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Da imprescindibilidade de anuência do INPI para homologação de acordo formulado entre autor e réu nas ações de nulidade de marcas, patentes e desenhos industriais

Da imprescindibilidade de anuência do INPI para homologação de acordo formulado entre autor e réu nas ações de nulidade de marcas, patentes e desenhos industriais

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Uma vez proposta ação judicial com objetivo de declarar a nulidade de patente, marca ou desenho industrial, fica o autor impossibilitado de transacionar com o réu titular do bem impugnado para desistir da demanda sem que o Instituto Nacional da Propriedade Industrial concorde.

Resumo: O artigo objetiva demonstrar que, uma vez proposta ação judicial com objetivo de declarar a nulidade de patente, marca ou desenho industrial, fica o autor impossibilitado de transacionar com o réu titular do bem impugnado para desistir da demanda sem que o Instituto Nacional da Propriedade Industrial concorde. Com base na análise histórica da legislação, estudo de caso e interpretação sistemático-teleológica, o estudo defende que a oposição do ente estatal ao acordo, nos casos em que entende haver nulidade, a fim de prosseguir com a ação, está respaldada no interesse da sociedade em tornar nulos direitos de exclusividade e aprimorar o sistema de proteção da propriedade industrial, com reflexos na livre concorrência, na garantia de escolha isenta do consumidor e no desenvolvimento econômico e tecnológico do País.

Palavras-chave: INPI; acordo; homologação; ação de nulidade; marcas; patentes; desenhos industriais; desistência


1 INTRODUÇÃO

Não é preciso conhecimento específico para saber das conseqüências danosas que um registro de marca equivocado pode trazer. Nas gôndolas de um supermercado ou nas prateleiras das grandes lojas, qualquer alteração no sinal identificador do produto que seja suscetível de associação com outra marca de prestígio pode levar o consumidor ao engano. O titular da marca ilegalmente reproduzida, por sua vez, vê seus investimentos em criação, publicidade e qualidade revertidos àquele que, sem custos, toma-lhe de assalto a notoriedade e insere-se no mercado em condições vantajosas de competitividade.

Com as patentes não é diferente. O processo de criação de invenções, entendido como avanço na tecnologia disponível, requer vultosas quantias para possibilitar a pesquisa de ponta e a manutenção do status competitivo no mundo globalizado, o que contribui para o constante desenvolvimento científico, econômico e tecnológico. De outro lado, existem os que preferem o modo mais fácil, utilizando processo ou reproduzindo produto objeto de patente, burlando a proteção conferida e cortando caminho tão trabalhoso e importante ao progresso da humanidade.

Imagine-se, então, se essas violações contassem com a chancela do Estado; se este conferisse ao falsificador atestado de lisura, atribuindo-lhe os mesmos direitos do legítimo titular, espécie de licença para a prática de transgressões e imposição de exclusividades para censurar atividades lícitas, com prejuízo às relações de consumo, às práticas comerciais e, de modo geral, ao desenvolvimento do País.

Soa estranho, mas é justamente o que ocorre quando o Instituto Nacional da Propriedade Industrial – INPI, autarquia federal responsável pela concessão dos títulos de propriedade industrial, defere um pedido de marca que reproduz outra indevidamente ou de patente sem novidade ou atividade inventiva. Apesar da inegável capacidade técnica dos examinadores do ente estatal, a complexidade e quantidade dos casos, aliadas a requisitos legais de cláusulas abertas e múltiplas interpretações, ensejam equívocos na outorga de direitos.[1]

Por isso, a legislação, levando em conta os consideráveis riscos inerentes ao exame de requisitos de cognição limitada, como a novidade absoluta para as patentes, a concessão automática para os desenhos industriais e o conhecimento evidente no ramo de atividade para as marcas, prevê um sistema específico de impugnação, administrativo e judicial, para coibir e declarar nulos aqueles registros ou patentes que escapam às condições fixadas em lei. Dentre suas características particulares, está a possibilidade de o próprio INPI declarar a nulidade administrativamente ou propor ação judicial para fazê-lo.

