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Responsabilidade civil estatal: morte de detento nas dependências de estabelecimento prisional

Responsabilidade civil estatal: morte de detento nas dependências de estabelecimento prisional

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Análise da jurisprudência dos Tribunais Superiores acerca da responsabilidade estatal sobre custodiados

Morte de detento nas dependências de estabelecimento prisional

1.1 Responsabilidade subjetiva ou objetiva?

Sem delongas, a responsabilidade da Administração Pública por morte ocorrida dentro de estabelecimento prisional é do tipo objetiva, segundo entendimento majoritário. No passado, entendeu-se que a responsabilidade em casos desse jaez comportaria averiguação de culpa do agente penitenciário, de modo que, na ocorrência de morte de detento causado por outro interno, por exemplo, haveria incidência da excludente de culpa de terceiro, com afastamento da obrigação indenizatória do Estado.

No entanto, a doutrina e a jurisprudência evoluíram para reconhecer a responsabilidade estatal, no caso em epígrafe, sob a ótica do risco administrativo. Passou-se a apurar, deveras, responsabilidade estatal a despeito de culpa.

Isso porque, a partir do momento em que a pessoa é recolhida ao presídio, tendo em vista as limitações decorrentes do regime prisional, assume o Estado o dever de vigilância e incolumidade do preso.

A propósito do tema, preleciona Rui Stoco:

O preso, a partir de sua prisão ou detenção, é submetido à guarda, vigilância e responsabilidade da autoridade policial, ou da administração penitenciária, que assume o dever de guarda e vigilância e se obriga a tomar medidas tendentes à preservação da integridade física daquele, protegendo-o de violências contra ele praticadas, seja por parte de seus próprios agentes, seja por parte de companheiros de cela ou outros reclusão com os quais mantém contato, ainda que esporádico. [...]

Assim, se um detento fere, mutila ou mata outro detento, o Estado responde objetivamente, pois cada detento está sempre sujeito e exposto a situações agudas de risco, inerente e próprio do ambiente das prisões onde convivem pessoas de alta periculosidade e, porque no ócio e confinados, estão sempre exacerbados e inquietos. [...]

Desse modo, qualquer lesão que esses presos sofram por ação dos agentes públicos, por ação dos agentes públicos, por ação de outros reclusos ou de terceiros, leva à presunção absoluta (jure et de jure) da responsabilidade do Estado, não admitindo a alegação de ausência de culpa.

Mostra-se, então, despiciendo indagar se a Administração falhou, se houve (ou não) omissão, falta ou falha do serviço, nem se há indagar da culpa do serviço ou culpa anônima do serviço. A responsabilidade nasce tão só da existência de um dano e da existência do nexo causal entre o fato e o resultado. Isto porque o preso fica sob o poder, proteção e vigilância do Estado. Quando preso, não tem escolha quanto ao local em que deve ficar, nem opção quanto aos próprios meios de sua proteção. Mas impõe-se que lhe assegure, ao menos, a cláusula de incolumidade[1]. (grifos nossos)

Acerca do dever de guarda objetivo do Estado por cada presidiário, ponderou o Ministro Teori Alberto Zavascki no julgamento do AgRg no Ag 986.208/MT:

[...] o nexo causal se estabelece, em casos tais, entre o fato de estar preso sob a custódia do Estado e, nessa condição, ter sido vitimado, pouco importando quem o tenha vitimado. É que o Estado tem o dever de proteger os detentos, inclusive contra si mesmos. Ora, tendo o dever legal de proteger os presos, inclusive na prática de atentado contra sua própria vida, com maior razão deve exercer referida proteção em casos como o dos autos, no qual o detento foi vítima de homicídio em rebelião ocorrida no estabelecimento prisional administrado pelo ente público. No mesmo sentido, cita-se: REsp 713682/RJ, 2ª T., Rel. Min. João Otávio de Noronha, DJ de 11.04.2005.

A jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça tem sido uníssona no sentido de que a responsabilidade civil do ente público é objetiva, considerando o nexo de causalidade entre a ação praticada por terceiro, estranho ao serviço público, e a lesão causada à pessoa que estava sob a custódia do Estado, o qual deveria zelar pela sua integridade física.

Neste sentido, colhem-se os seguintes arestos:

ADMINISTRATIVO. RESPONSABILIDADE CIVIL DO ESTADO. MORTE DE DETENTO EM ESTABELECIMENTO PRISIONAL. RESPONSABILIDADE OBJETIVA. SÚMULA 83/STJ. COMPROVAÇÃO DO DANO. VALOR DA INDENIZAÇÃO. PRETENSÃO DE REEXAME DE PROVAS. SÚMULA 7/STJ. JUROS DE MORA. LEI N. 11.960/2009.

1. No que se refere à morte de detento sob custódia do Estado, a jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça é no sentido de que a responsabilidade civil do ente público é objetiva. (grifo nosso)

2. O valor estabelecido pelas instâncias ordinárias a título de indenização por danos morais pode ser revisto, tão somente nas hipóteses em que a condenação revelar-se irrisória ou exorbitante, distanciando-se dos padrões de razoabilidade, o que não se evidencia no presente caso.

3. Quanto aos juros de mora, impõe-se a aplicação ao presente feito do art. 1º-F da Lei n. 9.494/97, com as alterações introduzidas pela Medida Provisória n. 2.180-35/2001, que determinou a incidência de juros no percentual de 6% ao ano, a contar da citação, até 29.6.2009. A partir dessa data, como no caso dos autos, os juros serão calculados nos mesmos moldes aplicados à caderneta de poupança, nos termos do art. 5º da Lei n. 11.960/2009.

Agravo regimental parcialmente provido.

(AgRg no AREsp 169.476/RJ, Rel. Ministro HUMBERTO MARTINS, SEGUNDA TURMA, julgado em 02/08/2012, DJe 08/08/2012)


ADMINISTRATIVO. PROCESSO CIVIL. RESPONSABILIDADE OBJETIVA DO ESTADO. MORTE DE DETENTO. HONORÁRIOS DE ADVOGADO DEVIDOS PELO ESTADO À DEFENSORIA PÚBLICA. IMPOSSIBILIDADE. CONFUSÃO. ART. 381 DO NOVO CÓDIGO CIVIL.

1. O Estado responde objetivamente por dano advindo de morte de detento provocada por demais presidiários dentro do estabelecimento prisional.

2. Nas demandas em que a parte contrária for representada pela Defensoria Pública, o Estado não paga honorários advocatícios.

3. Extingue-se a obrigação quando configurado o instituto da confusão (art. 381 do Código Civil atual).

4. A circunstância de o valor fixado a título de indenização por danos morais ser inferior ao pleiteado não configura hipótese de sucumbência recíproca (CPC, art. 21).

5. Recurso especial parcialmente provido.

(STJ, REsp 713.682/RJ, Rel. Ministro JOÃO OTÁVIO DE NORONHA, SEGUNDA TURMA DJ 11.O4.2OO5 p. 286).

Na mesma linha de posicionamento do Superior Tribunal de Justiça, também se tem manifestado a jurisprudência do Excelso Pretório, consoante exemplificam os arestos a seguir transcritos:

EMENTA: Recurso extraordinário. 2. Morte de detento por colegas de carceragem. Indenização por danos morais e materiais. 3. Detento sob a custódia do Estado. Responsabilidade objetiva. 4. Teoria do Risco Administrativo. Configuração do nexo de causalidade em função do dever constitucional de guarda (art. 5º, XLX). Responsabilidade de reparar o dano que prevalece ainda que demonstrada a ausência de culpa dos agentes públicos. 5. Recurso extraordinário a que se nega provimento
(RE 272839, Relator(a): Min. GILMAR MENDES, Segunda Turma, julgado em 01/02/2005, DJ 08-04-2005 PP-00038 EMENT VOL-02186-03 PP-00417 LEXSTF v. 27, n. 317, 2005, p. 236-257 RT v. 94, n. 837, 2005, 129-138 RTJ VOL-00194-01 PP-00337).

EMENTA: AGRAVO REGIMENTAL NO RECURSO EXTRAORDINÁRIO. RESPONSABILIDADE OBJETIVA DO ESTADO. MORTE DE DETENTO POR OUTRO PRESO. 1. Detento assassinado por outro preso. Responsabilidade objetiva do Estado de reparar o dano. 2. Agravo regimental a que se nega provimento. (RE 466322 AgR, Relator(a): Min. EROS GRAU, Segunda Turma, julgado em 13/03/2007, DJe-004 DIVULG 26-04-2007 PUBLIC 27-04-2007 DJ 27-04-2007 PP-00102 EMENT VOL-02273-06 PP-01188).

EMENTA: AGRAVO REGIMENTAL NO AGRAVO DE INSTRUMENTO. RESPONSABILIDADE CIVIL OBJETIVA. MORTE DE DETENTO EM ESTABELECIMENTO PRISIONAL. AGRAVO REGIMENTAL AO QUAL SE NEGA PROVIMENTO. 1. Impossibilidade do reexame das provas contidas nos autos na via extraordinária. Incidência da Súmula 279 do Supremo Tribunal Federal. 2. Morte de detento em estabelecimento prisional. Responsabilidade civil objetiva do Estado configurada. Precedentes. 3. Proibição constitucional de vinculação de qualquer vantagem ao salário mínimo. Impossibilidade da modificação da base de cálculo por decisão judicial: Súmula Vinculante n. 4. (AI 603865 AgR, Relator(a): Min. CÁRMEN LÚCIA, Primeira Turma, julgado em 11/11/2008, DJe-025 DIVULG 05-02-2009 PUBLIC 06-02-2009 EMENT VOL-02347-15 PP-03016).

