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O contrato de parceria em aplicativos de transporte urbano.

Análise dos pressupostos da relação de emprego e consumo

O contrato de parceria em aplicativos de transporte urbano. Análise dos pressupostos da relação de emprego e consumo

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Artigo elaborado sob a coordenação do Des. Luiz Ronan Neves Koury (TRT3).

1 - INTRODUÇÃO

Criado sob a nomenclatura UberCab, o primeiro aplicativo de transporte urbano privado foi criado por Garrett Camp e Travis Kalanick, em 2009.  A proposta inicial era prestar serviço de táxis de luxo, utilizando-se de veículos sofisticados e motoristas trajados de roupa social, visando ao maior conforto possível ao usuário. O aplicativo foi um dos pioneiros do que é chamado de “e-hailing”, que é a utilização de dispositivos eletrônicos portáteis, tais como celulares e smartphones, para solicitar determinado serviço de transporte, como táxis e limusines. 

Em 2010, a empresa americana Uber Tecnologies Inc. disponibilizou sua plataforma para os sistemas operacionais IOS (Apple) e Android (Google), em que usuários se cadastravam para fornecer e/ou usufruir dos serviços de transporte individual. Conhecida popularmente apenas por Uber, a plataforma digital se popularizou devido ao preço competitivo com relação aos táxis e ao transporte público, exercendo, todavia, atividade com maior requinte e qualidade.

Atualmente, diversas empresas globais oferecem o serviço, sendo as mais notáveis: a mencionada Uber, além de Cabify, Lyft e RideYellow. Em que pese haver particularidades entre as empresas, serão analisadas as características comuns das prestadoras desse tipo de serviço que migraram para o Brasil a fim de se definir a natureza jurídica da relação existente com os motoristas que conduzem os veículos à luz da legislação pátria.

1.1 – Contextualização

Desde a chegada destes aplicativos ao Brasil e a sua adesão, cada vez maior, por parte da sociedade, se faz necessária uma análise detalhada do modus operandi destas empresas para a definição da atividade realizada pelos motoristas e a melhor definição do vínculo criado dentro do nosso ordenamento jurídico vigente, uma vez que há grande divergência nos tribunais trabalhistas acerca da existência de elementos suficientes que caracterizem o vínculo de emprego. Atualmente, três grandes empresas operam no mercado brasileiro: Uber, Cabify e 99Pop.

A incerteza quanto à relação existente entre motoristas e empresas gera uma afronta ao princípio da segurança jurídica, uma vez que são proferidas decisões divergentes entre juízes e tribunais regionais, necessitando haver uma uniformização no entendimento. Ainda, há de se ressaltar que, a depender da maneira como é enquadrada a relação entre o aplicativo e o motorista, surge uma gama diversa de efeitos dela decorrentes, seja na esfera cível, no que tange à responsabilidade contratual, quanto na trabalhista, no que diz respeito ao pagamento de verbas de cunho celetista, regras de dispensa, controle de jornada, concessão de intervalos e recolhimento de FGTS e contribuições para seguridade social e tributos dela decorrentes.


2 - OS TERMOS DO CONTRATO

No começo da relação mercantil, as partes constituem negócio jurídico mediante contrato, em que se obrigam, reciprocamente, à prestação de serviços de transporte por parte do motorista, enquanto a empresa gestora do aplicativo disponibiliza serviços de intermediação digital “com a finalidade de viabilizar a angariação e prospecção de clientes para prestadores de serviços de transporte” (UBER, 2016, p.1.).

A plataforma tecnológica, operada pela empresa, tem como objetivo intermediar, sob demanda, serviços relacionados à transporte em que o motorista receba e atenda solicitações feitas por usuários que procuram pelos serviços. Contata-se que os serviços prestados por parte da gestora do aplicativo é a disponibilização do software, website, serviços de pagamento e suporte.

Quando o motorista se encontra ativo no aplicativo, logo, disponível para realização das corridas, tem a faculdade de aceitar as solicitações, momento este em que seu primeiro nome, fotografia, informações de contato e de seu veículo são disponibilizados ao usuário. O contrato estipula que a prestação de serviços e transporte do condutor com seu cliente cria relação jurídica e comercial direta entre ambos, na qual o aplicativo afirma, supostamente, não participar. A empresa se isenta de reponsabilidade por obrigações em relação aos motoristas e usuários decorrentes da prestação de serviço.

É exigido do motorista uma CNH válida, licenças e autorizações aplicáveis para transporte de passageiros, podendo tais exigências se verificarem de tempos em tempos pelo aplicativo. Também é responsável pela manutenção do veículo que será utilizado para o trabalho, podendo ser de sua propriedade ou alugado, devendo estar devidamente registrado e licenciado para operar como veículo de transporte, estar em “boas condições de funcionamento” e apresentar “boas condições de limpeza e higiene”. É necessário que tenha um dispositivo móvel (celular) para acesso ao aplicativo, mas que, mediante solicitação, este poderá ser fornecido pela empresa sob o reembolso dos custos. As despesas com desgaste natural do veículo e combustível também são exclusivas ao condutor.

O pagamento dos serviços de transporte é realizado diretamente à empresa gestora do aplicativo, que deduz os custos dos pagamentos via cartão de crédito e a taxa cobrada pelos seus serviços de intermediação, repassando o restante ao motorista. O cálculo do preço pode ser alterado a qualquer momento a critério do aplicativo, com base em fatores do mercado local, ocasião em que o motorista é avisado caso resulte em mudança no preço recomendado. A empresa também se reserva o direito de ajustar o preço em situações específicas, por exemplo, caso o motorista utilize uma rota ineficiente, ou não conclua corretamente o serviço.

A taxa de serviço é considerada a contraprestação da disponibilização da plataforma digital e serviços, sendo calculada como uma porcentagem do preço, que poderá ser ajustada unilateralmente pelo aplicativo. Atualmente, as taxas variam entre 19.9% e 25%, a depender da modalidade escolhida pelo motorista, condizente com a qualidade de seu veículo e a cidade aonde atua o condutor.

Ao condutor é exigida a realização de todas as obrigações fiscais e tributárias com relação à prestação de serviços de transporte, fornecendo à empresa as informações relevantes. O aplicativo, porém, se reserva o direito de recolher e remeter tais tributos às autoridades fiscais governamentais em nome do condutor do veículo. O motorista é, ainda, obrigado a manter seguro de responsabilidade civil que forneça proteção contra lesões corporais e danos materiais a terceiro. Em caso de se tratar de pessoa jurídica, o aplicativo exige que seja feito um seguro de compensação ao trabalhador, a fim de segurar a empresa contra acidentes de trabalho. Com a possibilidade de a relação ser entre pessoas jurídicas, a empresa gestora do aplicativo, hipoteticamente, isenta-se de responsabilidade para com empregados da prestadora de serviços de transporte, tais como, indenizações, danos, multas, contribuições para seguridade social e demais tributos.