Na imensa maioria dos casos, todavia, quem ajuíza a ação é o particular prejudicado com a patente ou o registro de marca ou desenho industrial. Nesse caso, a Lei da Propriedade Industrial – LPI impõe a obrigatória intervenção do INPI, cuja posição processual, segundo entendimento jurisprudencial majoritário, passa a ser a de assistente[2] da parte à qual reconheça razão.

Diante desse quadro, uma vez proposta a demanda pelo interessado, naturalmente o réu titular do bem atacado deverá ser citado e tem sessenta dias para apresentar resposta, aspecto inovador da lei. Em alguns casos, o requerido, em vez de contestar o pedido, verifica, de imediato, a procedência dos fundamentos alegados e, sem informar o fato ao juízo, procura diretamente o requerente e lhe propõe um acordo que possibilite encerrar a ação, a fim de que permaneça incólume sua patente, marca ou desenho industrial.

Nesse ínterim, o INPI recebe intimação para intervir no feito e, após ouvir suas diretorias técnicas, ingressa no processo e traz seu arrazoado, acompanhado, geralmente, de documentação técnica. Por vezes, defende a legalidade do bem que concedeu; noutras, rende-se aos argumentos do autor, requerendo, igualmente, a nulidade.

Se as partes autora e ré apresentam acordo para por fim à ação e a autarquia entender adequados à lei a patente ou o registro, não há maiores conseqüências. Se ninguém impugna sua legalidade, o bem deve continuar irradiando seus efeitos jurídicos protetivos. De outro lado, se o INPI identifica afronta aos requisitos de concessão, mas autor e réu chegam a um consenso para desistência da ação e permanência da patente ou do registro, surge a dúvida: pode a autarquia, que já analisou e concedeu o direito, opor-se à transação e pugnar pelo prosseguimento do processo de nulidade, na condição de mero interveniente?

Eis o problema para o qual este artigo busca encontrar resposta, com o exame da legislação, da qualidade processual do INPI e de estudo de caso concreto. O tema é objeto de preocupação no direito comparado[3] e foi vislumbrado pelas primeiras leis brasileiras de propriedade industrial, ainda no final do Século XIX e início do XX, embora tenha sido completamente abandonado a partir da edição do Código da Propriedade Industrial, de 1971, do novo Código de Processo Civil - CPC, de 1973, e da Lei da Propriedade Industrial, de 1996. Retomar-lhe a discussão ganha relevância com o aumento no volume de depósito e concessões de marcas e patentes e, por decorrência, do número de ações de nulidade, fruto da expansão da economia brasileira e do fluxo crescente de relações comerciais em âmbito mundial. Justificam-no a necessidade de conferir segurança ao incentivo e à justa retribuição dos investimentos em consolidação de marcas, pesquisa e tecnologia, submetendo a propriedade industrial aos interesses da sociedade e do País.


2 INTERVENÇÃO DO ESTADO NAS AÇÕES DE NULIDADE E SUA EVOLUÇÃO LEGISLATIVA

Em nível mundial, a preocupação com o cancelamento de privilégios indevidamente concedidos acompanha o próprio desenvolvimento dos sistemas de proteção da propriedade industrial. A Suprema Corte dos Estados Unidos da América tem jurisprudência rica e iterativa sobre o assunto, que permitiu fixar os contornos jurídicos da proteção naquele país, no qual o entendimento jurisprudencial assume relevante papel. Denis Borges Barbosa cita decisão de 1854 (O’Reilly v. Morse), em que o tribunal norte-americano rejeitou uma reivindicação de patente de telégrafo, que tentava proteção para idéia abstrata, sem solução técnica.[4]

No Brasil, não foi diferente. As mais remotas legislações sobre propriedade industrial[5] trataram de criar instrumentos específicos para cancelar privilégios e registros de marca. Cite-se, como exemplo, o Decreto nº 16.264, de 19.12.1923, que previa capítulos específicos para as nulidades, rito processual próprio, legitimidade aos Procuradores da República para ajuizar ação e competência da Justiça Federal, em função de que os atos administrativos de concessão eram, e continuam sendo, de competência da União. À época, os Códigos de Processo Civil eram estaduais.

