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Covid-19: os impactos da pandemia nas compras públicas

Covid-19: os impactos da pandemia nas compras públicas

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Reflexões breves sobre as flexibilizações ensejadas pelas Medidas Provisórias nº 926 (Lei 14.035/2020) e nº 961 (Lei 14.065/2020), que acrescentaram regras essenciais ao regime de compras públicas em tempos de pandemia.

A crise sanitária provocada pelo coronavírus, ao longo de 2020, repercutiu sucessivamente em diversas searas do ordenamento jurídico brasileiro. Com isso, pretende-se analisar os reflexos da pandemia nas atuações do Direito Administrativo, no que tange às contratações governamentais.

Oportuno registrar que o governo federal, antes mesmo que houvesse o primeiro caso confirmado de contaminação por Covid-19 no Brasil, promulgou, no dia 06 de fevereiro de 2020 a Lei nº 13.979, que dispõe sobre as medidas para enfrentamento da emergência de saúde pública de importância internacional decorrente do coronavírus, responsável pelo surto de 2019.[1]

A Lei nº 13.979/2020, com o objetivo de conferir maior agilidade nas contratações governamentais, estabeleceu, em seu art. 4º (vide Lei 14.035/2020), a hipótese de dispensa de licitação para a aquisição ou contratação de bens, serviços, inclusive de engenharia, e insumos destinados ao enfrentamento da emergência de saúde pública decorrente do coronavírus. Procedimento no qual não há a disputa de interessados por meio de procedimento licitatório.

Ademais, um ponto interessante aduzido pelo art. 4º-A da Lei nº 13.979/2020, incluído pela Medida Provisória nº 926 (vide Lei 14.035/2020), refere-se à não restrição de equipamentos novos, desde que o fornecedor se responsabilize pelas plenas condições de uso e funcionamento. Esta previsão legislativa foiprimordial para a Administração Pública, tendo em vista a carência de aparelhos elementares para o tratamento da doença, além de possibilitar uma maior negociação dos preços ofertados.

Destarte, em uma situação em que houvesse restrição de fornecedores ou prestadores de serviços, considerando a escassez de empresas para atender a demanda do órgão público, o art. 4º- F da Lei nº 13.979/2020, vide Medida Provisória nº 926 (Lei 14.035/2020), dispôs acerca da possibilidade de dispensar a apresentação de documentos relativos à regularidade fiscal, desde que devidamente justificado pela autoridade competente.

Ora, foi mitigada a exigência de um requisito essencial dos contratos administrativos, nos termos do art. 27 da Lei n 8.666/93, a fim de acompanhar o contexto mercadológico propiciado pela disseminação do Coronavírus no país.

Salienta-se que a pandemia provocou uma corrida a nível mundial por certos insumos e equipamentos, alterando-se as condições econômicas presentes em tempos de normalidade. Fato é que a demanda aumentou por determinados produtos, como por exemplo, máscaras, álcool em gel, ventiladores pulmonares e equipamentos de proteção individual, intensamente utilizados no enfrentamento da Covid-19.

Consequentemente, a alta procura pelos mesmos objetos ocasionou as constantes oscilações de preços, somada a fatores de ausência de estoques e insuficiência de matérias-primas empreendidas na produção destes utensílios.

Outrossim, esta conjuntura pressionou os órgãos governamentais a efetuarem contratações e pagamentos mais céleres, sob pena de padecer com o desabastecimento de materiais médicos.

Deste modo, foi editado o Diploma Provisório nº 961 (Lei 14.065/2020), prevendo o pagamento antecipado de produtos e serviços pelo setor público, desde que isso fosse indispensável para obter o bem e assegurar a prestação de serviço, ou propiciar significativa economia de recursos.

Insta destacar que, através desta flexibilização, o gestor público teve mais condições na obtenção das utilidades empreendidas no combate da Covid-19, em âmbito da União, Estados e Municípios.

Observa-se que a Lei nº 13.979 vinculava-se ao Decreto Legislativo nº 6, de 20 de março de 2020, que reconheceu o estado de calamidade pública para fins exclusivamente fiscais, com efeitos até 31 de dezembro de 2020.

No entanto, o Supremo Tribunal Federal, mediante a análise do Ministro Ricardo Lewandowski, no pedido de tutela de urgência em Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADI 6625), formulada pelo partido político Rede Sustentabilidade, prorrogou o estado de calamidade pública no que se refere às medidas sanitárias do enfrentamento da pandemia, na qual manteve-se a vigência dos arts. 3°, 3°-A, 3°-B, 3°-C, 3°-D, 3°-E, 3°-F, 3°-G, 3°-H e 3°-J da Lei nº 13.979/2020.

Dessa forma, ainda que cessada a eficácia do instrumento jurídico, objeto deste artigo, visto estar atrelado à vigência do estado de calamidade, faz jus a análise de sua relevante contribuição no ordenamento jurídico brasileiro.

Conforme exposto por Cristiano Heckert, secretário de Gestão do Ministério da Economia, com a pandemia, houve aumento na demanda por produtos específicos, na qual algumas empresas exigiam a antecipação do pagamento, para garantir a venda, sendo a medida necessária ao atendimento às mudanças no mercado: “A administração pública não tinha esse instrumento de pagamento antecipado, era preciso esperar entregar para pagar”, asseverou Heckert.