Ao final do contrato, conta expressamente que a relação entre as partes é de “empreendedores independentes”, não caracterizando um contrato de trabalho, não criando uma relação de trabalho e que não existe relação de joint venture, parceria ou agência entre o aplicativo e os motoristas. Entretanto, é sabido que um dos princípios basilares do Direito do Trabalho é a primazia da realidade sobre a forma, razão pela qual o presente artigo não se limita à análise da literalidade contratual, mas realiza o exame dos pressupostos fáticos para pormenorizar a relação existente entre aplicativos e motoristas, à luz da legislação trabalhista e cível, respeitando as particularidades dessa nova modalidade de prestação de serviços autônoma, em observação às alterações trazidas pela lei n° 13.467/2017.


3 – RELAÇÃO DE EMPREGO 

Os contratos cujo objeto seja a realização de determinada atividade por pessoa física mediante contraprestação geram uma relação de trabalho em que a relação de emprego é uma de suas espécies. Tanto o trabalho, latu sensu, quanto o emprego, strictu sensu, são modalidades de relações jurídicas reguladas pelo Direito do Trabalho, cuja função precípua é atribuir direitos e deveres, simultaneamente e reciprocamente aos sujeitos submetidos à norma jurídica norteadora.  Acerca do tema, oportuna é a lição da professora de MONTEIRO (2010, p. 221), ipsis litteris:

Existem relações de trabalho ‘lato sensu’ que não se confundem com a relação de emprego, considerada relação de trabalho ‘strictu sensu’. São elas o trabalho autônomo, o eventual, o avulso, entre outros.

Dentre as relações de trabalho, o emprego possui a primazia, uma vez que, preenchidos seus elementos fáticos, a relação criada é o propósito da CLT, aplicando-a por generalidade. Os artigos 2°e 3° do referido ordenamento legal tratam de definir juridicamente o conceito de empregador e empregado, o que, por corolário, estabelece os requisitos para o vínculo empregatício. Para caracterização da relação de emprego, os elementos elencados na CLT sofrem diferentes intepretações ao longo do tempo, tal como a definição do que seja “subordinação”, porém, sempre mantendo a finalidade primária de proteção ao sujeito que dispõe de sua força de trabalho em prol do capital alheio, sempre considerado o panorama atual da sociedade e o contexto econômico na qual está inserida.

Em que pese a mudança na forma de prestação de serviços em razão do avanço tecnológico, mantêm-se firmes os pressupostos expressos na CLT, conforme entendimento do Des. Luiz Otávio Renault Linhares:

RELAÇÃO DE EMPREGO. TRABALHO AUTÔNOMO. O trabalho do homem livre acompanhou o movimento pendular da economia, segundo a tendência de cada época - liberal ou intervencionista. O trabalho subordinado e o trabalho autônomo foram, durante séculos, os pontos extremos de uma mesma linha, na qual se inseriram obrigatoriamente os diversos fatores da produção, inclusive o custo da mão de obra. Durante cerca de cinquenta anos viu-se, no Brasil, por força da CLT, a progressiva aglutinação jurídica em torno do trabalho subordinado, fruto até de uma exigência do sistema fordista da produção. Nos últimos anos, contudo, tem-se presenciado um forte movimento em sentido inverso, em decorrência das substanciais mudanças na forma de prestação de serviços - teletrabalho, microinformática, robotização, trabalho a domicílio - sem que se atente para o determinismo do art. 3º da CLT. Neste contexto, se o trabalho não eventual é prestado com pessoalidade, por pessoa física, com onerosidade, resta ao intérprete examinar a subordinação. Esta, cada vez mais, vem se diluindo diante da quebra da estrutura hierárquica da empresa fordista e suas características deslocaram-se da esfera subjetiva para a esfera objetiva, sem se falar que a desprestigiada dependência econômica volta a ganhar importância. Preenchidos estes pressupostos, o contrato de emprego se assume por inteiro. (TRT da 3ª Região - 4ª Turma - RO 00750.2003.047.03.00.0 - Rel. Luiz Otávio Linhares Renault - DJMG 7/8/2004 - p. 9. Disponível em: http://www.trt3.jus.br/. Acesso em: 01/12/2014).

Os requisitos objetivos para caracterização do vínculo de emprego são: (i) pessoa física; (ii) pessoalidade; (iii) onerosidade; (iv) não-eventualidade e (v) subordinação; os quais serão oportunamente esmiuçados sob a ótica da lei n°. 13.467/17 e analisados face à realidade fática da prestação de serviço.

Frisa-se que parte da doutrina, incluindo os notáveis Alice Monteiro de Barros e Paulo Emílio Ribeiro de Vilhena, conceituam empregado a partir de apenas quatro elementos, todos retirados do art. 3° da CLT, substituindo o elemento “pessoa física” pelo conceito de “pessoalidade”. Para uma análise mais ampla e pormenorizada do tema em questão, e por se tratar de definições distintas, data venia, a divisão em cinco requisitos se apresenta mais precisa, uma vez que é possível haver a pessoalidade, no sentido de especificidade para realização do serviço, de pessoa jurídica, o que seria incongruente com a mens legis do dispositivo legal.

3.1 Pessoa física

O primeiro elemento que se extrai do art. 3°, que define o conceito de empregado, é que se trata de pessoa física. Para realização da atividade de transporte de passageiros, o aplicativo não exige que o contrato seja firmado com pessoas físicas, podendo ser pactuado com “empresas de transporte independentes que possuam e/ou operem um único veículo ou uma frota de veículos conduzidos ‘motoristas”.

A qualificação de “motorista”, a que se refere o parágrafo anterior – dos termos do contrato -, é utilizada para pessoa física ou representante; funcionário ou prestador de serviço do contratado, que atenda aos requisitos vigentes, após assinado o “adendo de motorista”.

Percebe-se que, a depender do caso concreto, é possível restar ausente o primeiro dos requisitos para reconhecimento do vínculo de emprego. Caso se sustente, ainda, que possa haver uma terceirização dos serviços quando for prestado por outras pessoas jurídicas, pontue-se que a atividade-fim do aplicativo é a intermediação digital entre passageiros e motoristas e não o transporte em si, o que será abordado em tópicos futuros.