Com o advento do Código de Processo Civil nacional já revogado, instituído pelo Decreto-Lei nº 1.608/39, a matéria passou a ser regulada nesse diploma legal, que encampou a legislação específica em vigor e trouxe relevante disposição para o tema.[6] No Título VI do Livro IV, denominado “Da ação de nulidade de patente de invenção e de marca de indústria e de comércio”, estabelecia o artigo 332:

 Art. 332. São competentes para promover ação de nulidade de patente de invenção:

I – os interessados, em qualquer dos casos de nulidade;

II – os procuradores da República, quando o privilêgio fôr concedido sem que a invenção possa constituir objeto de patente.

§ 1º – Consideram-se interessados as pessoas prejudicadas pela concessão do privilêgio.

§ 2º – Quando os procuradores da República ou seus adjuntos funcionarem como assistentes ou litisconsortes, serão ouvidos sobre todos os termos do processo, e, especialmente, sobre qualquer acordo que ponha termo à ação movida por particular, competindo-lhes contínuá-la, si a conveniência pública o exigir. (grifei)

Ficou expressamente reconhecida, no dispositivo em comento, a importância da intervenção do Estado nas ações de nulidade, devendo manifestar-se sobre todos os termos do processo e, de forma especial, sobre os acordos para por fim ao processo ajuizado por particular. Ademais, conferiu-se aos Procuradores da República a prerrogativa de prosseguir com a ação, mesmo que o autor tivesse transacionado, à vista do interesse público em jogo.

Ainda na vigência do CPC de 1939, as ações de nulidade com a intervenção União também foram objeto das legislações específicas de propriedade industrial, que, em linhas gerais, reproduziram as mesmas regras da lei processual geral, permanecendo os Procuradores da República com atribuição para ajuizar ação e continuar com o processo em caso de acordo. Nesse sentido, os Decretos-Leis nºs 7.903/45, 254/67 e 1.005/69.

Ocorre que, em 1970, por meio da Lei nº 5.648, a execução das normas de propriedade industrial, em âmbito nacional, foi transferida da administração direta da União para uma autarquia, pessoa jurídica de direito público interno, denominado INPI - Instituto Nacional da Propriedade Industrial. Com isso, não se justificava mais a atuação dos Procuradores da República, como representantes da União, nas ações de nulidade, na medida em que ente autônomo, com personalidade e corpo jurídicos próprios, passou a cuidar da concessão de patentes e registros de marca.

Em seguida, entrou em vigor o Código da Propriedade Industrial – CPI por força da Lei nº 5.772/71, que disciplinou o procedimento de nulidade judicial do privilégio (art. 55) e do registro de marca (art. 100). Aqui identifica-se a fratura legislativa em relação à intervenção do Estado nesses processos, porque o CPI limitou-se a legitimar o INPI para propor ação, mas nada disse sobre como proceder em caso de acordo, tampouco se a autarquia deveria intervir nos feitos que não ajuizara. Sequer fez remissão ao CPC de 1939, que ainda vigorava.

Para piorar, em 1973 foi promulgado o atual Código de Processo Civil, que, na existência de legislação específica, preferiu omitir-se sobre o tema, revogando as disposições do CPC anterior. Restava, então, somente o incompleto CPI.

As conseqüências deste tratamento legislativo foram logo sentidas. A primeira delas foi saber, justamente, se o INPI deveria intervir nos feitos que não havia proposto, o que repercutiria na competência do órgão do Poder Judiciário para processar e julgar a causa, Justiça Federal ou Estadual.

A jurisprudência do extinto Tribunal Federal de Recursos firmou-se no sentido de que o Instituto deveria intervir, na qualidade de assistente da parte com cujo posicionamento concorde, uma vez que a patente ou o registro pertencem ao particular titular do bem, de maneira que a autarquia deve ficar livre para manifestar seu entendimento, competente para a causa a Justiça Federal. Disso são exemplos os seguintes julgados:[7]

EMENTA: Administrativo e Processual. Nulidade do Registro de Marca. INPI e o Litisconsórcio Passivo. Embora o registro de marca se consubstancie num ato administrativo praticado pelo INPI, o direito ali contido pertence ao titular da marca e não à Administração; descabe ao INPI defender o registro, nos seus efeitos patrimoniais, mas apenas na sua forma, na observância das formalidades legais, aspecto estranho à lide. Exclusão do INPI da lide como litisconsórcio passivo. Deu-se provimento ao recurso voluntário. (TFR-5ª Turma, Apelação Cível nº 70.069-RJ, Rel. Min. Sebastião Alves dos Reis, j. 05.05.82, v.u., DJ 03.06.82)

EMENTA: ADMNISTRATIVO E PROCESSUAL CIVIL. NULIDADE DE REGISTRO DE MARCA. EXCLUSÃO DO INPI COMO LITISCONSORTE PASSIVO.