Agravo regimental em recurso extraordinário com agravo. 2. Morte de detento sob custódia da Administração Pública. Responsabilidade objetiva do Estado. Art. 37, § 6º, da Constituição Federal. Missão do Estado de zelar pela integridade física do preso. Precedentes do STF. 3. Discussão acerca da existência de culpa do Estado. Necessidade do reexame do conjunto fático-probatório. Súmula 279. 4. Agravo regimental a que se nega provimento. (ARE 662563 AgR, Relator(a): Min. GILMAR MENDES, Segunda Turma, julgado em 20/03/2012, ACÓRDÃO ELETRÔNICO DJe-066 DIVULG 30-03-2012 PUBLIC 02-04-2012) (grifos nossos)

Muito embora haja consenso da responsabilidade objetiva do Estado por morte de detentos na esfera de competência dos Tribunais Superiores, a jurisprudência estadual ainda titubeia entre a modalidade objetiva e subjetiva[2].

Desse modo, a fim de pronunciar-se definitivamente acerca da matéria, o Supremo Tribunal Federal reconheceu, em setembro de 2012, a repercussão geral da matéria aqui ventilada. Nas razões de abertura para votação da repercussão geral, o relator, Ministro Luiz Fux, assentou:

A questão constitucional posta à apreciação deste Supremo Tribunal Federal cinge-se na discussão sobre a  responsabilidade civil objetiva do Estado, em razão de morte de detento, nos termos do artigo 37, § 6º, da Constituição Federal. A meu juízo, o recurso merece ter reconhecida a repercussão geral, haja vista que o tema constitucional versado nestes autos é questão relevante do ponto de vista econômico, político, social e jurídico, e ultrapassa os interesses subjetivos da causa. Diante do exposto, nos termos do art. 543-A, § 1º, do Código de Processo Civil, combinado com o art. 323, § 1º, do RISTF, manifesto-me pela existência de repercussão geral da questão constitucional suscitada, submetendo-a à apreciação dos demais Ministros desta Corte[3].(grifo nosso)

O reconhecimento da repercussão geral é, sem dúvida, um grande passo para a uniformização paulatina do tema nos tribunais. O pronunciamento definitivo do STF possibilitará a diminuição de decisões judiciais que, malgrado a previsão constitucional e o posicionamento homogêneo do STJ e daquele excelso Sodalício, afastam a responsabilidade do Estado sob a pecha de ausência de demonstração de culpa do agente público pelo interessado, prova esta, dada a segurança que envolve o presídio, muito difícil de produzir, quiçá impossível.

1.2 Suicídio: rompimento do nexo causal?

Questão deveras tormentosa é a responsabilidade estatal em decorrência de autoextermínio (suicídio[4]) de detento custodiado em estabelecimento prisional.

Pensamos, como traçado nos tópicos 3.2 e 3.3.1, que, desde que o preso passa à custódia e disciplina do Estado, reveste-se de direitos, deveres e prerrogativas inerentes à sua condição de detento. O Estado converte-se em garantidor e, assim, cumpre-lhe velar e zelar pela incolumidade pessoal das pessoas segregadas. Essa posição de garantidor da segurança do detendo advém do próprio texto constitucional, insculpida no art. 5º, XLIX (“É assegurado aos presos o respeito à integridade física e moral”).

O detento tem o direito subjetivo público à proteção pelos órgãos públicos, cujo poder administrativo se exercerá para resguardá-lo contra qualquer tipo de agressão.

Dessa forma, o Poder Público é responsável pela incolumidade física do preso que está sob sua custódia, incumbindo a seus agentes a vigilância e o zelo pela vida e integridade dos detentos que se encontram privados de sua liberdade e, por consequência, impossibilitados de se defenderem.

Não obstante o dever legal de zelar pela segurança dos encarcerados, o que atrai a sua responsabilidade objetiva, adotamos o posicionamento de que, na hipótese de suicídio, a responsabilidade estatal deve reger-se pela culpa administrativa, por presença de integral rompimento do nexo causal, em regra.

Quer dizer, a obrigação de compensar o dano (já que a reparação é impossível) aos familiares do suicida apenas encontra guarida se houver prova de que o ente público participou direta ou indiretamente do fato danoso, o que se configura mesmo quando, fugindo do dever de cautela, deixa de adotar as providências cabíveis que o evitassem.

Nesses moldes, se eventualmente foi concedida oportunidade velada de o preso ceifar a própria vida, como permitir o seu ingresso na cela portando cinto – instrumento hábil para enforcamento -, há omissão específica do estado apta a engendrar responsabilidade.

Assim, se o autoextermínio do preso decorre de falha dos agentes penitenciários, uma vez que ao se descurarem do dever de cautela, deixam de retirar pertences com os quais o preso poderia atentar contra sua vida, criam o cenário necessário para o evento danoso. Ao revés, não havendo culpa lato sensu, afasta-se o dano.

Do mesmo modo ocorre se a direção do presídio é leniente com a condição mental suspeita do preso, com sinais típicos de pessoas na iminência de se suicidarem, segundo literatura médica, deixando de acautelar-se com realização de exames e consultas a psicólogos e psiquiatras. Aqui, pôde agir o agente público, e não o fez, razão pela qual há responsabilidade.

Ora, filiar-se à teoria da responsabilidade objetiva para reger hipótese de suicídio de detentos seria admitir conclusão dissociada da realidade. Pensar que o Estado poderia impedir o suicídio, sob qualquer pretexto, é admitir vigília diuturna e ininterrupta a cada preso, o que, de fato, não ocorre, e nem ocorrerá em curto espaço de tempo, dado o longo caminho a ser trilhado para equipar todos os estabelecimentos prisionais de equipamentos eletrônicos de vigília. Ainda que com esse aparato técnico, não há qualquer garantia que fatos danosos como esse possam ocorrer.

Não há como o Estado manter a vigilância individual sobre todos os presos durante todo o tempo – é atentar contra o próprio princípio da reserva do possível[5].

Pela possibilidade de afastamento da responsabilidade estatal por culpa exclusiva da vítima, argumenta Leonardo Ayres Santiago:

Concluímos que vige, como regra geral, a responsabilidade objetiva do Estado fundada na teoria do risco administrativo, com base na norma contida no art. 37, § 6º da Constituição da República. Nessa modalidade de responsabilidade, como vimos, a culpa exclusiva da vítima impede que se forme o nexo de causalidade, afastando a responsabilidade do Estado. Se foi a vítima quem provocou o dano, então não foi o Estado; se não foi o Estado, então não há que se falar em responsabilidade[6].

Gize-se, nessa seara, que, ainda que o detento não disponha de qualquer discernimento, com debilidade mental grave[7], inteiramente incapaz de gerir seus próprios atos, entendemos pela mantença da tese da responsabilidade com culpa. Alguns podem contra-argumentar que a vontade de pôr termo à própria vida decorre de uma enfermidade psíquica e, neste caso, não há que se falar em culpa.

Ora, a despeito de seu estado mental, o fato é que ele ceifou a própria vida, e, o que é mais importante, cercado do aparato estatal básico à sua segurança. É o nítido retrato da dirimente de responsabilidade consubstanciada na culpa exclusiva da vítima.

Pondera SANTIAGO quanto à dispensabilidade do domínio da situação de fato pela vítima:

Desconsiderando o fato de que não se pode afirmar, seguramente, que todo suicida (ou mesmo a maioria deles) sofra de algum tipo de anomalia mental, deve-se ressaltar que a expressão ‘culpa exclusiva da vítima’ também abrange, além da culpa propriamente dita, os atos imputáveis exclusivamente ao lesado, ainda que sem a presença de culpa. Isto porque o que importa é verificar a existência, ou não, de nexo causal. Assim, se a vítima foi culpada, ou, embora não tenha sido culpada, ocasionou o evento danoso por ato exclusivo seu, então inexistiu a relação causal capaz de gerar a obrigação de reparar[8].

Noutro giro, o mesmo não se pode dizer quando o dano advém de causa alheia ao agente, como agressão de outros detentos ou de própria injúria policial, ocasião em que a responsabilidade objetiva do Estado se faz presente, como retratada no tópico antecedente.

Nesses casos, o próprio Estado cria situações propiciatórias do dano, assim como ocorre com usinas nucleares, depósitos de explosivos, manicômios e os presídios propriamente ditos.

Disserta Celso Antônio Bandeira de Mello:

Uma vez que a Sociedade não pode passar sem estes estabelecimentos, instituídos em proveito de todos, é natural que ninguém em particular sofra o gravame de danos eventualmente causados pelas coisas, animais ou pessoas que neles se encontravam sob a custódia do Estado. Daí que os danos eventualmente surgidos em decorrência desta situação de risco e por força da proximidade de tais locais ensejarão a responsabilidade objetiva do Estado. Com efeito, esta é a maneira de a comunidade social absorver os prejuízos que incidiram apenas sobre alguns, os lesados, mas que foram propiciados por organizações constituídas em prol de todos[9].