3.2 Pessoalidade

Quanto à pessoalidade, esta não se deduz da literalidade da lei, pois é criada a partir de construção doutrinária, decorrência do intuitu personae do contrato de trabalho. Trata-se de preceito civilista no qual se entende a singularidade na prestação de serviço de cada indivíduo, o que inviabiliza sua substituição.

Pode-se afirmar que não basta apenas ser pessoa física, mas também a individualidade do contratado na realização do serviço. O saudoso magistrado do E. Tribunal Regional do Trabalho da 3ª Região, Paulo Emílio Ribeiro de Vilhena, ensina que “o trabalhador, como ser humano, como ser ético, como portador de peculiar capacidade psicofísica e técnica laborativa, move-se na empresa como um feixe de aptidões e de deveres jurídicos” VILHENA (1999, p. 396.). Em termos práticos, a partir da pessoalidade, o empregador não pode se fazer representar por outro no desempenho de suas atividades laborais, uma vez que possui características específicas para exercer determinado serviço, razão pela qual foi contratado.

No entendimento de DELGADO (2011, p. 571.), a pessoalidade é característica essencial de diferenciação da relação de emprego das demais, ocasião em que a fungibilidade da pessoa no cumprimento do contrato firmado faz com que se distancie do vínculo empregatício. In verbis:

Pactuado sem pessoalidade, o contrato de locação de serviços distanciar-se-á bastante do pacto empregatício por acrescentar um segundo elemento essencial de diferenciação em contraponto ao tipo legal do ar.  3°, caput, da CLT – a pessoalidade. Contudo, a diferença essencial a afastar as duas figuras é a dicotomia autonomia versus subordinação. [...] a prestação de serviços pode ser pactuada com ou sem pessoalidade no que tange à figura do prestador laboral. Caso a infungibilidade da pessoa natural do prestador seja característica àquele contrato específico firmado, ele posicionar-se-á mais proximamente à figura da relação de emprego.

No caso dos aplicativos de transporte urbano, qualquer motorista apto e habilitado para direção de veículo automotor, nos moldes do Código de Trânsito Brasileiro, pode prestar os serviços, desde que cadastrados no sistema de cada empresa. A empresa Cabify, por exemplo, era a única a realizar a verificação de antecedentes criminais e exames toxicológicos, o que poderia atrair o caráter de singularidade de determinados sujeitos para a realização da atividade. A partir da vigência da Lei 13.640/2018, que regulamentou os aplicativos de transporte, todo motorista deverá possuir, além de CNH válida, a certidão negativa de antecedentes criminais.

Insta mencionar que a própria dinâmica do aplicativo não permite que se cogite a hipótese de pessoalidade, uma vez que o passageiro solicita a demanda para todos os motoristas cadastrados, filtrados meramente pela localização geográfica, possibilitado a todos estes aceitarem a corrida. Verifica-se que o aplicativo, sequer, determina qual será o motorista escolhido para prestação do serviço.

Neste sentido, o E. TRT3 defendeu a posição de que não há pessoalidade, uma vez que o motorista pode se fazer substituir por outro, desde que este também seja cadastrado na plataforma, o que se faz por motivos de segurança, mas não um critério admissional, ora vejamos:

“Diversamente do que se entendeu na origem, não há prova da pessoalidade na prestação de serviços, na medida em que o reclamante poderia, sim, fazer-se substituir por outro motorista, que também fosse cadastrado na plataforma [...] O motorista cadastrado no Uber pode, para o mesmo veículo, cadastrar outro motorista, recebendo o primeiro em sua conta os valores dos dois”. (TRT da 3ª Região - 9ª T - RO 0011359-34.2016.5.03.0112. Rel. Maria Stela Álvares da Silva – DJMG 26/05/2017. Disponível em: http://www.trt3.jus.br/. Acesso em: 01/03/2018).

Em apreço ao debate, não se pode confundir, porém, o elemento de individualidade do prestador com o fato de um empregado se fazer substituir por outro empregado. Em outros termos, o fato de o motorista ser substituído por outro, que também estaria supostamente sob o poder diretivo da empresa, não torna ausente o requisito da pessoalidade, mas apenas mera permutação momentânea de empregados de mesma função.

Fato é que o contrato de prestação de serviços pode exigir requisitos mínimos para sua realização, tais como a habilitação para dirigir - que é uma formalidade legal -, sem que isso necessariamente implique na singularidade do prestador, como o nível de expertise na função ou a técnica utilizada. Percebe-se que não há particularidade técnica, qualificação específica ou elementos intrínsecos ao indivíduo que o faça ser imprescindível para realização daquele tipo de serviço, distanciando-se, assim, da relação de emprego.

3.3 Onerosidade

A CLT, em seu art. 3°, define que empregado é aquele que presta serviços “mediante salário”. Na relação jurídica analisada, em tese, a empresa não remunera diretamente o prestador de serviços de transporte, mas, a contrario sensu, cobra uma tarifa pelos serviços de intermediação digital.

Não se pode perder de vista que quem estipula os preços cobrados, bem como a tarifa, é a empresa de “intermediação”, ocasião em que também recebe os pagamentos realizados. Conforme ensina MAIOR (2011a, p.66.), o trabalho assalariado tem sido tratado, tecnicamente, como aquele prestado sob a dependência de outrem, que exerce atividade organizada voltada para o lucro:

O trabalho assalariado, como dado característico de uma sociedade, dá-se no modelo capitalista de produção sendo este, precisamente, o objeto de incidência do Direito do Trabalho, tendo sido tratado, tecnicamente, quando da formação teórica deste ramo do direito, como trabalho prestado sob a dependência de outrem ou, simplesmente, trabalho subordinado, inserido em uma atividade organizada (a empresa moderna) voltada para o lucro e para a modulação de todos os arranjos sociais.

Os aplicativos que atuam no mercado brasileiro trabalham com tarifas de acordo com o valor cobrado pela corrida, cujos parâmetros da cobrança – valor do km percorrido, remuneração do tempo gasto em engarrafamentos e acréscimos em períodos mais valorizados do dia - também são estipulados pela gerenciadora da plataforma.  Ressalte-se que a remuneração do serviço não corresponde ao lucro líquido do motorista, tendo em vista que todas as despesas decorrentes do serviço são pagas pelo próprio condutor.

Uma vez que o contrato estipula não só o percentual, mas ambém o preço praticado para realização da corrida, em contrato de mera adesão, não se permite sustentar que o condutor remunere a empresa pela utilização da plataforma.  Apesar de o contrato afirmar que apenas estabelece um preço em prol da segurança na contratação entre as partes, o qual hipoteticamente não as vincula, não é o que se verifica na prática, pois não há possibilidade de negociação do preço – para ambas as partes.

