Este texto foi publicado no Jus no endereço https://jus.com.br/artigos/56502
Para ver outras publicações como esta, acesse https://jus.com.br

As lógicas do discurso jurídico e aplicações práticas nos julgados do STF na ADI nº 4.277/DF e na ADPF nº 132/RJ

As lógicas do discurso jurídico e aplicações práticas nos julgados do STF na ADI nº 4.277/DF e na ADPF nº 132/RJ

Publicado em . Elaborado em .

Reflexões sobre a lógica jurídica, seus conceitos, escolas e a autonomia da lógica jurídica em relação à lógica formal, a partir do princípio e do paradigma filosófico-contemporâneo da linguagem, com enfoque na ADI nº 4.277/DF e na ADPF nº 132/RJ.

1 INTRODUÇÃO

Essa monografia consiste em uma análise acerca das diversas Escolas de Lógica Jurídica que construíram várias técnicas de argumentação e de interpretação das normas jurídicas ao longo da história da Teoria Geral do Direito ocidental.

Além disso, a pesquisa utiliza como modelo os julgados do Supremo Tribunal Federal na ADI nº 4.277/Distrito Federal e na ADPF nº 132/Rio de Janeiro, a fim de detectar as influências, às vezes expressas, outras vezes tácitas, de determinadas técnicas de argumentação oriundas de Escolas de Lógica Jurídica.

Desse modo, aqueles que tiverem acesso a ela poderão adquirir uma visão geral sobre as diversas maneiras pelas quais a linguagem do direito se fenomeniza. Daí, a razão pela qual o título dessa monografia ser: “As Lógicas do Discurso Jurídico e Aplicações Práticas nos Julgados do Supremo Tribunal Federal na ADI nº 4.277/Distrito Federal e na ADPF nº 132/Rio de Janeiro”.

Assim, a motivação principal para a construção deste trabalho foi a de suscitar e estimular o debate acadêmico sobre a indispensabilidade, atribuída por grandes juristas – tais como Perelman, Alexy, Siches, etc. –, aos instrumentais lógicos da argumentação jurídica e a premência de que os currículos das faculdades de direito parem de ignorá-los.

Além disso, a opção pela utilização do julgado do Supremo Tribunal, por meio do qual se reconheceu as uniões homoafetivas como instituto jurídico, deu-se em virtude de ser um modelo que representa bem a tensão entre minorias e maiorias em um ambiente democrático. Neste cenário, em virtude da inércia do Poder Legislativo, o Poder Judiciário é convocado a garantir o ideal do Estado Democrático de Direito: satisfazer aos interesses da maioria sem, contudo, oprimir e reprimir os interesses das minorias, garantidos constitucionalmente.

Desde já, intenta-se esclarecer ao leitor que este trabalho foi elaborado com a finalidade de responder às seguintes indagações:

1) Existe uma lógica peculiar ao discurso jurídico, de modo que se pode denominá-la, com segurança, de lógica jurídica, ou, do ponto de vista técnico, é melhor dizer que na verdade existem lógicas jurídicas?

2) E se elas existem, como verificar, os seus usos, de modo prático, pelo Supremo Tribunal Federal, nos julgados da Ação Direta de Inconstitucionalidade nº 4.277/Distrito Federal e da Ação de Descumprimento de Preceito Fundamental 132/Rio de Janeiro?

A fim de responder às questões mencionadas, optou-se, nesta monografia, pelo uso do método de abordagem fenomenológico de Husserl[1], isto é, ao se aplicar a époche ou a redução fenomenológica, o autor deste empreendimento científico, busca suspender os seus juízos de valor, a fim de estudar o discurso jurídico com o máximo de objetividade e neutralidade possíveis, pois, ainda que sejam ideais contra fáticos, eles serão perseguidos como telos fundamental de modo constante em todo o trabalho.

Procura-se, em toda a monografia, apresentar uma sequência lógica que favoreça aos leitores uma compreensão geral, mas, ao mesmo tempo robusta, da peculiaridade da Lógica Jurídica e das principais Escolas de Lógica Jurídica formais e não formais. Para tanto, faz-se um estudo introdutório sobre a lógica jurídica, almejando uma generalização do fenômeno analisado e de como se dá a sua aplicação prática a partir de um estudo de caso.

Nesse sentido, organizou-se estre trabalho desta forma: no primeiro capítulo, “Existe uma Lógica Jurídica?”, tenta-se responder a questão acerca da existência ou não de uma lógica jurídica autônoma em face lógica formal e em qual paradigma filosófico ela está inscrita. Além disto, apresentam-se as características principais da lógica jurídica, distinguindo-as, expressamente, das da lógica formal, evidenciando, por conseguinte, as suas peculiaridades. E desconstrói-se toda e qualquer forma de redução da lógica jurídica, sejam as lógicas formais ou as lógicas não formais.

No segundo capítulo, “As Lógicas Jurídicas”, demonstra-se que, na verdade, o que se costuma chamar de Lógica Jurídica se desdobra em várias Lógicas, as quais, neste trabalho, se classificam em dois grandes grupos hermenêuticos: Hermenêutica Literária Formal (defendidas por autores como: Bonnecase, Austin, Windscheid, Von Wright, Hans Kelsen, etc.) e Hermenêutica Material Histórico-Sociológica (representada por autores como: Savigny, Ihering, Geny, Kantorowisz, Pound, Heck, Cossio, Siches, Wolkmer, Wiehweg, Perelman, etc.). Destacam-se, ainda, as principais categorias das diversas escolas de lógicas jurídicas que foram construídas ao longo dos tempos e as teorias gerais do direito que as fundamentam.

Nesse ponto, o autor empenhar-se-á em mostrar que, sobretudo, do ponto de vista pragmático, quanto ao grau de importância e eficiência, não existe uma hierarquia entre as lógicas jurídicas, uma vez que, em circunstâncias específicas e contextos diferentes, elas podem ser igualmente eficazes.

No terceiro e último capítulo, intitulado “Análise do uso das Lógicas Jurídicas nos Julgados do Supremo Tribunal Federal na ADI nº 4.277/Distrito Federal e na ADPF nº 132/Rio de Janeiro”, usa-se como modelo a jurisprudência do Supremo Tribunal Federal (STF) que reconheceu as uniões homoafetivas como instituto jurídico. A finalidade deste capítulo é mostrar como as lógicas jurídicas analisadas nesta monografia, transitam nas fundamentações dos votos dos ministros da Suprema Corte, desvelando-se, em um caso prático, e como todas elas se fazem presentes nos discursos jurídicos.

Dessa forma, por meio dessa trajetória, objetiva-se analisar a autonomia da lógica jurídica, de modo a evitar os riscos do reducionismo desta à lógica formal e outras espécies de reducionismos lógicos. Além disto, visa-se mostrar que quando a lógica jurídica é entendida como fundamentada em teorias da argumentação e, portanto, do diálogo aberto, tolerante e reciprocamente respeitoso entre maiorias e minorias, faz-se a opção por um regime político não apenas formal, mas materialmente democrático.


2 EXISTE UMA LÓGICA JURÍDICA?

A questão que se tenta responder acerca da existência da lógica jurídica traduz-se como uma investigação da sua natureza comunicacional e visa a uma tomada de posição acerca da problemática que questiona se existe uma lógica jurídica autônoma ou se há apenas a lógica formal aplicada ao discurso do direito. Portanto, implica na busca de solucionar uma questão ainda mais original: como se dá a forma comunicacional da linguagem jurídica?

A linguagem do direito expressa uma diversidade de formas específicas da comunicação humana e, por isso, para se compreender a sua constituição ontológica, é necessário que se faça uma análise fenomenológica de como a sua forma de discurso é produzida e por intermédio de quais lógicas ela pode ser comunicada, interpretada e produzir efeitos.

De modo geral, a lógica é entendida como ciência da inferência e da justificação racional, de sorte que se divide em duas espécies: a) Lógicas Formais, baseadas em teorias da demonstração e da racionalidade; e b) Lógicas não Formais, fundamentadas em teorias da argumentação e da razoabilidade. Ambas, em seus campos limitados de aplicação, visam evitar, no uso da linguagem, o império das falácias, das práticas discricionárias e casuísticas, do arbítrio subjetivo e anárquico. Deste modo, pode-se definir Lógica como:

[...] um instrumental usado pela razão, para demonstrar, e justificar determinados enunciados da linguagem. Costuma-se defini-la como “a ciência da inferência”. Seu objeto de estudo (os enunciados, elaborados em linguagem natural ou simbólica) se exaure dentro das fronteiras da racionalidade. A Lógica analisa os processos, explicativos e comprobatórios, mediante os quais o homem, como ser racional, elabora mecanismos inferenciais conclusivos, deduzidos a partir de informações verdadeiras dadas pelas demais ciências, bem como avalia a legitimidade dos processos de decisão intervenientes.

A lógica não é, portanto, somente “ciência da inferência” mas também ciência da “justificação racional”, instrumento de controle da presença da racionalidade nos enunciados inferidos. A Lógica não fala “das coisas”, mas dos “enunciados” que falam das coisas. Pressupõe-se que alguém (as demais ciências) fale das coisas, pois o que não é dito, o que não é enunciado, não é objeto de análise lógica. (CAPPI & CAPPI, 2004, p. 29).

Assim sendo, a hipótese deste trabalho é a de que a lógica jurídica existe, pois o discurso jurídico além de ser resultado de um raciocínio justificante das posições adotadas em face de um caso concreto, fundamenta-se nas teorias da argumentação e da razoabilidade, sem, contudo, desprezar e deixar de abranger o arsenal lógico das teorias da demonstração e da racionalidade, uma vez que, as lógicas não formais, quando consideram apropriada a satisfação de seus interesses pragmáticos, utilizam as estruturas essenciais das regras de argumentação das lógicas formais. Assim, o jurista terá que estudar tanto uma como a outra forma de procedimento lógico, para atingir a sua finalidade de organizar racionalmente as suas ideias, de modo a elaborar um discurso eficiente e capaz de razoabilidade[2], justificar as decisões judiciais tomadas e convencer o auditório[3] competente a emitir juízos jurídicos favoráveis à opinião jurídica defendida.

Ante o exposto, comentar-se-á adiante a respeito da lógica jurídica, a partir do novo paradigma filosófico, o da linguagem, e depois serão delimitadas as diferenças entre lógica jurídica e lógica formal.

2.1 A lógica jurídica a partir do paradigma da linguagem

Do ponto de vista filosófico, superou-se, hodiernamente, a perspectiva moderna de mundo, alicerçada no racionalismo de vertentes empirista e racionalista. Ela estava baseada no princípio filosófico da subjetividade e no paradigma da consciência[4], de sorte que, em virtude da crença de que o ser humano poderia encontrar um método de análise do objeto imune aos erros, preconceitos, pré-juízos, etc., pensava-se que se poderia chegar a um conhecimento baseado em certezas absolutas e evidentes.

Como as demais formas de conhecimento, o direito também foi contagiado por essa mentalidade e pensou-se, por muito tempo, que utilizando o método analítico-lógico-formal e a hermenêutica gramatical, o juiz, como aplicador do direito, poderia ter acesso objetivo, neutro e radicalmente imparcial à vontade da lei e do legislador, de modo a aplicar a lei ao caso concreto, sem correr o risco de inovar a ordem jurídica, de lesar a segurança jurídica e o princípio da separação dos poderes. Como preleciona o filósofo belga:

O ponto de vista que se impôs durante os séculos que viram o triunfo do racionalismo foi o de Montesquieu, tal como expresso no início de sua grande obra, O espírito das leis: “Dizer que não há nada de justo ou de injusto senão o que ordenam ou proíbem as leis positivas é dizer que, antes que se houvesse traçado o círculo, nem todos os raios eram iguais. Cumpre, pois reconhecer relações de equidade anteriores à lei positiva que as estabelece”. Em virtude da doutrina da separação dos poderes, que proíbe aos juízes qualquer papel na formulação das leis, estes serão “apenas a boca que pronuncia as palavras da lei” (O espírito das leis, 1ª parte, LXI, cap. 6). Os juízes não têm de opor ao legislador a concepção de justiça deles: suas sentenças serão “um texto preciso da lei”. (PERELMAN, 2005, p. 388).

Por essa razão, fez-se a tentativa de reduzir à lógica jurídica a lógica formal, pois, esta oferecia a estrutura necessária para a utilização de técnicas de argumentação que não contradissessem uma perspectiva de direito e de justiça de viés exclusivamente positivista, isto é, centrada na ideia segundo a qual a justiça confunde-se com a forma que foi posta pelo legislador.

Assim, aplicando-se os princípios fundamentais da lógica formal (universalidade, necessidade e verdade necessária), o juiz, ao sentenciar, seria apenas o reflexo racional de um sistema jurídico revestido de unidade, consistência-coerência e completude, de sorte que as denominadas lacunas e antinomias[5], não teriam existência substancial, seriam apenas aparentes, e, portanto, facilmente solucionáveis por meio da lógica aristotélica, do silogismo judiciário e de uma hermenêutica gramático-sistêmica. Deste modo, o direito atingiria o status de ciência de matiz cartesiana. Como denunciou Perelman (2005, p. 2):

Ora, a concepção claramente expressa por Descartes, na primeira parte do Discurso do método, era a de considerar “quase como falso tudo quanto era apenas verossímil”. Foi ele que, fazendo da evidência a marca da razão, não quis considerar racionais senão as demonstrações que, a partir de ideias claras e distintas, estendiam, mercê de provas apodícticas, a evidência dos axiomas a todos os teoremas.

Com a nova perspectiva contemporânea de que a verdade não é uma entidade metafísica, existente a priori e a qual o sujeito do conhecimento tem acesso privilegiado ao utilizar o método correto, abandonou-se o princípio e o paradigma filosóficos antigos e colocou-se, em seus lugares, o princípio filosófico da intersubjetividade e o paradigma da linguagem.

Assim, a partir do giro-linguístico[6] contemporâneo, a essência do homem passa a ser enraizada na linguagem e não mais na consciência, pois se nutre, a partir daí, da concepção de que:

A capacidade de falar, ademais, não é apenas uma faculdade humana, dentre muitas outras. A capacidade de falar distingue e marca o homem como homem. Essa insígnia contém o desígnio de sua essência. O ser humano não seria humano se lhe fosse recusado falar incessantemente e por toda a parte, variadamente e a cada vez, no modo de um “isso é”, na maior parte das vezes impronunciado. À medida que a linguagem concede esse sustento, a essência do homem repousa na linguagem. Somos, antes, na linguagem e pela linguagem. (HEIDEGGER, 2003, p. 191).

De acordo com a nova mentalidade, a verdade não é mais concebida pelos ditames da teoria da correspondência, segundo a qual há uma coincidência entre as palavras e as coisas, mas é entendida como resultado de consenso entre debatedores que compõe uma comunidade de falantes e ouvintes. Com a concepção de que a linguagem humana não tem acesso às coisas como elas são objetivamente, mas apenas interpreta e constrói sentidos frente ao mundo fenomênico, o universo do discurso jurídico passa a ser guiado pelos valores de um sistema cada vez mais democrático e, portanto, tanto mais retórico. Assim:

[...] o processo democrático, na medida em que satisfaz as condições de uma formação inclusiva e discursiva da opinião e da vontade, justifica uma presunção de aceitabilidade racional dos resultados e de que a institucionalização jurídica de tal processo de criação democrática do direito exige a garantia simultânea tanto dos direitos básicos liberais quanto dos políticos. (HABERMAS & RATINGER, 2007, p. 29-30).

Destarte, o direito mais uma vez contagiado pelos horizontes de compreensão da filosofia dominante de seu tempo, adotou uma lógica jurídica, que embora não dispense a lógica formal como instrumento eficiente de organização do pensamento e dos argumentos, transcende-a, de modo a deitar as suas raízes em uma teoria da argumentação e não da demonstração.

O juiz, pautado nessa nova perspectiva, ao exercer a atividade jurisdicional, não procura mais a única resposta possível e necessária, entendida como resultado de um raciocínio silogístico e demonstrativo, mas uma resposta razoável, consequência de debates, de emissão e de análise de argumentos prós e contras a uma determinada tese jurídica apoiada pelas partes verossimilhante e provável, capaz de convencer e de ser justificada racionalmente inserida em um determinado sistema referencial de uma comunidade linguística.

A verdade desvela-se e se processa no universo do discurso, onde acordos, doutrinas, jurisprudências, convenções e teorias são dinâmicas, refutáveis, axiológicas e historicamente determinadas. A verdade não é mais concebida como um “em si” a ser descoberto, mas, como “um sendo” a ser inventado e reinventado no processo do discurso. Não se pode encontrar a verdade, põem-se apenas a caminho dela pelos meandros da linguagem.

Ora, nesse novo modo de compreensão, nem mesmo sentenças que resultam de simples observação escapam ao fluxo da linguagem, pois:

Popper mostrou que afirmações simples de observação, que ele chama de “afirmações básicas” não são algo fixo e firmemente alicerçado na experiência. Até mesmo essas sentenças têm o caráter de hipóteses por causa dos nomes universais (predicates) que elas usam. Como tais são dependentes da teoria. Assim, “a palavra vermelho (implica) numa teoria das cores”. Isso significa que nem mesmo as sentenças básicas são incontestáveis. Elas também podem ser falsificadas. Por trás da sua aceitação existe um acordo. A indicação de afirmações simples de observação, portanto, não é objeção à possibilidade de testá-las discursivamente. (ALEXY, 2001, p. 95).

Dessa forma, com o modo de pensar contemporâneo envolto pelo paradigma da linguagem, o reducionismo da teoria da argumentação jurídica ao molde lógico-formal encontra-se privado de suas forças. Aliás, ao se descontruir o reducionismo lógico-formal, destrói-se, desde as suas bases, várias outras espécies de reducionismos lógicos no campo do discurso jurídico.

Assim, não existe apenas uma espécie de lógica jurídica, de sorte que, esta se desdobra em várias lógicas pautadas em teorias variadas, que ao serem usadas em contextos específicos, podem ser igualmente eficientes.

Desse modo, dissipa-se a ideia segundo a qual haveria uma relação hierárquica entre as lógicas, uma vez que, se for admitido o ponto de vista de que a lógica jurídica eficiente é aquela que constrói argumentos que persuadem ao órgão jurisdicional a tomar uma decisão judicial favorável à tese defendida pelo emissor da mensagem, não se pode admitir que o universo do discurso jurídico restrinja-se a algum dos reducionismos consignados a seguir:

Primeira forma de reducionismo: defender que o Pensamento Formal e sua lógica subjacente (seja a tradicional aristotélico-tomista, seja a simbólica) apresentam todas as categorias necessárias para a Ordem e o Sistema Jurídico.

[...] Segunda forma de reducionismo: apresentar as Lógicas Heterodoxas como único parâmetro de análise lógica da argumentação jurídica. Referimo-nos à Teoria da Argumentação Persuasiva e à Nova Retórica de Chaïm Perelman, à Tópica de Viehweg, bem como a Lógica do razoável de Luís Recaséns Siches, presentes nas Teorias do Direito contemporâneo.

[...] Terceira forma de reducionismo: defender o uso exclusivo da Lógica Deôntica, dispensando as teorias contemporâneas da Nova Retórica de Perelman, da Tópica de Viehweg e da Lógica do razoável de Siches. (CAPPI & CAPPI, 2004, p. 33-37).

Evidencia-se que a lógica jurídica, como instrumento hábil para produção de discursos razoáveis, não visa à demonstração incontestável da verdade, mas a direcionar o auditório competente para a tomada de decisões judiciais vinculadas pragmaticamente ao mundo da vida.

O discurso jurídico, circunscrito pela expectativa das partes que litigam em face de um determinado bem da vida, para encontrarem uma decisão razoavelmente célere para o seu caso, não pode, como ocorre com os discursos filosóficos e científicos, projetar-se em um debate infinito, haja vista a necessidade de haver fim em tempo hábil, de modo que as conclusões a que chega adquiram certo status de imutabilidade, o qual os juristas chamam tecnicamente de coisa julgada[7].

Por isso, já que para o direito dizer é um fazer, porquanto tem natureza performativa[8], adota-se, neste trabalho, a hipótese da tese conciliadora das lógicas jurídicas, de forma a valorizá-las, com igual consideração e respeito, como instrumentos eficientes para a construção de argumentos jurídicos sólidos que objetivam levar o auditório revestido de poder jurisdicional a uma tomada de decisão.

A autonomia da lógica jurídica em face da lógica formal ficará mais perceptível após serem traçadas as diferenças entre ambas. Posteriormente, será estabelecida essa relação de distinção.

2.2 Diferenças entre lógica jurídica e lógica formal

A razão principal pela qual se devem relacionar as diferenças entre lógica jurídica e lógica formal é a de que, uma vez demonstrado que o discurso jurídico possui peculiaridades, é possível evitar o risco do reducionismo da lógica jurídica à lógica formal e às outras formas de reducionismos e, assim, estabelecer, de modo objetivo, as categorias-chave das teorias de argumentação, pela qual o fenômeno jurídico faticamente constrói-se, conceitua-se e se manifesta como um modo de dizer racionalmente delimitado por regras próprias e não de forma arbitrária.

A gravidade do reducionismo, ou seja, a confusão entre a lógica jurídica e a lógica formal foi expressamente delineada por Perelman (2004, p. 5-6) nestes termos:

[...] se identificarmos “a lógica pura e simples” com a lógica formal, não apenas esta última expressão se torna pleonástica, mas é ridículo falar de lógica jurídica, como seria ridículo falar de lógica bioquímica ou de lógica zoológica, quando utilizarmos as regras da lógica formal em um tratado de bioquímica ou de zoologia.

Se adotarmos, como faz Tammelo em um recente artigo, o ponto de vista de que “a lógica propriamente dita é a lógica dos especialistas que consideram a si mesmos lógicos e que assim são geralmente considerados” e se identificarmos a lógica com a lógica formal, teremos de renunciar, como sugere Kalinowski em seu artigo a expressão “lógica jurídica”, que se torna inadequada.