Mais adiante, diz o autor que, por critérios e razões idênticas, a responsabilidade objetiva por danos oriundos de coisas ou pessoas perigosas sob a guarda do Estado aplica-se, inclusive, às outras pessoas que se achem sob tal guarda. Exemplifica dizendo que, se um detento fere outro, o Estado responde objetivamente, pois cada um dos presidiários está exposto a uma situação de risco inerente ao ambiente em que convivem.

Mas, se um raio vier a matar um dos detentos – continua o autor – a responsabilidade desloca-se para o campo da culpa administrativa, deixando de ser objetiva, por inexistir conexão lógica entre o evento raio e a situação de risco vivida pelo desafortunado. A responsabilidade advirá se eventualmente ficar comprovado que as instalações capazes de impedir o evento (para-raios) não existiam, foram mal projetadas ou estavam mal conservadas.

Usando a própria argumentação do autor, pensamos que não podemos enquadrar a responsabilidade advinda do suicídio de preso como responsabilidade objetiva derivada de situação propiciatória criada pelo Estado, pois não há conexão lógica entre o evento suicídio e a situação de risco vivida pelo detento. O encarceramento gera vários riscos aos detentos, mas não podemos afirmar, com certeza, que gera o risco de suicídio, pelo menos do ponto de vista objetivo.

A respeito do tema, traz-se à colação lição do doutrinador Yussef Said Cahali, para quem:

O Estado deve ressarcir o dano resultante do suicídio de preso recolhido ao xadrez de delegacia de polícia cujo estado físico e mental inspirava cuidados com assistência médico-hospitalar. Pois, em tais situações, as condições pessoais do detento fariam presumir a necessidade de uma vigilância efetiva sobre o mesmo, a fim de prevenir a prática do ato tresloucado.  Entretanto, como ressalva o civilista ‘se o preso agiu contra ele próprio, enforcando-se, sem que o preposto do Estado tivesse concorrido, sequer por negligência, para o resultado letal, não há cogitar-se de responsabilidade civil do Poder Público’. Assim, em caso de suicídio de presidiário no interior da cela, ‘a obrigação de indenizar só acontece quando fica caracterizada a culpa dos funcionários do presídio, e não decorrente de atos de terceiros, quando o Poder Público não podia evitar o sinistro’. Portanto, ‘para a definição da responsabilidade civil do Estado (no caso), é necessário que se indique, de maneira clara, a culpa com que se houve seu preposto, seu representante. Entrever essa culpa no ato tresloucado do preso, decididamente, é ir muito longe. O suicida tem meios fáceis e impossíveis de se prevenir à obtenção do resultado. A impedi-lo, somente a manutenção permanente de um funcionário a seu lado. Dir-se-ia que deveria ter sido encaminhado a tratamento. Não havia elementos, porém, a curto prazo, que sugerissem o gesto extremo[10]. (grifos nossos)

Na jurisprudência, os tribunais trilham ambos os caminhos, ora adotando a teoria objetiva, ora a subjetiva.

No Excelso Pretório, a matéria ecoa forte no sentido da teoria objetiva[11], conforme passagem de voto do Ministro Gilmar Mendes no julgamento do agravo regimental no recurso extraordinário com agravo 700.927, do estado de Goiás, no qual assentou que:

[...] a jurisprudência dominante desta Corte, que se firmou no sentido de que o Estado tem o dever objetivo de zelar pela integridade física e moral do preso sob sua custódia, atraindo então a responsabilidade civil objetiva, em razão de sua conduta omissiva, motivo pelo qual é devida a indenização decorrente da morte do detento, ainda que em caso de suicídio[12].

O Superior Tribunal de Justiça caminha na mesma senda palmilha. Cite-se, por oportuno, excerto de voto do Ministro Teori Albino Zavascki, no julgamento do REsp 847.687/GO :

[...] entendo que não se trata de uma questão fática, data venia. Os fatos estão colocados. Houve o suicídio de uma pessoa que estava presa. A questão é saber se desse fato decorre responsabilidade civil do Estado. Entendo que a questão é de nexo causal. Pedindo vênia ao Sr. Ministro Francisco Falcão. Penso que é um equívoco negar o nexo de causalidade, como fez a sentença de 1ª Instância, entre o fato de o Estado ter efetuado a prisão e o suicídio. Entre o fato de o Estado ter efetuado a prisão e o suicídio não há nexo causal. Mas não é esse o fato. O nexo que se deve estabelecer é entre o fato de ele estar preso sob a custódia do Estado, e não de ele ter sido preso. O Estado tem o dever de proteger os detentos, inclusive contra si mesmos. Não se justifica que tenha tido acesso a meios aptos a praticar um atentado contra sua própria vida. Os estabelecimentos carcerários são, de modo geral, feitos para impedir esse tipo de evento. Se o Estado não consegue impedir o evento, ele é o responsável[13].

No âmbito do Tribunal de Justiça do Distrito Federal e Territórios, aplica-se, com unanimidade, a tese da responsabilidade objetiva, faceta do dever de guarda e de vigilância do Estado, todavia com minoração do quantum indenizatório. Vide as ementas transcritas a seguir:

ADMINISTRATIVO. APELAÇÃO CÍVEL. INDENIZAÇÃO. DANOS MORAIS E MATERIAIS. SUICÍDIO DE PRESO EM ESTABELECIMENTO PRISIONAL. NEXO CAUSAL. DEVER DE GUARDA E VIGILÂNCIA DO ESTADO. POSSIBILIDADE. MANUTENÇÃO DA INTEGRIDADE FÍSICA DOS DETENTOS.

Do Estado exige-se cuidado e vigilância constantes e eficientes daqueles que se encontram encarcerados em estabelecimentos prisionais, a fim de manter sua integridade e incolumidade física.

A contribuição da vítima para o evento morte não afasta o nexo causal, muito embora possa repercutir na redução da indenização.

Em se tratando do evento morte o sofrimento e o flagelo experimentados repercutem na esfera moral da prole, ensejando o direito à indenização.

É evidente a necessidade alimentar tendo em vista a presumida dependência econômica decorrente do poder familiar.

Na fixação do quantum relativo à reparação material deve-se considerar o emprego de 1/3 (um terço) dos ganhos que o pai auferiria com gastos pessoais, restando 2/3 (dois terços) para a prole.

Recurso parcialmente provido.

(Acórdão n.467755, 20070110436653APC, Relator: MARIO-ZAM BELMIRO, Revisor: NIDIA CORREA LIMA, 3ª Turma Civel, Publicado no DJE: 07/12/2010. Pág.: 214)


AÇÃO DE INDENIZAÇÃO POR DANOS MATERIAIS E MORAIS. MORTE DE DETENTO NAS DEPENDÊNCIAS DA DELEGACIA DE POLÍCIAL. SUICÍDIO. RESPONSABILIDADE OBJETIVA DO ESTADO. OMISSÃO DO PODER PÚBLICO. RESSARCIMENTO DEVIDO.

1. O suicídio de detento dentro da cela na Delegacia de Polícia não é suficiente para afastar a responsabilidade objetiva da Administração, pois o Estado tem o dever de respeitar e zelar à integridade física e moral dos presos (art. 5o, XLIX, CF/88), de forma que a violação a esta garantia, traduz-se na própria violação da legalidade, decorrendo em contingência o dever de ressarcir os parentes da vítima. (grifo nosso)

2. Recurso voluntário e Remessa Necessária conhecidos e não providos.
(Acórdão n.589842, 20040110787910APO, Relator: GETULIO DE MORAES OLIVEIRA, Revisor: MARIO-ZAM BELMIRO, 3ª Turma Civel, Publicado no DJE: 11/06/2012. Pág.: 131)

Na adoção da responsabilidade subjetiva, colham-se, ainda, precedentes dos Tribunais de Justiça de MG e RS:

AÇÃO DE INDENIZAÇÃO - PRISÃO - LEGALIDADE - SUICÍDIO OCORRIDO EM DELEGACIA - ATO VOLUNTÁRIO - RESPONSABILIDADE CIVIL DO ESTADO - CULPA IN VIGILANDO - INOCORRÊNCIA - MANUTENÇÃO DA SENTENÇA. - Tratando-se de indenização por danos morais e materiais sofridos por companheira de pessoa encontrada morta em delegacia, em decorrência de enforcamento voluntário, a responsabilidade é subjetiva, devendo ser afastada, no entanto, no caso, a culpa do Estado, por ter cumprido todas as exigências legais. - Recurso negado. (TJMG, Apelação Cível 1.0702.08.523969-8/001, Rel. Des.(a) Sandra Fonseca, 6ª CÂMARA CÍVEL, julgamento em 09/11/2010, publicação da súmula em 10/12/2010) (grifo nosso)


APELAÇÃO CÍVEL. RESPONSABILIDADE CIVIL. INDENIZAÇÃO POR DANOS MORAIS. SUICÍDIO DE PRESIDIÁRIO. CULPA EXCLUSIVA DA VÍTIMA. Hipótese em que restou comprovado nos autos a regularidade do serviço prestado pelo Estado, do qual não se pode exigir a vigilância individual de todos os presos em período integral. Dever de indenizar que não se reconhece, em face da incidência da excludente de culpa exclusiva da vítima. Juízo de improcedência prolatado. (grifo nosso)

Redimensionamento da sucumbência. APELAÇÃO DO RÉU PROVIDA. APELO DOS AUTORES E REEXAME NECESSÁRIO PREJUDICADOS. (TJRS, Apelação Cível Nº 70027558873, Décima Câmara Cível, Tribunal de Justiça do RS, Relator: Paulo Roberto Lessa Franz, Julgado em 28/05/2009)

Em que pese a orientação dos tribunais superiores, ousamos divergir para adotar a teoria da culpa administrativa para reger hipóteses de suicídio nos presídios, por entender que há rompimento do nexo causal, devendo o interessado provar, no caso concreto, a falha do poder público[14]. Por outro lado, se a moldura fática é dano provocado por outro detento, a responsabilidade é do tipo objetiva, porquanto o encarceramento é risco estatal e por ele deve ser garantido; diversamente, frise-se, sucede quanto ao suicídio, em que não há conexão lógica entre o próprio ato de extermínio e o risco advindo da segregação ali instalada.

