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O sinistro retorno do crime de hermenêutica

uma janela aberta para o castigo

O sinistro retorno do crime de hermenêutica: uma janela aberta para o castigo

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Um antigo debate, do início da República, está sendo recolocado para exame no curso da Operação Lava-Jato: a responsabilidade penal (ou disciplinar) do juiz por autorizar a investigação de suspeitos que tenham vinculação com agentes políticos.

Em 2007, o ministro Luiz Fux foi relator de representação criminal apresentada contra desembargadora do TRF-3 (São Paulo) ao Órgão Especial do STJ, em virtude do entendimento que ela expôs ao realizar a prestação jurisdicional, isto é, em razão dos motivos e procedimentos adotados em decisões e julgamentos.

Foi então lembrado texto muito antigo, contudo célebre, de Ruy Barbosa a respeito do que este chamou – e isso ficou consolidado – “crime de hermenêutica”. (A notícia a respeito do processo foi divulgada pelo ConJur de 19/06/2007)

O texto de Ruy fazia parte da defesa que ele patrocinou do juiz de Direito do Rio Grande do Sul Alcides de Mendonça Lima (pai do conhecido processualista de mesmo nome), o qual havia negado aplicação, por inconstitucionalidade, a uma lei estadual que dispunha sobre o voto aberto nos julgamentos do Juri e exigia motivação para a recusa à escolha de jurados.

A defesa, como dito, desde então se tornou célebre e foi publicada em panfleto (vendido mesmo nas ruas) sob o título “O Jury e a Responsabilidade Penal dos Juízes”. Ela sustentava a impossibilidade de aplicar pena a magistrados em virtude de seu entendimento interpretativo da lei, ou seja, em razão da hermenêutica, ainda quando a punição viesse a ser decretada no âmbito do tribunal a que o juiz estivesse vinculado e mesmo que a imposição da lei inquinada de inconstitucional fosse pretendida e promovida pelo chefe de Estado.

Tratava-se então da Lei nº. 10/1895 do RGS e o julgamento de primeiro grau ocorreu em 1896. O Supremo julgou recursos duas vezes, em 1897 e 1899.

Embora a doutrina nunca tenha feito nenhuma correlação, não pode ser negada a contemporaneidade dos fatos resumidos acima com a célebre Causa Dreyfus, em que um capitão do exército francês foi acusado de traição, injustamente como se viu depois. Não há nexo entre as matérias mas sim – e bem acentuado – entre dois casos ocorridos sob uma “cultura da indignação” que então surgia, por força das correntes literárias do realismo e do naturalismo, que recusavam a excelência das formas da autoridade estabelecida, tanto quanto do idealismo baseado em virtudes morais e no desprendimento de personagens extraordinários, como o movimento romântico decantara anteriormente.

Assim, guardadas as proporções com o máximo de cautela e critério, dada a situação do Brasil na periferia do mundo civilizado de então, com sua peculiar imitação um tanto quanto paródica da “belle époque” e suas celebradas instituições, o texto de Ruy Barbosa guarda um nexo de aproximação intencional com o famoso panfleto “J’Accuse” (1898), de Émile Zola, em defesa do capitão Dreyfus, tendo por base a deformação das ações da Justiça e a ausência do compromisso moral e político de corrigi-la.

A lógica então apresentada com grande impacto à opinião pública ficou assim exposta: as ações em favor da justiça não se podem perder nos obscuros meandros da lei, quer pela manipulação de seus efeitos, quer pelas distorções do trabalho em aplicá-la. Portanto, em linguagem tão direta quanto as caricaturas de Daumier em “Les Gens de Justice”, a interpretação sob a toga não pode convalidar a trapaça.

Por aquela época, o grande jurista francês Léon Duguit chamava a atenção através de obras referenciais para as transformações gerais tanto no direito privado como no direito público, denunciando a anomia pelo declínio na identificação das regras jurídicas que haviam sido estabelecidas como boas e justas, assim como pela perda de vigência de normas que não condiziam mais com novas realidades emergentes. Também foi então que surgiu o uso da designação de intelectuais em relação a atores sociais de notável saber e prestígio que empenhavam o peso de sua interpretação qualificada àquelas transformações sociais que se precipitavam. O escritor Anatole France veio a ser uma espécie de personificação do novo tipo, na companhia de Zola e daqueles que foram chamados de dreyfusards. Com o uso que ainda hoje conhecemos, a expressão intelectuais foi divulgada inicialmente pelo jornalista Georges Clemenceau, não por acaso editor do jornal L’Aurore, que publicou o J’Accuse.