Nesse aspecto, cumpre pontuar que os parâmetros para estipulação do preço, ainda que unilateralmente propostos, são previstos contratualmente por cada empresa de intermediação, facultado ao motorista aderi-los ou não. Ressalta-se que os motoristas habitualmente se cadastram em mais de um aplicativo e prestam serviços, por vezes, de forma concomitante ao longo do dia. Trata-se, logo, de uma relação comercial em que o motorista decide qual aplicativo contratar, ao avaliar qual empresa possui a melhor plataforma, maior capacidade de captação de clientes e, por conseguinte, melhor custo-benefício. A plataforma atua, meramente, como facilitadora do pagamento, retendo apenas a tarifa cobrada do motorista.

Não há que se falar no condutor remunerar a empresa pelos serviços de intermediação, tampouco na empresa remunerar o motorista pelos serviços de condução do veículo. Há uma divisão no faturamento, típico de um contrato de parceria, o que afasta o elemento da onerosidade, no sentido de contraprestação pecuniária (“mediante salário”), contido no art. 3° da CLT.

3.4 Não eventualidade

A não eventualidade é elemento expresso do art. 3° da CLT, haja vista que o conceito de empregado depende da prestação de serviços “de natureza não eventual” a empregador. Este pressuposto não pode jamais ser confundido com habitualidade, continuidade ou permanência, uma vez que o trabalho exercido pelos motoristas pode ter caráter seja de continuidade ou de transitoriedade.

Ao motorista que se cadastra para realizar serviços de transporte para aplicativos é facultado trabalhar no horário em que bem entender, cumprir qualquer jornada, sem qualquer tipo de controle, podendo, inclusive, sponte propria, optar por não realizar os serviços por dias, semanas ou meses, sem que isso implique em qualquer sanção. Um dos requisitos para o vínculo empregatício é a não eventualidade do serviço, que difere a relação de emprego da relação de trabalho eventual.

Este elemento é o maior óbice à caracterização do vínculo de emprego, uma vez que os serviços podem ser realizados a qualquer momento, basta o motorista, unilateralmente, decidir estar disponível para realiza-lo. Dessa maneira, é possível encontrar condutores que utilizam os aplicativos como fonte extra de renda , enquanto outros os utilizam de forma integral, por vezes até extrapolando a jornada legalmente permitida sem que o aplicativo bloqueie seu uso - é enviada apenas uma mensagem alertando o condutor acerca do elevado período em que está dirigindo -, de maneira a contribuir para a precarização da relação de trabalho, trazendo prejuízos para própria saúde do trabalhador, bem como a dos demais usuários, transeuntes e perigo ao trânsito.

Em razão do Princípio da Primazia da Realidade[1], é possível sustentar que, para aquelas pessoas físicas que laboram não-eventualmente, haveria o vínculo de emprego, circunstância que obrigaria a empresa administradora da plataforma à assinatura da CPTS do obreiro, recolhimento de FGTS, pagamento de eventuais horas-extras, adicionais noturnos, intervalos, férias acrescidas de 1/3 e décimo terceiro salário, além das demais garantias trabalhistas previstas na CLT.

De outro modo, em respeito ao Princípio da Segurança Jurídica[2], não é razoável que a empresa fique refém da situação fática à qual o próprio motorista optou por se enquadrar, inclusive dado o fato de, por vezes, o motorista optar por trabalhar de forma frequente e noutras se ausentar indeterminadamente. Ou seja, independentemente da comparação entre motoristas, o próprio condutor, individualmente, pode optar por trabalhar de forma 'não-eventual' em determinados dias, e, no mesmo mês, optar por se ausentar ou trabalhar eventualmente.

Fundamental esclarecer, portanto, que o elemento da não eventualidade depende da circunstância fática em que o próprio motorista está inserido, não podendo ser analisado de forma genérica, mas, sim, individualmente. Na relação entre aplicativos de transporte urbano privado e motoristas, trata-se de uma variável inerente à própria modalidade de contrato.

Urge pontuar também que, conforme dito em parágrafos pretéritos, os condutores se cadastram em mais de um aplicativo e se disponibilizam para realização de corridas concomitantemente, aceitando a demanda de qualquer uma das empresas ao momento em que é solicitado. Desse modo, durante sua jornada de labor, encontram-se à disposição de mais de uma empresa ao mesmo tempo, prestando serviços para quem o próprio motorista decidir prestar, corroborando com a total ausência do requisito da não-eventualidade (e da subordinação, conforme tópico a seguir) e, além disso, dificultando sobremaneira qualquer controle de jornada que pudesse ser realizado.

Ao analisar todos esses fatores, em suma, (i) a ausência de exigência da prestação do serviço pela empresa; a conseguinte (ii) ausência de jornada de trabalho pré-estabelecida; (iii) a autonomia do prestador na escolha da demanda; (iv) a autonomia do prestador na frequência da realização do serviço (v) a concomitância do tempo à disposição com outras empresas; (vi) a impossibilidade de realizar o efetivo controle da jornada, percebe-se a inexistência do pressuposto da 'não-eventualidade'.

3.5 Subordinação

A subordinação é o elemento basilar para se reconhecer a relação de emprego ao passo que o trabalho subordinado é “o objeto do contrato regulado pelo Direito do Trabalho”, segundo BARROS (2010, p 267.). Também sob a nomenclatura genérica de “dependência”, esclarece-se que a doutrina tratou de qualificá-la de diversas formas, tais como subordinação (i) técnica, (ii) social, (iii) jurídica; e (iv) econômica. O critério que é amplamente aceito, seja pela jurisprudência quanto pela doutrina majoritária, é o da subordinação jurídica em que um dos sujeitos tem o direito de comandar e nasce a obrigação para o outro de se submeter.

PONTES DE MIRANDA (1954-1974, t.47, p.73, n.2.), ensina que subordinado é aquele que fica “sob as ordens e a disciplina do empregador”. Ainda assim, é fundamental pontuar que a subordinação sempre varia de intensidade segundo a natureza da prestação de trabalho, passando de um máximo a um mínimo, conforme aduz RIVA SANSEVERINO (1976, p49.). Por sua vez, DELGADO (1996, p. 140.) chega a afirmar que “a subordinação é compatível, inclusive, com uma profunda democratização intraempresarial, já que não se descaracteriza pela rarefeita presença de ordens e comandos e crescente ampliação do exercício liberdade/vontade/responsabilidade pelo produtor direto”.