1.3 Danos materiais

Os danos materiais, ou patrimoniais, são aqueles que atingem os bens integrantes do patrimônio da vítima, entendendo-se como tal o conjunto de relações jurídicas de uma pessoa apreciáveis economicamente. Podem referir-se tanto a bens corpóreos quanto a incorpóreos[15].

Outra classificação que se atribui aos danos materiais é quanto ao momento da consumação do dano. Nesse caso, ele pode ser taxado de dano emergente (efetiva e imediata diminuição do patrimônio da vítima em razão do ato ilícito) ou de lucro cessante (efeitos mediatos ou futuros, reduzindo ganhos, impedindo lucros).

No âmbito de incidência deste trabalho, mostra-se mais corriqueira a incidência do dano material na modalidade de lucro cessante. Quando um detento morre, estando em plena condição de trabalho, embora não esteja a exercê-la, há quebra de expectativa econômica da família, que planeja o retorno do detento ao mercado de trabalho para contribuir com a renda familiar.

Embora a grande massa da população carcerária seja desprovida de emprego, não há dúvida de que isso não implica empecilho à indenização.

De mesma sorte, é a situação do menor infrator. Conquanto não desempenhe qualquer atividade lucrativa, a sua morte implica não só indenização por danos morais, como também materiais, conforme se verá adiante, porquanto se considera o futuro auxílio a ser prestado à família – aqui, restrita à de baixa renda, consoante iterativa jurisprudência do STJ.

Nos tópicos a seguir, procuraremos demonstrar o posicionamento da doutrina e da jurisprudência na fixação de danos materiais por morte de detento.

1.3.1 Legitimados para ação de indenização

Ao contrário do rol de legitimados para a propositura de ação de indenização por danos morais – considerado muito mais amplo, por prescindir da dependência econômica-, a relação das pessoas com legitimidade ativa para demandar o Estado por danos materiais é aquele previsto no art. 948, II[16], do Código Civil. Em outras palavras, somente consideram-se legitimados os que demonstrarem inequivocadamente a dependência econômica do falecido.

Obviamente, o dispositivo em epígrafe aplica-se apenas ao caso de morte, porquanto, se o dano não comportar o óbito da vítima, ela própria constituirá a única pessoa com legitimidade para postular em juízo a reparação do dano, observado este no grau das lesões (extensão do dano – art. 944 do Código Civil).

A questão da legitimidade para ação de indenização por dano material, como se percebe, advém da própria lei e não comporta maiores dissensões. Passemos aos critérios norteadores da fixação da indenização.

1.3.2 Parâmetros de fixação

Para facilitar o estudo acerca do quantum indenizatório devido por dano provocado pelo Poder Público aos que estão custodiados em estabelecimento prisional, vamos nos ater ao evento morte, visto que a mera lesão não revolve maior debate.

Hipóteses de lesão são facilmente solvidas pelo Judiciário, porquanto basta a prova pericial para verificar a extensão do dano infligido ao apenado – se houve incapacidade total ou parcial ao trabalho-, ou, até mesmo, mero dano estético capaz de ensejar indenização. Verificado o dano, a indenização é devida, segundo os ditames gerais da responsabilidade civil.

Situação distinta, por outro lado, é a morte no presídio. Do evento, surgem basicamente duas opções processuais aos sucessores: ou ingressam com ação indenizatória com pensionamento vitalício, acaso seja o cônjuge o interessado ou dependente inválido, ou ação indenizatória com pedido de pensão indenizatória, nos demais casos.

A questão processual é simplória. A dificuldade está na apreciação do direito material. Vejamos os casos, sob a ótica da jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça.

Se a hipótese for de morte de menor, em cumprimento de regime de internação, pela prática de ato infracional, a responsabilidade do Estado por danos materiais consiste, se a família for de baixa renda, no pagamento de pensão indenizatória aos pais no patamar de um salário mínimo, na fração de 2/3 (um terço) até a data em que ele completaria 25 (vinte e cinco) anos de idade, a partir da qual será minorada a 1/3 (um terço) (redução de 50%) até a data em que a vítima completaria 65 (sessenta e cinco) anos de idade, patamar etário considerado, por presunção, como o fim da vida útil de um indivíduo.

É preciso frisar, no caso vertente, como mencionado, que a pensão apenas é devida à família de baixa renda. A respeito dessa restrição, leciona Sérgio Cavalieri Filho sobre a posição eclética do Superior Tribunal de Justiça:

[...] (1º) sendo os pais de classe média ou alta, a reparação não traz consequência material eventual ou presumida, à medida que a presunção é a de que os pais apoiem os filhos até mesmo após o casamento, sendo justo, assim, que recebam, tão somente, a reparação pelo dano moral; nesses casos, em tese, não há dano material algum, nem expectativa de que tal venha a ocorrer, diante da realidade de hoje; (2º) sendo os pais da classe trabalhadora, com baixa renda, a presunção opera no sentido contrário, ou seja, além do dano moral há também dano material pela só razão de contar os pais com a renda do filho, presente ou futura, pouco importando, desse modo, que exerça a vítima no momento da morte atividade remunerada[17].

Trata-se de importante evolução jurisprudencial na concessão dessa espécie de indenização, haja vista que, não muito tempo atrás, cogitava-se a inexistência de prejuízo a ser “ser reivindicado pelos pais, porquanto a indenização por dano material, em forma de pensão, visa restabelecer a situação financeira anterior ao ato ilícito, recompondo a renda que não mais será auferida em razão da morte de quem a recebia. Sem a caracterização de um prejuízo econômico, não se indenizam os danos materiais[18]”.

A guinada de entendimento incutiu maior responsabilidade social na conduta de todos os integrantes da sociedade, em especial do próprio Estado, que se viu obrigado a dedicar maior atenção, em especial, aos Centros de Atendimentos Juvenis, onde se cumpre o regime de internação previsto no Estatuto da Criança e do Adolescente.

Pende, no entanto, no âmbito da competência do Superior Tribunal de Justiça, divergência quanto ao termo inicial da pensão, no caso de morte de filho menor. Ser-se-ia aos 14 (catorze) anos, ou as 16 (dezesseis). Os que advogam pela menor idade sustentam que a partir dessa fase há possibilidade de o menor trabalhar como aprendiz, percebendo contraprestação pecuniária. Por outro lado, os que militam pela faixa etária dos dezesseis anos aduzem que é a partir dessa idade que o jovem efetivamente tem condições de ingressar no mercado de trabalho.

Por oportuno, colacionamos os seguintes arestos daquele colendo Tribunal:

“Cabível a indenização por danos materiais quando se trate de menor de tenra idade, integrando família de baixa renda, a partir da idade em que poderia ingressar no mercado de trabalho até a data em que completaria 70 anos, reduzida pela metade a partir da data em que completaria 25 anos”. (REsp 646.482/DF, Rel. Ministro CARLOS ALBERTO MENEZES DIREITO, TERCEIRA TURMA, julgado em 15/12/2005, DJ 08/05/2006, p. 200)


“É devido o pagamento de indenização por dano material em decorrência de morte de filho impúbere – ainda que o menor não exercesse atividade laborativa à época do evento danoso –, desde que pertencente à família de baixa renda. Precedentes”. (EREsp 147.412/DF, Rel. Ministra LAURITA VAZ, CORTE ESPECIAL, julgado em 15/02/2006, DJ 27/03/2006, p. 134)


ADMINISTRATIVO - RESPONSABILIDADE CIVIL DO ESTADO – ACIDENTE AUTOMOBILÍSTICO - AMBULÂNCIA MUNICIPAL - MOTORISTA ESTADUAL - SOLIDARIEDADE - DANOS MATERIAIS - FAMÍLIA POBRE - PRESUNÇÃO DE QUE A VÍTIMA MENOR CONTRIBUÍA PARA O SUSTENTO DO LAR – SÚMULA 07/STJ - SÚMULA 491/STF - PENSIONAMENTO AOS PAIS DA VÍTIMA ATÉ A IDADE EM QUE ESTA COMPLETARIA 65 ANOS - DESCONTO DO VALOR DO SEGURO OBRIGATÓRIO - SÚMULA 246/STJ – DIVERGÊNCIA NÃO-CONFIGURADA - AUSÊNCIA DE PREQUESTIONAMENTO.

1. [...]

2. O STJ proclama que em acidentes que envolvam vítimas menores, de famílias de baixa renda, são devidos danos materiais. Presume-se que contribuam para o sustento do lar. É a realidade brasileira.

3 a 5. [...]