Assim sendo, a desconstrução do “reducionismo” é necessária para se demonstrar que a lógica jurídica não é a lógica formal, pois, o pressuposto desse trabalho, é o de que os argumentos jurídicos não se baseiam em uma lógica da demonstração, por meio da qual, a partir de premissas e de provas analíticas verdadeiras, chega-se a uma conclusão forçosa e necessariamente verdadeira.

De maneira oposta, o discurso jurídico é alicerçado na lógica da argumentação, que se baseia em provas dialéticas, produzidas no contraditório e que levam em consideração dimensões humanas não relevantes para a perspectiva da lógica demonstrativa, tais como: fatores psicossociais, comportamentais e axiológicos.

Nesse sentido, ao se demonstrar que o discurso jurídico deve fundamentar-se em uma teoria da argumentação, fertiliza-se o terreno político para o crescimento do ambiente democrático. E o espaço público, isto é, do debate político, torna-se o ethos da limitação do exercício exacerbado do poder, pois o poder se coloca sob a disciplina do direito.

Portanto, embora a lógica formal seja, em certa medida, importante para a construção do discurso jurídico, essa importância é limitada, pois a lógica jurídica – enquanto discurso que visa não a juízos jurídicos verdadeiros e corretos, mas, equitativos, razoáveis, prováveis e justos – transcende e abrange a lógica formal, desdobrando-se em diversas espécies de lógicas (baseadas em hermenêutica literária formal e/ou hermenêutica material histórico-sociológica).

Essas, pois, quando é julgado indispensável utilizam a lógica formal como um de seus instrumentos para a construção de argumentos organizados, ordenados, convincentes e justificadores.

Por isso, para se distinguir a linguagem da lógica jurídica da lógica formal comentar-se-á a respeito de cada uma delas individualmente, a fim de que as suas características peculiares sejas reveladas com toda a evidência.

Contudo, não se fará um estudo pormenorizado dos atributos essenciais das duas formas de logicidade, pois para isto seria necessário uma pesquisa mais extensiva do que uma monografia pode fornecer.

2.2.1 Características da linguagem da lógica formal

A lógica formal tem sua gênese enraizada na filosofia antiga[9], pois os filósofos procuraram desde a antiguidade clássica estabelecer o uso metódico da razão, de sorte que se interessaram pela formulação de raciocínios que chegassem a resultados verdadeiros e não falsos.

Desse modo, ela é uma ciência exata que tem a finalidade de demonstrar os modos de operações intelectuais pelos quais se chega ao conhecimento verdadeiro, isto é, às inferências que são válidas e as que não o são.

Ela é ainda uma metalinguagem, pois analisa a estrutura formal da linguagem. Assim, pode ainda ser entendida por meio de duas acepções:

(i) Ciência; (ii) sistema linguístico estrutural. Enquanto ciência, a Lógica estuda a estruturação e métodos do raciocínio humano, ou seja, a forma como se dá a estruturação da linguagem. Enquanto linguagem (língua), a lógica é um sistema de significação dotado de regras sintáticas rígidas, cujos signos apresentam um e somente um sentido, que tem por função reproduzir as relações estabelecidas entre os termos, proposições e argumentos de outra linguagem, à qual denominamos de linguagem-objeto. (CARVALHO, 2010, p. 179-180).

Além disso, por razões históricas e didáticas, a lógica formal divide-se em duas categorias: a lógica clássica ou tradicional, de origem aristotélica e lógica moderna, também chamada de matemática ou simbólica[10]. Entretanto, observa-se que a lógica moderna contém em seu bojo a lógica clássica.

Todo o raciocínio lógico-formal é sustentado por três pilares, que são axiomas, também, denominados de princípios racionais[11], a saber:

1. Princípio da identidade: é a regra segundo a qual todo ser é idêntico a si próprio. Pode ser traduzido por A = A. Exemplo: Sofia é Sofia. Tem-se, portanto, neste caso, uma tautologia (do grego tauto, “o mesmo”), proposição em que o predicado é igual ao sujeito;

2. Princípio do terceiro excluído: segundo este axioma, quando duas proposições com o mesmo sujeito e o mesmo predicado são contraditórias, necessariamente uma é falsa e outra verdadeira. Não existe uma terceira possibilidade. Pode ser representado, simbolicamente, por A é B ou A é não B. Exemplo: Sofia é criminosa ou Sofia não é criminosa;

3. Princípio de não contradição: é o fundamento segundo o qual uma proposição e sua contradição não podem ser verdadeiras ou falsas ao mesmo tempo e nas mesmas circunstâncias. Pode ser traduzido, em linguagem simbólica por [~] (A é B e não B). Exemplo: É falso que Sofia seja criminosa e não criminosa.

Em virtude dessas regras fundamentais da razão, a lógica formal apresenta as oposições de proposições mediante as relações de contrariedade, contradição, subcontrariedade e subalternação. A professora Aurora Tomazini de Carvalho (2010, p. 207) as explica:

(i) São contrárias entre si duas proposições quando é possível que ambas sejam falsas, mas não é possível que ambas sejam verdadeiras, por exemplo, se é necessário que a parede seja branca, não pode ser necessário que ela não seja branca e vice-versa, mas também pode ser falsa a necessidade de a parede ser branca e a necessidade de ela não ser.

(ii) São contraditórias entre si duas proposições quando uma é verdadeira e a outra falsa. Assim, se é verdade que uma fruta seja necessariamente vermelha, é falso que seja possível ela não ser vermelha.

(iii) A subcontrariedade se afere quando é possível que ambas as proposições sejam verdadeiras, mas não falsas. Por exemplo, pode ser verdade que é possível o avião cair e que é possível ele não cair, mas não há de ocorrer que ambas as possibilidades sejam falsas.

(iv) Por fim, na relação de subalternação, onde as proposições são postas na posição de subalternantes e subalternas, da verdade da subalternante se infere a verdade da subalterna e da falsidade da subalterna se infere a falsidade da subalternante. Vejamos: se é necessário que o cachorro lata, é possível que ele lata; e se a possibilidade de ele latir não existe, será falsa a necessidade de ele latir.

Sem adentrar nos pormenores do estudo de todo o aparato técnico da lógica formal clássica ou simbólica, tais como a análise dos silogismos, dos conectivos lógicos, tabelas de verdade, cálculos de predicados, cálculo sentencial, etc., é importante destacar mais algumas particularidades dessa forma de linguagem a fim de atingir o objetivo de mostrar a sua singularidade quando comparada a lógica jurídica. Ei-las:

a) as suas leis são universais, podendo ser aplicadas a qualquer campo de observação;

b) ela analisa juízos de fato e não juízos estéticos, de valores ou jurídicos. Por isso, a sua linguagem é informativa e descritiva;

c) No que se refere ao discurso jurídico, não compete à lógica analisar o seu conteúdo e nem pode indicar que proposição normativa pode ser aplicada a determinado fato, pois, a sua finalidade é a verificação da estrutura formal da linguagem jurídica.

d) ela é instrumental, formal, propedêutica e preliminar à investigação científica ou filosófica;

e) é normativa, pois fornece princípios gerais de raciocínio. Configura-se, também, como uma doutrina da prova, uma vez que apresenta as condições e os fundamentos necessários de todas as demonstrações;

f) é geral e atemporal, pois as formas puras do pensamento com seus princípios e suas leis não dependem do espaço e do tempo.

Além disso, segundo Marilena Chauí (2010, p. 127, grifos nossos) seu objeto de estudo é:

[...] a proposição, que exprime, por meio da linguagem, os juízos formulados pelo pensamento. A proposição é a atribuição de um predicado a um sujeito: S é P. O encadeamento dos juízos constitui o raciocínio e este se exprime logicamente por meio da conexão de proposições; essa conexão chama-se silogismo. A lógica estuda os elementos que constituem uma proposição, os tipos de proposições e de silogismos e os princípios necessários a que toda proposição e todo silogismo devem obedecer para serem verdadeiros.

Consequentemente, a lógica formal não coincide com a lógica jurídica, uma vez que a primeira é preponderantemente descritiva e a segunda majoritariamente prescritiva. E como se verá adiante, a lógica jurídica alimenta-se de sistemas linguísticos diversos do lógico-formal (axiológicos, sociais, culturais, etc.).

Entretanto, a lógica jurídica não despreza a lógica formal, pois uma vez que esta ajuda a conhecer a estrutura, a forma e as relações que se estabelecem entre as proposições jurídicas, apresenta-se como um poderoso instrumento para o estudo do direito.

2.2.2 Características da linguagem da lógica jurídica

Compreende-se que a lógica jurídica, entendida pela via de uma abordagem monista, não existe, pois na verdade, ela se desdobra em diversas lógicas que têm em comum apenas o objeto de análise: o discurso jurídico. Desta maneira, neste trabalho, o termo lógica jurídica abrange todas as lógicas presentes no discurso jurídico.

Assim, a partir do pressuposto de que é aceito a tese conciliadora das lógicas jurídicas, visto que, todas elas são consideradas meios eficientes pelos quais se constroem argumentos jurídicos sólidos, urge apresentá-las a partir da Teoria Geral do Direito da qual estas são se emanam.

Para se atingir tal empreendimento, adota-se, com algumas modificações, em virtude de sua vantagem didática, a classificação das lógicas jurídicas proposta pelos professores Antonio Cappi e Carlo Crispim Baiocchi Cappi, na obra “Lógica Jurídica: a construção do discurso jurídico”, editada pela segunda vez pela UCG, em 2004.

Segundo os autores supracitados, pode-se dividi-las em duas diferentes formas de hermenêutica[12]:

1ª) a Literária Formal, que abarca as Escolas: da Exegese, Analítica, dos Pandectistas e, acrescentam-se nesse trabalho, a lógica deôntica e o formalismo de Hans Kelsen;

2ª) a Material Histórico-Sociológica, que compreende as Escolas: Histórica do Direito, Teleológica do Direito, da Livre Pesquisa Científica, do Direito Livre, Sociológica Americana, da Jurisprudência dos Interesses, Egológica, Vitalista, Crítica Alternativa e se acrescentam nesse trabalho mais duas Escolas: a Tópica de Theodor Viehweg e a Nova Retórica de Chaïm Perelman. (CAPPI & CAPPI, 2004).

Nesse ínterim, analisam-se as características gerais das diversas lógicas jurídicas. Nota-se que primeiro grupo está contido na chamada Hermenêutica Literária Formal. É a adotada pelo positivismo jurídico e se caracteriza por aceitar apenas a interpretação textual e contextual, desprezando, consequentemente, qualquer forma de investigação exterior ao texto, de modo que:

Os juristas que apoiam a hermenêutica literária formal defendem a tese de que “a interpretação jurídica se completa e se exaure ao nível semiótico e sintático na Ordem e no Sistema Jurídico”. Hermenêutica é um mecanismo de auto-integração, um recurso interno ao Sistema Jurídico, que dispensa qualquer investigação aos fatores externos ao texto e contexto da normativa codificada. (CAPPI & CAPPI, 2004, p. 487, grifos dos autores).

A Hermenêutica Literária Formal privilegia a doutrina liberal da separação dos poderes, busca garantir a efetividade da segurança jurídica, impõe ao juiz o papel de servo da legalidade e o dever de dizer o direito de modo absolutamente neutro e imparcial.

Por isso, a partir dessa perspectiva, o problema da justiça da lei não é da alçada do Poder Judiciário, mas única e exclusivamente do Poder Legislativo. O juiz, portanto, aplica o direito e não necessariamente a justiça, pois esta só será realizada pelo aplicador da norma ao caso concreto, caso ele tenha, eventualmente, uma lei justa nas mãos. Em suma, o juiz diz o direito posto e não o direito justo.

Já o segundo grupo de lógicas jurídicas, por sua vez, compõe a denominada Hermenêutica Material Histórico-Sociológica.

De modo geral, trata-se de uma concepção lógica segundo a qual a lei não deve ser interpretada apenas dentro dos parâmetros do texto normativo, pois embora o jurista parta do texto, ele o ultrapassa e se torna sensível a outras fontes de interpretação, de forma que pelo entendimento da teleologia social, ele analisa a axiologia social e extrai o direito, équo e justo, dos valores consensualmente produzidos e vivenciados pela comunidade humana. Em síntese:

Os juristas que apoiam a hermenêutica material histórico-sociológica defendem a interpretação “aberta” da normativa jurídica, que só encontra o sentindo profundo da norma na facticidade histórica das condutas humanas, que mudam no tempo e no espaço, de acordo com “o senso da comunidade”, isto é, de acordo com todos os fatores culturais (sociais, axiológicos, psicológicos, políticos, religiosos etc.) em constante transformação no meio social. (CAPPI & CAPPI, 2004, p. 499).

A hermenêutica torna-se atividade criativa, pois produz novo direito positivo, uma vez que, ao subsumir a lei ao caso concreto, o juiz deve utilizar técnicas de interpretação, pelas quais consiga a atualização do texto normativo, de modo a retirar dele uma norma jurídica adaptada às necessidades sociais hodiernas e as expectativas circunstanciais das partes que compõem a relação processual. Por conseguinte, Cappi & Cappi relatam que (2004, p. 483, grifos dos autores):

[...] Individualizando a lei no ato aplicativo da justiça, a atividade decisória do magistrado a “abre” para receber o sentido real, atual. Aplicando a justiça, o magistrado exerce uma atividade atualizadora e construtora de sentido jurídico. O ato aplicativo do direito interrompe o genérico e universal “dever-ser” e o transforma em “dever-ser nesta circunstância”. A lei, genericamente formulada, é individualizada, aplicada ao caso concreto. A norma adentra na vida real.

Desse modo, para as Escolas que compõem a Hermenêutica Material, a lógica jurídica não descarta a lógica formal, mas vai além dela, encontrando o sentindo do texto não apenas no texto e contexto literário da lei, mas também na vida social e nos valores sociais, históricos, dinâmicos e evolutivos que orientam as condutas.

Dessa forma, partindo de uma hermenêutica perenemente atualizadora, elas buscam garantir a composição dos litígios, arrancando pela raiz o maior mal que ameaça de modo iminente e constante as relações sociais: o conflito entre as condutas humanas em constante mutação e a lei escrita estática e generalizadora.

Isso posto, é pertinente que se faça uma análise geral das espécies de lógicas jurídicas em um capítulo específico. À vista disto, passar-se-á ao estudo individualizado das teorias gerais do direito das quais elas derivam.


3 AS LÓGICAS JURÍDICAS

Após a explanação acerca das características elementares das lógicas jurídicas e formais, é pertinente, de agora em diante, a apresentação individual das principais escolas que compõem todo o desenvolvimento da lógica jurídica ocidental. Veja-se, portanto, esse estudo.

3.1 Hermenêutica Literária Formal

É composta basicamente pelas Escolas: da Exegese, Analítica, dos Pandectistas, pela Lógica Deôntica e o Formalismo de Hans Kelsen.

3.1.1 Escola da Exegese

O Código de Napoleão originou-se na França em 1804, de modo que a Escola da Exegese surgiu como resultado da reunião de vários comentadores do Código Civil Napoleônico que tinham perspectivas hermenêuticas comuns do direito.

Baseia-se no pressuposto de que os códigos são construções análogas às teorias científicas, isto é, traduzem-se como um corpo de normas simétricas, lógicas e completas, de sorte que compõem um sistema jurídico que deve ser analisado pelo juiz, homem absolutamente submisso à letra da lei, através de uma lógica jurídica, radicada no método dedutivo, a partir do qual é possível erradicar as aparentes ambiguidades, incompatibilidades e obscuridades do ordenamento. Por isso, ao construir a argumentação jurídica deve-se seguir a seguinte ordem de raciocínio:

Uma vez estabelecidos os fatos, bastava formular o silogismo judiciário, cuja maior devia ser fornecida pela regra de direito apropriada, a menor pela constatação de que as condições previstas na regra haviam sido preenchidas, sendo a decisão dada pela conclusão do silogismo. (PERELMAN, 2004, p. 33).

Além disso, defende-se que, do ponto de vista prático, o Direito Positivo sobrepõe-se ao Direito Natural e que a melhor visão do direito é a rigorosamente estatal, pois:

Para o jurisconsulto, para o advogado, para o juiz existe um só direito, o direito positivo... que se define: o conjunto de leis que o legislador promulgou para regular as relações dos homens entre si... As leis naturais ou morais não são, com efeito obrigatórias enquanto não forem sancionadas pela lei escrita... Ao legislador só cabe o direito de determinar, entre regras tão numerosas e, às vezes, tão controvertidas do direito natural, aquelas que são igualmente obrigatórias... Dura lex, sedlex; um bom magistrado humilha sua razão diante da razão da lei: pois ele é instituído para julgar segundo ela e não para julgá-la. Nada está acima da lei, e eludir suas disposições, sob o pretexto de que a equidade natural a contraria, nada mais é do que prevaricar. Em jurisprudência não há, não pode haver razão mais razoável, equidade mais equitativa do que a razão ou equidade da lei. (BONNECASE apud BOBBIO, 1995, p. 86).

Destaca-se, ainda, a eficiência dos métodos gramatical e sistemático, do uso da lógica formal e hermenêutica literária, uma vez que, por meio deles, consegue-se fazer uma interpretação da lei esclarecedora da qual é a verdadeira intenção do legislador, a partir dela se desconstitui irreais obscuridades ou lacunas na lei.

Defende-se, também, que direito e lei se confundem, de tal modo que um jurista chegou a dizer: “Eu não conheço o direito civil; eu ensino somente o Código de Napoleão”. (BUGNET apud CAMARGO, p. 67, 2003). E, por fim, caracteriza-se, ainda, pela valorização ao recurso ao princípio de autoridade na construção de argumentos jurídicos fidedignos e pragmaticamente eficientes, já que:

[...] tal princípio é de máxima importância para compreender a mentalidade e o comportamento jurídicos. Tal recurso não se deve a um mau hábito dos juristas (isto é, ao fato de o pensamento jurídico permanecer numa fase pré-científica), mas à própria natureza do direito, que é uma técnica de organização social, que deve estabelecer, de modo obrigatório para todos os concidadãos, o que é lícito e o que não é. Se os juristas devessem proceder exclusivamente com base em afirmações racional ou empiricamente verificáveis, não poderiam cumprir sua função, visto que não seria sempre possível chegar a um juízo unânime, cientificamente fundado, sobre o que é lícito e o que não é. Por isso, se torna necessário atribuir a uma pessoa qualquer o poder de estabelecer o que é justo e o que é injusto, de modo que a sua decisão não possa ser colocada em discussão, e consequentemente os juristas possuem um seguro ubi consistam em seu raciocínio: este personagem é precisamente o legislador. (BOBBIO, 1995, p. 89).

Portanto, a Escola da Exegese finca os pilares das teorias do racionalismo jurídico ocidental e ensina que a justiça confunde-se com a vontade geral, uma vez que esta ao se materializar nas leis, somatiza o legítimo exercício do poder político pelo povo.

3.1.2 Escola Analítica

A Escola Analítica foi fundada, na Inglaterra, por John Austin no século XIX. De modo geral, trata-se de uma concepção que imuniza o Direito positivo aos imperativos éticos e morais, haja vista que:

A jurisprudência geral, ou filosofia do direito positivo, não se refere diretamente à ciência da legislação. Trata diretamente dos princípios e distinções que são comuns aos diversos sistemas de direito particular e positivo e que cada um desses sistemas diversos inevitavelmente envolve, seja esse digno de louvor ou de censura, seja de acordo ou não com uma determinada medida ou critério. Ou bem (mudando a frase) a jurisprudência geral ou filosofia do direito positivo diz respeito ao direito como ele necessariamente é, ou antes o direito como deveria (ought) ser; o direito como deve necessariamente (must) ser, seja ele bom ou mau, ou antes o direito como necessariamente ser, se fosse bom. (AUSTIN apud BOBBIO, 1995, p. 102-103).

Dessa forma, considera que enquanto a Ética é de competência exclusiva dos filósofos e moralistas, o Direito Positivo, como resultado dos costumes transformados em lei positiva pela jurisprudência judiciária, é da alçada única dos juristas, os quais devem interpretá-lo, a partir da análise de seus conceitos, através do método da Lógica Formal Clássica Aristotélico-Tomista.

3.1.3 Escola dos Pandectistas

Surgida na Alemanha, no século XIX, a Escola dos Pandectistas teve como representante mais popular Bernhard Windscheid. O nome Pandectistas deve-se ao fato de que os componentes dessa Escola se dedicavam ao estudo do direito romano, sobretudo, ao estudo das Pandectas: a segunda parte do Corpurs Juris Civilis de Justiniano, pela qual se tinha acesso aos pareceres dados pelos jurisconsultos às questões de Direito Civil.

Assim, poder-se-ia reelaborar os institutos do antigo direito romano, e por meio de um processo abstrato de extração de conceitos e de atualização, os mesmos poderiam ser reaplicados em diferentes épocas e lugares. Para os Pandectistas:

O momento lógico baseia-se na investigação da ratio legis. Busca descobrir o sentido e o alcance da lei, sem o auxílio de qualquer elemento exterior, aplicando ao dispositivo um conjunto de regras tradicionais e precisas, tomadas de empréstimo à lógica geral. Funda-se no brocardo: ubi eadem ratio, ibi eadem legis dispositivo, ou seja, ali onde está o racional, ali está a correta disposição legislativa. Procura a ideia legal que se encontra sub litteris, partindo do pressuposto de que a razão da lei pode fornecer elementos para a compreensão de seu conteúdo, de seu sentido e de sua finalidade. Numa lei o que interessa não é seu texto, mas o alvo fixado pelo legislador. O elemento lógico empregado nesse processo de interpretação é o fornecido pela lógica formal. A ratio legis consagra necessariamente os valores jurídicos dominantes e deve prevalecer sobre o sentido literal da lei, quando em oposição a este. O processo lógico permite que a interpretação alcance elevado padrão de rigor e segurança. (HERKENHOFF apud CAPPI & CAPPI, 2004, p. 498).