Para aplicação desse conceito à relação de trabalho é necessário compreender que a interpretação clássica do conceito de dependência não basta para sua determinação, em vista do fato de que o motorista de aplicativo não recebe ordens, ou tampouco é submetido a um hipotético poder diretivo do aplicativo, submetendo-se a regras de conduta para exercício da atividade - o que não excede o mínimo pactuado em qualquer prestação de serviços autônoma:

“É que dificilmente existe contrato de prestação de serviços em que o tomador não estabeleça um mínimo de diretrizes e avaliações básicas à prestação efetuada, embora não dirija nem fiscalize o cotidiano dessa prestação. Esse mínimo de diretrizes e avaliações básicas, que se manifestam principalmente no instante da pactuação e da entrega do serviço (embora possa haver uma ou outra conferência tópica ao longo da prestação realizada) não descaracteriza a autonomia. Esta será incompatível, porém, com uma intensidade e repetição de ordens pelo tomador ao longo do cotidiano da prestação laboral. Havendo ordens cotidianas, pelo tomador, sobre o modo de concretização do trabalho pelo obreiro, desaparece a noção de autonomia, emergindo, ao revés, a noção e realidade da subordinação”, DELGADO (2011, p. 572.).  

Para uma melhor análise do conceito de subordinação nos dias de hoje, em que o avanço das relações de trabalho e das tecnologias é latente, a interpretação da ideia de dependência merece reformulações, amoldando-se ao que DELGADO (2011, p. 294-295.) chama de “desafios da cambiante sociedade de economia capitalistas”:

“Na essência, é trabalhador subordinado desde o humilde e tradicional obreiro que se submete à intensa pletora de ordens do tomador ao longo de sua prestação de serviços (subordinação clássica), como também aquele que realiza, ainda que sem incessantes ordens diretas, no plano manual ou intelectual, os objetivos empresariais, a par do prestador laborativo que, sem perceber ordens diretas das chefias do tomados de serviços, nem exatamente realizar os objetivos do empreendimento (atividades-meio, por exemplo), acopla-se estruturalmente, à organização e dinâmica operacional da empresa tomadora, qualquer que seja sua função ou especialização, incorporando, necessariamente, a cultura cotidiana empresarial ao longo da prestação de serviços realizada (subordinação estrutural). A compreensão de tais dimensões do fenômeno subordinativo não somente permite adequar o conceito jurídico, pela via interpretativa, às modificações da vida real, renovando o necessário expansionismo do ramo juslaborativo, como também relativiza a utilidade de fórmulas jurídicas restritivas de direitos sociais e fundamentais. Demonstra ademais, a elevada capacidade de adaptação do Direito do Trabalho aos desafios da cambiante sociedade de economia capitalistas”

Por essa razão, passemos ao estudo da qualificação doutrinária acerca da noção de dependência que melhor se aplicaria à relação factual, qual seja, a subordinação estrutural.

3.5.1 Subordinação estrutural

Também denominada subordinação integrativa, a subordinação estrutural ocorre quando “o empregado desempenha atividades que se encontram integradas à estrutura e à dinâmica organizacional da empresa, ao seu processo produtivo ou às suas atividades essenciais (...)”, GARCIA (2009. p.64.). No mesmo sentido, a doutrina também a denomina de subordinação objetiva, uma vez que atua diretamente sobre o modo da realização do serviço e não sobre a figura do empregado.

No entendimento de DELGADO (2006b. p.657 e 667.), estrutural é a subordinação que se manifesta pela inserção do trabalhador na dinâmica do tomador de seus serviços, acolhendo, estruturalmente, sua dinâmica de organização e funcionamento.

A doutrina entende que, para aplicação da subordinação estrutural, a atividade exercida pelo empregado seria imprescindível para a atividade-fim da empresa, gerando uma situação de interdependência. Percebe-se que a classificação doutrinária de subordinação estrutural é extremamente ampla, de forma que pode se confundir com qualquer relação contratual estritamente civil. Data venia, se subordinar a outrem deveria versar, exclusivamente, acerca da relação subjetiva inter partes, conforme preconiza o entendimento relativo a subordinação jurídica, e não à natureza  do serviço prestado.

Partindo desta premissa, a Desembargadora Maria Stela Álvares concluiu que “o fato da empresa reclamada orientar os motoristas sobre a forma de atendimento aos clientes não autoriza concluir pela existência de subordinação” e acrescentou:

 “O conceito de subordinação estrutural adotado na r. sentença recorrida, na verdade possibilitaria o reconhecimento de vínculo de emprego em quase qualquer situação de contratação submetida à Justiça do Trabalho, de forma irrestrita, sem sequer necessidade da produção de provas e afastando-se a necessária aferição dos requisitos da relação de emprego em frente a determinada pessoa apontada como empregador. Dificilmente, em uma economia capitalista e em que as atividades econômicas se interligam, uma não se insere ou se interliga com outra - ainda que presente uma rede de interesses e atividades, é necessário ir muito mais além para se poder concluir por existência de relação de emprego”. (TRT da 3ª Região - 9ª T - RO 0011359-34.2016.5.03.0112. Rel. Maria Stela Álvares da Silva – DJMG 26/05/2017. p.18. Disponível em: http://www.trt3.jus.br/. Acesso em: 01/03/2018).

Sempre haverá divergência interpretativa quanto à atividade-fim dos aplicativos, pois, ao mesmo tempo em que, à luz da Teoria da Aparência, as empresas oferecem serviços de transporte de passageiros, os aplicativos, de fato, prestam serviços de intermediação digital entre motoristas e passageiros. Esse é o cerne da questão no que tange à análise fática que envolvem as partes – aplicativos e motoristas -, pois, ao passo em que se compreende que a intermediação de pessoas é uma atividade econômica per si nos dias atuais, verifica-se que a gestão de uma plataforma digital por meio de aplicativos é a própria atividade empresarial.

Com o avanço da tecnologia, é possível reunir pessoas a partir de seus interesses de forma muito mais eficiente do que a anos atrás. Os aplicativos se destinarem à intermediação de usuários para solicitação e prestação de serviços de transporte (atualização de mapas, rotas, localização de cada motorista e usuário por meio de GPS para facilitar a solicitação de demanda, etc.) não os torna prestadores desse serviço.