I – Ainda que o registro indevido da marca decorra de erro que viciou a substância do ato administrativo praticado pelo INPI, sua posição no feito não deverá ser de litisconsorte passivo, posto que sua atuação no curso da lide desenvolveu-se na linha de sua finalidade precípua de executar, no âmbito nacional, as normas que regulam a propriedade industrial, tendo em vista sua função social, econômica, jurídica e técnica (Lei nº 5.648/70, art. 2º), não resistindo, mas, apoiando a pretensão da autora, reconhecida e confessada, nos autos, como legítima.

II – Apelação provida, para excluir do processo o INPI, como réu, ficando mantida, no mais, a sentença recorrida. (TFR-5ª Turma, Apelação Cível nº 72.069-RJ, Rel. Min. Geraldo Sobral, j. 06.06.83, v.u., DJ 27.10.83)

Entretanto, permanecia a dúvida, não solucionada pela jurisprudência dos tribunais superiores, sobre a possibilidade de os representantes judiciais do INPI, na condição de sucessores dos Procuradores da República, oporem-se ao acordo formulado entre autor e réu e prosseguir com ação em curso.

Eis que, em 1996, após o País ter assinado tratado internacional no âmbito da Organização Mundial do Comércio-OMC sobre propriedade intelectual (Acordo TRIPS – “Trade Related Aspects of Intellectual Property Rights”), veio à lume a atual LPI (Lei nº 9.279/96), que revogou o CPI e passou a regular as ações de nulidade. A LPI positivou o que as decisões judiciais haviam consolidado: a demanda corre na Justiça Federal e o INPI, quando não for autor, intervirá no feito (arts. 57, 118 e 175). Todavia, a LPI deixou de mencionar sob que condição deveria fazê-lo e, o mais importante para o assunto em estudo, reproduziu a omissão do CPI quanto à possibilidade de insurgir-se contra acordo.

Assim, diante desse vácuo legislativo, coloca-se a questão que deve ser resolvida pela interpretação sistemático-teleológica, à vista dos fins a que se dirige a intervenção do ente estatal nessas ações e dos princípios e objetivos que norteiam os processos de nulidade.


3 CASO VIAGRA: LEADING CASE

Falsa a suposição de que o assunto coloca-se em termos meramente acadêmicos ou sem qualquer incidência prática, infirmada por relevante caso concreto, ao qual este artigo atribui qualidade de leading case, julgado na primeira instância da Justiça Federal em São Paulo (Processo nº 2003.61.00.010308-3), sobre a nulidade da patente do medicamento amplamente conhecido como viagra.

Bayer S.A. e Bayer Aktiengesellschaft propuseram ação em face de Pfizer Limited e Laboratórios Pfizer Ltda., titulares da patente pipeline[8] PI 1100088-0, requerendo sua nulidade. Duelo de gigantes. O fundamento principal utilizado foi o de que a patente concedida pelo INPI é derivada de patente européia, cuja nulidade foi declarada por tribunal estrangeiro.

O INPI, por força do artigo 57 da LPI, foi intimado a intervir no feito e manifestou-se, após constatar a existência de recurso em andamento perante o Escritório Europeu de Patentes – EPO interposto pela Pfizer, pela necessidade de aguardar a decisão final da Corte de Apelação do EPO, porquanto sustentou que havia relação de dependência entre as patentes quanto ao exame de mérito. Dessa forma, defendia que, anulada definitivamente a patente européia, tornar-se-ia nula a patente brasileira; caso contrário, esta continuaria em vigor pelo prazo de vigência estabelecido.

No decorrer do processo, as partes autora e ré entraram num acordo, compondo seus interesses privados e solicitando desistência da ação.