Portanto, para essa Escola, o Direito também se confunde com o direito positivo, o qual deve ser interpretado à luz da lógica formal e do método sistemático de interpretação. Mas, além disso, a fim de fazer uma correta hermenêutica das normas, o intérprete das leis, deve responder à seguinte pergunta: embora o legislador tenha produzido normas jurídicas no passado, qual poderia, possivelmente, ser a sua intenção se legislasse no tempo atual?

3.1.4 A Lógica Deôntica

O alemão Ulrich Klug foi o constituidor da lógica deôntica. Porém, ela foi adaptada para a realidade do discurso jurídico por Von Wright, pois, através de seus trabalhos foram possíveis as transposições, com algumas adaptações, dos conhecimentos da Lógica Modal Alética à linguagem do direito positivo. Em outras palavras:

Entendemos por Lógica Deôntica o projeto de criar um conjunto sistêmico de regras de Lógica Formal aplicáveis ao Direito, objeto de profundas adaptações exigidas pela deonticidade, isto é, pelo caráter normativo da linguagem usado nas proposições jurídicas. A predicação “ser” (o Sein da teoria pura do direito) é substituída por “dever-ser” (o Sollen) e “dever fazer”. (CAPPI & CAPPI, 2004, p. 210).

Desse modo, os argumentos jurídicos, na perspectiva da lógica deôntica, estruturam-se na forma do silogismo aristotélico, com a diferença de que ao invés de se alicerçar em sentenças descritivas ou informativas como ocorre com a lógica formal, fundamentam-se em proposições deônticas, pois os seus valores não correspondem à verdade ou à falsidade, mas ao proibido, ao permitido ou ao obrigatório.

Além disso, as sentenças organizam-se em formas condicionais, pois, cada hipótese de incidência (antecedente) corresponde a uma consequência jurídica (o consequente).

Dessa maneira, os argumentos obedecem à estrutura[13] referenciada a seguir:

TABELA 1 – Estrutura dos Argumentos

A norma

Premissa Maior:

Todo A deve ser B

A factualidade

Premissa Menor:

C é A

A sentença

Conclusão: Logo,

C deve ser B

Fonte: Elaborada e adaptada pelo autor (2014).

Ao analisar a tabela anterior que demonstra a Estrutura dos Argumentos, permite-se, ainda, exemplificá-la conforme ver-se posteriormente (vide TABELA 2):

TABELA 2 – Exemplificação da Estrutura dos Argumentos

“Todo A deve ser B”

Todo servidor público demitido sem a instauração de prévio processo administrativo disciplinar deve ser reintegrado ao Quadro Funcional.

“C deve ser A”

Fabrício foi demitido sem a instauração de prévio processo administrativo disciplinar.

“Logo, C deve ser B”

Logo, Fabrício deve ser reintegrado ao Quadro Funcional.

Fonte: Elaborada e adaptada pelo autor (2014).

Portanto, para os deônticos, a fim de garantir ao direito o status de científico, o discurso jurídico deve obedecer a mesma forma do raciocínio lógico-formal, porém, com as devidas modificações, haja vista que a argumentação jurídica em sua singularidade abrange funções da linguagem natural valorativas e normativas, as quais estão naturalmente ausentes da lógica formal.

3.1.5 O Formalismo de Hans Kelsen

O pensamento do autor austríaco está sintetizado em sua principal obra, “Teoria Pura do Direito”, que foi editada pela primeira vez em 1934 e teve sua segunda edição publicada em 1960. O objetivo da sua teoria foi garantir ao direito o status de cientificidade, isto é, de alicerçar o direito enquanto ciência, em um positivismo metodológico, por meio do qual o cientista do direito poderia analisar o seu objeto de estudo, as normas, com absoluta objetividade e exatidão, de modo a purgar a Ciência Jurídica de qualquer influência moral, política, ideológica ou sociológica. Então:

A Teoria Pura do Direito é uma teoria do Direito Positivo – do Direito positivo geral, não de uma ordem jurídica especial. [...] Contudo, fornece uma teoria da interpretação.

Como teoria, quer única e exclusivamente conhecer o seu próprio objeto. Procura responder a esta questão: o que é e como é o Direito? Não importa a questão de saber como deve ser o Direito, ou como deve ele ser feito. É a ciência jurídica e não política do Direito.

Quando a si própria se designa como “pura” teoria do Direito, isto significa que ela se propõe garantir um conhecimento apenas dirigido ao Direito e excluir deste conhecimento tudo quanto não pertença ao seu objeto, tudo quanto se não possa, rigorosamente, determinar como Direito. Quer isto dizer que ela pretende libertar a ciência jurídica de todos os elementos que lhe são estranhos. Esse é o seu princípio metodológico fundamental. (KELSEN, 1998, p. 01).

O objeto de estudo da Teoria Pura do Direito, a norma, é pensada a partir da ideia de imputação, isto é, de acordo com a concepção segundo a qual existe uma norma posta que imputa uma sanção a quem venha contrariar-lhe.

A teoria normativa de Kelsen analisa o sistema de normas como um conjunto escalonado e hierarquizado, de sorte que a norma inferior encontra a sua fonte de validade na norma superior e, assim por diante, até chegar à norma fundante de todo o ordenamento: a norma hipotética fundamental.

Dessa forma, a maior preocupação que o intérprete da norma deve ter é a de verificar se a lei é válida, isto é, se ela foi elaborada pela autoridade competente e se está conforme as normas de hierarquia superior.

A norma trata de uma proposição que indica um deve ser, um mandamento e, por isto, tem natureza prescritiva, escapando ao princípio de causalidade dos fenômenos naturais. A doutrina, por sua vez, deve descrever as diversas possibilidades de sentido da norma, mas, dentro dos limites da moldura do sistema de normas e guiada pelos elementos da imputação e da coerção.

Da mesma tarefa está imbuído o juiz, que, embora tenha certa margem de discricionariedade concedida, de modo intencional ou não, pelo próprio legislador, para que lhe seja possível determinar quando, onde e como a norma deve ser aplicada, deverá prolatar uma sentença, resultado de uma opção por um dos sentidos possíveis da norma, que respeite os limites da moldura, isto é, do texto normativo. Como aduz o pensador austríaco:

Entendendo-se por “interpretação” a verificação do sentido da norma a ser executada, o resultado desta atividade só pode ser a verificação da moldura, que representa a norma a ser interpretada e, portanto, o reconhecimento de várias possibilidades que estão dentro desta moldura.

Nesse caso, a interpretação de uma lei não é necessária a uma decisão como a única e certa, mas leva, possivelmente, a várias decisões – enquanto só se ajustam a norma a ser aplicada – do mesmo valor, mesmo que uma única dentre elas se torne direito positivo numa sentença judicial.

O fato de que uma sentença judicial seja baseada numa lei nada mais significa, na verdade, senão que se encontra no interior da moldura e que a lei não significa que é uma das normas individuais possíveis dentro da moldura da norma geral. (KELSEN, 2009, p. 150-151).

Kelsen entende que o ordenamento jurídico é um conjunto de normas harmônicas e completas e que, por isso mesmo, nenhum fato da vida escapa a sua regulamentação, uma vez que tudo o que não está juridicamente proibido, está juridicamente permitido e, portanto, juridicamente determinado.

Assim sendo, existem, de modo geral, duas formas de interpretação: a autêntica, que cria direito, vinculada à ação e que é realizada pelos órgãos competentes do Estado para aplicar o Direito (o Legislativo, o Executivo e o Judiciário) e a inautêntica, feita no âmbito privado, que ocorre, por exemplo, quando um indivíduo qualquer é coagido a agir conforme a conduta prevista na lei, a fim de escapar da sanção.

Logo, interpretar, de acordo com a perspectiva da Teoria Pura do Direito, é escolher dentre as várias possibilidades de sentido circunscritas pela moldura do texto normativo.

3.2 Hermenêutica Material Histórico-Sociológica

Essa ciência é consolidada, sobretudo, pelas Escolas: Histórica do Direito, Teleológica do Direito, da Livre Pesquisa Científica, do Direito Livre, Sociológica Americana, da Jurisprudência dos Interesses, Egológica, Vitalista, Crítica Alternativa, Tópica de Theodor Viehweg e Nova Retórica de Chaïm Perelman.

3.2.1 Escola Histórica do Direito

A Escola Histórica do Direito surge na primeira metade do século XIX. Ela deriva do Romantismo alemão como resultado da reação ao racionalismo. Seus principais representantes são: Friedrich Karl von Savigny e Puchta.

A Escola alemã entende o direito como fato histórico, originado dos costumes e das tradições de um povo, pois se trata de manifestação espontânea do espírito nacional. Em razão disso, rejeita as teorias que defendem o direito natural, racional e universalmente válido, as quais, segundo o historicismo jurídico, deitam as suas raízes na concepção liberal e burguesa de que a supremacia da lei deve ser cristalizada. Assim sendo:

O Direito não é criação lógica da razão universal, mas uma constante orgânica e espontânea da consciência popular de cada povo. O povo produz naturalmente o Direito, como naturalmente cria seu idioma nacional. O historicismo jurídico, o nacionalismo e o relativismo são características inerentes ao Direito. A origem do Direito, seu desenvolvimento e seu destino espelham a história da consciência nacional. Savigny [...] dizia: “o direito progride com o progresso do povo, fortalecendo-se com ele, entrando em decadência e perecendo, quando a nação perde sua personalidade”. (CAPPI &CAPPI, 2004, p. 507).

Dessa maneira, cria-se uma nova estrutura metódica para o direito, isto é, parte-se de uma ciência orgânica e progressiva comum a toda a nação, a fim de se elaborar cientificamente o direito de base histórica, a partir do qual, torna-se possível entender as normas jurídicas como derivadas das organizações sociais, baseadas em instituições históricas formadas pelo costume.

Assim, origina-se, finalmente, o método histórico-evolutivo, por meio do qual, o intérprete deve colocar-se no lugar do legislador, mas, com sensibilidade para captar o espírito do povo, a fim de ter condições de aplicar normas produzidas outrora em tempos atuais, utilizando técnicas específicas, tais como: a gramatical, a lógica, a histórica e a sistemática do direito.

Em suma, o magistrado, ao aplicar a norma à circunstância fática, deve seguir as regras rígidas do raciocínio lógico-formal e em caso de dúbia interpretação, a fonte originária (os costumes, o espírito do povo, etc.) deve prevalecer sobre a fonte originada (as leis, os códigos, etc.), pois a fonte primária e a plenitude sistêmica do direito estão enraizadas na consciência coletiva do povo.

3.2.2 Escola Teleológica do Direito

A Escola em voga surgiu entre os anos de 1818 e 1892. Ela tem como principal expoente Rudolph von Ihering, que rejeita a ideia romântica da Escola Histórica do Direito de que a lei deriva natural e harmoniosamente das tradições consuetudinárias consensuais.

Ao contrário disso, pressupõe que o direito é resultado de guerra, pois é construído não por sofisticadas teorias ou conceitos abstratos, mas em meio a interesses existenciais concretos em constante conflito, por meio dos quais se geram lutas e quebra de tradições. Como elucida o pensador alemão:

A paz é o fim que o direito tem em vista, a luta é o meio de que se serve para o conseguir. Por muito tempo pois que o direito ainda esteja ameaçado pelos ataques da injustiça – e assim acontecerá enquanto o mundo for mundo –, nunca ele poderá subtrair-se à violência da luta. A vida do direito é uma luta: luta dos povos, do Estado, das classes, dos indivíduos.

Todos os direitos da humanidade foram conquistados na luta; todas as regras importantes do direito devem ter sido, em sua origem, arrancadas àqueles que a elas se opunham, e todo o direito, direito de um povo ou direito de um particular, faz presumir que alguém esteja decidido a mantê-lo com firmeza.

O direito não é uma pura teoria, mas uma força viva.

Por isso a justiça sustenta numa das mãos a balança em que pesa o direito, e na outra a espada de que se serve para o defender.

A espada sem a balança é a força brutal; a balança sem a espada é a impotência do direito.

Uma não pode avançar sem a outra, nem haverá ordem jurídica perfeita sem que a energia com que a justiça aplica a espada seja igual à habilidade com que manejar a balança. (IHERING, 2009, p. 23).

À vista disso, a Escola denuncia a insuficiência da teoria da silogicidade, do método lógico-dedutivo e do formalismo jurídico, como critérios mediante os quais se aplicam o direito, uma vez que o direito que se considera relevante não é o posto, objetivo, e sim o subjetivo, já que ele se movimenta graças à energia do sentimento de justiça do sujeito que percebe seu direito lesado e, por consequência, reclama do prejuízo sofrido.

Propõe, pois, o método realista ou teleológico, a partir do qual o direito é entendido como tendo um elo com um fim que se pretende ver realizado na prática, ou seja, o magistrado, no labor de aplicar a norma, deve estar atento à finalidade última do direito: garantir a paz social, por meio da proteção aos interesses coletivos e individuais conexos à vida concreta.

3.2.3 Escola da Livre Pesquisa Científica

A Escola da Livre Pesquisa Científica, fundada na França por François Gény, defende que as lacunas do ordenamento devem ser preenchidas mediante a pesquisa científica, pela qual se investiga o direito para além das fontes formais, buscando-se os elementos objetivos que determinam as soluções exigidas pelo direito positivo. Logo:

A lei, não cobrindo todo o campo do direito, é por vezes incuravelmente muda. Torna-se inútil [...] arrancar-lhe um sentido artificial. Nesses casos só a livre pesquisa científica pode propiciar os elementos da solução, porque vai buscá-los, não na abstração dos conceitos, mas na noção de justo objetivo, vale dizer na razão e na consciência, e nas realidades sociais. Assim o sentido da lei deve ser pesquisado nela, mas também fora dela, se preciso for. (GÉNY apud CAPPI & CAPPI, 2004, p. 509-510).

O magistrado, a partir da perspectiva dessa Escola, tem papel criativo e é vocacionado a realizar a atividade legisladora, porém, respeitando a critérios objetivos, porque a livre pesquisa científica afirma o postulado lógico da “plenitude lógica da legislação escrita”.

Por isso, uma vez que o direito pretende ser um sistema de normas postas, uno e indivisível, a lacuna aparece como um vácuo e uma falha que deve ser necessariamente preenchida e corrigida pela atividade jurisdicional, a fim de que a plenitude do direito seja mantida. Por esta razão, o juiz deve ser sensível ao fato de que:

[...] O direito é composto por dois elementos fundamentais: le donné (o “dado”, fruto das condições físicas e culturais de um povo, dos costumes, tradições e condutas sociais) e le construit (o “elaborado”, o conjunto de normas da ordem jurídica positiva).

O juiz, intérprete do Direito positivo, investiga as motivações que determinaram o nascimento da lei. Ele deve fidelidade unicamente a esta interpretação, no momento da aplicação da lei, pois o seu significado originário não pode ser distorcido pelas mudanças de condutas sociais históricos. (CAPPI & CAPPI, 2004, p. 509).

Assim, embora o magistrado, em caso de lacuna e depois de esgotada todas as possibilidades de busca de soluções para o caso judicializado no próprio direito posto, possa recorrer, no intento de solucionar a lide, às fontes suplementares do direito – usos, costumes, autoridades dos mestres, tradição, jurisprudência e doutrina –, jamais poderá julgar contra legem, objetivando forçar a lei a dizer o que ela não diz.

Por conseguinte, em sua atividade hermenêutica, ele deve respeitar o limite que jamais deverá ser ultrapassado: a lei positiva, a fim de garantir a força e a eficácia da ordem jurídica do Estado de Direito.

3.2.4 Escola do Direito Livre

A Escola supracitada nasceu na Alemanha, quando Ulrich Kantorowisz, que usava o pseudônimo do tribuno romano Gnaeus Flavius, publicou um clássico da hermenêutica jurídica, intitulado “A luta pela Ciência do Direito”.

De acordo com essa Escola, o direito positivo surge do abuso do poder do Estado, pois este cria a ordem jurídica em proveito próprio e se o Estado fomenta a prática da hermenêutica literária formal no âmbito da prestação jurisdicional, é porque, por uma opção política, ele não pode admitir que a ratio legis, seja procurada, legitimamente, num direito extra positivo.

Contudo, a investigação científica e sociológica do direito, ao verificar que existe uma tensão entre a ordem social e a ordem estatal, constata que nem todo o direito exaure-se no Estado, pois a ratio legis, verdadeira fonte do direito, emana, naturalmente, das condutas consensuais de um povo. Desta maneira:

[...] Ao lado do direito estatal, ou mesmo anterior a ele, estaria o direito livre produzido pela opinião jurídica dos membros da sociedade, pelas sentenças judiciárias e pela ciência jurídica. Segundo Kantorowicz, o povo reconhece o direito livre, enquanto desconhece o direito estatal, a não ser que o último coincida com o primeiro.

[...] Enfim, o Movimento para o Direito Livre procurou resolver o problema provocado pelo distanciamento entre o direito estanque e a sociedade em movimento. A lei, tornando-se retrógrada, por não acompanhar as transformações vividas pela sociedade, acaba por gerar instabilidade em lugar de segurança. E assim ressurge o direito natural (social) de base histórica. (CAMARGO, 2003, p. 99-100).

Assim sendo, o juiz, ao aplicar a lei, em situações concretas, deve, a fim de resolver o paradoxo entre o direito estático e a sociedade em movimento, utilizar a seguinte metodologia:

. Se houver lei univocamente interpretada, e esta não ofender o “direito justo” (isto é, se a lei não ofender os sentimentos dominantes da comunidade), o Direito Positivo deve ser seguido. O juiz aplicará o Direito positivo iuxta legem.

. Se estiver diante de lacuna jurídica, o juiz (seguindo sua honrada convicção, após investigação científica sociológica) torna-se uma espécie de “legislador”, no caso concreto, criador de norma jurídica não-vinculante. Agirá praeter legem.

. Se a norma jurídica for claramente injusta, ofendendo o Direito material da sociedade que a rejeita frontalmente, cabe ao juiz (conforme sua honrada convicção e após investigação científica sociológica) ir contra legem. (CAPPI & CAPPI, 2004, p. 511-512).

Portanto, a Escola do Direito Livre defende a supremacia do Direito material sobre o Direito positivo, de sorte que ao delegar ao juiz o dever de dizer criativamente o direito, o torna mais importante do que a lei, de modo a exigir dele, além da imparcialidade e da formação de um espírito investigativo, conhecimentos interdisciplinares, tais como: Filosofia, Psicologia e Ciências Sociais.

3.2.5 Escola Sociológica Americana

O fundador da Escola Sociológica Americana é Roscöe Pound. Esta se singulariza por aplicar ao Direito as teorias da Lógica Experimental de John Dewey, lógico pragmatista, que defende os aspectos utilitaristas e práticos da ação.

Assim, rejeita o ponto de partida da lógica formal aristotélica (o antecedente da inferência), pois, este, caso seja formado por premissas verdadeiras, serve para dar a conclusão do argumento, na forma de silogismo, a validade formal de verdade irrefutável.

Por isso, ao invés de se focar no antecedente apercebido por premissas verdadeiras, o juiz deve se preocupar com as conclusões e consequências da decisão judicial, pois, a repercussão social do “consequente” é mais relevante do que a verdade do “antecedente”. Por essa razão, à lógica formal cabe um papel instrumental e acessório, uma vez que o papel central é dos juízos de valor, pelos quais o magistrado mede os efeitos que a sua sentença causará na sociedade.

No processo de formação de sua convicção, à luz do princípio da persuasão racional, os participantes do discurso jurídico em geral (membros do legislativo, executivo e judiciário) devem seguir os procedimentos de uma lógica jurídica pragmatista, a saber:

. Partir de uma investigação preliminar a respeito das consequências que a aplicação das normas legais provocariam no seio da convivência social.

. Antes de propor a promulgação de uma lei ao legislativo, aprofundar, por meio de análise sociológica, os efeitos da lei na social atual.

. Realizar um profundo estudo histórico-jurídico-sociológico das condições que determinaram a origem da lei, para avaliar se estas ainda subsistem, ou se estamos diante de uma norma anacrônica.

. No método jurídico, assumir a importância dos fatores psicológicos, que motivam decisões judiciais.

. Reconhecer que a sentença atinge seu fim quando representa uma solução justa e razoável que favoreça o bem-estar social. A norma legal justa é a norma eficaz que trouxer maior bem-estar-social.

. Pressionar o Ministério da Justiça para que assuma a tarefa de corrigir os anacronismos legais, mediante projetos de lei.

. Priorizar sempre, no Direito, a eficácia, na busca de se atingirem os fins. (CAPPI & CAPPI, 2004, p. 515, grifos do autor).

Ressalta-se que, apesar dos desdobramentos radicais ulteriores dessa Escola, como por exemplo, a formação de concepções segundo as quais o magistrado primeiro decide no seu íntimo, para depois fundamentar sua decisão, a personalidade humana do juiz é que, coberta pelo véu dos fundamentos oficiais da decisão, decide os rumos de seu julgamento, etc. A Escola Sociológica Americana, trouxe a ideia de que a lógica jurídica deve pautar-se em uma concepção prática e não em um formalismo abstrato do direito.

3.2.6 Escola da Jurisprudência dos Interesses

A Escola da Jurisprudência dos Interesses surgiu na Alemanha e tem como fundador o professor, de Tübingen, Philip Heck. Ela defende a tese de que a autêntica hermenêutica jurídica não se guia pelos procedimentos da dedução lógico-formal e sim pela verificação dos “interesses”, que estão por trás da edição das leis, pois, parte do pressuposto de que toda lei é feita com a finalidade de proteger os interesses de grupos socialmente dominantes. Esta alega que:

[...] Não é da competência do juiz legislar, mas interpretar e aplicar a norma jurídica, com a qual coopera “mediante uma justa interpretação da lei”. A obediência ao Direito Positivo é obrigação fundamental de qualquer juiz, uma obediência inteligente e competente, que, na análise dos conflitos sociais, o transforma em intérprete dos conflitos de interesses em jogo. Interpretar a lei não quer dizer aplicá-la por deduções lógico formais. Significa verificar quais os interesses que, de fato e no fato, são preservados, favorecendo os da coletividade ante os interesses dos grupos ou indivíduos, e os que intencionalmente a lei defendia, quando de sua edição pelo legislador. (CAPPI & CAPPI, 2004, p. 517).