MOTORISTA CADASTRADO NO APLICATIVO UBER - AUSÊNCIA DE RELAÇÃO DE EMPREGO. -. A finalidade do aplicativo desenvolvido e utilizado pela reclamada é conectar quem necessita da condução com quem fornece o transporte, sem os pressupostos dos artigos 2o e 3o da CLT, em especial a pessoalidade e a subordinação jurídica, o que impede o reconhecimento da relação de emprego. (TRT-3 - RO: 00107950220175030183 0010795-02.2017.5.03.0183, Relator: Convocado Danilo Siqueira de C.Faria, Quinta Turma)

O julgado acima colacionado demonstra o entendimento de que o objeto social da Uber não é o transporte de passageiros em si, mas, sim, o fornecimento de instrumentos que viabilizem o contato entre usuários que necessitam de serviços de transporte e motoristas que se dispõem a realiza-lo.

Além disso, a própria profissão de corretor de imóveis atua na intermediação de donos de imóveis e possíveis compradores/locatários (excluindo da apreciação empresas cuja atividade-fim seja a corretagem) e a representação comercial, na mediação para realização de negócios mercantis, ambas regidas por lei especial, e não a CLT.

Citam-se também,, por exemplo, o site "AirBnb", que faz a intermediação de pessoas a procura de hospedagem e os hotéis, ou o site "GetNinjas", que permite que a pessoa descreva sua demanda nas mais diversas áreas de prestação de serviços (assistência técnica, mecânicos, serviços domésticos, aulas, etc.) e possibilita aos prestadores tomarem conhecimento e, mediante pagamento de tarifa pré-estabelecida, liberam-se os contatos dos possíveis clientes para negociação.

 O fato de os aplicativos estabelecerem o preço estimado das corridas visa a apenas garantir a segurança na contratação prévia entre motoristas e passageiros, todavia, não se percebe subordinação do motorista ao aplicativo, pelo seguinte: o próprio condutor se cadastra e disponibiliza seus serviços por meio de mais de um aplicativo concomitantemente, além de poder escolher a quem e se vai realizar os serviços ou não. No que diz respeito à eventuais "sanções" do aplicativo, imperioso destacar que as empresas não sancionam o motorista por não realizar corridas, porém, nos casos de cancelamento ou má prestação do serviço (mudança desnecessária de rota, atendimento, etc.), o próprio passageiro, enquanto consumidor final, quem realiza avaliações as quais o motorista está sujeito à restrições ao uso da plataforma segundo regras previamente contratadas.

Com os elementos que foram expostos, ainda que haja a estipulação de certos ditames para prestação do serviço, é oportuna a concepção de DELGADO (2011, p. 572.), em que “dificilmente existe contrato de prestação de serviços em que o tomador não estabeleça um mínimo de diretrizes e avaliações básicas à prestação efetuada”, o que, considerada também a amplitude e generalidade da tese de subordinação estrutural, corrobora com a argumentação de que não há qualquer subordinação jurídica, mas o estrito cumprimento de obrigações contratuais pré-estabelecidas sob total ingerência do aplicativo.


4 – TRABALHO AUTÔNOMO / TRABALHO INTERMITENTE

Segundo BARROS (2006, p.221.), ao trabalho autônomo, falta o pressuposto da subordinação jurídica, portanto, está fora da égide da relação de emprego. Entende-se que o trabalhador autônomo não está inserido no círculo diretivo e disciplinar de uma organização empresarial, ao exercer sua atividade de modo totalmente autossuficiente, para DELGADO (2011, p. 571):

[...], em geral, um profissional no tocante às tarefas para as quais foi contratado. Nesse sentido, tende a ter razoável conhecimento técnico-profissional para cumprir suas tarefas de modo autossuficiente.

Neste caso, então, o aplicativo seria, hipoteticamente, desprovido de poder jurídico para organizar e dirigir o serviço alheio, uma vez que se espera uma postura passiva no que tange ao modus operandi. Todavia, independentemente da forma de atendimento ao cliente a qual o motorista é compelido a adotar, o que não caracteriza a subordinação, conforme entendimento majoritário do Egrégio TRT da 3ª Região, o fato de a empresa determinar o preço a ser cobrado pelo serviço, bem como a tarifa para utilização a plataforma digital, representa embaraço para a concepção clássica do trabalho autônomo. Oportuna a compreensão de MAIOR (2008 p.178.):

Do ponto de vista de uma avaliação técnico-jurídica, deve-se lembrar de que trabalhador autônomo é apenas aquele que ostenta os meios de produção e trabalha para si, sem intermediários, junto ao mercado de consumo, usufruindo, integral e livremente, do fruto de seu trabalho.

Conforme mencionado, há uma linha tênue que separa a atividade econômica da empresa em prestar serviços de transporte ou intermediação de usuários. Atenta-se que a estipulação do preço visa a fornecer aos usuários-passageiros maior previsibilidade, praticidade e segurança na contratação dos serviços perante o aplicativo, uma vez que qualquer motorista próximo ao local pode se habilitar para “aceitar a corrida”, o que prejudicaria o consumidor final caso fossem cobrados valores diferentes. Isto, entretanto, poderia atrair a interpretação de que a atividade-fim da empresa fosse, então, a prestação de serviços de transporte.

Sob a ótica da reforma trabalhista, a contratação de autônomo, de forma contínua ou não, afasta a relação de emprego desde que satisfeitas as formalidades legais. Inclusive, insta pontuar que ainda que houvesse cláusula de exclusividade, não afastar-se-ia o caráter autônomo da relação em tela.

De toda forma, os motoristas não possuem exclusividade, mas, pelo contrário, costumam prestar serviços para todas as empresas do ramo, concorrentes entre si, simultaneamente. O prestador fica disponível em todas as plataformas, aguardando solicitação de clientes, tornando-se forte indício de prestação autônoma de serviços, nos moldes do art. 442-B, da CLT. Ainda, é facultado ao motorista recusar corridas e até mesmo desistir de algumas sem qualquer prejuízo, desde que o cliente não tenha adentrado o veículo.

Quanto à tese de trabalho intermitente (art. 452-A/CLT), inovação da Reforma Trabalhista, existe a necessidade da empresa na prestação de serviços do condutor, que o convocaria com três dias de antecedência para cumprir determinada jornada. No caso em apreço, a dinâmica do aplicativo não pretende subordinar o motorista de forma a requisitar a prestação do serviço por determinado período, razão pela qual não há que se sustentar a hipótese de trabalho intermitente.

 É possível constatar a existência de uma relação típica de trabalho que necessita regulação própria, a fim de se evitar a própria precarização. O Código Civil, no art. 593, aduz é regida pelo próprio ordenamento a prestação de serviço que não está sujeita às leis trabalhistas ou a lei especial. Compreende-se que, diante dos fatos expostos, não se deve afastar a competência da Justiça do Trabalho, porém, tampouco, reconhecer suposta relação de emprego.