6. Em acidente automobilístico, com falecimento de menor de família pobre, a jurisprudência do STJ confere aos pais pensionamento de 2/3 do salário mínimo a partir dos 14 anos (idade inicial mínima admitida pelo Direito do Trabalho) até a época em que a vítima completaria 25 anos (idade onde, normalmente, há a constituição duma nova família e diminui o auxílio aos pais). Daí até os eventuais 65 anos (idade média de vida do brasileiro) a pensão reduz-se a 1/3 do salário mínimo. 7. Recursos parcialmente providos". (REsp 335058/PR, Rel. Min. HUMBERTO GOMES DE BARROS, DJ 15.12.2003)


“Nesse contexto, forçosa a atribuição de efeitos modificativos aos embargos de declaração para se suprimir o entendimento manifestado nos itens 5 e 6 da ementa do acórdão ora embargado e, fazendo valer a jurisprudência do STJ, reconhecer que os autores têm direito à pensão de 2/3 do salário mínimo, no período em que o menor falecido teria entre 16 e 25 anos, e, após esse período, no valor de 1/3 do salário mínimo até o momento em que o falecido completaria 65 anos de idade”. (EDcl no REsp 1094525/SP, Rel. Ministro BENEDITO GONÇALVES, PRIMEIRA TURMA, julgado em 22/06/2010, DJe 03/08/2010)


“A pensão mensal devida aos pais, pela morte de filho menor, deve ser fixada em valores equivalentes a 2/3 do salário mínimo, dos 14 até 25 anos de idade da vítima, reduzido, então, para 1/3 até a data em que o de cujus completaria 65 anos. Precedentes”. (AgRg no REsp 686.398/MG, Rel. Ministra NANCY ANDRIGHI, TERCEIRA TURMA, julgado em 08/06/2010, DJe 18/06/2010) (grifos nossos)


“A morte de menor em acidente, mesmo que à data do óbito ainda não exercesse atividade laboral remunerada ou não contribuísse com a composição da renda familiar, autoriza os pais, quando de baixa renda, a pedir ao responsável pelo sinistro a reparação por danos materiais, aqueles resultantes do auxílio que, futuramente, o filho poderia prestar-lhes.  (REsp 1044527/MG, Rel. Ministra NANCY ANDRIGHI, TERCEIRA TURMA, julgado em 27/09/2011, DJe 01/03/2012).

Se a morte é do pai de família ou da mãe, aqui não há distinção, em face da presunção de que ambos provêm o sustento da casa, cabe indenização, em ambos os casos, em favor dos filhos menores e/ou do cônjuge supérstite. No caso dos filhos menores, o termo final para percepção da pensão é a idade de 25 (vinte e cinco) anos, a partir da qual se presume que o filho alçou sua independência financeira, não mais dependendo do sustento de seus genitores. Por outro lado, quanto ao cônjuge supérstite, a pensão é vitalícia e, acaso dividida com filhos comuns ou apenas do de cujus, tem o direito de acrescer ao expirar a pensão do descendente.

Importante salientar, ainda, que é desimportante o fato de o preso ser segurado pela Previdência Social, porquanto a pensão por morte eventualmente percebida é acumulável[19] com a pensão fixada a título de indenização, haja vista possuírem origens jurídicas distintas.

Confiram-se as ementas dos seguintes precedentes, para melhor clareamento do quadro posto:

[...] é possível a cumulação da pensão previdenciária pós-morte com outra de natureza indenizatória. (AgRg no REsp 1333073/MG, Rel. Ministro MAURO CAMPBELL MARQUES, SEGUNDA TURMA, julgado em 04/10/2012, DJe 11/10/2012) (grifo nosso)

 (REsp 1320214/DF, Rel. Ministro CASTRO MEIRA, SEGUNDA TURMA, julgado em 21/08/2012, DJe 29/08/2012)


[...] Segundo a jurisprudência desta Corte Superior, não se exige a prova do valor efetivamente desembolsado com despesas de funeral, se o montante arbitrado em juízo não se afigura excessivo. Precedentes.A jurisprudência desta Corte Superior há muito converge no sentido de que, nas famílias de baixa renda, há presunção relativa de dependência econômica entre seus membros.  Ademais, não se pode esquecer a dependência econômica do descendente em relação ao ascendente e do dever deste de prover a subsistência daquele, sendo, consequentemente, devida reparação por danos materiais ao filho menor, pela morte do pai em acidente. Precedentes. (EDcl no Ag 1407780/RJ, Rel. Ministro LUIS FELIPE SALOMÃO, QUARTA TURMA, julgado em 25/09/2012, DJe 01/10/2012) (grifo nosso)

Esse é o mosaico fático da jurisprudência do STJ aplicável, mesmo por analogia, aos danos materiais acarretados a encarcerados.  Não se olvide, por derradeiro, a plena possibilidade de cumulação dos danos materiais epigrafados com os danos morais, visto que estes possuem escopo diverso, buscando recompensar prejuízo distinto, consoante se verá a seguir.

1.4 Danos morais

Primeiramente, é de ter-se sempre em mira a finalidade da indenização por danos morais adotada no ordenamento jurídico brasileiro.

Emergem, nesse passo, duas vertentes principais a justificar a responsabilidade civil do ofensor de direitos alheiros: sob o prisma individual da vítima, a esta interessa o retorno ao status quo abalado pela agressão, ou, em caso de impossibilidade prática, como na hipótese de danos morais, a compensação da dor sofrida com a experimentação de alguma benesse, ainda que de natureza diversa da do bem lesado; por outro lado, a partir da ótica da coletividade e da posição do agressor, tem-se como escopo da responsabilidade civil a sanção ao causador do dano e a exemplaridade da condenação, devendo esta se servir à dissuasão de recalcitrância futura.

Com efeito, verifica-se o duplo escopo da condenação civil: a recomposição ou compensação do dano e a sanção do causador do dano, em razão da reprovabilidade de sua conduta.

Nessa linha, confira-se o magistério de Carlos Alberto Bittar:

Engendram-se, na teoria em debate, para os fins expostos, diferentes mecanismos de reparação, mas, basicamente, repousa ela na exigência de pagamento de certa soma de dinheiro pelo lesante ao lesado, de modo espontâneo, ou sob ordem judicial em processo próprio. Cuida-se, primordialmente, de fazer incidir sobre o patrimônio do lesante – garantia comum dos credores - a responsabilidade pelos efeitos danosos experimentados pelo lesado, repondo-se as partes no estado anterior. Vale dizer: objetiva-se restabelecer o equilíbrio no mundo fático rompido pelas consequências da ação lesiva, porque interessa à sociedade a preservação da ordem existente e a defesa dos valores que reconhece como fundamentais na convivência humana. Mas interessa também ao lesado a reconstituição de sua situação pessoal, ou, pelo menos, a minoração dos sacrifícios suportados por força de danos ocorridos. Importa, por fim, atribuir-se ao lesante os reflexos negativos resultantes de sua atuação, diante da subordinação necessária à manutenção da tranqüilidade social. Nessa linha de raciocínio, preenche a teoria em estudo os fins de chamar à reparação o lesante e sancioná-lo pelos danos produzidos a outrem, realçando-se, em sua base, a forte influência da Moral.

[...]

A estruturação dessa teoria está, realmente, marcada pelas notas básicas expostas, na medida em que desempenha, no plano civil, funções de defesa da pessoa humana em suas interações sociais, sem, contudo, desligar-se de seu espectro geral de instrumento de proteção de interesses da coletividade[20]. (grifo nosso)

A concessão dos danos morais tem por escopo proporcionar ao lesado meios para aliviar sua angústia e sentimentos feridos. Demonstrado o dano moral, como a perda do familiar presidiário ou uma lesão corporal capaz de desferir a esse mesmo familiar tamanha dor que interfira no seu plano moral, impõe-se a obrigação de indenizar.

A indenização do dano moral tem o caráter não só de compensar a dor, mas também de penalização e de prevenção para evitar a reincidência. Tal indenização deve ser fixada levando-se em conta a situação econômica das partes e a culpa do ofensor, bem como a repercussão do dano na vida do ofendido.

Para se fixar o valor indenizatório ajustável à hipótese fática concreta, deve-se sempre ponderar o ideal da reparação integral e da devolução das partes ao status quo ante. Esse princípio encontra amparo legal no artigo 947 do Código Civil.

No entanto, não sendo possível a restitutio in integrum em razão da impossibilidade material desta reposição, transforma-se a obrigação de reparar em uma obrigação de compensar, tendo vista que a finalidade da indenização consiste, justamente, em ressarcir a parte lesada.

Firmadas essas premissas, discutiremos nos próximos tópicos a legitimidade ativa para postular reparação por dano moral em juízo, os critérios usualmente empregados pela jurisprudência para fixar o valor da indenização, a presunção do dano moral em determinadas hipóteses e, por fim, abordaremos a postura crítica que se deve adotar quando um familiar busca a reparação por dano moral advinda de morte de pessoa vinculada por laço sanguíneo, mas sem proximidade fática.

1.4.1 Legitimados para ação de indenização

Na esfera da responsabilidade civil, não se questiona a legitimidade ativa concedida a qualquer pessoa que tenha sofrido um dano.

No entanto, questão delicada se posta quando a reparação é por dano moral. Qualquer terceiro, que alegadamente trouxer a juízo relação íntimo-amorosa com a vítima, pode ver a falta do ente requerido reparada patrimonialmente em juízo?

A resposta, se provada a convivência próxima e constante, é positiva. Muito embora, por analogia, seja de praxe admitir como legitimados apenas aqueles previstos no parágrafo único dos artigos 12 e 20 do Código Civil, o qual prevê a legitimidade, em se tratando de ente morto, ao cônjuge, ascendentes ou os ascendentes.