Por isso, antes de aplicar a norma jurídica ao caso concreto, o juiz deve responder as proposições: quais são os interesses que, ao subsumir o fato à norma, ele estará protegendo? A proteção recairá sobre a coletividade ou privilegiará apenas grupos determinados? Os grupos que se beneficiam atualmente da norma, são os mesmos que foram afetados positivamente por ela ao tempo de sua edição?

Assim, a metodologia de interpretação da Escola da Jurisprudência dos Interesses parte de uma teoria histórico-objetiva, pois tem como telos a investigação científica da vontade normativa presente nas palavras da lei, desde a sua gênese, mas, relacionada aos interesses presentes na ocasião em que a mesma é vocacionada a ser aplicada. Por conseguinte:

O “legislador” não é simples ficção ou fantasma, mas designação que engloba todos os interesses da comunidade vigentes [leia-se, valores]. Assim a questão por vezes posta, de saber se a vontade procurada é a do legislador de hoje ou de ontem, resolve-se com clareza. O escopo da determinação judicial do direito é, sem dúvida, a proteção de interesses atuais. Mas a realização desse escopo tem como fator o conhecimento daqueles interesses cujas exigências se revelaram já em forma de lei. (HECK apud CAMARGO, 2003, p. 94).

Nota-se, então, que nessa concepção, interpretar o direito é um procedimento de desvelamento de suas causas. Ele se traduz, afinal, como a tutela de interesses, ora gerais, quando defendidos pela lei, ora individuais, no momento em que é salvaguardado por uma sentença, entendida como norma individual.

3.2.7 Escola Egológica

Carlos Cossio, jurista argentino, é o instituidor dessa Escola que, advoga a ideia de que o objeto da hermenêutica jurídica não é a norma, mas a conduta humana, de sorte que o Direito segue a mesma metodologia das outras ciências, pois:

O objeto de quem interpreta a física é a matéria e a energia, e não as leis da física, que são a representação conceitual. Os astrônomos estudam os astros, sendo as leis de Kepler, de Copérnico ou de Newton, conceituações decorrentes do estudo dos astros.

No Direito não é diferente: objeto da Ciência Jurídica é a conduta humana nas relações interpessoais, sendo o Direito Positivo a conceituação posterior e decorrente. Todo objeto cultural tem um substrato (que existe na realidade e é perceptível empiricamente pela experimentação) e um sentido (que é objeto de nossa valoração intelectual e valoração axiológica). (CAPPI & CAPPI, 2004, p. 518, grifos nossos).

Desse modo, o Legislador não cria o direito, pois este deriva da conduta humana. Por isto, a norma é apenas uma categoria formal e conceitual de conhecimento da conduta, isto é, instrumento pelo qual o direito expressa-se e é apreendido cognitivamente, de um lado há a conduta, empírica e factual e de outro, a norma, que habita o universo abstrato e conceitual. Em outras palavras, enquanto a norma trata de um “dever-ser-lógico”, a conduta perfaz um “dever-ser-existencial”.

Assim sendo, preleciona Diniz (2009, p. 48):

Nota-se que, para a egologia, a norma não pode criar ou extinguir o direito. Tem ela um papel constitutivo dos modos de ser do direito (faculdade, prestação, ilícito ou sanção), mas não do ser do direito. A norma pode constituir um ato facultativo em obrigatório, em ilícito ou sanção, porém não pode fazer que a conduta seja compartida ou deixe de sê-lo; o comportamento apresenta-se assim por si mesmo. O legislador pode normar a conduta daqueles quatro modos. A criação legislativa do direito pode apenas confirmar ou modificar os modos de vida existentes, mas não elaborar a vida existente. O elaborador da norma pode converter em lícito um modo de viver antes ilícito, pode contribuir à criação do delito ou da prestação, porém essa ação legislativa não cria o direito.

Nesse contexto, a Escola Egológica tem esse nome porque o substrato do seu objeto é a conduta humana em seu viés intersubjetivo, de modo que o juiz não é convocado, em virtude do munus publicum do qual se reveste, a interpretar a lei abstratamente, mas a interpretar a conduta humana através dos parâmetros da lei, visto que, enquanto a conduta humana é o substrato, a lei é o seu sentido, de maneira que o jurista a analisa pela ótica da norma jurídica.

3.2.8 Escola Vitalista

O pensador Luís Recaséns Siches foi o precursor da Escola Vitalista. Nela, define-se o direito como forma de vida humana objetivada, uma vez que o universo jurídico faz parte da concretização da existência humana autêntica, tais como projetos, atos, cultura, etc. Como opina o jurista guatemalteco:

Uma norma jurídica é um pedaço de vida humana objetivada que, enquanto esteja evidente, é revivida de modo atual pelas pessoas que a cumprem ou aplicam, e que, ao ser revivida, deve experimentar modificações para ajustar-se às novas realidades em que e para que é revivida (SICHES apud CAPPI & CAPPI, 2004, p. 520).

Porém, ele constata que, eventualmente, verifica-se o descompasso entre a vida autêntica (a existência real) e a vida objetivada (a norma jurídica), pois a norma, por ser abstrata e necessitar de mecanismos burocráticos de mutação, tende a não acompanhar o compasso das mudanças sociais. Em vista disto, o legislador é convocado a atualizar a norma, a fim de torná-la harmônica com as relações humanas reais.

Assim sendo, essa Escola propõe, ao invés da lógica formal, a lógica do razoável como lógica jurídica aplicada, já que apenas por meio de um raciocínio pautado na razoabilidade, que embora se guie pela norma, avança para além dela, introduzindo-se na existência humana concreta e historicamente estabelecida, será possível ao magistrado emitir uma apreciação justa. Por isto, o juiz conta, quando chegar o momento de aplicar a norma a cada caso concreto, com o método axiológico de interpretação, uma vez que a norma jurídica aplicada, antes de ser resultado do conhecimento da realidade, é consequência de sua valoração.

3.2.9 Hermenêutica Crítica Alternativa

A Hermenêutica Crítica Alternativa nasceu como resultado de um movimento político, inspirado no pensamento de Karl Marx, engajado nas lutas das classes populares, que se deu após a Segunda Guerra Mundial. Os principais consolidadores, dentre outros, são: Sadok Belaid, na França, José Castan Tobeñas, na Espanha, Luís Fernando Coelho, José Eduardo Faria e Antonio Carlos Wolkmer, no Brasil.

A partir do ponto de vista desse movimento, o Direito é aparelho ideológico de Estado, pois se configura como institucionalização da ideologia burguesa. Por isto, concebe-se que:

A classe dominante monta um aparelho de coerção e de repressão social que lhe permite exercer o poder sobre toda a sociedade, fazendo-a submeter-se às regras políticas. O grande instrumento do Estado é o Direito. Isto é, o estabelecimento das leis que regulam as relações sociais em proveito dos dominantes. Através do Direito, o Estado aparece como legal, ou seja, como “Estado de direito”. O papel do Direito, ou das leis, é o de fazer com que a dominação não seja tida como uma violência, mas como legal, e por ser legal e não violenta deve ser aceita. Ora, se o Estado e o Direito fossem percebidos nessa sua realidade real, isto é, como instrumento para o exercício consentido da violência, evidentemente ambos não seriam respeitados e os dominados se revoltariam.

A função da ideologia consiste em impedir essa revolta fazendo com que o legal apareça para os homens como legítimos, isto é, como justo e bom. Assim, a ideologia substitui a realidade do Estado pela ideia do Estado, ou seja, a dominação de uma classe é substituída pela ideia de interesse geral, encarnado pelo Estado. E substitui a realidade do Direito pela ideia do Direito, ou seja, a dominação de uma classe por meio das leis é substituída pela representação ou ideias dessas leis como legítimas, justas, boas e válidas para todos. (CHAUÍ, 2002, p. 90-91).

Os conceitos clássicos das outras Escolas Jurídicas são relacionados à estrutura de pensamento binária de viés marxista: opressor x oprimido, burguesia x proletariado, maioria x minoria, etc., de tal forma que o Estado passa a ser percebido, essencialmente, como aparelho ideológico, a hermenêutica jurídica como atividade política e o poder estatal como poder burguês.

Por isso, a hermenêutica alternativa invita o Direito a responsabilizar-se por sua opção política: as massas populares, de modo a dar uma conotação crítica e alternativa aos métodos de interpretação jurídica. Denomina-se “crítica” porque busca desvelar os mecanismos ideológicos do direito positivo, e “alternativa” porque objetiva representar os anseios de participação democrática e emancipadora da sociedade civil e não a vontade conservadora do legislador.

Diante do exposto, para o direito crítico e alternativo, as fontes do direito sofrem transposições, pois são invertidas as posições da concepção clássica: a lei passa a ser fonte secundária e a jurisprudência fonte primária do direito, então o legislador faz lei, mas, não diz o direito, criando-o, adaptando-o e recriando-o, já que é tarefa do magistrado em sua interação intersubjetiva com os demais argumentadores do discurso jurídico.

Com papel central no ordenamento, deve o juiz utilizar, em virtude das lacunas, vácuos, fissuras e antinomias jurídicas, o direito burguês contra os próprios modos legais de opressão da burguesia, exercendo três funções ao aplicar a lei:

  1. função criadora: enquanto dá concretude, mediante o exercício do poder decisório, à abstração da lei, garantindo estabilidade e continuidade ao direito;
  2. função adaptadora: na medida em que adapta as normas jurídicas às mudanças constantes das aspirações democráticas da sociedade;
  3. função recriadora: quando, em atitude transgressora emancipatória, decide contra a lei, nos casos em que a justiça e a dignidade humana seriam prejudicadas por uma aplicação mecânica da normativa. (CAPPI & CAPPI, 2004, p. 525).

Diante dessa perspectiva, o juiz, ao se relacionar com toda a comunidade de ouvintes e falantes do universo jurídico, deve, com a autonomia e garantias constitucionais que, em virtude de sua função pública, o revestem, está comprometido não com quem o nomeou, mas com a realização da justiça: atendimento às aspirações e concretizações dos valores dos oprimidos (libertação, participação popular, pluralismo, emancipação das massas, etc.).

3.2.10 A Tópica de Theodor Viehweg

Com a publicação da obra “Tópica e Jurisprudência”, de autoria do pensador alemão Theodor Viehweg, em 1979 manifestou-se essa teoria, resultante de seu estudo da:

[...] tópica propriamente dita, tomando por base Aristóteles e Cícero. Aristóteles atribui como título de uma das partes do Organon o termo tópicos, em referência à antiga arsdisputationes dos retóricos e sofistas, tão combatida por Sócrates e Platão. Insere a tópica no campo da dialética, ou seja, da disputa e dos opostos, em contraposição ao gênero apodítico, representado pela ordem das verdades. Propõe-se a encontrar um método de raciocínio formulado a partir de opiniões tomadas como proposições e montar, daí, uma cadeia discursiva coerente (sem contradições), considerando todos os problemas possíveis de serem apresentados. (CAMARGO, 2003, p. 147-148).

Ela expressa-se como uma tentativa de delimitar as peculiaridades do discurso jurídico e defende que o caminho lógico para as soluções jurídicas difere do percurso da lógica formal, pois se baseia na teoria da argumentação e não na teoria da demonstração. Assim, reconhece-se que o direito é substancialmente dialético e argumentativo.

Por isso, o discurso jurídico é naturalmente problemático, apontando para diversas possibilidades de solução. Outrossim:

É nesse momento que entra em ação a Tópica, técnica do pensamento problemático, que já na retórica aristotélica nos ensinava a procurar pontos de partida aceitáveis, como início da argumentação, por serem lugares-comuns (topoi) que agregam consenso. Na opinião de Viehweg, é o momento mais rico do processo retórico, denominado, por ele, buscadas premissas. A retórica começa pela tópica. Topoi são, portanto, para Aristóteles, pontos de vista utilizáveis em toda a parte, que se empregam a favor ou contra o que é conforme a opinião aceita e que podem conduzir à verdade. (CAPPI & CAPPI, 2004, p. 338, grifos nossos).

Desse modo, o pensamento tópico se difere do pensamento lógico, enquanto aquele exibe o modo pelo qual se acham as premissas, este as recebe e as elabora, de maneira que a tópica precede à lógica. Os topoi são procurados no universo antropo-cultural compartilhados pelo auditório, dando ao juiz a possibilidade de resolver, caso a caso, em suas dimensões temporais, espaciais, circunstanciais e factuais. Eles objetivam alcançar raciocínios que resultam de premissas que aparentam ser verdadeiras em virtude de sua ampla aceitação.

Nesse sentido, quanto mais pluralista e fragmentada culturalmente uma sociedade, mais penoso se torna o trabalho do jurista, pois o recurso aos antecedentes, em virtude de reivindicações, pressões e mudanças pluriculturais velozes, torna-se, às vezes, um parâmetro envolto de obscuridade, de forma que o intérprete da norma, em atividade jurisdicional, ver-se ao ponto de “dar um salto no escuro”, tendo que escolher uma possibilidade de decisão razoável dentre infinitas possibilidades, impondo argumentos não por serem verdadeiros ou falsos, mas por trazerem respostas convincentes e pela necessidade de se por fim aos litígios.

Por conseguinte, a Tópica é a arte da argumentação, de modo que os topoi são as pegadas, no caminho retórico, pelas quais se orienta o jurista em sua busca de aplicar a normativa mais adequada a cada caso.

3.2.11 A Nova Retórica de Chaïm Perelman

Chaïm Perelman, professor de lógica da Universidade Livre de Bruxelas, que publicou, com Lucie Olbrechts-Tyteca, a obra intitulada “Tratado da Argumentação” (em 1958) é o mentor da Nova Retórica. Nesta, adota-se a retórica como teoria da argumentação, pois busca uma dimensão de racionalidade compatível com a vida prática.

Defende-se a ideia de que a razão além de lidar com verdades abstratas e formalmente demonstráveis, pode também trabalhar com valores, organizar preferências e fundamentar, de modo razoável, decisões judiciárias e argumentos jurídicos em geral.

Perelman e Lucie (2005) denunciam a perspectiva moderna de que a retórica, em nome de uma verdade evidente de natureza cartesiana, deveria ser esquecida, porque segundo ele, é preciso resgatar o raciocínio dialético valorizado desde a antiguidade clássica, sobretudo, pelo pai da lógica formal: Aristóteles.

Assim, busca-se um modo de dizer racional que, embora não se confunda com a lógica demonstrativa nem com um dizer artístico como a poesia, tenda a persuadir e envolver de probabilidade e verossimilhança uma tese qualquer, pois concebe que a razoabilidade não sendo racionalidade, também, não é emotividade.

Ao se evitar que lógica jurídica se reduza à lógica formal, constrói-se uma racionalidade que fomenta uma perspectiva aberta e tolerante de mundo, com o objetivo de imunizar o direito e a política contra as consequências negativas de uma lógica, cuja persecução seja exclusivamente a verdade irrefutável e a construção de um ordenamento estático, uno e absolutamente completo, assim como assevera os lógicos belgas:

Descartes nos diz com toda a clareza, na segunda metade do Discurso do método, que uma legislação que é obra de um só vale mais do que a que foi elaborada por vários através das transformações da história, pois é mais fácil a um só seguir um plano racional e apartar-se das contingências que constituem os hábitos e os costumes dos habitantes de um país. Vê-se como a visão cartesiana das relações entre Deus e os homens prepara e prefigura a teoria do poder absoluto sob todas as suas formas. A vontade do rei, pela graça de Deus, se torna a lei, justa porque emanação de um poder santificado. Essa ideologia glorifica a monarquia absoluta e justifica o uso da força para com aqueles que se atrevessem a revoltar-se contra sua arbitrariedade. (PERELMAN; LUCIE, 2005, p. 363-364).

O autor da obra “Lógica Jurídica” propõe que se deixe a concepção de que a verdade jurídica é algo que se descobre como única resposta a uma demanda provocada pelas partes em litígio e ao invés disso, se abarque uma noção de verdade jurídica que se se constrói, durante todo o processo do contraditório das partes, no percurso retórico, que envolve orador, mensagem e auditório. Este é entendido por Perelman (2004), como os operadores qualificados do direito para tomar decisões judiciais, isto é, o juiz e/ou o tribunal.

Por conseguinte, a verdade jurídica passa a ser compreendida como a versão assumida pelo juiz ou tribunal que dá maior inteligibilidade ao caso, em virtude de sua razoabilidade argumentativa.

Os argumentos emitidos pelas partes usam a normativa aplicável mais pertinente ao caso, visando a convencer e persuadir o júri ou o juiz, auditórios qualificados. A interação entre os argumentos das partes deve estar presente na motivação da sentença, pelo qual se resume toda a lógica processual. Com estes requisitos preenchidos, o órgão responsável pela prestação jurisdicional terá condições de referir um direito justo, équo e preservador da segurança jurídica e paz judiciária, a qual resulta de um tratar de modo juridicamente equivalente casos essencialmente semelhantes e de modo juridicamente diferente casos substancialmente dessemelhantes.

Feita essa breve exposição dos desdobramentos da lógica jurídica em diversas Escolas preocupadas em delimitar o modo específico de dizer do direito, apresentar-se-á, no último capítulo, uma exposição de como determinadas técnicas de argumentação jurídica foram utilizadas pelos Ministros do Supremo Tribunal Federal que reconheceram a união homoafetiva como instituto jurídico na Ação Direta de Inconstitucionalidade nº 4.277/Distrito Federal (ADI) e na Ação de Descumprimento de Preceito Fundamental nº 132/Rio de Janeiro (ADPF).


4 análise do uso das lógicas jurídicas nos julgados do Supremo Tribunal Federal na ADI nº 4.277/Distrito Federal e na ADPF nº 132/Rio de Janeiro

Antes de adentrar na análise dos principais argumentos jurídicos dos ministros do Supremo Tribunal Federal, far-se-á um breve relato acerca da historicidade das ações de controle concentrado que levaram ao novo paradigma jurídico acerca do reconhecimento da união homoafetiva como entidade familiar.

A ADPF nº 132 foi ajuizada pelo Governador do Estado do Rio de Janeiro, cumulada com pedido de concessão de medida liminar em face do Decreto-Lei nº 220/1975 (Estatuto dos Servidores Civis do Estado do Rio de Janeiro), pois, baseado no decreto do executivo, havia uma porção de decisões administrativas e judiciais que impediam aos servidores homoafetivos o gozo de determinados direitos previdenciários.

Em outras palavras, ela questionava a aplicação com interpretação inconstitucional dos incisos II e V, do art. 19 e dos incisos I a X do artigo 33 do Decreto-Lei 220/1975, posto que a interpretação que se tinha conferido a tais dispositivos implicava uma redução de direitos dos homossexuais.

Decisões judiciais e administrativas do Estado do Requerente negavam aos casais homoafetivos em união estável uma lista de direitos arrolados naqueles incisos, reconhecidos e gozados, por sua vez, de modo exclusivo pelos casais heterossexuais.

Assim, em virtude de o decreto estadual ter sido editado antes da Constituição Federal de 1988, sofreu, naturalmente, o controle de constitucionalidade por meio da Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental, medida judicial subsidiária e cabível para avaliar, dentre outras coisas, a recepção ou não pela Constituição Federal de normas jurídicas anteriores a ela. Afinal, no Brasil, não se adota a teoria da inconstitucionalidade superveniente, de modo que, para que uma norma seja considerada inconstitucional por meio do julgamento, por exemplo, de uma ação declaratória de inconstitucionalidade, ela terá que entrar no mundo jurídico em momento posterior à Constituição.

Contudo, de acordo com a percepção consensual dos Ministros do Supremo Tribunal Federal, a ADPF nº 132 restaura em parte prejudicada, uma vez que a legislação  fluminense desde 2007, no art. 1º da Lei nº 5.034/2007[14], fez a equiparação entre os servidores homossexuais e heterossexuais do Estado do Rio de Janeiro acerca dos direitos e deveres previstos em seu regime previdenciário.

Por isso, a Suprema Corte decidiu acolher o pedido subsidiário da ADPF nº 132 para ser, em face do princípio da fungibilidade, convertida e conhecida como ADI, a fim de que por meio da aplicação do princípio da interpretação, de acordo com a Constituição fosse dada ao art. 1.723 do Código Civil, de 2002[15], sentido hermenêutico analógico, a fim de que os mesmos direitos e obrigações da união estável entre homem e mulher fossem gozadas e adimplidas pela entidade familiar formada por pares do mesmo sexo.

Dessa forma, como a Procuradoria Geral da República[16] também ajuizou a ADI nº 4.227 com o mesmo pedido, o Supremo Tribunal Federal recebeu a ADPF como ADI, em conjunto com a ADI proposta pela Procuradoria, a fim de julgá-las simultaneamente.

Assim, por meio do mecanismo hermenêutico de mutação constitucional, o objetivo das ações de controle concentrado de inconstitucionalidade, era o de impossibilitar a lesão aos direitos fundamentais de casais que se relacionam afetivamente, mas que não se enquadram na relação familiar tradicional composta exclusivamente pela união entre homem e mulher, de modo que a eficácia da decisão pudesse transcender aos casais homoafetivos que integram o quadro de servidores públicos do Estado do Rio de Janeiro e ser aplicada aos homoafetivos em situação de união estável no território brasileiro em geral.

O autor da ADPF nº 132, o Governador do Estado do Rio de Janeiro, Sérgio Cabral, arguiu que os preceitos fundamentais da igualdade, da liberdade, da dignidade da pessoa humana e da segurança jurídica são constantemente violados em face de uma interpretação literal e reducionista da lei. Segundo ele, a homossexualidade é um:

[...] “fato da vida [...] que não viola qualquer norma jurídica, nem é capaz, por si só, de afetar a vida de terceiros”. Cabendo lembrar que o “papel do Estado e do Direito em uma sociedade democrática, é o de assegurar o desenvolvimento da personalidade de todos os indivíduos, permitindo que cada um realize os seus projetos pessoais lícitos”. (BRASIL, 2011, p. 05, grifos do autor).