Ao mesmo tempo, o INPI veio aos autos do processo informando que a patente fora definitivamente revogada pelo Escritório Europeu de Patentes, tornando nula, por conseqüência, a patente nacional, com fundamento no artigo 230, §§ 3º e 4º, da Lei nº 9.279/96. A autarquia ressaltou que a nulidade acarretaria importantes reflexos para a indústria químico-farmacêutica e livre concorrência, especialmente para os milhares de consumidores que sofrem de impotência, e que, na vigência da patente, pagam preço maior pelo medicamento.

Ao final, foi prolatada sentença (anexo A, inteiro teor[9]), datada de 11.04.2006, em que a Juíza Federal Elizabeth Leão, da 12ª Vara Cível Federal em São Paulo, reconheceu que o INPI deve intervir como assistente litisconsorcial se a matéria envolve interesse público, podendo o ente estatal opor-se ao acordo. Transcrevo trecho elucidativo da decisão, com negritos e itálicos do original:

Contrariamente à alegação da empresa Pfizer, no sentido de ter havido um negócio jurídico, como ‘resultado de um acordo global firmado entre Bayer e Pfizer, para compor seus interesses privados’, do qual a ‘homologação de tal desistência por esse Juízo pôs fim à lide’, com o esgotamento do ofício jurisdicional, insta observar que a ação de nulidade de patente extrapola os limites privados – patrimoniais – das partes litigantes.

(...) ao pugnar o prosseguimento da ação para o julgamento do mérito, o INPI demonstra legitimamente seu poder-dever quanto a fiscalização das normas protetivas de direito industrial, dentre as quais, a carta patente ‘pipeline’ que expediu em favor da ré Pfizer.

Neste sentido, se se posiciona na ação ao lado de ‘quem estiver a lei e a razão’ pode, na forma da lei, formular pedido, inclusive para o reconhecimento da nulidade da patente, pois a ‘concordância expressa do INPI com a pretensão autoral o coloca como Assistente Litisconsorcial da Parte Autora, com atuação obrigatória quando a Ação visa à decretação de nulidade de registro marcário’ (TRF 2ª Região. REO 231369. Proc. n.º 200002010197730. Segunda Turma.DJU: 04/04/2005, p. 122/123. Rel. Juiz FRANCA NETO)

E não-somente, pois, como pacífico em nossa jurisprudência pátria, o INPI possui capacidade ‘ad causam’ autônoma, em razão, justamente, do direito tutelado pela Lei da Propriedade Industrial. Neste sentido:

‘PROCESSUAL CIVIL. AÇÃO ANULATORIA DE PATENTE. POSIÇÃO PROCESSUAL DO INPI.

- Nas ações de nulidade de patente de modelo industrial, embora o polo passivo da relação processual caiba a empresa titular da patente, o INPI nelas deve figurar como parte autônoma, podendo inclusive discordar do ajuste das partes para por termo ao processo, e requerer o prosseguimento da ação.

- A posição do INPI, no caso, não é de mero assistente de qualquer das partes.’ (TRF 2ª Região. AG – Proc. n.º: 890203047. Primeira Turma. DJ:18/04/1991. Rel.: Juiz CLELIO ERTHAL)

 Ao final, conheceu da manifestação do INPI e julgou procedente o pedido, para declarar a nulidade da patente PI 1100088-0, com efeitos retroativos à data do depósito.

Segundo se verifica do sistema informatizado processual da Justiça Federal, houve apelação pela parte autora, que posteriormente desistiu do recurso, havendo trânsito em julgado em 19/02/2009.

Portanto, percebe-se que a questão tem implicações que ultrapassam a esfera unicamente processual, repercutindo no sistema de propriedade industrial, que tem como característica projetar efeitos protetivos e de exclusividade erga omnes, de maneira a ressaltar sua importância e despertar interesse na sua adequada solução.


4 NECESSIDADE DE ANUÊNCIA DO INPI PARA HOMOLOGAÇÃO DE ACORDO

Apresentado o problema a ser resolvido e justificada a pertinência do tema, passa-se à análise dos fundamentos sobre a possibilidade de o INPI opor-se a acordo formulado entre particulares e prosseguir com a ação de nulidade.

