedida apenas com o compromisso de comparecer a todos os atos do processo.

Resumindo, se o delito fosse apenado com reclusão, cabia ao juiz fixar fiança, mas este sempre acabava por conceder a liberdade, se cabível, sem fiança, nos termos do artigo 310, parágrafo único do CPP. Se o delito fosse apenado com detenção, a autoridade policial não fixava fiança pela defasagem dos valores legalmente estipulados, e o juiz acabava por liberar igualmente aplicando o parágrafo único do 310 do CPP.

A nova lei tenta reavivar, em boa hora, o instituto da fiança.

Primeiro ponto em que operou modificação foi na flexibilização acerca da possibilidade de sua concessão pela autoridade policia. Outrora, a autoridade policial somente poderia conceder fiança nos casos de delitos apenados com detenção. Agora, pode em todas as infrações, sejam apenadas com detenção ou reclusão, desde que a pena máxima cominada não seja superior a quatro anos. Em caso de penas acima de 04 anos, somente a autoridade judiciária poderá conceder fiança, e deverá decidir em prazo de 48 horas, contadas, embora a lei não o diga, do recebimento do expediente policial.

O dispositivo do artigo menciona que a fiança deverá, neste ultimo caso, ser requerida ao juízo, mas na verdade o julgador deve, em não estando presentes os requisitos da prisão preventiva, conceder liberdade ao acusado e ala só não será mediante fiança nos casos onde a garantia seja dispensada legalmente. Por outras palavras, o juiz deve de ofício sempre fixar fiança, somente deixando de fazê-lo quando a lei o dispensar, ainda mesmo que ausente pedido a respeito.

Os artigos 323 e 324 trazem as hipóteses de impossibilidade de concessão de fiança. A primeira diz respeito aos crimes de racismo. É importante distinguir entre racismo e delito de injúria racial. Esta confusão é ordinariamente praticada, sobretudo por pessoas leigas, embora não só por elas. Quando elemento racial é usado para ofender pessoa ou grupo de pessoas certo e determinado, estamos diante, em tese, do delito de injúria racial, que não é racismo. Racismo somente há quando elementos étnicos ou raciais são utilizados para ofender grupo indeterminado de pessoas, com menção genérica ao elemento étnico ou racial. Ai sim estamos diante de racismo que impede a fiança. A injúria racial, prevista no artigo 140, parágrafo 3º, do CP, admite fiança, inclusive fixada pela autoridade policial.

Outra hipótese de vedação diz respeito aos crimes de tortura, tráfico ilícito de entorpecentes e drogas afins, terrorismo, nos definidos como crimes hediondos e nos crimes cometidos por grupos armados, civis ou militares, contra a ordem constitucional e o Estado Democrático. Note-se bem, são inafiançáveis, mas isso não significa que não se possa conceder liberdade provisória em relação a eles.

Não pode ser concedida fiança aos que, no mesmo processo, tiverem quebrado fiança anteriormente concedida ou infringido, sem motivo justo, qualquer das obrigações a que se referem os arts. 327 e 328 do CPP.[28]

Ainda não será concedida fiança nos casos de prisão civil ou militar. A prisão civil hoje somente pode existir em vista do devedor de alimentos. Já as prisões militares referem-se a crimes militares ou infrações disciplinares de ordem administrativa.

Por fim, a ultima hipótese de descabimento de fiança contempla as hipóteses de cabimento de prisão preventiva, quando esta deverá ser decretada em substituição à prisão em flagrante, se o acusado tiver sido preso por este motivo.

Outro aspecto de suma importância para trazer efetividade ao instituto da fiança foi a atualização de valores, que hoje se encontram associados ao quantum de pena máxima abstratamente cominado. Conforme o artigo 325 do CPP, se a pena não for superior a quatro anos, hipótese em que a autoridade policial também pode fixar fiança, o valor será entre 01 e 100 salários mínimos. Se acima de quatro anos a pena máxima abstratamente cominada, será entre 10 e 200 salários mínimos.

O mesmo artigo também traz hipóteses de exclusão ou aumento do valor conforme a situação econômica do acusado. A redução poderá ser de até 2/3, ao passo que o aumento poderá atingir mil vezes.

O artigo 335 com a nova redação, mantém a possibilidade de que seja pedida a fiança ao juízo caso a autoridade policial não o faça, mas inovando, estipula o prazo de 48 horas para que o juiz decida. Caso isso não ocorra, a situação é passível de corrigenda via habeas corpus.