O Autor buscou nos princípios constitucionais a fundamentação da ADPF. Ei-los:

  1. Princípio da Igualdade: é vedado conferir tratamento diferenciado a pessoas com base em sua origem, gênero e cor de pele (inciso IV do art. 3º);
  2. Princípio da Liberdade: autonomia plena na escolha da sua orientação sexual e de todos os desdobramentos que decorram dela;
  3. Princípio de Dignidade da Pessoa Humana: respeito aos projetos, desde que razoáveis, pessoais e coletivos de vida;
  4. Princípio da Segurança Jurídica: o não reconhecimento da união homoafetiva gera insegurança jurídica aos casais dessa relação;
  5. Princípio da Razoabilidade ou da Proporcionalidade: a restrição de direitos deve ser justificada equiparando-se bens jurídicos equivalentes, caso contrário, trata-se de mero preconceito.

Nesse diapasão, o autor da ação de controle de constitucionalidade defendeu a aplicação do método analógico de interpretação do Direito para equiparar as uniões estáveis homoafetivas às uniões heterossexuais estáveis. Desde que, tanto numa quanto noutra configuração de união sexual, faça-se presente os mesmos requisitos já acordados para os casais héteros, a saber, a convivência contínua, pública, notória, duradoura e que constitua uma unidade familiar doméstica. A partir desses pressupostos, para ambas as formas de família, alicerçadas pelo vínculo afetivo entre os conviventes, devem ser garantidas as mesmas prerrogativas consignadas pelo art. 1.723 do Código Civil.

O arguente solicitou a declaração, liminarmente, da validade jurídica das decisões administrativas que equiparam as uniões homoafetivas às uniões estáveis e pediu ainda a suspensão dos processos e dos efeitos de decisões judiciais em sentido oposto.

Em razão do recebimento da ADPF, o relator, Ministro Ayres Britto, solicitou informações aos arguidos: Governador do Estado do Rio de Janeiro, Assembleia Legislativa do Estado do Rio de Janeiro e Tribunais de Justiça dos Estados. Eis a síntese do pedido de informações:

I – Dos Tribunais de Justiça Estaduais informações acerca das ações em trâmite em seu espaço de jurisdição as posições majoritárias em favor da equiparação entre a união estável de casais heteroafetivos e às de traço homoafetivo; e também, as posições majoritárias contra o reconhecimento dos efeitos da união estável à união entre parceiros do mesmo sexo.

II – Da Assembleia Legislativa do Estado do Rio de Janeiro quanto sua manifestação sobre o tema na Lei Estadual 5.034/2007. Que arrola companheiros do mesmo sexo como dependentes para fins previdenciários dos servidores públicos fluminenses.

III – Da Advocacia-Geral[17] da União que se manifestou da seguinte maneira:

Direitos Fundamentais. Uniões homoafetivas. Servidor Público. Normas estaduais que impedem a equiparação do companheiro de relação homoafetiva como familiar. Preliminares. Conhecimento parcial da ação. Falta de pertinência temática e de interesse processual. Mérito: observância dos direitos fundamentais à igualdade e à liberdade. Exigências do bem comum. Direito comparado. Decisões dos Tribunais Superiores. Manifestação pelo conhecimento parcial da ADPF para que, nessa parte, seja julgado procedente, sem pronúncia de nulidade, com interpretação conforme a Constituição [somente dos dispositivos do Decreto-lei estadual n° 200/75], a fim de contemplar os parceiros da união homoafetiva no conceito de família. (BRASIL, 2011, p. 08, grifos do autor).

IV – Da Procuradoria-Geral da República que através de sua Vice Procuradora-Geral, Dra. Deborah Macedo Duprat de Britto Pereira, posicionou-se pela declaração da obrigatoriedade do reconhecimento, como entidade familiar, da união entre pessoas do mesmo sexo. Contanto que atendidos os requisitos exigidos para a constituição da união estável entre homem e mulher.

a) o não reconhecimento da união entre pessoas do mesmo sexo como entidade familiar pela ordem infraconstitucional brasileira priva os parceiros destas entidades de uma série de direitos patrimoniais e extrapatrimoniais, e revela também a falta de reconhecimento estatal do igual valor e respeito devidos à identidade da pessoa homossexual;

b) este não reconhecimento importa em lesão a preceitos fundamentais da Constituição, notadamente aos princípios da dignidade da pessoa humana (art. 1º, inciso III), da vedação à discriminação odiosa (art. 3º, inciso IV), e da igualdade (art. 5º, caput), da liberdade (art. 5º, caput) e da proteção à segurança jurídica;

c) é cabível in casu a Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental, uma vez que a apontada lesão decorre de atos omissivos e comissivos dos Poderes Públicos que não reconhecem esta união, dentre os quais se destaca o posicionamento dominante do Judiciário brasileiro, e inexiste qualquer outro meio processual idôneo para sanar a lesividade;

d) a redação do art. 226, §3º, da Constituição, não é óbice intransponível para o reconhecimento destas entidades familiares, já que não contém qualquer vedação a isto;

e) a interpretação deste artigo deve ser realizada à luz dos princípios fundamentais da República, o que exclui qualquer exegese que aprofunde o preconceito e a exclusão sexual do homossexual;

f) este dispositivo, ao conferir tutela constitucional a formações familiares informais antes desprotegidas, surgiu como instrumento de inclusão social. Seria um contra-senso injustificável interpretá-lo como cláusula de exclusão, na contramão da sua teleologia;

g) é cabível uma interpretação analógica do art. 226, §3º, pautada pelos princípios constitucionais acima referidos, para tutelar como entidade familiar a união entre pessoas do mesmo sexo;

h) diante da falta de norma regulamentadora, esta união deve ser regida pelas regras que disciplinam a união estável entre homem e mulher, aplicadas por analogia. (BRASIL, 2011, p. 09-10).

Além disso, o relator deferiu os pedidos de ingresso na causa de 14 (quatorze) amici curiae[18]. A maioria deles era de entidades copertencentes à causa, de sorte que, em uníssono, com exceção da Confederação Nacional dos Bispos do Brasil, advogaram em favor da tese do autor, pela qual, no mérito, postulavam a aplicação do regime jurídico da união estável às relações homoafetivas.

A Ação Direta de Inconstitucionalidade nº 4.277 foi proposta, subsidiariamente, à ADPF nº 132, pela Procuradoria-Geral da República, com a finalidade de conferir interpretação conforme a Constituição aos incisos II e V do art. 19 e ao art. 33 do Decreto-lei n° 220/75 (Estatuto dos Servidores Públicos do Estado do Rio de Janeiro) e ao art. 1.723 do Código Civil, solicitando, assim, ao Supremo Tribunal Federal, que declare:

[...] “a) que é obrigatório o reconhecimento, no Brasil, da união entre pessoas do mesmo sexo, como entidade familiar, desde que atendidos os requisitos exigidos para a constituição da união estável entre homem e mulher; e b) que os mesmos direitos e deveres dos companheiros nas uniões estáveis estendam-se aos companheiros nas uniões entre pessoas do mesmo sexo.” (BRASIL, 2011, p. 10-11, grifos do autor).

Relata-se que, na ADI se pediu a declaração da aplicação do regime jurídico da união estável às uniões entre pessoas do mesmo sexo. E para isto, fundamentou-se nos mesmos princípios da ADPF nº 132: dignidade da pessoa humana, igualdade, vedação de discriminações odiosas, liberdade e proteção à segurança jurídica e extensão do status de família às relações homoafetivas. Em suma, o Supremo Tribunal Federal:

Ao julgar a ADI nº 4.277/DF em conjunto com a ADPF nº 132/RJ na sessão plenária realizada em 5-5-2011, por unanimidade, acolheu os pedidos formulados em tais demandas, com eficácia erga omnes e efeito vinculante, para afirmar a possibilidade jurídica de haver união estável entre pessoas do mesmo sexo. Conformando o sentido do art. 1.723 do Código Civil à Constituição, entendeu a Corte Suprema dever ser excluído desse dispositivo qualquer significado que impeça o reconhecimento da união entre pessoas do mesmo sexo. Salientou-se no julgamento que o art. 3º, IV, da Lei Maior veda qualquer discriminação em virtude de sexo, raça, cor e que, nesse sentido, ninguém pode ser diminuído ou discriminado em função de sua preferência sexual. (GOMES, 2011, p. 166-167).

Feita a breve historiografia das ações de controle de constitucionalidade, usadas como modelo nesse trabalho, far-se-á a análise dos principais argumentos que fundamentaram as decisões dos Ministros do Supremo Tribunal Federal, destacando-se as teorias gerais e lógicas dos direitos das quais elas, expressa ou tacitamente, partem.

4.1 O voto do Ministro Relator: Aires Britto

O jurista da Corte Constitucional, Aires Britto, em seu voto, decide converter, preliminarmente, a ADPF nº 132/RJ em ADI, para ser julgada em conjunto com a ADI nº 4.277/DF. Ele aceitou também o preenchimento do requisito da pertinência temática, isto é, do interesse de agir processual do Governador do Estado do Rio de Janeiro para a propositura da primeira ação. Além disto, considerou procedente o pedido do autor de usar a técnica de se interpretar o artigo 1.723 do Código Civil em analogia à Constituição.

Feitas essas considerações iniciais, passa-se, então, à análise da estrutura lógica dos principais argumentos que balizaram a sua decisão e se busca apresentar elementos das Escolas Lógicas do direito a partir das quais eles se fundamentam.

A princípio, o ilustre jurista enfrenta a questão de se o termo “homoafetividade” é ou não o mais apropriado para ser usado contemporaneamente, pois outrora, foi utilizado o termo “homossexualismo” e posteriormente “homossexualidade”. Assim, de acordo com Aires Britto:

[...] o termo “homoafetividade”, aqui utilizado para identificar o vínculo de afeto e solidariedade entre os pares ou parceiros do mesmo sexo, não constava dos dicionários da língua portuguesa. O vocábulo foi cunhado pela primeira vez na obra “União Homossexual, o Preconceito e a Justiça”, da autoria da desembargadora aposentada e jurista Maria Berenice Dias, consoante a seguinte passagem: “Há palavras que carregam o estigma do preconceito. Assim, o afeto a pessoa do mesmo sexo chamava-se ‘homossexualismo’. Reconhecida a insuficiência do sufixo ‘ismo’, que está ligado a doença, passou-se a falar em ‘homossexualidade’, que sinaliza um determinado jeito de ser. Tal mudança, no entanto, não foi suficiente para pôr fim ao repúdio social ao amor entre iguais” (Homoafetividade: um novo substantivo). (BRITTO, 2011, p. 05)[19].

Desse modo, a partir dessas premissas, constata-se que o fenômeno da união afetiva e sexual entre pessoas do mesmo sexo é compreendido por três hermenêuticas diferentes, duas antigas e uma nova. A primeira (“homossexualismo”), a vê como patologia; a segunda (“homossexualidade”), como um modo de ser, mas ainda revestida de preconceitos; e a terceira (“homoafetividade”), fruto da mentalidade contemporânea, percebe-a sem preconceitos e como mais uma das variadas formas de expressão da sexualidade e do amor humanos.

A contemporaneidade da expressão “homoafetividade” é ainda constatada, segundo o Ministro do Supremo Tribunal Federal, em virtude de ser notória a presença marcante do mesmo nos dicionários, pois estes são referências de medida da evolução de um determinado referencial linguístico e cultural.

Sucede que não foi somente a comunidade dos juristas, defensora dos direitos subjetivos de natureza homoafetiva, que popularizou o novo substantivo, porque sua utilização corriqueira já deita raízes nos dicionários da língua portuguesa, a exemplo do “Dicionário Aurélio”. Verbete de que me valho no presente voto para dar conta, ora do enlace por amor, por afeto, por intenso carinho entre pessoas do mesmo sexo, ora da união erótica ou por atração física entre esses mesmos pares de seres humanos. (BRITTO, 2011, p. 05-06).

Assim sendo, a primeira parte da fundamentação de sua decisão está enraizada, preponderantemente, na perspectiva da Escola Vitalista, uma vez que, segundo a mentalidade do vitalismo jurídico, o direito como forma de vida objetivada tem que acompanhar a vida autêntica, a existência real composta por atos, projetos e costumes circunscritos por uma cultura. Ora, a nova mentalidade, não permite mais que se chame, juridicamente e com razoabilidade, o fenômeno da união entre pessoas do mesmo sexo de homossexualismo ou homossexualidade, mas sim de homoafetividade.

Depois disso, o relator prossegue no itinerário argumentativo tentando definir o que mais caracteriza o ser humano e para isso se apoia na antropologia filosófica. Esta definição, do ponto de vista da persuasão racional, é importante para se naturalizar a dimensão pluralista da expressão do amor.

O ser humano é, essencialmente, razão, vontade ou amor? O jurista opta pelo terceiro atributo ontológico ao descrever a união homoafetiva nestes termos:

Trata-se, isto sim, de uma união essencialmente afetiva ou amorosa, a implicar um voluntário navegar emparceirado por um rio sem margens fixas e sem outra embocadura que não seja a confiante entrega de um coração aberto a outro. E não compreender isso talvez comprometa por modo irremediável a própria capacidade de interpretar os institutos jurídicos a pouco invocados, pois – é Platão quem diz: “quem não começa pelo amor nunca saberá o que é filosofia”. É a categoria do afeto como pré-condição do pensamento, o que levou Max Scheler a também ajuizar que “O ser humano, antes de um ser pensante ou volitivo, é um ser amante.” (BRITTO, 2011, p. 06, grifos do autor).

Dessa maneira, a concepção tradicional e cartesiana acerca da essência humana (“penso, logo existo”), segundo a qual o homem é primária e preponderantemente um animal racional, é abandonada, de sorte que, nesse momento, ele passa a ser compreendido, previamente, como um ser amante (“amo, logo existo”).

Por isso, o objeto para o qual ele orienta o seu amor, seja ele eros (sexual) ou filia (afeto), define, ontologicamente, a sua personalidade. Em suma, no processo de formação da personalidade humana, o amor precede a razão e a vontade, de forma que o Estado, ao trazer para si a missão de propiciar elementos concretos para o desenvolvimento das potencialidades humanas, tem que oferecer as condições fundamentais para que o homem e a mulher vivam a sua condição primária de “ser-amante” com dignidade.

O Ministro sergipano também recorre, dentre pensadores como Descartes (Filosofia), Fernando Pessoa (Literatura), Chico Xavier (Religião), especialmente a Nietzsche e Hegel, no âmbito da antropologia filosófica, e a Iung, na dimensão da Psicologia, para desconstruir de vez qualquer pretensão de que a homossexualidade tenha causa patológica.

Assim, ele expressa-se ao tentar definir a livre disposição da sexualidade:

[...] Um tipo de liberdade que é, em si e por si, um autêntico bem de personalidade. Um dado elementar da criatura humana em sua intrínseca dignidade de universo a parte. Algo já transposto ou catapultado para a inviolável esfera da autonomia da vontade do indivíduo, na medida em que sentido e praticado como elemento da compostura anímica e psicofísica (volta-se a dizer) do ser humano em busca de sua plenitude existencial. Que termina sendo uma busca de si mesmo, na luminosa trilha do “Torna-te quem tu és”, tão bem teoricamente explorada por Nietzsche. Uma busca da irrepetível identidade individual que, transposta para o plano da aventura humana como um todo, levou Hegel a sentenciar que a evolução do espírito do tempo se define como um caminhar na direção do aperfeiçoamento de si mesmo (cito de memória). Afinal, a sexualidade, no seu notório transitar do prazer puramente físico para os colmos olímpicos da extasia amorosa, se põe como um plus ou superávit de vida. Não enquanto um minus ou déficit existencial. Corresponde a um ganho, um bônus, um regalo da natureza, e não a uma subtração, um ônus, um peso ou estorvo, menos ainda a uma reprimenda dos deuses em estado de fúria ou alucinada retaliação perante o gênero humano. No particular, as barreiras artificiais e raivosamente erguidas contra ele (sexo ou aparelho sexual) corresponde a um derramamento de bílis que só faz embaraçar os nossos neurônios. Barreiras que se põem como pequenez mental dos homens, e não como exigência dos deuses do Olimpo, menos ainda da natureza. O que, por certo, inspirou Jung (Carl Gustav) a enunciar que: “A homossexualidade, porém, é entendida não como anomalia patológica, mas como identidade psíquica e, portanto, como equilíbrio específico que o sujeito encontra no seu processo de individuação”. (BRITTO, 2011, p. 12-13, grifos do autor).

O jurista do STF também mostra estar influenciado pelas perspectivas das Escolas Histórica, Egológica e do Direito Livre ao defender que, na labuta interpretativa, a definição de família, deve levar em consideração os costumes atuais do povo, a conduta real dos indivíduos, a supremacia do direito material sobre o direito positivo.

Então, ele proclama, depois de analisar todos os artigos da Constituição Federal, pelos quais, o ordenamento jurídico, protege a família:

[...] Mas, família em seu coloquial ou proverbial significado de núcleo doméstico, pouco importando se formal ou informalmente constituída, ou se integrada por casais heterossexuais ou por pessoas assumidamente homoafetivas. Logo, família como fato cultural e espiritual ao mesmo tempo (não necessariamente como fato biológico).

[...] Deveras, mais que um singelo instituto de Direito em sentido objetivo, a família é uma complexa instituição em sentido subjetivo.

Ora bem, é desse anímico e cultural conceito de família que se orna a cabeça do art. 226 da Constituição. Donde a sua literal categorização com “base da sociedade”. E assim normada como figura central ou verdadeiro continente para tudo o mais, ela, família, é que deve servir de norte para a interpretação dos dispositivos em que o capítulo VII se desdobra [...]. Não o inverso. Artigos que tem por objeto os institutos do casamento civil, da união estável, do planejamento familiar, da adoção, etc., todos eles somente apreendidos na inteireza da respectiva compostura e funcionalidade na medida em que imersos no continente (reitere-se o uso da metáfora) em que a instituição da família consiste. (BRITTO, 2011, 20-23).

Por fim, o Ministro insiste que se abandone uma interpretação literal e isolada do § 3º, do art. 226 da Constituição Federal, bem como do art. 1.723 do Código Civil, a fim de que, por meio de uma interpretação sistemática e teleológica, possa-se se aplicar analogicamente o regime jurídico da união estável às pessoas unidas homoafetivamente[20].

No discurso lógico do Ministro, é flagrante a presença de traços das Escolas: dos Pandectistas (que valoriza o método sistemático de interpretação) e Teleológica (que visualiza a finalidade da norma).

Em virtude disso, ele aduz que a Constituição veda: 1º) o preconceito em razão do sexo ou da natural diferença entre a mulher e o homem; 2º) a interferência repressora do Estado quanto à liberdade sobre o uso concreto da sexualidade, de sorte a ser proibido, simultaneamente, discriminar um ser humano em virtude de pertencer à espécie masculina ou feminina, em função de sua preferência sexual, ou em face de sua escolha de fazer ou não uso da sua sexualidade; 3º) a lesão aos direitos fundamentais à intimidade e vida privada, materializados, no caso, no factual emprego da sexualidade humana; 4º) qualquer dificuldade jurídica de realização do princípio da igualdade, o qual serve de norte das relações entre os membros da espécie humana no que tange as suas tendências ou preferências sexuais, salvaguardando e não embaraçando, a autonomia da vontade do indivíduo; 5º) a desigualdade entre os casais heteroafetivos e pares homoafetivos no exercício do direito subjetivo de formação de uma família, que se fenomeniza a partir das notas factuais da visibilidade, continuidade e durabilidade; 6º) o estabelecimento de qualquer noção de hierarquia entre as espécies de entidade familiar formadas por casamento civil, união estável ou pela família monoparental; 7º) o entendimento preconceituoso de qualquer distinção entre a capacidade de adotar entre os homoafetivos e heteroafetivos.

4.2 O voto do Ministro: Luiz Fux

O Ministro Luiz Fux, em seu voto, também decide converter, preliminarmente, a ADPF nº 132/RJ em ADI, para ser apensada aos autos da ADI nº 4.277/DF e ser julgada junto com ela. Concordou, outrossim, que houve o preenchimento do requisito da pertinência temática, isto é, do interesse de agir processual do Governador do Estado do Rio de Janeiro para a propositura da primeira ação e considerou o fato de que a Procuradora Geral da República é legitimada universal e, por isso, faz-se desnecessário comprovar o seu interesse processual de agir.

Além disso, considerou procedente o pedido subsidiário do autor de usar a técnica de se interpretar o artigo 1.723 do Código Civil equipolente à Constituição.

Feitas essas observações, destacam-se os principais argumentos emitidos pelo jurista para fundamentar a sua decisão e as Escolas de Lógica Jurídica que o influenciaram.

A primeira premissa utilizada pelo Ministro da Corte Constitucional é a de que não reconhecer o direito fundamental das pessoas homoafetivas de unirem-se e formarem uma entidade familiar é lesar o direito de personalidade de quem tem uma orientação sexual minoritária. Ele alega isso nestes termos:

No caso em apreço, trata-se de questão concernente a violação de direitos fundamentais inerentes à personalidade dos indivíduos que vivem sob orientação sexual minoritária, idôneos a autorizar o manejo da ADI pelo Estado do Rio de Janeiro, por intermédio do Exmo. Sr. Governador.

[...] a homossexualidade é um fato da vida. Há indivíduos que são homossexuais e, na formulação e na realização de seus modos e projetos de vida, constituem relações afetivas e de assistência recíproca, em convívio contínuo e duradouro – mas, por questões de foro pessoal ou para evitar a discriminação, nem sempre público – com pessoas do mesmo sexo, vivendo, pois, em orientação sexual diversa daquela em que vive a maioria da população. (FUX, 2011, p. 07-08).