Ainda que a linguagem de Ruy transitasse entre o parnasianismo e um tardio barroco, em lugar do naturalismo de Zola, a leitura atual pode depurá-la dos volteios verbais e extrair a riqueza de um pensamento lógico e imaginativo que ainda hoje ensina. Mostra disso é o trecho que segue e, em parte, foi copiado pelo ministro Luiz Fux no julgamento do STJ realizado em 2007:

(Pela Lei nº. 10/1895) “O Juri perdera absolutamente a sua independência, com o escrutínio a descoberto e a abolição da recusa peremptória: o poder não abrira só um postigo sobre a consciência do jurado: aquartelara-se nela. Para fazer do magistrado uma impotência equivalente, criaram a novidade da doutrina, que inventou para o Juiz os crimes de hermenêutica, responsabilizando-o penalmente pelas rebeldias da sua consciência ao padrão oficial no entendimento dos textos.

Esta hipérbole do absurdo não tem linhagem conhecida: nasceu entre nós por geração espontânea. E, se passar, fará da toga a mais humilde das profissões servis, estabelecendo para o aplicador judicial das leis, uma subalternidade constantemente ameaçada pelos oráculos da ortodoxia cortesã. Se o julgador, cuja opinião não condiga com a dos seus julgadores na análise do direito escrito, incorrer, por essa dissidência, em sanção criminal, a hierarquia judiciária, em vez de ser a garantia da justiça contra os erros individuais dos juízes, pelo sistema de recursos, ter-se-á convertido, a benefício dos interesses poderosos, em mecanismo de pressão, para substituir a consciência pessoal do magistrado, base de toda a confiança na judicatura, pela ação cominatória do terror, que dissolve o homem em escravo.”

Sobre esse tema há pormenores no site do professor José Maria Tesheiner “Páginas de Direito” (Episódio 42), no ensaio de Evandro Lins e Silva, “Crime de Hermenêutica e Súmula Vinculante”, e, com exame em profundidade, na monografia de Maria Fernanda Salcedo Repolês “O caso dos Crimes de Hermenêutica: Precedente do Controle Difuso de Constitucionalidade no Brasil”, todos acessíveis na internet.

Por que o tema se recoloca hoje, quando o último registro de caso judicial a respeito data do já recuado ano de 2007? Porque a Operação Lava-Jato clama pela aplicação do entendimento que ficou consagrado desde os tempos de Ruy Barbosa. Também porque a “hipérbole do absurdo” de criminalizar o ato jurisdicional típico continua sendo a mesma hipérbole do absurdo nos dias correntes.

A partir do momento em que o relator no STF dos processos oriundos da Operação Lava-Jato resolveu paralisá-la em boa parte, ao deferir medida cautelar suspensiva e determinar a avocação de autos e provas, em virtude da Reclamação 23.457, ele anunciou o retorno ao entendimento que parecia sepultado do crime de hermenêutica. O relator também adiantou juízos de censura ao juiz Moro.

Embora suas declarações políticas sejam outras, a presidente da República (autora da reclamação) admitiu que a captação de suas falas e de outros agentes políticos com foro privilegiado podem ter sido “encontradas fortuitamente na interceptação”, mas não poderiam ser  divulgadas pelo juiz de primeiro grau. O relator, então, foi forçado a admitir que “embora a interceptação telefônica tenha sido aparentemente voltada a pessoas que não ostentavam prerrogativa de foro por função”, mas concluiu “o conteúdo das conversas – cujo sigilo, ao que consta, foi levantado incontinenti, sem nenhuma das cautelas exigidas em lei...” Essa conclusão é absolutamente dissonante com outra que consta na mesma decisão, mais adiante: “é descabida a invocação do interesse público da divulgação”.

Ora, se a decisão tomada no primeiro grau invocou expressamente o interesse público – como admite o relator no STF -, então ela não foi adotada “incontinenti, sem nenhuma das cautelas exigidas em lei”. Ao contrário, houve o enquadramento do caso no CPC/1973, art. 155, inciso I (vigente na época). Essa regra prevê o levantamento do segredo de justiça e hoje está inscrita, de forma mais ampliada, no CPC/2015, art. 189. Sobre a aplicação subsidiária do CPC ao processo penal não há qualquer dúvida, o uso é incontroverso, tanto que a decisão do relator no STF o invoca seguida e expressamente.

A contradição aqui apontada mostra evidentemente uma argumentação sibilina, cujo enigma de entendimento não está no Direito, mas em alguma intenção mal oculta do relator.

Mais adiante a decisão cautelar do STF menciona “a lei de regência (Lei 9.269/1996), além de vedar expressamente a divulgação de qualquer conversação interceptada (art. 8º), determina a inutilização das gravações que não interessem à investigação criminal (art. 9º). Não há como conceber, portanto, a divulgação pública das conversações do modo como se operou (...)”.