Primeiramente, o estudo não considera eloqüente o silêncio do legislador a respeito. A omissão deve ser atribuída à transição da matéria do CPC de 1939 para o CPI de 1971, com alteração decorrente da criação do INPI, em substituição da administração direta da União. Não parece adequado dizer que dos representantes judiciais da autarquia foram subtraídas as prerrogativas processuais dos representantes da União, à época Procuradores da República, na medida em que as duas pessoas de direito público interno por eles defendidas estão incluídas no conceito de Fazenda Pública. Todos estiveram e estão no exercício de atos processuais, representando a entidade pública que era (União) e é (INPI) responsável pela execução das normas de propriedade industrial.

Argumentar que a concentração nos Procuradores da República das funções de representantes da União e do Ministério Público da União é que lhes dava legitimidade para recusar o acordo não faz desmerecer a intervenção do INPI como órgão estatal interveniente, que sucedeu àqueles, no resguardo do interesse público, que não é exclusividade das atribuições ministeriais. Ademais, a alegação implicaria desconsiderar a fonte histórica da intervenção do Estado nas ações de nulidade, advinda do Decreto nº 8.820, de 30.12.1882, que incumbia o encargo ao “procurador dos feitos da fazenda”.

No primeiro quartel do Século XX, Carvalho de Mendonça enfatizava:

Os privilégios de invenção, importando verdadeiro monopólio e restrição da liberdade do comércio e da indústria, envolvem matéria de ordem pública e de interêsse geral da sociedade, justificando-se a intervenção do Estado nessas ações, a fim de não ficar entregue a defesa da ordem pública e do interêsse da sociedade aos particulares, que poderiam conluiar-se para prejudicá-los.[10]

É difícil crer que os motivos sustentadores da possibilidade legal de oposição aos acordos tenham desaparecido. Ao contrário, a propriedade industrial, na sociedade moderna, ganhou importância exponencialmente maior do que aquela de que desfrutava até o início da Segunda Guerra Mundial, quando o CPC anterior foi editado. Há casos, na atualidade, de empresas que têm em sua marca ou marcas o ativo mais valioso, caso da Nike, com linha de produção praticamente toda terceirizada. Outras exploram patentes de cujos lucros dependem para recompensar pesados investimentos em pesquisa químico-farmacêutica, por exemplo. Uma patente indevidamente concedida nesta área pode frear o aporte de recursos por outras empresas e implicar no aumento exorbitante do preço final de venda ao necessitado por remédio, em função do bloqueio temporário da concorrência.

João da Gama Cerqueira foi quem melhor apontou a presença do interesse da coletividade na questão e a pertinência da intervenção estatal:

A concessão de um privilégio temporário ao autor da invenção é o meio prático que as leis encontraram de conciliar o interesse da coletividade, que reivindica o uso das novas invenções tendentes a satisfazer às suas múltiplas necessidades, com o direito do inventor do privilégio sobre a sua criação. Com a concessão do privilégio tem o inventor a justa recompensa de seu trabalho e a sociedade não fica indefinidamente privada do livre uso das invenções, as quais, findo o prazo legal, caem no domínio público. Mas, se em matéria de invenções, o interesse da coletividade reside na posse e na livre exploração dos inventos, uma vez esgotado o prazo dos respectivos privilégios, muito maior é o seu interesse em não se ver privado, em virtude de privilégios nulos, ilegalmente concedidos, do livre uso, gozo e exploração de produtos e processos pertencentes ao domínio público e ao patrimônio comum das indústrias. Nas ações de nulidade, portanto, o interesse do Estado jamais será o de defender, contra o interesse da coletividade, os privilégios que concede, aliás, com expressa ressalva de sua responsabilidade pela novidade da invenção. Nessas ações, ao interesse privado dos particulares que as promovem sobreleva o interesse público de ver anulados os privilégios irregularmente concedidos e esse interesse da coletividade compete ao Estado representar e defender.[11]

Por sua relevância, a matéria não passou despercebida pelo Poder Constituinte brasileiro, que, no título dos direitos e garantias fundamentais da Carta Magna de 1988, estabeleceu os fins aos quais se submete a propriedade industrial:

Art. 5º. XXIX – a lei assegurará aos autores de inventos industriais privilégio temporário para sua utilização, bem como proteção às criações industriais, à propriedade das marcas, aos nomes de empresas e a outros signos distintivos, tendo em vista o interesse social e o desenvolvimento tecnológico e econômico do País; (grifei)