Nesse ponto, percebem-se claramente as influências das Escolas da Jurisprudência dos Interesses (que se preocupa com questão de qual interesse e de que grupo está sendo protegido com a edição da norma) e da Hermenêutica Crítica Alternativa (que tem como um de seus focos o direito direcionado para a proteção de minorias).

O jurista carioca, no percurso argumentativo, aceita as seguintes teses: 1ª) a homossexualidade faz parte do conjunto de facticidades da vida; 2ª) a homossexualidade é uma orientação e não uma opção sexual. Por isso, é um traço da personalidade; 3ª) a homossexualidade não é uma ideologia ou uma crença; 4ª) os homossexuais constituem entre si relações contínuas e duradouras de afeto e assistência recíprocas, com o propósito de compartilhar meios e projetos de vida; 5ª) não há qualquer inconstitucionalidade ou ilegalidade no estabelecimento de uniões homoafetivas. Não existe no direito brasileiro, vedação às uniões homoafetivas, haja vista, sobretudo, a reserva de lei instituída pelo art. 5º, II[21], da Constituição Federal para vedação de quaisquer condutas aos indivíduos.

A quinta tese, do ponto de vista jurídico, é a mais importante e tem característica evidente do raciocínio lógico estabelecido pelo Formalismo de Hans Kelsen, pois, segundo o pensador austríaco, tudo o que não está juridicamente proibido, está permitido pelo ordenamento e, por conseguinte, juridicamente determinado.

É nesse sentido que não é razoável que se adote a posição doutrinária antiga dos civilistas de que o casamento de pessoas do mesmo sexo tratar-se-ia de exemplo de ato jurídico inexistente.

Depois, o Ministro busca responder ao seguinte problema: se é obvio que as uniões homoafetivas encontram amparo na Constituição, então qual é o tratamento jurídico, exato e adequado, de modo constitucional, a ser conferido à união homoafetiva?

Ao colocar a problemática da especificidade do problema jurídico das uniões homoafetivas, o Ministro, sutilmente, deixa a sua argumentação ser tocada pela lógica da “Tópica de Theodor Viehweg”, pois, o juiz, nesta estrutura de pensamento, tem a possibilidade de resolver, caso a caso, o problema jurídico que lhe aparece, desde que leve em consideração suas dimensões temporais, espaciais e circunstanciais.

De acordo com o ilustre jurista, a união homoafetiva goza de todas as características factuais de toda e qualquer espécie de entidade familiar, mas falta-lhe o reconhecimento jurídico, meta dos autores da ação de controle de constitucionalidade. Assim, discursa:

O que, então, caracteriza, do ponto de vista ontológico, uma família? [...]

O que faz uma família é, sobretudo, o amor – não a mera afeição entre os indivíduos, mas o verdadeiro amor familiar, que estabelece relações de afeto, assistência e suporte recíprocos entre os integrantes do grupo. O que faz uma família é a comunhão, a existência de um projeto coletivo, permanente e duradouro de vida em comum. O que faz uma família é a identidade, a certeza de seus integrantes quanto a existência de um vínculo inquebrantável que os une e que os identifica uns perante os outros e cada um deles perante a sociedade. Presente esses três requisitos, tem-se uma família, incidindo, com isso, a respectiva proteção constitucional. (FUX, 2011, p. 12-13).

Por conseguinte, como as uniões homoafetivas gozam das mesmas características das uniões heteroafetivas, a saber: o amor, a comunhão e a identidade, qualquer pretensão de estabelecer diferenças legais entre eles não resiste ao “teste da isonomia”, de fato que, o tratamento constitucional adequado é aquele que concede à união entre pessoas do mesmo sexo o mesmo tratamento dispensado às uniões formadas por pessoas de sexos opostos.

Para fundamentar essa opinião, o autor recorre aos pensamentos, dentre outros autores, de Roberty Alexy (para quem “inexistindo razão suficiente para tratamento jurídico diferenciado, impõe-se o tratamento idêntico”), Ronald Dworkin (para o qual “todos os indivíduos devem ser tratados com igual consideração e respeito”) e aos valores constitucionais da igualdade, fraternidade, pluralismo, ausência de preconceitos e de discriminação de qualquer natureza presentes no preâmbulo[22] e no inciso IV[23], do art. 3º, e caput[24] do art. 5º, todos da Constituição Federal.

Desse modo, o jurista aproxima-se da concepção formal de justiça proposta pela “Nova Retórica” de Perelman, para a qual casos essencialmente semelhantes devem ser tratados de modo juridicamente equivalentes.

Ao prosseguir o seu raciocínio, o Ministro persiste ainda na importância do reconhecimento positivo das uniões homoafetivas como juridicamente legítimas, uma vez que isso tem como efeitos: o respeito e a amizade à diferença, a segurança jurídica, a certeza e previsibilidade das consequências jurídicas dessas uniões, o gozo certo de benefícios previdenciários, etc.

Além disso, ele defende que esta é a melhor interpretação a ser dada às normas constitucionais, uma vez que otimiza a concretização do telos constitucional e a moldura do ordenamento jurídico abre-se para regular as mudanças das relações fáticas.

Por fim, ele defende uma interpretação sistemática da Constituição, de modo a se evitar uma interpretação restritiva do art. 226, § 3º[25], da Constituição e do art.1.723 do Código Civil, de maneira que fica clara a influência, neste ponto, das Escolas: dos “Pandectistas” (que valoriza o método sistemático de interpretação) e “Teleológica” (que visualiza a finalidade da norma).

4.3 O voto da Ministra: Cármen Lúcia

A Ministra Cármen Lúcia, seguindo os votos dos demais membros da Corte Constitucional, também, julga procedentes os pedidos dos autores e decide que o art. 1723 do Código Civil seja interpretado proporcionalmente à Constituição, a fim de que as uniões de pessoas do mesmo sexo, consideradas entidades familiares, sejam salvaguardadas dos mesmos direitos e deveres das uniões estáveis de pessoas de sexos opostos.

Ante o exposto, acentuam-se os principais argumentos emitidos pela jurista para fundamentar a sua decisão e as Escolas de Lógica Jurídica que a influenciaram.

A princípio, Cármen Lúcia observa que a busca de conquista e de efetivação de direitos pelos homossexuais está associada à luta pelos direitos em geral, especialmente pelos direitos de minorias. Em suas palavras:

Observo, inicialmente, que a conquista de direitos é tão difícil quanto curiosa. A luta pelos direitos é árdua para a geração que cuida de batalhar pela sua aquisição. E parece uma obviedade, quase uma banalidade, para as gerações que os vivem como realidades conquistadas e consolidadas.

Bobbio afirmou, na década de oitenta do séc. XX, que a época não era de conquistar novos direitos, mas tornar efetivos os direitos conquistados.

Este julgamento demonstra que ainda há uma longa trilha, que é permanente na história humana, para a conquista de novos direitos. A violência continua, minorias são violentadas, discriminações persistem. Veredas há a serem palmilhadas, picadas novas há a serem abertas para o caminhar mais confortável do ser humano. (LÚCIA, 2011, p. 01).

Ao apontar os temas acerca da luta pelos direitos e da busca do reconhecimento jurídico das pretensões das minorias, fica evidente as presenças das linhas de raciocínio das Escolas de Lógicas Jurídicas denominadas de “Teleológica do Direito” (para a qual o direito é resultado de luta e de guerra) e de “Hermenêutica Crítica Alternativa” (para quem o direito deve estar também a serviço das minorias em prol da efetiva realização da justiça social).

A Ministra prossegue, no desenvolvimento de sua argumentação, alegando que o art. 1.723 do Código Civil deve ser interpretado concordante à Constituição, em virtude de sua conexão com os princípios e direitos fundamentais, a fim de que se evite uma interpretação literal, o que excluiria dos direitos próprios da união estável aqueles que escolhem viver em uniões homoafetivas.

Ela defende ainda a tese segundo a qual, em face de que o art. 1.723 do Código Civil e a repetição literal do § 3º, do art. 226 da Constituição Federal, o próprio parágrafo constitucional deve ser interpretado de forma a incluir as uniões homoafetivas em seu rol de possibilidades de formação de entidades familiares.

Há nessa concepção uma nítida aproximação das Escolas dos “Pandectistas” (que destaca a importância do método sistemático de interpretação) e Escola Teleológica (que visualiza a finalidade da norma).

A jurista mineira avança na trilha argumentativa, e afirma que o direito a escolher a forma de exercício da própria sexualidade, com a segurança jurídica garantida pelo Estado de Direito, está diretamente associado à concretização do direito fundamental à liberdade. Por isso, ao continuar seus comentários sobre o § 3º, do art. 226 da Constituição, assegura:

Mas é exato que a referência expressa a homem e mulher garante a eles, às expressas, o reconhecimento da união estável como entidade familiar, como os consectários jurídicos próprios. Não significa, a meu ver, contudo, que se não for um homem e uma mulher, a união não possa vir a ser também fonte de iguais direitos. Bem ao contrário, o que se extrai dos princípios constitucionais é que todos, homens e mulheres, qualquer que seja a escolha do seu modo de vida, têm os seus direitos fundamentais à liberdade, a ser tratado com igualdade em sua humanidade, ao respeito, à intimidade devidamente garantidos.

Para ser digno há que ser livre. E a liberdade perpassa a vida de uma pessoa em todos os seus aspectos, aí incluído o da liberdade de escolha sexual, sentimental e de convivência com outrem. (LÚCIA, 2001, p. 06).

Ao concluir, ela, ainda, na esteira de uma interpretação sistemática e principiológica, aduz que o reconhecimento jurídico da união homoafetiva como entidade familiar é legítimo, uma vez que possibilita a efetividade de outros princípios e objetivos constitucionais, tais como: “a construção de uma sociedade justa, livre e solidária” (inciso I, do art. 3º, da CF/88); “a promoção do bem de todos, sem preconceito de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de discriminação” (inciso IV, do art. 3º, da CF/88); “a igualdade de cidadania” (inciso II, do art. 1º, da CF/88), “a dignidade humana e jurídica” (inciso I, do art. 1º da CF/88), “o direito à intimidade” (inciso X, do art. 5º, da CF/88) e “o pluralismo político e social” (inciso V, do art. 1º, da CF/88).

4.4 O voto do Ministro: Ricardo Lewandowski

O Ministro da Suprema Corte, Ricardo Lewandowski, também entendeu procedente os pedidos dos autores das ações de controle de constitucionalidade de reconhecimento jurídico das uniões homoafetivas, porém, com algumas ressalvas, que se desvelarão nos principais fundamentos de sua argumentação expostos abaixo.

No início, o jurista carioca salienta a importância de se determinar o conceito de família presente no caput do art. 226[26] da Carta Magna vigente. Para isto, ele compara o texto da Constituição atual, quando trata da noção de família, com os textos das Constituições revogadas. E assim o faz:

De início, cumpre fazer uma resenha da noção de família abrigada nas Constituições anteriores à presentemente em vigor, registrando, desde logo, que todas que trataram do tema vinculavam a ideia de família ao instituto do casamento. Senão vejamos:

i) Constituição de 1937: “Art. 124. A família, constituída pelo casamento indissolúvel, está sob a proteção especial do Estado. Às famílias numerosas serão atribuídas compensações nas proporções de seus encargos.”

ii) Constituição de 1946: “Art. 163. A família é constituída pelo casamento de vínculo indissolúvel e terá direito à proteção especial do Estado.”

iii) Constituição de 1967: “Art. 167. A família é constituída pelo casamento e terá direito à proteção dos Podêres Públicos”.

iv) Emenda Constitucional 1/1969: “Art. 175. A família é constituída pelo casamento e terá direito à proteção dos Podêres Públicos” (grifos meus).

A vigente Carta Republicana, todavia, não estabelece essa vinculação com o casamento para definir o conceito de família tal como faziam as anteriores.

Na verdade, a partir de uma primeira leitura do texto magno, é possível identificar, pelo menos, três tipos de família, a saber: a constituída pelo casamento, a configurada pela união estável e, ainda, a que se denomina monoparental. (LEWANDOWSKI, 2011, p. 01-02, grifos do autor).

Ao superar o problema da definição jurídica de família a partir dos parâmetros constitucionais hodiernos, Ricardo Lewandowski, passa a enfrentar a seguinte questão: é possível enquadrar as uniões homoafetivas em uma dessas três espécies de família definidas pela Constituição e pela legislação infraconstitucional?

A resposta é negativa, pois até mesmo a possibilidade de aplicar a técnica de interpretação conforme a intenção do legislador, tão cara à “Escola dos Pandectistas”, parece não resistir a uma análise mais aprofundada do Diário da Assembleia Nacional Constituinte[27]. Assim, ele arremata:

Verifico, ademais, que, nas discussões travadas na Assembléia Constituinte a questão do gênero da união estável foi amplamente debatida, quando se votou o dispositivo em tela, concluindo-se, de modo insofismável, que a união estável abrange, única e exclusivamente, pessoas de sexo distinto. Confira abaixo:

O SR. CONSTITUINTE GASTONE RIGHI: - Finalmente a emenda do constituinte Roberto Augusto. É o art. 225 (sic), § 3º. Este parágrafo prevê: ‘Para efeito da proteção do Estado, é reconhecida a união estável entre homem e mulher como entidade familiar, devendo a lei facilitar a sua conversão em casamento’.

Tem-se prestado a amplos comentários jocosos, seja pela imprensa, seja pela televisão, com manifestação inclusive de grupos gaysés do País, porque com a ausência do artigo poder-se-ia estar entendendo que a união poderia ser feita, inclusive, entre pessoas do mesmo sexo. Isto foi divulgado, por noticiário de televisão, no showástico, nas revistas e jornais. O bispo Roberto Augusto, autor deste parágrafo, teve a preocupação de deixar bem definido, e se no §º: “ ‘Para efeito de proteção do Estado, é reconhecida a união estável entre o homem e a mulher como entidade familiar, devendo a lei facilitar sua conversão em casamento’. Claro que nunca foi outro o desiderato desta Assembléia, mas, para se evitar toda e qualquer malévola interpretação deste austero texto constitucional, recomendo a V. Exa. que me permitam aprovar pelo menos uma emenda.

O SR. CONSTITUINTE ROBERTO FREIRE: - Isso é coação moral irresistível.

O SR. PRESIDENTE (ULYSSES GUIMARÃES): - Concedo a palavra ao relator.

O SR. CONSTITUINTE GERSON PERES: - A Inglaterra já casa homem com homem a muito tempo.

O SR. RELATOR (BERNARDO CABRAL): - Sr. Presidente, estou de acordo.

O SR. PRESIDENTE (ULYSSES GUIMARÃES) - Todos os que estiverem de acordo permaneçam como estão. (Pausa). Aprovada (Palmas).” (LEWANDOWSKI, 2011, p. 04-05, grifos do autor).

Portanto, ressalta-se que os constituintes da Constituição vigente excluíram, intencionalmente, a união entre pessoas do mesmo sexo do conceito jurídico de união estável, de maneira que, por definição legal, a união estável apenas abarca pessoas de sexos opostos que se unem por laços de afeto.

Por isso, o Ministro entende que, sendo fiel ao princípio da separação dos poderes, umas das cláusulas de eternidade, e para não forçar o texto constitucional a dizer o que ele não diz, é necessário se inferir que a união homoafetiva, embora encontre guarida nos princípios e direitos fundamentais, terá que ser classificada a partir de um quarto gênero de entidade familiar, definido jurisprudencialmente.

A labuta jurisprudencial terá que encontrar o nome jurídico da quarta espécie de família através da técnica de interpretação sistemática, pela qual, se deve dar concretude aos princípios já postos em destaque pelos outros ministros: o da dignidade da pessoa humana, o da igualdade, o da liberdade, o da preservação da intimidade e o da não discriminação por orientação sexual.

Essa diligência em relação ao texto constitucional, o profundo respeito à separação dos poderes e à forte necessidade que o jurista sente de que, diante do vácuo jurídico sobre a definição legal da união homoafetiva, a jurisprudência o defina, pelo menos até o momento em que o legislador decida qual nome atribuir a esse fato da vida, demonstra que no discurso do Ministro estão presentes as estruturas lógicas de pensamento das Escolas da “Exegese” (para a qual são relevantes os métodos sistemático e gramatical e o princípio da separação dos poderes), “Pandectistas” (que valoriza o método sistemático de interpretação) e “Analítica” (para quem os costumes, hábitos e fatos reiterados da vida, são transformados em lei positiva pela jurisprudência).

O Ministro sugere que ao se aplicar o instrumento metodológico da integração e por meio do recurso a analogia, nomeie-se a união homoafetiva de “união homoafetiva estável”. Assim, ele elucida que:

Convém esclarecer que não se está, aqui, a reconhecer uma “união estável homoafetiva”, por interpretação extensiva do § 3º do art. 226, mas uma “união homoafetiva estável”, mediante um processo de integração analógica. Quer dizer, desvela-se, por esse método, outra espécie de entidade familiar, que se coloca ao lado daquelas formadas pelo casamento, pela união estável entre um homem e uma mulher e por qualquer dos pais e seus descendentes, explicitadas no texto constitucional.

Cuida-se, enfim, a meu juízo, de uma entidade familiar que, embora não esteja expressamente prevista no art. 226, precisa ter a sua existência reconhecida pelo Direito, tendo em conta a ocorrência de uma lacuna legal que impede que o Estado, exercendo o indeclinável papel de protetor dos grupos minoritários, coloque sob seu amparo as relações afetivas públicas e duradouras que se formam entre pessoas do mesmo sexo. (LEWANDOWSKI, 2011, p. 12).

A abordagem da “Hermenêutica Alternativa” também transita, sutilmente, nos argumentos do Ministro, ao definir como um dos papéis do Estado, a proteção das minorias.

Convém ressaltar que o Ministro entende, ao final do seu voto, que uma vez reconhecida a união homoafetiva como entidade familiar, que se aplique a ela, analogicamente, as regras do instituto jurídico que lhe é mais próximo, a união estável heterossexual, mas apenas nos aspectos em que são semelhantes, até que o legislador regulamente, de forma expressa, tais relações.

4.5 O voto do Ministro: Joaquim Barbosa

Acompanhando o entendimento dos demais ministros, em voto com fundamento sintético, Joaquim Barbosa também julga procedentes os pedidos dos autores e decide que sobre o art. 1723 do Código Civil incida a técnica de interpretação conforme a Constituição, a fim de que as uniões de pessoas do mesmo sexo, consideradas entidades familiares sejam salvaguardadas dos mesmos direitos e deveres das uniões estáveis de pessoas de sexos opostos.

Dito isso, destaca-se, doravante, os principais argumentos emitidos pelo jurista para fundamentar a sua decisão e as Escolas de Lógica Jurídica que o influenciaram.

A princípio, o Ministro, faz uso de um discurso claramente oriundo da “Escola Vitalista” (que denuncia o descompasso entre a vida autêntica, a existência real, e a vida objetivada, a norma jurídica). Em suas palavras:

Inicialmente, gostaria de ressaltar que estamos diante de uma situação que demonstra claramente o descompasso entre o mundo dos fatos e o universo do Direito. Visivelmente nos confrontamos aqui com uma situação em que o Direito não foi capaz de acompanhar as profundas e estruturais mudanças sociais, não apenas entre nós brasileiros, mas em escala global. É precisamente nessas situações que se agiganta o papel das Cortes constitucionais, segundo o conhecido jurista e pensador israelense Aaron Barak. Para Barak, as Cortes Supremas e Constitucionais devem fazer a ponte entre o mundo do Direito e a Sociedade, isto é, cumpre-lhes fazer o que ele mesmo qualifica como BRIDGING THE GAP BETWEEN LAW AND SOCIETY. (BARBOSA, 2011, p. 01, grifo do autor).

A posteriori, o jurista mineiro enfrenta a questão de se o silêncio do legislador constituinte acerca do enquadramento jurídico da união homoafetiva representa indiferença, desprezo ou hostilidade ao tema.

Ele responde, recorrendo ao argumento da “intenção do legislador” (cara à “Escola dos Pandectistas”), que não, pois quando a Carta Magna prevê que os direitos fundamentais não se encerram naqueles expressamente por ela listados[28], há no sistema jurídico o acolhimento do reconhecimento das uniões homoafetivas.

Barbosa prossegue, na sua linha de raciocínio, com a defesa de que o reconhecimento das uniões homoafetivas como instituto jurídico também está sedimento no Multiculturalismo e pensamento diferencialista.

E conclui com o argumento de que o reconhecimento da união homoafetiva não se encontra no art. 226, § 3º, da Constituição, pois este se destina a regulamentar exclusivamente as uniões entre homem e mulher não envolta dos rigores formais do casamento, mas sim em todos os dispositivos constitucionais que trazem em seu bojo normas autoaplicáveis[29], a saber: a proteção aos direitos fundamentais, aos princípios da dignidade da pessoa humana, igualdade e não discriminação.

Demonstrando-se, então, a influência das Escolas que destacam o método sistemático de interpretação (como é o caso, por exemplo, dos “Pandectistas”).

4.6 O voto do Ministro: Gilmar Mendes

A fundamentação do voto do Ministro Gilmar Mendes é a mais longa do julgado. Por esta razão, apenas comentar-se-á acerca das partes mais importantes da sua decisão e serão destacadas as Escolas Jurídicas que influenciam o seu discurso.

O Ministro mato-grossense também julga procedentes os pedidos dos autores, mas faz questão de salientar que por fundamento diverso do relator e dos demais ministros que o acompanharam na íntegra.

A princípio, seguindo a linha de raciocínio do Ministro Lewandowski, Gilmar Mendes salienta a sua estranheza quanto à possibilidade de se aplicar a técnica de interpretação em consonância com a Constituição ao art. 1723 do Código Civil, pois este nada mais é do que uma reprodução da norma Constitucional que prevê a união estável entre homem e mulher. De acordo com as suas palavras:

Tal como eu já tinha falado inicialmente, em aparte ao voto da Ministra Cármen Lúcia, vi com alguma preocupação a formulação deste pedido de interpretação conforme, porque em princípio, a meu ver, o texto legal não fazia nada mais do que reproduzir a norma constitucional que prevê a união estável entre homem e mulher – tal como já foi destacado agora, de forma bastante precisa, no voto do Ministro Lewandowski –, fazendo, então, a genealogia da criação do próprio modelo jurídico que está no texto constitucional.