O artigo 336 acresceu a possibilidade de, além de responder pelas custas, indenização e dano causado, também poder ser utilizado o valor da fiança para saldar prestação pecuniária (pena alternativa), o que poderá ocorrer, em qualquer das hipóteses, mesmo que já prescrito o delito desde eu não prescrita a cobrança.

O descumprimento das obrigações impostas alternativamente à fiança, quando ela for dispensada, poderá ensejar a aplicação de quaisquer das outras medidas cautelares, inclusive a prisão. O mesmo vale para o seu quebramento, que também implica perda de metade de seu valor.

O artigo 341 do CPP também teve redação alterada, ampliando as hipóteses de quebramento da fiança. Agora as hipóteses contemplam cinco situações: I) Regularmente intimado para ato do processo, deixar de comparecer, sem motivo justo. II) Deliberadamente praticar ato de obstrução ao andamento do processo. III) Descumprir medida cautelar imposta cumulativamente com a fiança. IV) Resistir injustificadamente a ordem judicial. V) Praticar nova infração penal dolosa.

O artigo 345 agora estipula como destino do valor da fiança quebrada o Fundo Penitenciário.


11- PRISÃO PREVENTIVA DECORRENTE DO DESCUMPRIMENTO DE MEDIDAS CAUTELARES E OUTROS ASPECTOS

Como se pode verificar, muitas das medidas cautelares criadas não apresentam mecanismos eficientes de coerção. Restará como medida a lhes assegurar cumprimento a permanente ameaça de que sejam substituídas por outras, quiçá por aquela que ostenta maior coeficiente de coercitividade, qual seja a prisão. Surge a questão: quais os limites para a prisão preventiva no caso de substituição por outra medida?

A questão é pertinente porque é visível na nova legislação a tentativa de reduzir o espectro de aplicação da prisão cautelar. Veja-se que a prisão ficou reservada em regra aos delitos apenados com reclusão e penas máximas superiores a quatro anos. Mas e se for aplicada medida cautelar diversa da prisão em delitos de pena máxima menor e houver o descumprimento da medida, será possível a prisão substitutiva? E se o delito for apenado com detenção?

A rigor, a redação do artigo 312 do CPP, mais especificamente de seu parágrafo único, é confusa, pois se limita a afirmar o cabimento da prisão preventiva em caso de descumprimento de outras medidas cautelares, sem fazer qualquer limitação. No artigo 312 do CPP, encontram-se as finalidades ou motivos que admitem a prisão preventiva.

Por outro lado, o artigo 313 do CPP trás as hipóteses que, respeitado o artigo 312, admitem a prisão. Da interpretação conjunta dos dois artigos, tem-se que a prisão preventiva em relação a delitos com penas menores de quatro anos ou apenados com detenção somente será possível nas hipóteses dos incisos II e III e parágrafo único, ou seja, casos de crimes com réu reincidente e envolvendo violência doméstica. No caso do parágrafo, ou seja, caso de não haver elementos de identificação, a priori até mesmo em delitos culposos ou de menor pena poderá ser decretada a prisão, pois nada obsta e a identificação correta do acusado é absolutamente imprescindível para que se possa avaliar se o acusado pode ou não ser liberado.

De fato, a nova redação do artigo 313do CPP não repete a limitação que existia no  caput do anterior, o qual estipulava somente em vista de delitos dolosos ser cabível a prisão preventiva.


12- CONCLUSÕES

Ironicamente, o problema da criminalidade não é resolvido por leis penais, ou ao menos não principalmente por elas. As raízes da criminalidade, isso é fato sabido, encontram-se em problemas sociais e culturais. Não menos certo, porém, é que jamais poderemos prescindir de leis penais e processuais penais adequadas, pois sempre haverá crime, não importa o quanto se avance socialmente ou culturalmente. A transgressão faz parte da natureza humana.

A questão passa a residir na adequação dos diplomas às realidades às quais eles estão voltados a regrar em nas quais devem operar em busca das finalidades a que se destinam.

Os sistemas prisionais, de seu turno, seja onde for, sempre apresentam sérios problemas. A violência, a brutalidade e a desumanização são sempre, em alguma medida, componentes inafastáveis do encarceramento, estigmatizando o preso. No Brasil, ainda há o problema da carência de material e da superlotação. Por conta disso, nos últimos anos, no que concerne à prisão cautelar, tem sido tomada uma política de colocação da medida como excepcionalidade absoluta.

As correções a serem operadas no sistema dizem respeito, principalmente, à obrigações que são dos Poderes Executivos Federal e Estadual, diretamente relacionadas à construção de novas unidades e melhoria das já existentes para que possam ter padrões mínimos. Não havia problema na legislação processual relativa à prisões identificável como motivo de problemas.