O INPI, por sua vez, tem sua atuação vinculada a funções especificadas na Lei que o criou:

O INPI tem por finalidade principal executar, no âmbito nacional, as normas que regulam a propriedade industrial, tendo em vista a sua função social, econômica, jurídica e técnica, bem como pronunciar-se quanto à conveniência de assinatura, ratificação e denúncia de convenções, tratados, convênios e acordos sobre propriedade industrial.” (art. 2º da Lei nº 5.648/70, com grifos meus)

Do último dispositivo, à luz da norma constitucional transcrita, se extrai que a palavra “acordos” pode ser interpretada de forma ampla, incluindo todo e qualquer tipo de acordo relacionado à propriedade industrial que interfira na aplicação correta das normas respectivas, inclusive aqueles firmados em âmbito judicial, cuja homologação vem coberta pelos efeitos da coisa julgada.

Ademais, ainda que se circunscrevesse o termo “acordos” àqueles firmados em nível internacional, as previsões constitucional e legal, por si só, revelam que a nulidade de um bem de propriedade industrial transcende os interesses puramente privados do autor interessado e do réu titular. A intervenção do Estado na ação judicial objetiva não só trazer o importante posicionamento de quem concedeu a patente ou o registro, mas também o resguardo da lei e do interesse público, na medida em que, se é certo que os fins e funções especificados, de relevância inegável, norteiam a atuação do INPI no âmbito administrativo, com maior razão devem valer para o processo de nulidade, no qual a declaração por sentença opera efeitos retroativos e repercute erga omnes, ou seja, aproveita a todos, e não somente às partes, com os impactos sociais já sublinhados.

Por fim, a lógica e a economia processuais determinam: quem pode mais (propor a ação) pode menos (continuar com ação em curso), cabendo ao juiz federal da causa, considerando as posições sustentadas e os requisitos legais, no exercício de jurisdição de cognição plena e imparcial, declarar a existência ou não de nulidade, sem permitir que a transação entre particulares ponha fim à ação, suprimindo importante julgamento de mérito, quando a autarquia pretenda prosseguir na ação. Fundamental, portanto, o papel da Justiça Federal no controle da legalidade da concessão dos bens de propriedade industrial.

O entendimento oferece resposta ao problema desafiado, em consonância com a evolução legislativa, interpretação das normas aplicáveis e adequação ao sistema específico de declaração de nulidade, de efeitos ex tunc e erga omnes.


5 CONCLUSÃO

Uma vez proposta ação judicial por particular interessado contra particular titular de patente, registro de marca ou desenho industrial, com objetivo de declarar-lhes a nulidade, deve o ente estatal responsável pela concessão, o Instituto Nacional da Propriedade Industrial, intervir no feito, conforme determina a Lei da Propriedade Industrial, nos seus artigos 57, 118 e 175.

Se, no transcurso do processo, autor e réu entabulam acordo, pleiteando a desistência da ação, a autarquia federal deve ser ouvida e pode, caso entenda pela procedência da nulidade, dar prosseguimento ao processo, na linha do que já previa o artigo 332, § 2º, do Código de Processo Civil de 1939, cujas razões permanecem atuais, à vista da intervenção estatal como interesse da sociedade, da livre concorrência e do desenvolvimento econômico e tecnológico do País, bem como para preservação da segurança do sistema de proteção conferido pelos bens de propriedade industrial.


NOTAS EXPLICATIVAS

[1] João da Gama Cerqueira, ao cuidar da nulidade das patentes, alertava para o fato de que o exame prévio “não tem o mérito de suprir o verdadeiro fundamento do privilégio, que é o direito do inventor resultante de sua criação”, acrescentando que “há quem desconheça o verdadeiro alcance do exame prévio e considere as patentes de invenção como títulos inatacáveis, malgrado o que dispõe a lei, pelo fato de serem concedidas depois do exame realizado pela repartição competente e das impugnações de terceiros interessados na sua denegação. Prevalecem-se disso os titulares das patentes como meio de defesa na ação de nulidade e muitas vezes o juiz se deixa impressionar por esses argumentos e pelo prestígio de que se procura cercar o privilégio. Mas o fato de haver a patente resistido ao exame, às oposições e aos recursos, como se viu, juridicamente nada significa, não impedindo que o privilégio seja atacado perante o Poder Judiciário e anulado. Acrescente-se que todas as questões discutidas no processo de concessão da patente podem ser de novo ventiladas na ação judicial, tendo o juiz inteira liberdade de decidir sobre a validade do privilégio. Aliás, o processo judicial, pela sua natureza e pela amplitude das provas que comporta, é mais adequado que o processo administrativo para se dirimirem as complexas questões relativas às condições de privilegiabilidade.” (in Tratado da Propriedade Industrial. Rio de Janeiro: Revista Forense, 1952. 2 v, págs. 280/281).