De modo que, diante da não equivocidade, da não ambiguidade do próprio texto, pareceria muito estranha a intervenção do Tribunal para fazer essa segunda subleitura do texto, que realmente faz uma alteração substancial [...]. (MENDES, 2011, p. 01).

Constata-se que é preciso ter cuidado com a aplicação da técnica de interpretação conforme a Constituição, visto que ela não pode ser utilizada de modo arbitrário, de forma a causar uma lesão irreparável ao verdadeiro sentido do texto constitucional ou a real intenção do legislador ao elaborar a norma. Por isto, é indispensável que se respeite os limites e as regras de aplicação da técnica hermenêutica. Destarte:

Segundo a jurisprudência do Supremo Tribunal Federal, porém, a interpretação conforme à Constituição conhece limites. Eles resultam tanto da expressão literal da lei, quanto da chamada vontade do legislador. A interpretação conforme à Constituição, por isso, apenas é admissível se não configurar violência contra a expressão literal do texto (Bittencourt, Carlos Alberto Lucio. O controle jurisdicional da constitucionalidade das leis. 2. ed. Rio de Janeiro, p. 95) e se não alterar o significado do texto normativo, com mudança radical da própria concepção original do legislador (ADIn 2405-RS, Rel. Min. Carlos Britto, DJ 17.02.2006; ADIn 1344-ES, Rel. Min. Joaquim Barbosa, DJ 19.04.2006; RP 1417-DF, Rel. Min. Moreira Alves, DJ 15.04.1988; ADIn 3046-SP, Rel. Min. Sepúlveda Pertence, DJ 28.05.2004). (MENDES, 2011, p. 04).

A preocupação do Ministro com a construção de uma justificativa racional para uma decisão que irá ocasionar consequências para todo o sistema jurídico se inspira nos pressupostos da “Nova Retórica” de Perelman e na lógica do razoável da “Escola Vitalista”. E o seu entendimento do texto constitucional como o alicerce do qual se parte uma hermenêutica racional origina-se dos pressupostos do “Formalismo de Hans Kelsen”.

Contudo, o Ministro reconhece que o Tribunal Constitucional precisa fazer uma interpretação, pela qual se vede que a norma que regulamenta a união estável seja usada para fundamentar decisões administrativas ou judiciais que neguem direitos sucessórios ou previdenciários aqueles que se encontram em estado de união homoafetiva.

Assim, embora o § 3º, do art. 226 da Constituição Federal e o art. 1.723 do Código Civil, quando conceituam o instituto da união estável, refiram-se, realmente, apenas à união entre homem e mulher, os dois dispositivos não podem ser usados de modo isolado de toda a ordem constitucional, a ponto de servirem de justificativas para a negação de direitos às pessoas unidas homoafetivamente. É neste sentido, que aduz o ilustre jurista:

Talvez o único argumento que pudesse justificar a tese da aplicação ao caso da técnica de interpretação conforme à Constituição seria a invocação daquela previsão normativa de união estável entre homem e mulher como óbice ao reconhecimento da união entre pessoas do mesmo sexo, como uma proibição daquele dispositivo.

E, de fato, é com base nesse argumento que entendo pertinente o pleito trazido nas ações diretas de inconstitucionalidade. (MENDES, 2011, p. 16).

O jurista prossegue afirmando que as uniões homoafetivas são fatos da vida e que estão relacionadas aos direitos de personalidade, pois, uma vez que a orientação sexual é um traço da personalidade, a sua vivência, com proteção jurídica, implica que o indivíduo tem plena liberdade de dar prosseguimento ao desenvolvimento de sua personalidade.

Para isso, existem os pressupostos jurídicos para o seu reconhecimento, o qual trará segurança jurídica. Além disto, imbuído do espírito da Escola “Hermenêutica Alternativa do Direito”, ele afirma que se trata, no caso, do reconhecimento de direito de minorias e, portanto, de direitos fundamentais básicos.

E assim, ao fazer também uma interpretação sistemática, cara à Escola dos “Pandectistas”, o Ministro encontra o reconhecimento jurídico dessas uniões como entidades familiares em toda a ordem constitucional. Em consequência disto, ele declara:

Claro que isso não nos impede de identificar esse direito no nosso sistema, a partir, sobretudo, do direito de liberdade e em concordância com outros princípios e garantias constitucionais.

Nesse sentido, é possível destacar, dentre outros: os fundamentos da cidadania e da dignidade da pessoa humana (art. 1º, II e III); os objetivos fundamentais de se construir uma sociedade livre, justa e solidária e de se promover o bem de todos, sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de discriminação (art. 3º, I e IV); a prevalência dos direitos humanos (art. 4º, II); a igualdade de todos perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantida a inviolabilidade do direito à liberdade e à igualdade (art. 5º, caput); a punição a qualquer discriminação atentatória dos direitos e liberdades fundamentais (art. 5º, XLI); bem como a aplicabilidade imediata dos direitos fundamentais (art. 5º, §1º) e a não exclusão de outros direitos e garantias decorrentes do regime constitucional e dos princípios por ela adotados ou incorporados por tratados internacionais (art. 5º, §2º). (MENDES, 2011, p. 29).

Conclusivamente, Gilmar Mendes, com o respeito ao texto, próprio da “Escola da Exegese”, infere que usar o recurso de uma interpretação ampla do art. 236, § 3º, da Constituição Federal para enquadrar, à força, as uniões homoafetivas no conceito jurídico de união estável, seria extrapolar os limites de competência da Corte, pois o princípio da separação dos poderes exige que, para ser legítimo, o órgão jurisdicional aplique o direito com respeito à norma jurídica e levando a sério o texto constitucional.

E seguindo a trilha de pensamento do Ministro Ricardo Lewandowski, alega que é preciso que o Tribunal, diante do vácuo presente no ordenamento jurídico quanto a um modelo institucional que proteja essas relações, apresente uma solução juridicamente possível ao caso.

Desse modo, a melhor resposta à demanda, sub judice, é aplicar, analogicamente, no que couber, as regras do instituto jurídico que mais se aproxima da união homoafetiva, isto é, a união estável. Para isto, o Tribunal Constitucional deve submeter-se ao referencial limite do “pensamento jurídico do possível”[30], de Peter Häberle.

4.7 O voto do Ministro: Marco Aurélio

O Ministro Marco Aurélio também julgou procedente o pedido formulado pelos demandantes de conferir interpretação proporcional à Constituição ao art. 1.723 do Código Civil, a fim de declarar a aplicabilidade do regime da união estável às uniões entre pessoas de mesmo sexo.

Feitas essas observações, analisa-se, nesta subseção, a estrutura lógica de seu raciocínio e se estabelecem as relações entre ela e as Escolas de Lógica Jurídica que a influenciaram.

Em virtude do pronunciamento dos Ministros que fundamentaram as duas decisões divergindo do relator, Marco Aurélio enfrenta a questão novamente. Deste modo, ao se referir especificamente ao instituto da união estável, desdobra o problema hermenêutico em duas perguntas: “[...] seria possível incluir nesse regime uma situação que não foi originalmente prevista pelo legislador ao estabelecer a premissa para a consequência jurídica? Não haveria transbordamento dos limites da atividade jurisdicional? [...]”. (AURÉLIO, 2011, p. 02).

Diante da primeira pergunta, o Ministro defende a ideia de que o instituto da sociedade de fato[31] não é suficiente para regulamentar as relações entre aqueles que estabelecem uniões homoafetivas, pois não se coaduna com a nova perspectiva de família inaugurada pela Constituição Federal de 1988, denominada de virada de Copérnico. Desta maneira, como o regime da união estável é o instituto jurídico que mais resguarda os direitos fundamentais das pessoas homoafetivas que querem unir-se estavelmente, ele deve ser aplicado para essas relações. Assim sendo:

O Direito Civil, na expressão empregada por Luiz Edson Fachin, sofreu uma “virada de Copérnico”, foi constitucionalizado e, por consequência, desvinculado do patrimônio e socializado. A propriedade e o proprietário perderam o papel de centralidade nesse ramo da ciência jurídica, dando lugar principal à pessoa. É o direito do “ser”, da personalidade, da existência.

Relegar as uniões homoafetivas à disciplina da sociedade de fato é não reconhecer essa modificação paradigmática no Direito Civil levada a cabo pela Constituição da República. A categoria da sociedade de fato reflete a realização de um empreendimento conjunto, mas de nota patrimonial, e não afetiva ou emocional. Sociedade de fato é sociedade irregular, regida pelo artigo 987 e seguintes do Código Civil, de vocação empresarial [...]. (AURÉLIO, 2011, p. 09).

E na segunda questão, o jurista a soluciona levantando a tese, cara à “Hermenêutica Alternativa”, de que é obrigação do Poder Judiciário defender os direitos de minorias, de tal forma que ao aplicar a técnica de interpretação conforme a Constituição ao art. 1.723 do Código Civil, ao invés de exceder os limites da atividade jurisdicional, está, na verdade, o Supremo Tribunal Federal, respondendo positivamente a sua vocação de, por meio do exercício de seu poder jurisdicional, dar a resposta jurídica que melhor efetive os direitos fundamentais. Por isto, ele observa que:

[...] Mostra-se inviável, porque despreza a sistemática integrativa presentes princípios maiores, a interpretação isolada do artigo 226, § 3º, também da Carta Federal, no que revela o reconhecimento da união estável entre o homem e a mulher como entidade familiar, até porque o dispositivo não proíbe esse reconhecimento entre pessoas de gênero igual.

No mais, ressalto o caráter tipicamente contramajoritário dos direitos fundamentais. De nada serviria a positivação de direitos na Constituição, se eles fossem lidos em conformidade com a opinião pública dominante. Ao assentar a prevalência de direitos, mesmo contra a visão da maioria, o Supremo afirma o papel crucial de guardião da Carta da República [...]. (AURÉLIO, 2011, p. 13).

O jurista carioca prossegue ao afirmar que o reconhecimento das uniões homoafetivas como entidade familiar é obrigação constitucional do Estado. E defende ainda que, através de técnicas tradicionais de hermenêutica, é possível dar uma interpretação do art. 222, § 3º, da Constituição Federal, de modo que o regime da união estável abarque também o fenômeno das uniões homoafetivas.

Para isso, é necessário que se faça uma interpretação sistemática e principiológica da Constituição e da legislação infraconstitucional que regulamenta a matéria. Neste ponto, são evidentes as influências das Escolas que destacam o método sistemático de interpretação, como, por exemplo, o caso dos “Pandectistas”.

Em consequência, o Ministro conclui que embora o art. 1.723 do Código Civil seja uma reprodução literal do § 3º, do art. 226 da Constituição Federal, ele não corresponde fidedignamente ao propósito constitucional de reconhecer direitos a grupos minoritários, os quais, no caso das pessoas homoafetivas, podem ser constatados, por exemplo: ao se recorrer ao princípio da dignidade da pessoa humana; a ideia segundo a qual o que não está juridicamente proibido, está juridicamente permitido e, por isto, deve estar juridicamente determinado; a vedação constitucional a toda forma de discriminação; a liberdade de orientação sexual e ao tratamento equânime entre homossexuais e heterossexuais.

4.8 O voto do Ministro: Celso de Mello

O jurista paulista também julgou procedente a ação constitucional, com o fito de que com efeito vinculante, se declare a obrigatoriedade do reconhecimento das uniões entre pessoas do mesmo sexo como entidade familiar com os mesmos direitos e deveres das uniões afetivas entre pessoas de sexos opostos, desde que também os pares homoafetivos atendam aos mesmos requisitos exigidos de consolidação da união estável entre homem e mulher.

É salutar enfatizar que o voto do Ministro Celso de Mello teve a segunda fundamentação mais longa do julgado. Por isto, ante o exposto, dissertar-se-á a respeito da estrutura lógica de seus principais raciocínios, com destaque para os argumentos jurídicos, de modo a se repetir a técnica de se estabelecer a relação entre eles e as Escolas de Lógica Jurídica que os influenciaram.

O Ministro usa o mesmo argumento de outros membros da Corte Constitucional para fundamentar a legitimidade da técnica de interpretação conforme a Constituição do art. 1.723 do Código Civil, isto é, de que o dispositivo infraconstitucional não pode ser usado para fundamentar decisões judiciais e administrativas que obstaculizem o acesso a direitos fundamentais por aqueles que estabeleceram uniões homoafetivas. Assim, ele aduz:

Por isso, Senhor Presidente, é que se impõe proclamar, agora mais do que nunca, que ninguém, absolutamente ninguém, pode ser privado de direitos nem sofrer quaisquer restrições de ordem jurídica por motivo de sua orientação sexual.

Isso significa que também os homossexuais têm o direito de receber a igual proteção das leis e do sistema político-jurídico instituído pela Constituição da República, mostrando-se arbitrário e inaceitável qualquer estatuto que puna, que exclua, que discrimine, que fomente a intolerância, que estimule o desrespeito e que desiguale as pessoas em razão de sua orientação sexual. (MELLO, 2011, p. 11-12, grifos do autor).

Além disso, a citação mencionada mostra que o Ministro insiste no argumento, caro à Escola da “Hermenêutica Crítica Alternativa”, de que o Supremo Tribunal Federal é órgão legítimo para proteger os direitos fundamentais dos homossexuais que criam laços de uniões homoafetivas, uma vez que tratam de direitos de minorias. Em seu voto declara:

Na realidade, o tema da preservação e do reconhecimento dos direitos das minorias deve compor, por tratar-se de questão impregnada do mais alto relevo, a agenda desta corte suprema incumbida, por efeito de sua destinação institucional, de velar pela supremacia da Constituição e de zelar pelo respeito aos direitos, inclusive de grupos minoritários, que encontram fundamento legitimador no próprio estatuto constitucional. (MELLO, 2011, p. 27, grifos do autor).

O jurista da Suprema Corte, também, trabalha com a ideia de que deve ser feita uma interpretação sistemática, teleológica e principiológica do texto constitucional, de sorte que o art. 226, § 3º, da Lei Fundamental não deve ser entendido como um dispositivo pelo qual se vede aos que estabelecem uniões homoafetivas o livre gozo dos direitos fundamentais (de natureza familiar, previdenciária e/ou sucessória), mas, como uma típica norma de inclusão que legitima a qualificação da união estável homoafetiva como entidade familiar. Desta forma, conjectura o Ministro:

Nessa perspectiva, Senhor Presidente, entendo que a extensão, às uniões homoafetivas, do mesmo regime jurídico aplicável à união estável entre pessoas de gênero distinto justifica-se e legitima-se pela direta incidência, dentre outros, dos princípios constitucionais da igualdade, da liberdade, da dignidade, da segurança jurídica e do postulado constitucional implícito que consagra o direito à busca da felicidade, os quais configuram, numa estrita dimensão que privilegia o sentido de inclusão decorrente da própria Constituição da República (art. 1º, III, e art. 3º, IV), fundamentos autônomos e suficientes aptos a conferir suporte legitimador à qualificação das conjugalidades entre pessoas do mesmo sexo como espécie do gênero entidade familiar. (MELLO, 2011, p. 22-23, grifos do autor).

Ao recorrer às técnicas de interpretação sistemática e teleológica, elucida-se que o Ministro sofre as influências das Escolas dos “Pandectistas” e “Teleológica do Direito”.

Além disso, em consonância com a “Escola Analítica”, ele defende que as normas jurídicas independem e têm total autonomia em face das normas morais ou religiosas, mesmo que estas sejam seguidas pela maioria.

Celso de Mello salienta, também, que um dos princípios dos quais se extrai o direito dos homossexuais de gozarem em condições de igualdade com os heterossexuais dos direitos fundamentais é o direito à busca da felicidade, o qual se trata de um princípio implícito que deriva do princípio e fundamento expresso da dignidade da pessoa humana. Ele ainda defende que o afeto é o novo paradigma acolhido pela Constituição Federal de 1998, de maneira que se traduz como o atual núcleo conformador do conceito de família, revogando, portanto, o paradigma antigo: o casamento entre pessoas de sexo opostos.

Por conseguinte, em virtude de que as relações homoafetivas também são marcadas pelas características do afeto (solidariedade, amor e projetos de vida em comum), merecem o mesmo tratamento jurídico dispensado às uniões estáveis heterossexuais.

O jurista conclui com a afirmação de que nenhuma família pode ser discriminada em virtude da orientação sexual de seus membros e com a ratificação de que cabe ao Poder Judiciário defender os direitos das minorias e de efetivar a força normativa das normas constitucionais.

4.9 O voto do Ministro: Cezar Peluso

O Ministro da Suprema Corte, Cezar Peluso, também julgou procedente a ação constitucional, a fim de que, com efeito vinculante, se declare a obrigatoriedade do reconhecimento das uniões entre pessoas do mesmo sexo como entidade familiar com os mesmos direitos e deveres das uniões afetivas entre pessoas de sexos opostos, desde que também os pares homoafetivos atendam aos mesmos requisitos exigidos para se consolidar a união estável entre homem e mulher.

Diante disso, analisa-se, doravante, a estrutura lógica dos principais raciocínios do jurista paulista, de modo a se aplicar novamente a técnica de se estabelecer a relação entre eles e as Escolas de Lógica Jurídica que os influenciaram.

O Ministro, talvez por ser o último a falar, faz um dos votos mais curtos do julgado. Começa o seu raciocínio alegando que aplicar a técnica hermenêutica de interpretação conforme a Constituição só é possível porque, na verdade, o art. 1.723 do Código Civil não é norma que reproduz estritamente o art. 226, § 3º, da Constituição Federal, uma vez que não há entre elas uma coincidência semântica. Em sua declaração:

Mas a diversidade de redação das normas permite, e acho que isto é, de modo muito consistente, a sua racionalidade, a decisão da Corte de conhecer das demandas, exatamente com base na não coincidência semântica entre as duas normas, de tal modo que é possível enxergar o disposto no artigo 1.723 como preceito susceptível de revisão à luz do artigo 226, § 3º, e de outras normas constitucionais, que constam, aliás, como causa de pedir de ambas as demandas. (PELUSO, 2011, p. 01).

Depois disso, Cezar Peluso diverge do Relator e dos outros ministros que o acompanharam na afirmação de que não existe lacuna normativa no ordenamento jurídico, uma vez que, a partir de uma interpretação sistemática das normas constitucionais, é possível verificar que, no que tange a disciplina da entidade familiar formada por união homoafetiva, há uma lacuna normativa que precisa ser preenchida.

Ao ter um zelo e uma transparência intelectual diante dos textos normativos da Constituição e ao recorrer à interpretação sistemática, o jurista paulista demonstra ser influenciado, por exemplo, pelas Escolas da “Exegese” e dos “Pandectistas”.

Além disso, ao elaborar sofisticados silogismos judiciários, sobretudo, quando se refere às consequências lógicas da relação entre os textos constitucionais e civis sobre o instituto genérico da entidade familiar, o jurista está influenciado, tacitamente, pela “Lógica Deôntica”.

O Ministro Peluso, então, encerra o seu voto concordando com os argumentos dos demais representantes do STF que defenderam que a sociedade de fato é instituto insuficiente para disciplinar as uniões homoafetivas, uma vez que estas não são movidas por um animus patrimonial, mas sim afetivo e, por isso, se enquadra melhor no direito de família do que no direito empresarial.


5 CONCLUSÃO

Ao se realizar um estudo acerca das diversas Escolas de Lógicas Jurídicas, viu-se que a lógica jurídica difere substancialmente da lógica formal, de modo que não pode ser reduzida a ela.

Ora, como visto no decorrer da monografia, a Lógica formal trata da ciência da inferência. Afinal, inferir significa “manipular” a informação disponível, isto é, aquilo que se sabe ou se supõe ser verdadeiro, para se obter uma informação nova.

A lógica formal não se preocupa como esse processo ocorre, porque ela é totalmente desvinculada da Psicologia e da Moral. Ela não se interessa em saber o quanto influências emocionais, afetivas e axiológicas interferem na construção e na emissão de argumentos. Desinteressa-se, ainda, pelas condutas consensuais, sobre o modo como as pessoas são influenciadas por fatores externos quando raciocinam, pois, ela centraliza a preocupação apenas em saber se a conclusão é consequência da informação disponível.

A lógica jurídica, por sua vez, enraíza-se na razoabilidade, no movimento dialético, no debate. Busca como resultado decisões jurídicas que sejam frutos dos raciocínios exteriorizados, processualmente, pelas partes. Isto, no entanto, não significa dizer que ela despreze a lógica formal. Ao contrário, usa-a como forte instrumento para a construção de argumentos jurídicos sólidos e coerentes.

Verificou-se, também, que o discurso jurídico, hodiernamente, encontra-se envolto pelo paradigma da linguagem e pelo princípio filosófico da intersubjetividade, de maneira que a comunidade jurídica é, essencialmente, uma comunidade de falantes e ouvintes, pelos quais a verdade processual é consequência de um percurso argumentativo inter-relacional de uma comunidade racional e não de uma descoberta de uma razão metafísica.

Desse modo, foi possível constatar que, no contexto do estudo de caso que foi realizado durante a monografia, se o Supremo Tribunal Federal tivesse fundamentado a sua decisão a partir de uma análise lógica exclusivamente aristotélico-silogístico-lógico-formal dos textos normativos, jamais poderia ter reconhecido a união entre pessoas do mesmo sexo como instituto jurídico.

Os argumentos utilizados pelos ministros do STF, como se estudou com aplicação ao pormenorizá-los neste trabalho monográfico, transcenderam, manifestamente, a um raciocínio baseado em um conjunto finito de premissas e conclusões, donde, no panorama apenas lógico-formal, as primeiras deviam apenas garantir e justificar as últimas.

Aliás, ao optarem não só pelas por lógicas formais, mas, também, pelas lógicas heterodoxas (histórico-sociológicas) na construção de seus argumentos, os revestiram de pré-conceitos (não em sentido pejorativo, mas no sentido gadameriano de horizontes de compreensão[32]), de sistemas axiológicos como fruto de vivências, formação acadêmica, contexto econômico, social, político e, sobretudo, cultural.