Porém, mais uma vez assistimos à jurisdicionalização de problemas que não são principalmente judiciais. A Lei nº 12.403/11 vem no escopo de favorecer ao esvaziamento das prisões, para desafogar os presídios. Parece que o legislador desconhece o fato de que as prisões cautelares já vinham sendo aplicadas, salvo raríssimas exceções, como último recurso. Assim, uma tratativa mais branda no regime de prisões cautelares codificadas pouca ou nenhuma repercussão irá ter para reduzir o número de prisões cautelares, pois estava preso quem, antes como agora, apresenta motivos para tanto.

Logo, ao invés de atingir a pretendida meta de diminuir a quantidade de presos cautelares, a nova lei poderá, na verdade, aumentar este número. De fato, ao criar novas espécies de medidas cautelares alternativas à prisão, as quais são aplicáveis à situações onde o acusado restaria livre com somente a vinculação de comparecer aos atos processo, medidas estas que por sua dificuldade fiscalizatória serão descumpridas em massa, e criando a prisão como alternativa a este descumprimento, está a nova lei criando potencialmente um aumento da quantidade de prisões que serão decretadas doravante.

Ainda é de se destacar que esta aparente maior benevolência que traria a nova legislação é coisa questionável. Veja-se que, se por um lado as prisões preventivas agora são reservadas em regra aos delitos com pena máxima acima de quatro anos, não pode passar despercebido que antes os delitos apenados com detenção somente por exceção seriam passíveis de prisão preventiva, ao passo que agora esta limitação inexiste. Outrossim, a antiga redação do artigo 313 do CPP falava em crimes dolosos, em seu caput, limitação que agora foi abolida.

Já no que diz respeito às medidas cautelares criadas, a única em vista da qual se pode pretender alguma eficácia concreta mais palpável é o monitoramento eletrônico. As demais, ressoam utópicas e de pouca exeqüibilidade na realidade de extrema carência do país em relação à políticas e recursos de segurança e aparelhamento. Juridicamente algumas delas apresentam-se como boas alternativas, e permitiriam maior flexibilidade ao julgador, fornecendo medidas que podem ser melhor adequadas à realidades intermediárias, aonde a prisão cautelar se revele desproporcional, mas aonde seja necessária alguma medida de contenção ou controle em relação ao acusado. Se elas irão ou não repercutir em efeitos práticos? Sinceramente sou um tanto cético quanto a isso. Tenho que serão mais medidas para encher papel, como as medidas protetivas da lei de violência doméstica, que ainda hoje não encontram uma estrutura que as operacionalize.

De positivo há o resgate do instituto da fiança, por anos condenado ao ostracismo. Não é um instituto que tenha larga aceitação em nossa tradição jurídica, mas talvez a sua aplicação possa reverter esta perspectiva. Em um quadro de valorização cada vez maior do papel da vítima e das reparações a que ela faz jus também no campo penal, a fiança pode representar um papel importante de fornecer meios, ou, ao menos uma garantia, desta reparação.

Ao fim e ao cabo desta apreciação crítica e expositiva, a sensação é que mais uma vez se perdeu uma boa oportunidade de produzir algo que efetivamente funcionasse e pudesse modernizar a legislação para torná-la mais eficiente. Mas o que se tem são mais normas para ficarem mais no papel do que na realidade, nota característica da produção legislativa dos últimos dez anos. Agora se inicia a luta dos operadores jurídicos para tornar a nova disciplina de aplicação a melhor possível, pela compreensão e pelo esforço exegético, extraindo dela o que se puder de útil.


Notas

[1] Exemplo: Lei de Tóxicos. Tivemos duas recentemente, aliás.

[2] O procedimento do Júri foi o que mais recebeu alterações significativas. Os demais tiveram modificações de menor monta.  

[3] No início de 2012, o STF deu pela constitucionalidade da lei de violência doméstica, valendo-se, para tanto, do surrado bordão da igualdade material versus igualdade formal. Ocorre, no entanto, que a razão da inconstitucionalidade da dita lei não se encontra na vedação, a priori de se utilizar o conceito de igualdade material em detrimento da igualdade formal. Ninguém nunca questionou a necessidade de promoção de uma igualdade material, com eventual tratamento desigual dos desiguais. A questão é que isso deve ser feito dentro dos lindes da Constituição. No caso da lei de violência doméstica, há uma desigualdade entre homens e mulheres, e ela afronta o artigo 5º, inciso I, da CF/88, que, sendo cláusula pétrea, estipula que a igualdade como regra, e estatui que as desigualdades serão somente aquelas previstas na própria CF/88 (“nos termos desta Constituição”), onde não consta autorização para a tratativa desigual promovida por esta lei infraconstitucional. Como a matéria é cláusula pétrea, somente nova Constituição poderia autorizar a desigualdade preconizada a Lei de Violência Doméstica. Como este argumento não foi aventado na ADC julgada, ele continua absolutamente válido.