Ademais, o secretário adjunto deste órgão, Renato Fenili, durante o debate online do Convergência Digital em Pauta sobre compras públicas, explicou:

A MP 961 trouxe para o mundo jurídico a possibilidade de pagamento antecipado. Por exemplo, se uma empresa com menor pujança econômica colocar na negociação a condição do pagamento antecipado, ou o mercado indicar uma economia significativa de recursos. Se for para receber daqui a 30 dias é tanto. Mas se for à vista, pode ser menos. Aí tá possibilitado o pagamento antecipado. Ou ainda, pagar metade antes, metade depois. É uma lógica próxima do mercado privado, do B2B.

Cumpre destacar que os desdobramentos provocados pelo Coronavírus, trouxe à baila a fragilidade econômica do Brasil a outros países, em especial à fatores de submissão ao mercado internacional, haja vista a ausência de produção suficiente de itens médicos, empreendidos no combate de uma doença respiratória com alta taxa de propagação.

Em entrevista para o BBC News Brasil (2020), Antoine Bondaz, pesquisador da Fundação francesa para a Pesquisa Estratégica e professor do Instituto de Estudos Políticos de Paris, declarou que “a crise sanitária levará a reflexões sobre o aspecto estratégico da saúde e a necessidade de produzir localmente para reduzir o risco de falta de produtos, como ocorre atualmente no mundo todo”.

Bondaz (2020) demonstra, ainda, a recente corrida global pela aquisição de produtos, na qual os países da América Latina e África são obrigados a concorrer com economias ricas, necessitando fazer encomendas gigantes e, muitas vezes, pagando bem mais por elas. 

Para o pesquisador Antoine Bondaz (2020), uma saída seria que “o Brasil fizesse compras de máscaras e outros equipamentos em conjunto com países da América Latina para ter mais peso na disputa com economias ricas pelos produtos.”

Neste momento ímpar, fica perceptível a carência da indústria nacional brasileira concernente à produção de equipamentos e produtos para a área da saúde, provocadas pela insuficiência de investimentos em um setor primordial para a vida humana.

Nesta senda, urge cada vez mais investir satisfatoriamente em políticas públicas de saúde, visando a assegurar a efetividade deste direito fundamental, conforme expressam os artigos 6º e 196 da Constituição Federal de 1988.

Isto posto, torna-se imprescindível a implementação de um polo industrial médico-hospitalar no Brasil, que, inclusive, possui potencialidades internas para sua concretização, com o intuito de atender seguramente à demanda nacional, quanto aos principais materiais hospitalares, evitando assim, um possível colapso na saúde pública decorrentes do desprovimento de tais materiais.

Logo, tal medida estratégica promoveria o desenvolvimento nacional, com a respectiva geração de empregos, estabelecendo a proteção e fomento da economia. Além do mais, inibiria a ampla importação destes bens, corroborando para uma menor exposição do Brasil às interferências político-econômicos em nível internacional, do mesmo modo que ensejaria na afirmação da soberania brasileira.

Nota-se que o país passa por uma acentuada insegurança política, que afeta diretamente a incolumidade da saúde pública e as medidas de controle e prevenção, no que se refere à transmissão da Covid-19. Em que pese o Brasil ser um sistema federativo descentralizado, em que os entes municipais, estaduais e federais têm suas competências repartidas constitucionalmente, espera-se da União o comando das ações necessárias à salvaguarda do direito à saúde, neste panorama específico de pandemia.

Portanto, observa-se as consequências do período pandêmico na estrutura jurídica brasileira, em que se evidencia a necessidade de diversos ajustes legais com a finalidade de contornar seus efeitos nos campos do Direito.

Cabe, enfim, ao poder público, com as experiências advindas no enfrentamento desta emergência pública, estar atento a questões de planejamento, logística e estratégias, com vistas a investir adequadamente no ramo hospitalar, tencionando a busca de soluções concernentes aos impactos da pandemia no Brasil.


REFERÊNCIAS

BRASIL. Lei nº 8.666 de 21 de junho de 1993. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/l8666cons.htm>. Acesso em: 17/05/2020.

BRASIL. Lei nº 13.979 de 06 de fevereiro de 2020. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2019-2022/2020/lei/L13979.htm>. Acesso em: 17/05/2020.

BRASIL. Lei nº 14.035 de 11 de agosto de 2020. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2019-2022/2020/lei/l14035.htm. >. Acesso em: 06/12/2020.

BRASIL. Lei nº 14.065 de 30 de setembro de 2020. Disponível em: < http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2019-2022/2020/lei/L14065.htm#art5>. Acesso em: 06/12/2020.

CDTV. Debate - Compras Governamentais, 2020. Disponível em: <https://www.youtube.com/watch?v=45PFHyyF_iQ&feature=youtu.be>. Acesso em: 27/12/2020.

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NOTAS

[1] O primeiro caso de Covid-19 no Brasil foi confirmado pelo Ministério da Saúde no dia 26 de fevereiro de 2020. Sendo o paciente um homem de 61 anos, do Estado de São Paulo, que voltara de uma viagem recente da Itália, país que foi o epicentro do Novo Coronavírus no continental europeu.


Autor

  • Carlos Almeida

    Carlos Henrique Vieira de Almeida é advogado (OAB/MG nº 218.374). MBA Gestão Jurídica da Saúde e Hospitalar pela Defensoria Popular do Brasil (2021-2022). Pós Graduado em Direito Tributário pela Universidade Cândido Mendes (2021). Bacharel em Direito pela Instituição de Ensino Superior Nova Faculdade (2020).

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Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

ALMEIDA, Carlos. Covid-19: os impactos da pandemia nas compras públicas. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 26, n. 6443, 20 fev. 2021. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/88529. Acesso em: 18 abr. 2024.