Assim, a partir dos usos estratégicos de diversas técnicas de lógicas jurídicas, deram forma e validade formais e não formais ao discurso jurídico, mas, ambas manifestamente legítimas, por respeitaram as regras do jogo argumentativo em um ambiente democrático.

Nesse sentido, ao seguirem o viés argumentativo proposto pelas hermenêuticas formais e heterodoxas, produziram técnicas de argumentação jurídicas que tornaram possível justificar, razoavelmente, um discurso jurídico que não encontra guarida em um sistema exclusivamente lógico-formal, mas sempre um sistema que tem como matiz a lógica do razoável.

Portanto, o estudo das Escolas de Lógicas Jurídicas e a utilização dos julgados da ADI nº 4.277/Distrito Federal e da ADPF nº 132/Rio de Janeiro, serviu para se fazer a análise do uso de lógicas jurídicas na construção de argumentos jurídicos, com o objetivo de se evidenciar a validade deles dentro de um sistema lógico peculiar: o discurso jurídico, produto da vida fatual e não meramente do mundo abstrato e ideal de um sistema lógico-formal.


REFERÊNCIAS

ALEXY, Roberty. Teoria da Argumentação Jurídica. Tradução de Zilda Hutchinson Schild Silva. São Paulo: Landy, 2001.

AUSTIN, John Langshaw. Quando dizer é fazer. Tradução de Danilo Marcondes de Sousa Filho. Porto Alegre: Artes Médicas, 1990.

BOBBIO, Norberto. O positivismo jurídico: lições de Filosofia do Direito. Tradução de Márcio Pugliese, Edson Bini e Carlos E. Rodrigues. São Paulo: Ícone, 1995.

BRASIL. ASSEMBLÉIA NACIONAL CONSTITUINTE, 1987/1988. Diários da Assembléia Nacional Constituinte. Brasília, 1987/1988. Suplemento “B”. Disponível em: <<http://www.google.com.br/url?sa=t&rct=j&q=&esrc=s&source=web&cd=2&ved=0CCAQFjAB&url=http%3A%2F%2Fwww.senado.gov.br%2Fpublicacoes%2Fanais%2Fconstituinte%2Fredacao.pdf&ei=xYi6U7jnJIilsQTAroGwBA&usg=AFQjCNGglXjG05WkSd78CFszXdHTvOIxRA>>. Acesso em: 22 dez. 2013.

_____. Constituição (1988). Constituição da República Federativa do Brasil. Brasília, DF: Senado Federal: Secretaria Especial de Informática, 2013. Disponível em: <<http://www.senado.gov.br/legislacao/const/con1988/CON1988_05.10.1988/index.shtm>>. Acesso em: 22 dez. 2013.

_____. Supremo Tribunal Federal. Ação Direta de Inconstitucionalidade nº 4277 e Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental nº 132. União homoafetiva e seu reconhecimento como instituto jurídico. Requentes: Procuradora-Geral da República (ADI); Governador do Estado do Rio de Janeiro (ADPF). Relator: Ministro Ayres Britto. Julgamento em 5.5.2011. DJe 14.10.2011. Distrito Federal; Rio de Janeiro: STF, 2011. Disponível em: <<http://www.stf.jus.br/portal/jurisprudencia/listarJurisprudencia.asp?s1=%28uni%E3o+homoafetiva%29&base=baseAcordaos&url=http://tinyurl.com/cuxctm4>>. Acesso em: 22 dez. 2013.

CAMARGO, Margarida Maria Lacombe. Hermenêutica e Argumentação: uma contribuição ao estudo do direito. 3. ed. Rio de Janeiro: Renovar, 2003.

CAPPI, Antonio; CAPPI, Carlo Crispim Baiocchi. Lógica jurídica: a construção do discurso jurídico. 2. ed. Goiânia: Editora da UCG, 2004.

CARVALHO, Aurora Tomazini de. Curso de Teoria Geral do Direito: o Construtivismo Lógico-Semântico. 2. ed. São Paulo: Noeses, 2010.

CHAUÍ, Marilena. Iniciação à Filosofia: ensino médio. São Paulo: Ática, 2010.

_____. O que é ideologia. São Paulo: Brasiliense, 2002. Col. Primeiros Passos.

DESCARTES, René. Discurso do Método. Tradução de Maria Emantina Galvão. São Paulo: Martins Fontes, 2001.

DIDIER JR, Fredie. Curso de Direito Processual Civil: Teoria Geral do Processo e Processo de Conhecimento. 12. ed. Salvador: JusPODIUM, 2010.

DINIZ, Maria Helena. As lacunas no direito. 9. ed. São Paulo: Saraiva, 2009.

D’OTTAVIANO, Ítala Maria Loffredo; FEITOSA, Hércules de Araujo. Sobre a história da lógica, a lógica clássica e o surgimento das lógicas não-clássicas. Rio Claro: UNESP, 2003.

GOMES, José Jairo. Direito Eleitoral. 7. ed. São Paulo: Atlas, 2011.

HABERMAS, Jüngen; RATINGER, Joseph. Dialética da secularização: sobre razão e religião. Tradução de Alfred J. Keller. Aparecida: Idéias & Letras, 2007.

HEIDEGGER, Martin. A caminho da linguagem. Tradução de Márcia Sá Cavalcante Schuback. Petrópolis: Vozes, 2003.

IHERING, Rudolf von. A luta pelo direito. Tradução de João de Vasconcelos. São Paulo: Martin Claret, 2009.

KELSEN, Hans. Teoria Pura do Direito. 7. ed. São Paulo: Martins Fontes, 1998. Col. Justiça e Direito.

_____. Teoria Pura do Direito. Tradução de J. Cretella Jr. e Agnes Cretella. 6. ed. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2009.

LEIBNIZ, Gottfried Wilhelm Leibniz. Novos ensaios sobre o entendimento humano: pelo autor do sistema da harmonia preestabelecida. São Paulo: Abril Cultural, 1980.

MARCONDES, Danilo. Iniciação à história da Filosofia: Dos pré-socráticos a Wittgenstein. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1997.

PERELMAN, Chaïm. Ética e Direito. Tradução de Maria Ermantina de Almeida Prado Galvão. 2. ed. São Paulo: Martins Fontes, 2005.

_____. Lógica jurídica. Tradução de Vergínia K. Pupi. 2. ed. São Paulo: Martins Fontes, 2004.

_____; LUCIE, Olbrechts-Tyteca. Tratado da argumentação: A nova retórica. Tradução de Maria Ermantina de Almeida Prado Galvão. 2. ed. São Paulo: Martins Fontes, 2005.

REALE, Giovanni. Metafísica de Aristóte


Notas

[1] Segundo o filósofo Danilo Marcondes (1997, p. 257-258): “A fenomenologia é o movimento filosófico inaugurado por Husserl e desenvolvido, sobretudo na França e Alemanha, por seus seguidores, constituindo uma das principais correntes do pensamento do séc. XX. O termo ‘fenomenologia’ foi inicialmente utilizado pelo filósofo alemão do séc. XVIII Johann Lambert para caracterizar a ‘ciência das aparências’ e empregado posteriormente por Hegel em sua ‘ciência da experiência da consciência’, sendo esta a tradição em que Husserl se inspira. Através do método fenomenológico, é possível romper com a atitude natural ou espontânea em que constituem nossas crenças habituais, em que apreendemos fatos, passando – pela suspensão ou époche, em que abandonamos essa atitude – ao exame do modo de constituição desta experiência. É possível então chegar ao ‘dado’ da consciência, isto é, ao fenômeno em si mesmo.”

[2] A razoabilidade é entendida neste trabalho como uma expressão ligada à ideia de bom senso, de racionalidade dos fundamentos das preposições jurídicas, de sorte que ela está necessariamente sedimentada no seguinte tripé: adequação, necessidade e utilidade.

[3] É interessante lembrar que para Chaïm Perelman, ao tratar da argumentação jurídica na obra “Lógica Jurídica”, a decisão judicial aceitável deve satisfazer três auditórios para os quais ela se destina: as partes em litígio, os profissionais do direito e a opinião pública.

[4] O princípio filosófico da subjetividade e o paradigma da consciência norteiam toda a construção da Filosofia Moderna, mas eles se encontram expressos com toda a clareza na fórmula cartesiana Cogito ergo sum (penso, logo existo) presente na quarta parte de sua obra “Discurso do Método”, que foi publicada pela primeira vez em 1637. Edição brasileira: DESCARTES, René. Discurso do Método. Tradução de Maria Emantina Galvão. São Paulo: Martins Fontes, 2001, p. 38.

[5] Segundo a professora Maria Helena Diniz (2009, p. 21): “Não se deve confundir o problema da coerência (antinomias) com o das lacunas. Ocorre antinomia quando duas normas aplicáveis se contradizem, caso em que o sistema é incorreto porque incoerente, em virtude da exuberância. Ocorre lacuna quando inexiste norma, sendo o sistema incompleto por deficiência.”

[6] “Em meados do século passado, houve uma mudança na concepção filosófica do conhecimento, denominada giro-linguístico, cujo termo inicial é marcado pela obra de LUDWIG WITTGENSTEIN (Tractatus logico-philosophicus). Foi quando a então chamada ‘filosofia da consciência’ deu lugar à ‘filosofia da linguagem’ ”. (CARVALHO, 2010, p. 13).

[7] “De fato, a característica que é exclusiva da jurisdição é a aptidão para a definitividade. Só os atos jurisdicionais podem adquirir essa definitividade, que recebe o nome de coisa julgada, situação jurídica que estabiliza as relações jurídicas de modo definitivo.” (DIDIER JR, 2010, p. 92).

Aqui, é importante recordar que o Supremo Tribunal Federal deverá avaliar se decisões transitadas em julgado podem ser derrubadas caso o Plenário conclua, posteriormente, pela constitucionalidade ou inconstitucionalidade de uma determinada lei. No dia 30 de maio de 2014, o STF reconheceu a repercussão geral da discussão, que pode atingir casos já julgados de forma imutável, protegidos pela coisa julgada. O Recurso Extraordinário 730.462, aceito pelo Plenário virtual da corte e pautado como representativo da discussão, foi interposto contra acórdão que decidiu pela inconstitucionalidade do artigo 9º da Medida Provisória 2.164-41/2001, que havia acrescentado o artigo 29-C na Lei 8.036/1990, quanto ao não cabimento dos honorários advocatícios em demandas sobre o FGTS.

[8] Segundo o filósofo inglês J. L. Austin (1990, p. 12), “[...] atos de fala performativos são expressões que ao serem usadas não servem para descrever ou relatar algo, mas para fazer algo, para realizar um ato.”

[9] Segundo Ítala Maria Loffredo D’Ottaviano e Hércules de Araujo Feitosa (2003, p. 02), em um artigo intitulado “Sobre a história da lógica, a lógica clássica e o surgimento das lógicas não-clássicas”: “A história da lógica antiga inicia-se propriamente com Aristóteles, no século IV a. C. (384-322 a.C.). Na antiguidade, os gregos foram preponderantes no cultivo, prática e gosto pelo argumento. Entre os predecessores de Aristóteles (Platão, sem dúvida) devemos chamar a atenção para o trabalho dos sofistas, classe de tutores privados da Grécia antiga; e convém mencionarmos que paradoxos e argumentos falaciosos, argumentos que, de premissas aparentemente verdadeiras e por passos aparentemente válidos, levam a conclusões aparentemente falsas eram conhecido na Grécia Antiga. A maior parte da contribuição relevante de Aristóteles, para a lógica, encontra-se no grupo de trabalhos conhecidos como Organon, mais especificamente por Analytica Priora e no De Interpretatione.”

[10] A lógica matemática ou simbólica surge na segunda metade do século XIX e seu principal criador foi o filósofo, matemático e lógico Friedrich Ludwig Gottlob Frege.

[11] Os princípios racionais são axiomas lógico-ontológicos. Os princípios de não contradição e terceiro excluído aparecem expressamente na obra “Metafísica de Aristóteles” (REALE, 2001), mas o princípio de identidade só aparece de modo expresso no século XVIII, como, por exemplo, na obra “Novos Ensaios sobre o Entendimento Humano”, de Gottfried Wilhelm Leibniz (1980).

[12] É salutar recordar o que ensina Martin Heidegger (2003, p. 96): “A palavra ‘hermenêutico’ vem do verbo grego ρμηνευειν. Refere-se ao substantivo ρμηνευς; que se pode articular com o nome do deus Hermes: ρμης, num jogo de pensamento mais rigoroso do que a exatidão filológica. Hermes é o mensageiro dos deuses. Traz a mensagem do destino; ρμηνευειν é a exposição que dá notícia, à medida que consegue escutar uma mensagem. Esta proposição se transforma em interpretação da mensagem dos poetas que, nas palavras de Sócrates, no diálogo Íon (534e) ‘são mensageiros dos deuses’, ρμηνευς εισιν των.”

[13] As tabelas supramencionadas foram extraídas das páginas 211 e 213 de: “CAPPI, Antonio; CAPPI, Carlo Crispim Baiocchi. Lógica jurídica: a construção do discurso jurídico. 2. ed. Goiânia: Editora da UCG, 2004”, porém, para fins didáticos, sofreram sutis alterações feitas pelo autor desta monografia.

[14] O Art. 1º da Lei Estadual nº 5.034/2007, acrescentou ao art. 29 da Lei nº 285, de 03 de Dezembro de 1979 (Lei que dispõe sobre o regime previdenciário dos servidores públicos do Estado do Rio de Janeiro), o seguinte parágrafo: § 7º - “Equiparam-se à condição de companheira ou companheiro de que trata o inciso I deste artigo,

os parceiros homoafetivos, que mantenham relacionamento civil permanente, aplicando-se para configuração deste, no que couber, os preceitos legais incidentes sobre a união estável entre parceiros de sexos diferentes.”

[15] Art. 1.723 do Código Civil de 2002: “É reconhecida como entidade familiar a união estável entre o homem e a mulher, configurada na convivência pública, contínua e duradoura e estabelecida com o objetivo de constituição de família.”

[16] É interessante lembrar que quando o Procurador Geral da República (PGR) é o autor da ADI ou da ADC, ele deve ser intimado pelo STF na ação que ele mesmo propôs, a fim de opinar em face do pedido. Nessa manifestação ele pode inclusive se manifestar pela improcedência do pedido, sem que isso implique desistência da ação. Por outro lado, quando o Procurador Geral da República é o autor da ADO ou da ADPF ele não será intimado a se manifestar sobre a ação que ele propôs.

O PGR é o chefe do Ministério Público da União, ele é um dos legitimados ativos do rol do art. 103 da CF/88, e deve ser ouvido nas ações de controle concentrado de constitucionalidade e em todas as ações de competência do Supremo Tribunal Federal, onde atua como defensor das normas constitucionais.

[17] O Advogado Geral da União (AGU) é o chefe da Advocacia-Geral da União. Não é um dos legitimados ativos listados pelo art. 103 da CF/88, mas é considerado o curador da presunção relativa de constitucionalidade das leis. Só atua nas ações de inconstitucionalidade e sua atuação é vinculada, pois é defensor da norma infraconstitucional. Deve ser citado previamente pelo Supremo Tribunal Federal quando este apreciar a inconstitucionalidade, em tese, de norma legal ou ato normativo, a fim de defender, em regra, o ato ou texto impugnado.

O STF tem mitigado a obrigatoriedade de o AGU sempre defender a constitucionalidade das normas. Existem, hoje, duas situações sedimentadas pela jurisprudência da Corte em que o AGU não será obrigatoriamente citado para defender a norma: 1ª) quando a norma ofende os interesses da União; 2ª) quando já houver, no controle difuso de constitucionalidade, manifestação anterior no STF pela inconstitucionalidade da norma.

[18] As ações de Controle Concentrado de Constitucionalidade se desenvolvem em processos nitidamente objetivos, isto é, não possuem partes em sentido material, pois não há lide e não há discussão sobre direitos subjetivos. No entanto, para pluralizar e ampliar o debate há a participação do Advogado Geral da União (que só não ocorre em ADC) e dos Amici Curiae.

Desse modo, o “amigo da Corte” não é modalidade de intervenção de terceiros (caput do art. 7º da Lei nº 9.868/1999), mas é um auxiliar do juízo. O § 2º, do art. 7º da Lei nº 9.868/1999 traz dois requisitos para o ingresso do Amicus Curiae (relevância da matéria e representatividade dos postulantes) e a jurisprudência do Supremo Tribunal Federal exige o preenchimento de um terceiro requisito: a pertinência temática.

Quem decide se haverá ou não o ingresso do Amicus Curiae é o relator, num despacho que, se for denegatório, admite o pedido de reconsideração para o Tribunal Pleno (Agravo). Para o Supremo Tribunal Federal, o Amicus pode ingressar no feito até o processo ser encaminhado para a pauta de julgamento. Ele não pode ser Pessoa Física, pois só Órgão ou Entidade pode sê-lo. Faz sustentação oral, não pode recorrer da decisão final (não interpõe embargos de declaração) e, por analogia, além da ADI, participa também da ADC, ADO e ADPF.

[19] A citação encontra-se em: BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Ação Direta de Inconstitucionalidade nº 4277 e Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental nº 132. União homoafetiva e seu reconhecimento como instituto jurídico. Requentes: Procuradora-Geral da República (ADI); Governador do Estado do Rio de Janeiro (ADPF). Relator: Ministro Ayres Britto. Julgamento em 5.5.2011. DJe 14.10.2011. Distrito Federal; Rio de Janeiro: STF, 2011. Disponível em: <<http://www.stf.jus.br/portal/jurisprudencia/listarJurisprudencia.asp?s1=%28uni%E3o+homoafetiva%29&base=baseAcordaos&url=http://tinyurl.com/cuxctm4>>. Acesso em: 22 dez. 2013. Doravante, as citações dos votos dos Ministros do STF apresentadas no decorrer desse Trabalho de Conclusão de Curso constarão de seus sobrenomes, ano e página inferior dos documentos mencionados.

[20] Ao se referir ao § 3º, do art. 226 da Constituição Federal, o Ministro relembra o novo paradigma jurídico do vínculo familiar, a afetividade, e observa: “Logo, que não se faça uso da letra da Constituição para matar o seu espírito [...]. Ou como diria Sérgio da Silva Mendes, que não se separe por um parágrafo (esse de nº 3) o que a vida uniu pelo afeto.” (BRITTO, 2011, p. 29, grifos do autor).

[21] “Ninguém será obrigado a fazer ou deixar de fazer alguma coisa senão em virtude de lei”. (cf. BRITTO, 2011, p. 11).

[22] Do preâmbulo o Ministro Luiz Fux destaca: “[...] a liberdade’, a segurança, o bem-estar, o desenvolvimento, a igualdade e a justiça como valores supremos de uma sociedade fraterna, pluralista e sem preconceitos, [...].” (FUX, 2011, p. 14, grifos do autor).

[23] “Promover o bem de todos, sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de discriminação.” (BRASIL, 2013, p. 05).

[24] “Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza [...].”(BRASIL, 2013, p. 05).

[25] “Para efeito da proteção do Estado, é reconhecida a união estável entre o homem e a mulher como entidade familiar, devendo a lei facilitar sua conversão em casamento.” (BRASIL, 2013, p. 37).

[26] “A família, base da sociedade, tem especial proteção do Estado.” (BRASIL, 2013, p. 37).

[27] BRASIL. ASSEMBLÉIA NACIONAL CONSTITUINTE, 1987/1988. Diários da Assembléia Nacional Constituinte. Brasília, 1987/1988. Suplemento “B”, p. 209.

[28] § 2º, do art. 5º, da Constituição Federal de 1988: “Os direitos e garantias expressos nesta Constituição não excluem outros decorrentes do regime e dos princípios por ela adotados, ou dos tratados internacionais em que a República Federativa do Brasil seja parte.” (BRASIL, 2013, p. 06-07).

[29] § 1º, do art. 5º da Constituição Federal de 1988: “As normas definidoras dos direitos e garantias fundamentais têm aplicação imediata.” (BRASIL, 2013, p. 06).

[30] Gilmar Mendes (2011, p. 45), ao tentar definir o que é o pensamento jurídico do possível, alega: “O pensamento do possível tem uma dupla relação com a realidade. Uma é de caráter negativo: o pensamento do possível indaga sobre o também possível, sobre alternativas em relação à realidade, sobre aquilo que ainda não é real. O pensamento do possível depende também da realidade em outro sentido: possível é apenas aquilo que pode ser real no futuro (Möglich ist nur was in Zukunft wirklich sein kann). É a perspectiva da realidade (futura) que permite separar o impossível do possível (Häberle, Die Verfassung des Pluralismus, cit., p. 10)”.

[31] Sociedade de fato é uma sociedade não personificada, isto é, um grupo que, embora não se tenha formalizado legalmente, exerce de fato as funções de uma sociedade.

[32] De acordo com a filosofia gadameriana horizontes de compreensão é a inter-relação entre a verdade da tradição e da interpretação do texto perenemente atualizadora, que condiciona a atividade do hermeneuta, pois o homem é circundado por sua finitude e historicidade.


Autor

  • Fábio Soares Rapôso

    Especialista em Direito Civil e Direito Processual Civil Pela Universidade CEUMA - UniCEUMA. Licenciado em Filosofia pelo Instituto de Estudos Superiores do Maranhão - IESMA. Bacharel em Direito pela Universidade Federal do Maranhão - UFMA. Advogado militante e professor de Filosofia do Instituto de Educação, Ciência e Tecnologia do Maranhão - IEMA.

    Textos publicados pelo autor

    Fale com o autor


Informações sobre o texto

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

RAPÔSO, Fábio Soares. As lógicas do discurso jurídico e aplicações práticas nos julgados do STF na ADI nº 4.277/DF e na ADPF nº 132/RJ. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 22, n. 5011, 21 mar. 2017. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/56502. Acesso em: 25 abr. 2024.