[4] Veja-se o número de mulheres assassinadas que contavam com medida protetiva a seu favor. De que valeu a decisão judicial à mingua de quem lhe pudesse dar efetividade? No RS recente pesquisa aponta que em 91% dos homicídios praticados contra mulheres havia conhecimento da polícia acerca do risco ou medida protetiva. 

[5] O executivo federal fez questão de dar todo o destaque para a implementação da legislação no plano formal, visando obter a simpatia da população leiga. Mas na hora de fazer sua parte, fornecendo estrutura para implementação concreta da lei, fez-se retumbantemente ausente. Os leigos impressionam-se com os anúncios de aumentos de registros de ocorrências relativas a violência doméstica, como se isso significasse que a lei está sendo eficaz. Ledo e grosseiro engano. Este aumento pode ser decorrente do abuso da invocação da lei (um de seus maiores males, propiciado pela ausência de contraditório nas medidas protetivas), e não significam que o registro, com desdobramentos criminais e cíveis (medida protetiva) efetivamente atue resolvendo ou mitigando concretamente o problema. Ao contrário, o aumento pode ser tomado como indício de ineficácia com tanta razão como é tomado para qualquer outra conclusão.        

[6] Exatamente por lhes ser difícil ter acesso, em vista de sua condição financeira, a situações que propiciem a prática de delitos ditos de “colarinho branco”.

[7] Aliás, o fato de hoje a maioria dos encarcerados ter praticado infrações com violência contra a pessoa ou tráfico, e não os denominados “crimes do colarinho branco”, é exatamente indicativo da relativa benevolência da legislação processual, ou, ao menos, da interpretação correntia que a ela se tem dado.  

[8] Quem sabe investimentos que poderiam ser feitos com os valores destinados a uma Copa do Mundo cuja realização ao que parece não é vontade da maioria da nação. Quem e com que legitimidade assumiu este compromisso custoso e inútil ao País?

[9] E quando irão eles romper o silêncio e passar a expressar criticamente suas posições e impressões, deixando de lado o cômodo silêncio? Na ausência de manifestação de quem lida diretamente com o problema, o espaço é tomado por pessoas com visões distantes e deturpadas da realidade sobre a qual opinam ou legislam, nem sempre embuídas do escopo de buscar a melhor solução.   

[10] Esta ultima hipótese foi inserida pela (inconstitucional) lei de violência doméstica. A necessidade de um mecanismo coercitivo que pudesse assegurar o cumprimento das medidas protetivas era evidente (independentemente de discutir-se o mérito da constitucionalidade ou das fraudes que ela, a lei, propicia). Mas  a lei incorreu em uma grave falha, materializada na ausência de uma previsão de prazo máximo para a prisão cautelar. O problema grave reside no fato de que, em muitos dos casos de atos que ensejam medidas protetivas, a prisão decorrente de condenação criminal não é uma alternativa possível, seja porque o quantum de pena, associado às condições pessoais do pretenso ofensor, de antemão fazem ver da impossibilidade, em caso de condenação, de aplicação de prisão, pois haverá, em tese, aplicação de pena alternativa. Temos, assim, uma situação onde poderá ser aplicada prisão cautelar a quem sequer poderá ser punido com pena de prisão, ainda que ela seja abstratamente cominada. Haveria desproporcionalidade e irrazoabilidade. A situação era ainda mais grave quando era possível deixar de movimentar-se demanda criminal por falta de representação. Tinha-se, então, prisão associada a uma medida protetiva, mas processo criminal não haveria, em caso evidente de notória desproporcionalidade. Vale registrar que julgamento do STF no ano de 2012 passou a considerar a ação penal dos casos de violência doméstica como pública incondicionada. Com isso, é inafastável a presença de uma investigação e eventualmente de uma ação penal, onde, felizmente, o acusado poderá apresentar sua versão. Esta possibilidade de defesa do acusado não existe no âmbito da medida protetiva porque os juízes, por desconhecimento ou medo de angariar antipatias, deixam de aplicar o CPC a elas (coisa que eu como magistrado fazia), o que asseguraria que  na medida protetiva houvesse contraditório e que encontra respaldo legal na própria legislação de regência.