É possível, ainda, no mesmo exercício de analogia, conferir como legitimados à reparação por dano moral os legitimados à compensação por dano material do art. 948, II, do mesmo código, ampliando a legitimidade àqueles que estavam em estreita relação com a vítima, como o cônjuge, companheira, filhos, pais e irmãos menores que vivam sob o mesmo teto.

Nesse diapasão, ainda que a pessoa interessada não seja nenhuma das arroladas nos parágrafos anteriores, poderá ser considerada legitimada a postular reparação civil se demonstrar forte vínculo social com o falecido.

O Superior de Tribunal colaciona diversos julgados em que admite a legitimidade ativa ad causam de irmãos, por exemplo, a despeito de qualquer dependência econômica. Vejamos:

ADMINISTRATIVO E PROCESSUAL CIVIL. RESPONSABILIDADE CIVIL DO ESTADO. MORTE DE DETENTO EM PRESÍDIO. AÇÃO DE INDENIZAÇÃO POR DANO MORAL. IRMÃ DA VÍTIMA. LEGITIMIDADE ATIVA. PRAZO PRESCRICIONAL. ART. 1º DO DECRETO 20.910/1932.

1. Irmãos são partes legítimas ad causam para pleitear indenização por danos morais em razão do falecimento de outro irmão. Precedentes do STJ. (grifo nosso)

2. O prazo prescricional de Ação de Indenização contra a Fazenda Pública é de cinco anos, nos termos do art. 1º do Decreto 20.910/1932, norma que regula a prescrição de "todo e qualquer direito ou ação contra a Fazenda Federal, Estadual ou Municipal, seja qual for a sua natureza".

3. Agravo Regimental não provido.

(AgRg no REsp 1197876/RR, Rel. Ministro HERMAN BENJAMIN, SEGUNDA TURMA, julgado em 16/12/2010, DJe 02/03/2011)


RESPONSABILIDADE CIVIL DO ESTADO. AÇÃO DE INDENIZAÇÃO. DANO MORAL. MORTE DE PRESIDIÁRIO EM ESTABELECIMENTO PRISIONAL. LEGITIMIDADE ATIVA. IRMÃOS DA VÍTIMA. PRESCRIÇÃO. APLICAÇÃO DO DECRETO Nº 20.910/32.

1 e 2. [...]

3. Os irmãos da vítima ostentam legitimidade ativa ad causam para pleitear indenização por danos morais e em razão do falecimento de outro irmão. Precedentes do STJ: Resp 1054443/MT, Rel. Ministro CASTRO MEIRA, SEGUNDA TURMA, DJe 31/08/2009; AgRg no Ag 833.554/RJ, QUARTA TURMA, DJe 02/02/2009; REsp 254.318/RJ, QUARTA TURMA, DJ 07/05/2001.

3. [...]

4. Agravo Regimental desprovido.

(AgRg no REsp 1184880/RR, Rel. Ministro LUIZ FUX, PRIMEIRA TURMA, julgado em 17/06/2010, DJe 01/07/2010).

Nesses moldes, se um infortúnio aflorar-se num presídio, com o ceifamento da vida de um interno, pode cogitar-se a postulação em juízo, por dano moral, segundo pensamos, frise-se, até de seu companheiro de cela, bastando a prova de união duradoura e visceral com a vítima e que a morte lhe acarretou imensa dor psicológica.

1.4.2 Dano presumido: dano in re ipsa

Para a demonstração do dano moral àqueles que perdem um ente querido nas dependências de um estabelecimento prisional, basta a realização da prova do nexo causal entre a conduta (indevida ou ilícita), o resultado danoso e o fato. Não se trata de uma presunção legal, pois é perfeitamente admissível a produção de contraprova, se demonstrado que não consiste numa presunção natural.

Trata-se de dano moral in re ipsa, que dispensa a comprovação da extensão dos danos, sendo esses evidenciados pelas circunstâncias do fato. Nesse sentido, destaca-se a lição do Des. Sérgio Cavalieri Filho:

Entendemos, todavia, que por se tratar de algo imaterial ou ideal a prova do dano moral não pode ser feita através dos mesmos meios utilizados para a comprovação do dano material. Seria uma demasia, algo até impossível, exigir que a vítima comprove a dor, a tristeza ou a humilhação através de depoimentos, documentos ou perícia; não teria ela como demonstrar o descrédito, o repúdio ou o desprestígio através dos meios probatórios tradicionais, o que acabaria por ensejar o retorno à fase da irreparabilidade do dano moral em razão de fatores instrumentais.

Neste ponto, a razão se coloca ao lado daqueles que entendem que o dano moral está ínsito na própria ofensa, decorre da gravidade do ilícito em si. Se a ofensa é grave e de repercussão, por si só justifica a concessão de uma satisfação de ordem pecuniária ao lesado. Em outras palavras, o dano moral existe in re ipsa; deriva inexoravelmente do próprio fato ofensivo, de tal modo que, provada a ofensa, ipso facto está demonstrado o dano moral à guisa de uma presunção natural, uma presunção hominis ou facti, que decorre das regras de experiência comum[21].(grifo nosso)

Afigura-se, portanto, despicienda qualquer prova de angústia moral pelos interessados na reparação extrapatrimonial. Provou-se o dano, exsurge o dever de indenizar, provado fictamente pelas balizas de experiência ordinária do homem médio.

1.4.3 Parâmetros de fixação

No concernente ao valor dos danos morais, há de se considerar uma série de circunstâncias. Em regra, a jurisprudência dispõe que o valor da indenização deve atentar-se para a pessoa do ofendido e do ofensor; a medida do padrão sociocultural da vítima; a extensão da lesão ao direito; a intensidade do sofrimento e sua duração; e as condições econômicas do ofendido e as do ofensor. Deve-se relevar, ainda, o caráter pedagógico-preventivo da medida.

Todavia, a real dimensão externa da ingerência do ato lesivo no âmbito psicológico da vítima é que deflagrará o quantum indenizatório devido. Para tanto, é necessário sopesar, nesta esfera eminentemente subjetiva, se há interferência direta do meio social dos sujeitos, das especificidades do objeto, e, finalmente, os efeitos jurídico-econômicos.

Aliado a esses critérios de julgamento, deve-se buscar sempre o bom senso e a razoabilidade, esteios para o arbitramento desta medida. Não se pode desconsiderar, noutra senda, a exequibilidade do encargo pelo agente responsável.

Cumpre mencionar a lição de Sílvio Sálvio Venosa:

Qualquer indenização não pode ser tão mínima a ponto de nada reparar, nem tão grande a ponto de levar à penúria o ofensor, criando para o estado mais um problema social. Isso é mais perfeitamente válido no dano moral. Não pode igualmente a indenização ser um instrumento de enriquecimento sem causa para a vítima; nem ser de tal forma insignificante ao ponto de ser irrelevante ao ofensor, como meio punitivo e educativo, uma vez que a indenização desse já tem também essa finalidade [22].

À vista da inexistência de parâmetros legais para fixação do valor do dano extrapatrimonial, o julgador deve observar os princípios da proporcionalidade e razoabilidade[23]. Outrossim, deve atentar para a natureza jurídica da indenização[24], que deve constituir uma pena ao causador do dano e, concomitantemente, compensação ao lesado, além de cumprir seu cunho pedagógico sem caracterizar enriquecimento ilícito.

Nesse sentido é a lição de Caio Mário da Silva Pereira, nos seguintes termos:

A vítima de uma lesão a algum daqueles direitos sem cunho patrimonial efetivo, mas ofendida em um bem jurídico que em certos casos pode ser mesmo mais valioso do que os integrantes de seu patrimônio, deve receber uma soma que lhe compense a dor ou o sofrimento, a ser arbitrada pelo juiz, atendendo às circunstâncias de cada caso, e tendo em vista as posses do ofensor e a situação pessoal do ofendido. Nem tão grande que se converta em fonte de enriquecimento, nem tão pequena que se torne inexpressiva[25].

Sérgio Cavalieri Filho, ao tratar do arbitramento do dano moral, assim se manifestou:

Creio, também, que este é outro ponto onde o princípio da lógica do razoável deve ser a bússola norteadora do julgador. Razoável é aquilo que é sensato, comedido, moderado; que guarda uma certa proporcionalidade. A razoabilidade é o critério que permite cotejar meios e fins, causas e consequências, de modo a aferir a lógica da decisão. Para que a decisão seja razoável é necessário que a conclusão nela estabelecida seja adequada aos motivos que a determinaram; que os meios escolhidos sejam compatíveis com os fins visados; que a sanção seja proporcional ao dano. Importa dizer que o juiz, ao valorar o dano moral, deve arbitrar uma quantia que, de acordo com o seu prudente arbítrio, seja compatível com a reprovabilidade da conduta ilícita, a intensidade e duração do sofrimento experimentado pela vítima, a capacidade econômica do causador do dano, as condições sociais do ofendido, e outras circunstâncias mais que se fizerem presentes[26].

No ponto específico tratado neste trabalho – a responsabilidade estatal pela incolumidade dos presidiários -, é preciso estabelecer que a capacidade econômica do ofensor (Estado) é exponencialmente considerável e deve balizar a fixação do quantum indenizatório. Por outro lado, não se pode permitir o enriquecimento sem causa do ofendido.