Quanto a este trecho, primeiro deve ser registrado que a referência à lei está errada, pois a que foi indicada diz respeito ao crime de sequestro e modifica o art. 159 do Código Penal. A lei aplicável é a de número 9.296, e não como consta no texto produzido de afogadilho. Em segundo lugar, deve ser lembrado que o ministro decano do STF produziu longa peroração, imediatamente após a divulgação das fitas, em sessão de julgamento, apreciando-a em toda a sua extensão e importância. Também o ministro João Otávio de Noronha proferiu veemente discurso, igualmente em sessão do STJ, analisando as declarações contidas nas fitas e vituperando seu conteúdo.

Ora, se fosse mesmo “descabida a invocação de interesse público”, no dizer do relator, como então se justificariam as manifestações oficiais referidas?

A decisão do relator no STF ainda menciona que “a divulgação pública das conversações telefônicas interceptadas, nas circunstâncias em que ocorreu, comprometeu o direito fundamental à garantia de sigilo, que tem assento constitucional”. Partindo do mesmo pressuposto, seria o caso de perguntar: como então – num processo que transcorreu inteiramente no âmbito do STF – foi divulgada a gravação da conversa entre o senador Delcídio Amaral e Bernardo Cerveró, filho de Nestor Cerveró, ex-diretor da Petrobrás, já condenado? Desse episódio não participou direta ou indiretamente o juiz Sérgio Moro. Mais ainda: o Senado só autorizou a prisão “em flagrante” de Delcídio porque a gravação foi divulgada e, caso não o fosse, mandaria soltar o senador, tanto por desconhecer plenamente as causas de sua prisão como porque o estado de flagrância era bastante discutível. Portanto, a divulgação foi decisiva. E atendeu ao interesse público...

Como Bernardo Cerveró, autor da gravação, entregou-a diretamente ao MP, seu conteúdo só esteve sob controle da Procuradoria Geral da República e do relator do caso no STF. Não obstante, tal gravação foi divulgada sem ser submetida “a um contraditório mínimo”, que agora o ministro quer exigir do juiz de primeiro grau.

Por fim, é verdade que a lei 9.296/1966 prevê o sigilo das interceptações, a sua transcrição em autos apartados e a destruição de relatos que não tenham relação com a investigação. Não dispõe, todavia, sobre quando o sigilo é levantado. Porém, as leis são dotadas de inteligibilidade ínsita e não podem levar a uma situação de irracionalidade ou impasse que destrua a interpretação sistemática. É em vista disso que se torna óbvia a conclusão de que, em algum momento, o sigilo terá de ser revogado, caso contrário a prova colhida não poderia ser incorporada aos autos do inquérito ou do processo, nem orientar os juízos inquisitórios que presidem toda a investigação criminal.

Logo, se o juiz da causa houve por bem sopesar as duas garantias constitucionais envolvidas, a liberdade de informação e os direitos de personalidade, nada mais próprio que o tenha feito levando em conta o interesse público previsto em lei para o levantamento do segredo de justiça. Esse interesse público, ao contrário do que quis o relator no STF, nunca deixará de ser relevante, pois não há outro critério que melhor recomende a publicidade.

As grandes transformações percebidas por Duguit hoje de novo ocorrem e, em grau não menor, afetam o Direito. O conhecimento difundido pelos grandes intelectuais que, durante o Século XX, empenharam-se em entendê-las, resultou neste soberbo acervo de que hoje dispomos e que nos liberta da imposição solene de formas jurídicas incondizentes com as realidades novas. Numa república a justiça não é prestada para os parvos, mas para cidadãos que recusam a iniquidade.

Nem a respeitabilidade reivindicada por estamentos sociais, nem a cultura que privilegia interesses envolvidos, nem compromissos assumidos para alçar agentes públicos aos postos de comando do Estado, nada disso pode implicar na reificação do Direito e, para tanto – ainda uma vez – é preciso ouvir ressoar a voz do mais conhecido jurisconsulto medieval Bartolo da Sassoferrato, que se tornou definitiva: i meri leggisti sono puri asini – os meros juristas são puros asnos.


Autor

  • Luiz Fernando Cabeda

    Desembargador do TRT da 12ª Região, inativo. Fez estágio na Escola Nacional da Magistratura da França, Seção Internacional. Autor de "A Justiça Agoniza" e "A Resistência da Verdade Jurídica".

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Informações sobre o texto

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

CABEDA, Luiz Fernando. O sinistro retorno do crime de hermenêutica: uma janela aberta para o castigo. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 21, n. 4662, 6 abr. 2016. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/47985. Acesso em: 26 abr. 2024.