[11] A respeito da sistemática das prisões cautelares antes da reforma processual, ver, de minha autoria na internet: “Descortinando a Custódia Cautelar, dos Pressupostos à Cessação.”

[12] Uma breve consulta aos oficiais de Justiça por todo o Brasil revelaria um sem fim de casos onde acusações falsas são encetadas e formuladas no escopo de obter afastamentos do lar ou pensões, privando o atingido pela medida de contraditório e lhe impondo o ônus de ter de ele acionar o Judiciário em demanda própria.

[13] As partes, especialmente o acusado, por puro desconhecimento, acabam deixando de buscar defesa, especialmente nas medidas protetivas. Como não há contraditório, não há quase atuação de defensores nelas e os casos de medidas protetivas que chegam aos tribunais por recurso contam-se nos dedos.  

[14] Seria de extrema valia que a lei tivesse disposto a obrigatória revisão das medidas concedidas em certo termo de tempo, evitando perpetuação jurídica de situações que faticamente não mais existem. 

[15] Extremamente salutar a criação deste cadastro, desde que seja bem administrado.

[16] Confesso-me um fã incondicional da Defensoria Pública. Aqueles que, como eu, tiveram oportunidade de labutar à frente de um órgão jurisdicional tem a exata dimensão da imprescindibilidade e da importância do trabalho levado a cabo pelas Defensorias Públicas, trabalho este que hoje é ainda maior que o do MP. Infelizmente estes órgãos receberam por muito tempo tratamento diferenciado no que concerne ao aporte de recursos para seus serviços. Felizmente esta situação vai se alterando e a Defensoria Pública passa a ganhar o devido espaço nas atenções orçamentárias. Como a maioria dos réus são pobres, acaba quase sempre por desembocar a demanda de representação judicial sobre este órgão. 

[17] A respeito desta condição proporcionada pelo artigo 310, parágrafo único, do CPP, ver, de minha autoria, na internet: “Um panorama da fiança criminal à luz do parágrafo único do artigo 310 do CPP”.

[18] Observado o rigor técnico, a concessão da liberdade provisória tem margem quando a prisão é flagrante e não decorrente de ordem judicial. A obrigatoriedade da prisão, e, por conseguinte, a provisoriedade da liberdade decorrem do flagrante.

[19] Exemplo desta hipótese seria a autoridade policial continuar investigações que poderiam estar sendo obstaculizadas por um dos réus. 

[20] Disponíveis na internet: “Compreendendo a Inconstitucionalidade da Lei de Violência Doméstica” e “Lei de Violência Domestica, Constitucionalização Hermenêutica e Aplicação do CPC”. 

[21] Sempre defendi uma lei de violência familiar, seja quem for a vítima.

[22] Conforme já referi em trabalhos doutrinários, a determinação de fundamentação das decisões judiciais deveria constar do rol de direitos fundamentais do artigo 5° da CF/88. É através dela que todas as demais  garantias processuais constitucionais se fazem observadas.  

[23] Iludem-se com a propaganda eleitoreira ou provinda de pessoas mal informadas, que jamais entraram em uma sala de audiência para assistir uma audiência, muitas vezes pessoas com formação técnica em outras áreas que nada sabem de Direito, e apregoam a dita lei como apanágio de todos os males. Saem do Fórum com um pedaço de papel na mão e sem nenhuma proteção real. 

[24] Uma das hipóteses de aplicação desta medida é a situação da violência de torcidas organizadas em estádios, situação que se alastra a cada dia.

[25] Aqui, como medida cautelar, fica assegurado o contraditório e há impossibilidade, agora, de desistência por parte da pretensa vítima. Daí ser mais adequado do que conceder medida protetiva, pois a recalcitrância dos magistrados em aplicar o CPC a elas lhes subtrai, como já ressaltei, o contraditório, dando margem a severas injustiças e fraudes. 

[26] Exemplo emblemático é o México, tomado por cartéis de drogas que ensejam uma onda de violência sem precedentes. 

[27] Quando exercia jurisdição em um município do noroeste gaúcho, tive oportunidade de conduzir a instrução de um feito onde um jovem menor de idade havia assassinado, sob influência de crack, amigo com várias dezenas de facadas, exemplo emblemático dos maléficos da epidemia das drogas.  

[28] Estas obrigações referem-se à obrigação de comparecer a todos os atos do processo e de não mudar-se da comarca ou dela se ausentar por mais de 08 dias sem autorização judicial. 


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Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

MEZZOMO, Marcelo Colombelli. Prisões e medidas cautelares à luz da Lei nº 12.403/11. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 17, n. 3254, 29 maio 2012. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/21891. Acesso em: 25 abr. 2024.