Os tribunais estaduais, de modo geral, na ocorrência de morte de detento, costumam fixar a indenização no patamar de R$ 30.000,00 a R$ 70.000,00[27], montante este que ganha reforma na instância superior (STJ) apenas se considerado ínfimo ou exagerado[28], quer seja, se verificada ofensa aos princípios da razoabilidade e da proporcionalidade já entabulados.

1.4.4 Releitura da presunção: o afastamento afetivo entre vítima e familiar

A seara relativa à indenização por dano moral é a que talvez revele hoje a exigência maior dos juízes no apego àquele traço que, desde nossos antepassados romanos, lhes deve ser inerente: a prudência. Nessa linha - como bem denunciou Sergio Cavalieri Filho -, para que, “depois de ultrapassadas as fases da irreparabilidade do dano moral e da inacumulatividade com dano material, não nos enveredemos pela fase de sua industrialização[29]”.

Outra questão interessante nesse campo é a divergência doutrinária e jurisprudencial acerca da legitimidade ativa para pleitear o ressarcimento do dano moral, na medida em que, se todos aqueles que sofressem abalo moral pudessem buscar sua compensação, ter-se-ia a esdrúxula situação de, por exemplo, fãs de hipotético astro da música morto[30] requererem judicialmente a verba compensatória. Ao reverso, não se mostra razoável que a cadeia de legitimados para pedir a compensação de uma dor moral se estenda ad infinitum, a agasalhar todos os parentes, amigos ou, até mesmo, admiradores da vítima.

À míngua de qualquer previsão de rol de legitimados ao dano moral no ordenamento jurídico brasileiro, incumbe à doutrina e à jurisprudência a tarefa de estabelecer os limites da razoabilidade.

Como pontuado no item 3.3.3.1 (Legitimados para ação de indenização), mostra-se necessária a prova de estreita relação afetiva entre vítima e interessado para deflagrar a responsabilidade civil.

Com efeito, muito embora a legitimidade para pleitear-se indenização por danos morais, decorrentes de morte, tenha tido como pressuposto o grau de parentesco entre a vítima e o requerente, tal solução não é destituída de causa. Em realidade, a depender do grau de parentesco, presume-se a existência de laços afetivos sólidos, cujo rompimento em razão da morte do querido ente gera sofrimento indenizável.

Destarte, mostra-se relevante à determinação da legitimidade para receber indenização por dano moral, em última análise, e sobretudo, os laços afetivos entre a vítima, em vida, e o autor da ação, cuja existência é presumida em parentes próximos, porquanto nesses casos os fatos tidos por danosos, de regra, conseguem ingressar na esfera da dignidade da pessoa, causando-lhe abalo moral.

Daí porque a lição de Carlos Alberto Bittar Filho, para quem:

As pessoas legitimadas são, exatamente, aquelas que mantêm vínculos firmes de amor, de amizade ou de afeição, como os parentes mais próximos; os cônjuges que vivem em comum; os unidos estavelmente, desde que exista a afetiva aproximação e nos limites da lei, quando, por expresso, definidos (como na sucessão, em que se opera até o quarto grau, pois a lei presume que não mais prospera, daí, em diante, a afeição natural, C. Civ., art. 1.612)[31].

No mesmo sentido, trazemos a lume o magistério de Arnaldo Rizzardo:

Nem se toma por empréstimo a ordem erigida para a sucessão hereditária, pois distintos os pressupostos para admitir o dano moral, sendo eles o vínculo do amor, da afeição, da amizade, do entrelaçamento de sentimentos, da vida em comum, de modo a cada um sentir na própria carne aquilo que acontece com outro[32].

Já decidiu o Superior Tribunal de Justiça, in verbis:

(...) o entendimento jurisprudencial desta Corte é no sentido de que a prova do dano moral se satisfaz, em determinados casos, com a demonstração do fato externo que o originou e pela experiência comum. No caso específico, em que houve morte, a dor da família é presumida, sendo desnecessária fundamentação extensiva a respeito. (REsp 204.825/RR, Rel. Ministra LAURITA VAZ, SEGUNDA TURMA, julgado em 17.09.2002, DJ de 15.12.2003, p. 245)

Nessa esteira, não fica difícil concluir que, muito embora a proximidade do grau de parentesco possa, de regra, conduzir à legitimidade para o pedido de indenização em razão de morte, tal não se verifica sempre, porquanto, como bem lembrado por Cavalieri, a presunção é iuris tantum de que há abalo moral na perda de parentes de grau próximo, havendo possibilidade, com efeito, de demonstração em contrário.

Tal constatação coaduna-se com a mais moderna doutrina acerca dessa realidade social metamórfica chamada "família[33]".

Nesses lindes, entendemos que não deve o direito fechar os olhos para casos em que o contexto fático revela afastamento entre o familiar falecido e o interessado, pois pensar de modo diverso é valorar positivamente um falso abalo psicológico e estimular ainda mais a indústria do dano moral que vige neste país.

Admitimos que pensar deste modo é entabular tese sem grande adesão, contudo, a fim de subsidiá-la, é preciso observar a práxis de, na fixação do quantum indenizatório, pretender-se à valoração da proximidade entre os familiares, em caso de falecimento. Assim, se referido raciocínio é aplicado na quantificação da extensão do dano, pela lógica, chegará a um ponto em que o afastamento dos familiares será de tal modo que sequer existirá valor a reparar e, portanto, inexistirá dano moral. Como demonstração, confiram-se os arestos a seguir:

AGRAVO REGIMENTAL. RESPONSABILIDADE CIVIL OBJETIVA. ACIDENTE AÉREO ENVOLVENDO O AVIÃO BOEING 737-800, DA GOL LINHAS AÉREAS, E O JATO EMBRAER/LEGACY 600, DA EXCEL AIR SERVICE. DANO MORAL. IRMÃ DA VÍTIMA FALECIDA. CABIMENTO. PRECEDENTES.

1. Os irmãos possuem legitimidade ativa ad causam para pleitear indenização por danos morais em razão do falecimento de outro irmão.  Precedentes.

2. Restou comprovado, no caso ora em análise, conforme esclarecido pelo Tribunal local, que a vítima e a autora (sua irmã) eram ligados por fortes laços afetivos. (grifo nosso)

3 e 4. (omissis)

(AgRg no Ag 1316179/RJ, Rel. Ministro LUIS FELIPE SALOMÃO, QUARTA TURMA, julgado em 14/12/2010, DJe 01/02/2011)


PROCESSUAL CIVIL E ADMINISTRATIVO. RESPONSABILIDADE CIVIL DO ESTADO. EMBARGOS DE DECLARAÇÃO. OFENSA AO ART. 535 DO CPC NÃO CONFIGURADA. OMISSÃO. INEXISTÊNCIA. AUSÊNCIA DE PREQUESTIONAMENTO. SÚMULA 282/STF. RESPONSABILIDADE OBJETIVA. FALECIMENTO DE MILITAR NO CUMPRIMENTO DO SERVIÇO. DANOS MORAIS. CABIMENTO. COMPROVAÇÃO DE CULPA OU DOLO. PRESCINDIBILIDADE. TEORIA DO RISCO ADMINISTRATIVO. JUROS MORATÓRIOS. 12% AO ANO A PARTIR DO CC/2002. MANUTENÇÃO DO ACÓRDÃO RECORRIDO.

(...)

9. No dano moral por morte, a dor dos pais e filhos é presumida, sendo desnecessária fundamentação extensiva a respeito, cabendo ao réu fazer prova em sentido contrário, como na hipótese de distanciamento afetivo ou inimizade entre o falecido e aquele que postula indenização. (grifo nosso)

 (REsp 963.353/PR, Rel. Ministro HERMAN BENJAMIN, SEGUNDA TURMA, julgado em 20/08/2009, DJe 27/08/2009)

Forçoso concluir, portanto, que não se pode olvidar de avaliar a pertinência fática daquele ente querido que, por infortúnio, sucumbiu-se, em face do pedido do familiar pretendente, mesmo que impere, na hipótese, presunção de afetividade. Tolerar o contrário é distorcer regras basilares de responsabilidade civil.

NOTAS DE REFERÊNCIA E NOTAS EXPLICATIVAS

[1] STOCO, Rui. Tratado de Responsabilidade Civil. 8ª ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2004, p. 1319-1321.

[2] Vide p. 110 deste trabalho, na qual há citações de ementas de julgados do TJMG e do TJRS com adoção da responsabilidade subjetiva.

[3]  (ARE 638467 RG, Relator (a): Min. LUIZ FUX, julgado em 20/09/2012, ACÓRDÃO ELETRÔNICO DJe-195 DIVULG 03-10-2012 PUBLIC 04-10-2012). Nota: o recurso, até o presente momento, não foi julgado.

[4] Segundo dados da Organização Mundial da Saúde (OMS), cerca de um milhão de pessoas morrem, todos os anos, no mundo, vitimadas pelo suicídio, o que resulta em taxa global de 16 casos por 100 mil habitantes. No Brasil, segundo dados do Ministério da Saúde, a taxa de mortalidade por suicídios é de 4,5 casos para cada grupo de 100 mil habitantes. Ou seja, cerca de 8 mil suicídios são praticados todos os anos em nosso país, sem contar os casos de tentativa, sendo o suicídio hoje uma das três causas mais frequentes de morte entre homens e mulheres entre 15 e 44 anos. Nessa contextura, não há surpresa para as recorrentes mortes por suicídio dentro das penitenciárias, lugares que, normalmente, desfazem a vontade de viver de seus habitantes. Disponível em: < http://noticias.terra.com.br/mundo/oms-n-de-mortos-por-suicidio-chega-a-1-milhao-por-ano,ba68ca96d81ea310VgnCLD200000bbcceb0aRCRD.html>. Acesso em: 21 fev. 2013.