Dessa forma, o caminho mais viável para essa nova categoria de trabalho é a regulamentação por lei especial. Por exemplo, o exercício da atividade de representação comercial, que também diz respeito à intermediação de negócios, é regida pela Lei nº 4.886/65, afastando a existência da relação de emprego pela constatação de insubordinação e autonomia do trabalhador. Em que pese a criação da Lei 13.640/18, que estabelece obrigações recíprocas para aplicativos e motoristas, ainda se poderia incrementar aspectos específicos da relação de trabalho em comento, como, v.g, a limitação da jornada além do máximo legal, possibilidade de acordos individuais/ coletivos e afins.

Assim como ocorre com todo empreendedor, o ordenamento jurídico deve respeitar a autonomia privada do cidadão que opta por não trabalhar em uma relação típica de emprego – mediante subordinação, controle de jornada, etc. – mas prestar serviços de forma independente, que o possibilitem auferir lucro e gerir o próprio negócio.


5 – RELAÇÃO DE CONSUMO

As empresas afirmam prestarem serviços de intermediação digital sob demanda, por meio de plataformas tecnológicas, “que permitem que prestadores de transporte busquem, recebam e atendam solicitações de serviços de transporte feitas por usuários que procurarem por tais serviços (...)”. Por conseguinte, tanto o passageiro, que utiliza o aplicativo a fim de conseguir o meio de transporte, quanto  o  motorista, que o utiliza a fim de localizar passageiros, sob a perspectiva jurídica, são considerados consumidores, pois utilizam o produto (plataforma digital) e o serviço (intermediação sob demanda) enquanto destinatários finais.

Além disso, os aplicativos ressaltam, nos documentos disponibilizados aos motoristas, não atuarem no ramo de prestação de serviços de transporte, o que, também, corrobora com a configuração da cadeia de consumo, nos termos dos artigos 12 e 14 do CDC. Os motoristas utilizam o sistema dessas empresas para o próprio trabalho, cumprindo, assim, os requisitos da Teoria Finalista Mitigada, segundo entendimento do E. Tribunal de Justiça de Minas Gerais, em consonância com o E. Superior Tribunal de Justiça:

AGRAVO DE INSTRUMENTO - AÇÃO DE INDENIZAÇÃO - PESSOA FÍSICA - VULNERABILIDADE - TEORIA FINALISTA MITIGADA - CDC - APLICAÇÃO - INVERSÃO DO ÔNUS DA PROVA - POSSIBILIDADE. - A atual jurisprudência, inclusive do Superior Tribunal de Justiça, tem se assentado no sentido de ser aplicável a denominada Teoria Finalista Aprofundada ou Mitigada, que alarga o conceito de consumidor abarcando todo àquele que possua vulnerabilidade em face ao fornecedor, seja ela técnica, jurídica ou econômica. - Presente o requisito da vulnerabilidade do consumidor, imperiosa se faz a inversão do ônus da prova. - Recurso provido.  Decisão reformada. (TJ-MG - AI: 10056092029034001 MG, Relator: Mariângela Meyer, Data de Julgamento:  22/04/2014,  Câmaras  Cíveis  /  10ª  CÂMARA  CÍVEL, Data de Publicação: 30/04/2014)

Conclui-se que, ao passo em que a intermediação de pessoas para prestação de serviços de transporte é a atividade-fim das empresas e que cobram um percentual do motorista por utilizar a plataforma, verifica-se a relação de consumo. A partir dessa constatação, há a responsabilidade objetiva dos aplicativos para com os condutores e, solidariamente a estes, para com os passageiros (art. 18/CDC).

Entende-se, portanto, existir clara parceria entre os sujeitos, a qual deveria ser melhor estruturada por meio de lei especial, tal como ocorreu com a “Lei do Salão Parceiro”, em 2016, que reconhece a existência de relação de trabalho atípica, passível de ser regulamentada de forma específica, e não  pela generalidade da CLT.


6 – CONTRATO DE PARCERIA

O contrato de parceria foi concebido a partir do Decreto n°. 59.566/66, de natureza agrária, em que o proprietário detentor de determinado imóvel rural cede seu uso a outra pessoa para que nele seja exercida atividade mediante partilha de riscos e divisão de lucros nas proporções que estipularem. No século XXI, as plataformas digitais se tornaram o meio pelo qual é possível realizar diversos negócios (compras, vendas, locações, serviços, etc). Cada vez mais, captar usuários é uma atividade-econômica, possibilitando a mediação entre quem pretende contratar e ser contratado, vender e comprar.

No caso do prestador de serviços individual, por muitas vezes não há capacidade econômica para manter um site, quiçá um aplicativo que disponibilize mapas, trajetos e preços ao cliente. Se unir à uma empresa com a capacidade de captar usuários que, ao longo do dia, solicitam inúmeras corridas, se beneficiando diretamente da gestão, manutenção da plataforma, além da facilidade de pagamento e segurança, é uma forma de estender o alcance do próprio negócio.

 Permeada por estes conceitos, em 2016 surge a Lei 13.352/16, que visa a regular a profissão de barbeiros, cabelereiros, maquiadores e etc., que se utilizam do ponto comercial, marca e clientela de determinado estabelecimento para exercerem suas atividades. Percebe-se que a atividade-fim dos salões de beleza é a mesma dos profissionais autônomos e, ainda, há fortes elementos da relação de emprego a partir da tese de subordinação estrutural, além de preenchidos todos os pressupostos do art. 3°/CLT, tendo em vista haver jornada estabelecida, preço tabelado, etc.

Em face da divisão do faturamento, proporcional à prestação dos serviços, da fidelização dos clientes pessoais do cabelereiro, mas, principalmente, da interdependência existente, o legislador optou por adequar a relação ao regime de parceria. Neste caso, a empresa é responsável pela centralização dos pagamentos decorrentes da prestação de serviços, retém a sua cota-parte percentual fixada em contrato, bem como recolhem tributos, contribuições sociais e previdenciárias incidente sobre a cota-parte deste na parceria.