[2] Sobre o tema específico da posição processual no INPI nas ações de nulidade de marcas, patentes e desenhos industriais, vide artigo de minha autoria, publicado na Revista da Associação Brasileira da Propriedade Intelectual – ABPI nº 73, nov/dez 2004. Tenho entendimento particular, no sentido de que a intervenção da autarquia é especial e se materializa com os mesmos poderes processuais atribuídos ao assistente litisconsorcial ou litisconsorte, conquanto seja terceiro interveniente. De outro lado, vale ressaltar que a jurisprudência está longe de ser pacífica, existindo controvérsia secular entre o litisconsórcio e a assistência, porquanto iniciada com as primeiras disposições legislativas sobre propriedade industrial e alimentada não só pelos especialistas na matéria, como, também, pelos ilustres processualistas que comentaram o CPC de 1939, como Pontes de Miranda, Machado Guimarães, dentre outros. Entre os diversos fundamentos que permitem concluir ser o INPI litisconsorte ou assistente, entendo que aqueles tendentes à configuração da intervenção do INPI como assistente simples fazem do ente estatal mero coadjuvante e dependente da parte à qual assiste, colocando o interesse público a reboque de interesses privados, em  conflito com a idéia de intervenção do Estado, que pressupõe autonomia de vontade e não simples auxílio ou aderência. Cabe ao juiz da causa decidir, dentre os fundamentos apresentados, a existência ou não de nulidade, sem que o conluio entre particulares possa encerrar a ação, suprimindo do Judiciário o julgamento de mérito.

[3] Na Itália, assim como em outros países europeus, o Ministério Público deve intervir nas ações de nulidade.

[4] Barbosa, Denis Borges. Uma introdução à Propriedade Intelectual. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2003, p. 339.

[5] Ainda no Século XIX, o Decreto nº 3.084, de 05.11.1898, já dispunha sobre a ação competente para a nulidade de patentes de invenção, com rito sumário.

[6] Na verdade, o Código de Processo Civil de 1939 nada mais fez do que acampar disposição que vinha desde o Decreto nº 8.820, de 1882.

[7] Disponível em: http://www.stj.gov.br/SCON/juritfr/

[8] Trata-se de patente de revalidação no Brasil, já depositadas no exterior, desde que o objeto da invenção não tenha sido colocado no mercado e ainda não tenham sido realizados no País preparativos para exploração, nos termos do artigo 230 da LPI.

[9] Disponível em:

 http://www.expressodanoticia.com.br/index.php?pagid=PiyivtD&id=3&tipo=WMXUw&esq=PiyivtD&id_mat=3801

[10] Apud Gama Cerqueira, op.cit., p. 309.

[11] Ibidem, p. 309/310.


REFERÊNCIAS

BARBOSA, Denis Borges. Uma introdução à Propriedade Intelectual. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2003.

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Autor


Informações sobre o texto

Artigo científico apresentado ao Programa de Educação Continuada e Especialização GVlaw, da Direito GV, da Fundação Getúlio Vargas, como exigência parcial para obtenção do título de especialista em Direito, na área de Propriedade Intelectual, sob orientação do Prof. Doutor Manoel J. Pereira dos Santos, São Paulo, 2006.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

SOUZA, Antonio André Muniz Mascarenhas de. Da imprescindibilidade de anuência do INPI para homologação de acordo formulado entre autor e réu nas ações de nulidade de marcas, patentes e desenhos industriais. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 18, n. 3510, 9 fev. 2013. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/23698. Acesso em: 25 abr. 2024.