[5] A respeito do princípio da reserva do possível como óbice à efetivação dos direitos de 2ª geração, o sempre brilhante Ministro Celso de Mello discorre, no julgamento do RE 436996: “Não se ignora a realização dos direitos econômicos, sociais e culturais – além de caracterizar-se pela gradualidade de seu processo de concretização – depende, em grande medida, de um inescapável vínculo financeiro subordinado às possibilidades orçamentárias do Estado, de tal modo que, comprovada, objetivamente, a alegação de incapacidade econômico-financeira da pessoa estatal, desta não se poderá razoavelmente exigir, então, considerada a limitação material referida, a imediata efetivação do comando fundado no texto da Carta Política”.

[6] SANTIAGO, Leonardo Ayres. A responsabilidade extracontratual do Estado na hipótese de suicídio de presos sob sua custódia. Jus Navigandi, Teresina, ano 13, n. 1751, [17]abr. [2008]. Disponível em: <http://jus.com.br/revista/texto/11168>. Acesso em: 20 fev. 2013.

[7] “As desordens mentais (particularmente depressão e abuso de substâncias químicas, especialmente álcool e drogas) estão associadas a mais de 90% de todos os casos de suicídio. Normalmente, os suicídios ocorrem durante períodos de crise da família ou diante de uma decepção ou frustração decorrente, por exemplo, do fim de um relacionalmente conjugal, fim ou crise do namoro, perda do emprego, endividamento pessoal, ou até mesmo dificuldade nos estudos”. BELINATI, Roberval Casemiro. Responsabilidade Civil de Shopping Center em caso de suicídio. Disponível em: < http://www.tjdft.jus.br/institucional/imprensa/artigos/2009/responsabilidade-civil-de-shopping-center-em-caso-de-suicidio-desembargador-roberval-belinati>. Acesso em: 19 fev. 2012.

Nota do autor: na esfera dos suicídios dentro das penitenciárias, acreditamos que a principal causa seja a completa ausência de ânimo do indivíduo de sujeitar-se a condições humanas tão degradantes.

[8] SANTIAGO, op. Cit., artigo da internet.

[9] BANDEIRA DE MELLO, op. Cit., p. 628-629.

[10] CAHALI, op. cit., p. 508-510.

[11] Como apontado alhures, a fim de trazer segurança a julgados dessa estirpe, foi reconhecida a repercussão geral da matéria, veiculada no Informativo STF nº 682:

Repercussão geral em ARE n.638.467-RS

Relator: Min. Luiz Fux

Recurso Extraordinário com Agravo. Responsabilidade civil objetiva do estado por morte de detento. Relevância da matéria e transcendência de interesses. Manifestação pela existência de repercussão geral da questão constitucional.

[12] (ARE 700927 AgR, Relator(a): Min. GILMAR MENDES, Segunda Turma, julgado em 2808/2012, PROCESSO ELETRÔNICO DJe-182 DIVULG 14-09-2012 PUBLIC 17-09-2012).

[13] (REsp 847.687/GO, Rel. Ministro JOSÉ DELGADO, PRIMEIRA TURMA, julgado em 17/10/2006, DJ 25/06/2007, p. 221).

[14] “Se o Poder Público despoja os internos em certo presídio de quaisquer recursos que lhes permitam atentar contra a própria vida, não pode eximir-se de responsabilidade em relação ao suicídio de algum ou alguns detentos a respeito dos quais se omitiu na adoção de igual cautela”. (BANDEIRA DE MELLO, op. cit., p. 978).

[15] “[...] coisas corpóreas como casa, automóvel, livro, enfim, o direito de propriedade. As incorpóreas, por sua vez, podem ser um título de crédito, por exemplo.” (CAVALIERI FILHO, op. cit., p. 73).

[16] Art. 948 do Código Civil: “No caso de homicídio, a indenização consiste, sem excluir outras reparações: I - no pagamento das despesas com o tratamento da vítima, seu funeral e o luto da família; II - na prestação de alimentos às pessoas a quem o morto os devia, levando-se em conta a duração provável da vida da vítima”.

[17] CAVALIERI FILHO, op. cit., p. 104.

[18] (REsp 402874/SP, Rel. Ministro SÁLVIO DE FIGUEIREDO TEIXEIRA, QUARTA TURMA, julgado em 06/06/2002, DJ 01/07/2002 p. 351). No mesmo sentido:  “Não é devida a indenização por danos materiais prevista no art. 1537, inc. II, do CC quando não ficar provada ou presumível for a contribuição da vítima para o sustento econômico do lar de seus genitores. Precedentes”. (REsp 348072/SP, Rel. Ministra NANCY ANDRIGHI, TERCEIRA TURMA, julgado em 03/12/2001, DJ 18/02/2002 p. 425). (grifo nosso)

[19] Súmula 229/STF: “A indenização acidentária não exclui a do direito comum, em caso de dolo ou culpa grave do empregador”.

[20] BITTAR FILHO, Carlos Alberto. Reparação civil por danos morais. 3ª ed. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 1999, p. 25-27.

[21] CAVALIERI FILHO, op. cit., p. 100-101.

[22] VENOSA, Sílvio Sálvio. Teoria Geral das Obrigações e Teoria Geral dos Contratos. São Paulo: Atlas, 2004, p. 320.

[23] (REsp 797.836/MG, Rel. Ministro JORGE SCARTEZZINI, QUARTA TURMA, j. 02.05.2006).

[24] “A reparação pecuniária do dano moral é um misto de pena e satisfação compensatória. [...] Penal, constituindo uma sanção imposta ao ofensor. [...] Satisfatória ou compensatória [...] a reparação pecuniária visa proporcionar ao prejudicado uma satisfação que atenue a ofensa causada.” (DINIZ, Maria Helena. Curso de Direito Civil Brasileiro. 16ª ed., São Paulo: Saraiva, 2002, p. 94).

"Segundo nosso entendimento a indenização da dor moral, sem descurar desses critérios e circunstâncias que o caso concreto exigir, há de buscar, como regra, duplo objetivo: caráter compensatório e função punitiva da sanção (prevenção e repressão), ou seja: a) condenar o agente causador do dano ao pagamento de certa importância em dinheiro, de modo a puni-lo e desestimulá-lo da prática futura de atos semelhantes; b) compensar a vítima com uma importância mais ou menos aleatória, em valor fixo e pago de uma só vez, pela perda que se mostrar irreparável, ou pela dor e humilhação impostas." (STOCO, Rui. Tratado de Responsabilidade Civil. 6ª ed. São Paulo: RT, 2004, p. 1709).

[25] PEREIRA, Caio Mario da Silva. Responsabilidade Civil. 4ª ed. Rio de Janeiro: Forense, 1993, p. 60.

[26] CAVALIERI FILHO, op. cit., p. 93.

[27] (Apelação Cível Nº 70051922995, Décima Câmara Cível, Tribunal de Justiça do RS, Relator: Paulo Roberto Lessa Franz, Julgado em 13/12/2012); (Acórdão n.642588, 20080110109032APO, Relator: CRUZ MACEDO, Revisor: FERNANDO HABIBE, 4ª Turma Civel, TJDFT, Publicado no DJE: 07/01/2013. Pág.: 185); (Ap Cível/Reex Necessário 1.0194.11.008412-7/001, Rel. Des.(a) Albergaria Costa, 3ª CÂMARA CÍVEL, TJMG, julgamento em 31/01/2013, publicação da súmula em 08/02/2013).

[28]Admite a jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça, excepcionalmente, em recurso especial, reexaminar o valor fixado a título de indenização por danos morais, quando ínfimo ou exagerado. Hipótese, todavia, em que o valor foi estabelecido na instância ordinária, atendendo às circunstâncias de fato da causa, de forma condizente com os princípios da proporcionalidade e razoabilidade”. (EDcl no AREsp 63.608/SP, Rel. Ministra MARIA ISABEL GALLOTTI, QUARTA TURMA, julgado em 06/12/2012, DJe 01/02/2013) (grifo nosso)

[29] CAVALIERI FILHO, op. cit., p. 80.

[30] Ibidem, p. 91.

[31] BITTAR FILHO, Carlos Alberto. Reparação civil por danos morais. 3ª ed. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 1999, p. 156.

[32] RIZZARDO, Arnaldo. Responsabilidade civil: Lei nº 10.406, de 10.01.2002. 2ª ed. Rio de Janeiro: Forense, 2006, p. 274.

[33] No julgamento do REsp 945.283/RN, o Ministro Luis Felipe Salomão conceituou a alcunha família nos verbetes: “o que deve balizar o conceito de “família” é, sobretudo, o princípio da afetividade, que fundamenta o direito de família na estabilidade das relações socioafetivas e na comunhão de vida, com primazia sobre as considerações de caráter patrimonial ou biológico”. (REsp 945.283/RN, Rel. Ministro LUIS FELIPE SALOMÃO, QUARTA TURMA, julgado em 15/09/2009, DJe 28/09/2009).


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