Ao trabalhador é oferecida toda a estrutura do estabelecimento, além da parte administrativa e operacional, o que justifica o percentual retido pelo salão, além da clientela (muitas vezes pelo ponto comercial) – tal como nos aplicativos de transporte. Só haveria o vínculo empregatício caso não exista contrato formal de parceria, nos moldes da lei específica, ou o desempenho de funções estranhas a ele:

CABELEIREIRO. REGIME DE PARCERIA. INEXISTÊNCIA DE VÍNCULO EMPREGATÍCIO. Inadmissível o reconhecimento do vínculo de emprego entre o cabeleireiro e o salão de beleza quando há entre as partes contrato sob regime de parceria válido mediante o qual o profissional recebe parcela significativa do produto auferido com o seu trabalho e em troca utiliza a estrutura fornecida pelo salão. (TRT-3 - RO: 00104810920165030113 0010481- 09.2016.5.03.0113, Relator: Camilla G.Pereira Zeidler, Terceira Turma)

Com várias semelhanças aos serviços dos aplicativos de transporte urbano, os motoristas se utilizam da empresa pela credibilidade da marca, ampliação na captação de clientes e segurança para o prestador de serviço e para o consumidor final. Os passageiros que precisam do transporte urbano buscam pelo aplicativo, e não pelo motorista individual, o que demonstra que a empresa é que possue a clientela.  Constata-se que a relação é positiva para ambos os polos, existindo, inclusive, o recolhimento previdenciário e de contribuições sociais pelo trabalho, conforme preconiza a nova Lei 13.640/18.

O sistema capitalista afirma a preponderância da economia de mercado ao passo em que cada indivíduo deve empenhar-se por seus próprios interesses, celebrar seus próprios contratos, em meio social que seja competitivo, sem intervenção estatal nas relações privadas, conforme lição de DELGADO (2006, p. 75.):

[...] a perspectiva individualista de análise da economia e da sociedade, a defesa da propriedade privada, do lucro e do capitalismo como valores naturais e prevalentes de organização socioeconômica; a censura ao intervencionismo e dirigismo estatais, por serem considerados tendentes a produzir restrições ao livre interesse das forças do capital; a concepção de equidade e justiça com base no estrito esforço individual, em harmonia com a ideia da imanente racionalidade do funcionamento do sistema capitalista.

É possível analisar a relação jurídica objeto do presente artigo sob o prisma da convergência de interesse entre particulares, uma vez que a empresa fornece o meio pelo qual o trabalhador independente possa ampliar seu alcance de mercado, sendo-lhe, inclusive, facultado a qual(is) aplicativo(s) se vincular para captação de clientes. A Des. Maria Stela assim esclarece:

“Havendo novas possibilidades de negócios e de atividades pelo desenvolvimento da tecnologia, das comunicações, das transferências de dados e informações, haverá uso delas, que servirão como ferramentas, inclusive em oferta de bens e serviços de natureza antes impensáveis ou inviáveis de serem colocados em prática, gerando novo conceito de negócio ou novo objeto de negócio. Neste cenário é que surgem novos objetos de negócios e uso e ampliação de utilização de aplicativos como o Uber e o Airbnb (na área de hospedagem), por exemplo, que estabelecem contato direto entre consumidores e fornecedores. E, também, não se pode olvidar que conseguem fomentar ganhos expressivos em eficiência, custo e comodidade nas transações para seus usuários.”

Trata-se de relação flexível, em que o detentor da mão-de-obra possui a faculdade de laborar quando quiser, é remunerado na proporção de seu trabalho, e utiliza-se da plataforma digital para facilitar a prestação de serviço e captação de clientela. A opção do profissional liberal de se vincular aos aplicativos é fruto da livre iniciativa, que é fundamento da ordem econômica constitucional. Nesse sentido, oportuno mencionar que “a livre-iniciativa é expressão de liberdade titulada não apenas pelo capital, mas pelo trabalho” (GRAU, 2008, p. 213-214.).

Ademais, há de se considerar que esses aplicativos viabilizaram uma forma de renda para milhares de brasileiros[3] e que o avanço tecnológico, que usualmente têm retirado diversos postos de trabalho - principalmente com a robotização da produção industrial - desta vez, criou oportunidade de trabalho e receita para milhares de cidadãos.


7 - CONCLUSÃO

Nos dias atuais, conectar pessoas é uma atividade econômica per si, como se verifica das inúmeras, rentáveis e populares redes sociais: Facebook, Instagram, Linkedin, Whatsapp, Snapchat, etc. A gestão de uma plataforma digital, seja por meio de sites ou aplicativos, é uma atividade empresarial, de forma que é benéfico para a economia que hajam empresas dispostas a realizarem essa intermediação de usuários. No caso de profissionais autônomos, prestadores de serviços, tais empresas possibilitam a captação de clientes de forma extremamente mais eficiente do que a mera indicação, distribuição de panfletos e cartões comerciais. Ademais, elas atraem para si, por meio da cadeia de consumo, a responsabilidade por essa prestação de serviços, o que torna a negociação mais confiável para o consumidor final, gerando, assim, credibilidade ao prestador de serviço - haja vista a necessidade de cadastro prévio.

Após o estudo realizado, não há relação de emprego entre motoristas e aplicativos, uma vez que restam ausentes diversos pressupostos do art. 3° da CLT, com destaques para a ‘não-eventualidade’ e a ‘subordinação jurídica’, adotada pela Lei 13.467/17. Trata-se de trabalho autônomo, pela literalidade do art. 442-B da CLT, assemelhando-se ao contrato de parceria, tal como na Lei 13.352/2016.

O profissional possui a liberdade de contratar com diversas empresas, disponibilizando seus serviços de forma simultânea e atendendo a demanda de concorrentes entre si. Ainda assim, a parceria entre as partes é positiva para ambas, retrato de um novo conceito de negócio, que possibilita o fomento econômico de forma eficiente, sem lesar o trabalhador. O Direito deve manter-se sempre atento a essas mudanças, para que se resguarde os indivíduos, porém, jamais tornar-se óbice à livre iniciativa, que é fundamento da ordem econômica constitucional, expressão de liberdade por meio do trabalho.


Notas

[1]“[...] significa que as relações jurídico-trabalhistas se definem pela situação de fato [...]” BARROS (2010, p. 186.)

[2] “[...] a continuidade das normas jurídicas, a estabilidade das situações constituídas e a certeza jurídica que se estabelece sobre situações anteriormente controvertidas [...]” BARROSO (2002, p.49.) apud PENARIOL (2012)

[3] IBGE, Desemprego recua em dezembro, mas taxa média do ano é a maior desde 2012. (Disponível em: https://agenciadenoticias.ibge.gov.br/agencia-noticias/2012-agencia-de-noticias/noticias/19759-desemprego-recua-em-dezembro-mas-taxa-media-do-ano-e-a-maior-desde-2012.html. Acesso em 28/03/2018).


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Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

BALTHAR, Victor Penchel. O contrato de parceria em aplicativos de transporte urbano. Análise dos pressupostos da relação de emprego e consumo. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 24, n. 5763, 12 abr. 2019. Disponível em: https://jus.com.br/peticoes/72150. Acesso em: 24 abr. 2024.