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Da nova visão do Supremo Tribunal Federal sobre decisão judicial que acolhe HC para trancar ação penal e a impossibilidade da propositura de ação de improbidade administrativa sobre os mesmos fatos (bis in idem).

Mitigação da independência das instâncias penal e administrativa

Da nova visão do Supremo Tribunal Federal sobre decisão judicial que acolhe HC para trancar ação penal e a impossibilidade da propositura de ação de improbidade administrativa sobre os mesmos fatos (bis in idem). Mitigação da independência das instâncias penal e administrativa

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O STF tem nova visão sobre decisão que acolhe HC para trancar ação penal e a impossibilidade da propositura de ação de improbidade administrativa sobre os mesmos fatos.

I – CONSIDERAÇÕES INICIAIS

As instâncias penal e administrativa sancionadoras são independentes entre si, mas se imbricam para fins de procedibilidade e para o devido reflexo quando os fatos investigados são os mesmos.

Sobre o tema já havíamos dito:[1]

“O dogma de que as instâncias por serem independentes não influenciam, acabou sendo plenamente factível ao servidor público utilizar de uma absolvição criminal para apagar os elementos formadores da culpa funcional, na esfera administrativa.”

Sempre defenderemos a necessária influência das instâncias como forma de garantia a procedibilidade em determinados casos e a distribuição de justiça, pois sobre os mesmos fatos investigados, o agente público poderá responder na instância penal, administrativa e na esfera civil, cabendo ressaltar que, mesmo absolvido em todas elas, segundo dicção da Lei nº 8.429/92, ainda poderá responder para fins de subsunção de conduta de Improbidade Administrativa.

Registre-se que Direito Administrativo Sancionador é mais amplo do que o Direito Penal, visto que atua em esferas distintas,[2] tais como ilícitos fiscais, tributários e econômicos, de trânsito, disciplinar, urbanismo, saúde pública, ambiental etc., dado que pode funcionar como instrumento repressivo de múltiplos órgãos e entidade, diferentemente do que ocorre com o direito repressivo penal.

Não existe mais como se dissociar a unidade do Direito para fins de subsunção de condutas sobre o mesmo fato, em instâncias distintas, pois a injustiça gera uma arbitrariedade[3] vedada pelo ordenamento jurídico.

Não existe mais a possibilidade de se permitir a eternização de demanda ou de investigações contra agentes públicos em total violação da dignidade da pessoa humana, pois a nova sistemática do direito sancionador não é insensível às injustas e as massacrantes perpetuações de persecuções estatais.

O objetivo do poder persecutório estatal não e colocado ao dispor do poder público para gerar o assédio processual, com multiplicações de investigações sobre o mesmo fato.

Utilizar-se da independência das instâncias como forma de penalizar a parte investigada não se compraz com o ideal de justiça, que não admite mais a eternização de conflitos sobre fatos já julgados e decididos.

Em sendo assim, a decisão que acolhe habeas corpus para trancar a ação penal, pode impedir o processamento de uma ação civil pública por ato de Improbidade Administrativa lastreado sobre os mesmos fatos e com identidade de pedidos?

Da mesma forma, não há como deixar de levar em consideração que uma absolvição em Ação de Improbidade Administrativa deve repercutir em uma condenação disciplinar, sobre os mesmos fatos, ensejando a revisão administrativa caso o agente público investigado tenha sido demitido pela prática de suposto ato ímprobo.

Como prevalecer um título disciplinar condenatório proferido em processo administrativo que declare a prática de ato ímprobo, se na Ação de Improbidade Administrativa, sobre os mesmos fatos, foi creditada em subvenção ilícita da conduta do agente público?

São essas injustiças, frequentes nos dias atuais, que merecem a devida reflexão, por parte da doutrina e do Poder Judiciário, visto que o poder persecutório estatal não pode ser instituído somente para permitir eternizações de demandas sobre os mesmos fatos, capaz de prestigiar o assédio investigatório sobre a couraça de uma independência de instâncias.

Não é possível mais que a parte investigada seja sucumbida com as lentas tramitações investigatórias, e seja vencida pelo tempo ou pela chaga da injustiça.

Se absolvido ou afastada a determinada conduta infracional do agente público no âmbito criminal, como mantê-la para fins de Improbidade Administrativa, ou para fins de Processo Administrativo Disciplinar.

Na verdade, não se pode dissociar o microssistema do Direito Administrativo Sancionador, que possui várias concorrências entre órgãos fiscalizadores (Tribunal de Contas, Poder Disciplinar, Poder Fiscalizador, Ministério Público, etc.) e os efeitos da sentença absolutória penal.

Ou seja, qual o grau de vinculação da sentença absolutória criminal sobre o mesmo fato de apuração na esfera do Direito Administrativo Sancionador (Improbidade Administrativa)?

A grande maioria da doutrina e a quase unanimidade de julgados sempre defenderam a independência total das instâncias, apesar de sempre defendermos em vários artigos, bem como nos comentários do art. 126 da Lei nº 8.112/90,[4] que a absolvição criminal inclusive por falta de prova, deveria possuir repercussão plena do Direito Administrativo Sancionador.

Sucede que, em recente decisão proferida inicialmente de forma monocrática pelo Ministro Gilmar Mendes, na Reclamação nº 41557-SP[5], houve a declaração da mitigação da independência entre as esferas penal e cível, em especial quando a matéria envolver o Direito Administrativo Sancionador (Improbidade Administrativa).

Destacou a decisão monocrática e depois confirmada pela maioria do Colegiado, na RC nº 41.557-CP – STF sobre a aplicação do art. 935 do Código Civil e a sua extensão, no exato sentido de vincular as demais esferas de controle à sentença penal, destacando que a independência das instâncias (civil e criminal) e a administrativa é mitigada.

Essa atual posição jurídica se preocupa com a possibilidade de haver punição em duplicidade (bis in idem) sob o argumento de ser insustentável a independência plena das esferas de controle externo da Administração Pública.

É uma evolução, pois a grande maioria da doutrina e jurisprudência majoritária somente admitiam a repercussão do título penal quando se negava a autoria e a materialidade do fato, na forma do artigo 126 da Lei nº 8.112/90, não admitindo a repercussão da absolvição por falta de provas na esfera do Direito Administrativo Sancionador.

Muitas injustiças foram perpetradas, pois, após uma persecução judicial exauriente, o Poder Judiciário, ao concluir pela absolvição do agente público por não haver prova idônea e suficientemente capaz de demonstrar a inequívoca prática do ato ilícito funcional, mas, mesmo assim, a instância disciplinar, composta por 3 (três) servidores estáveis de nível hierárquico igual ou superior ao do agente público investigado, em nome da independência total das esferas do direito, poderia divergir da conclusão judicial para declarar, sobre os mesmos fatos e sem nenhuma inovação no contexto probatório, a condenação do agente investigado.

Essa incoerência jurídica foi revista pelo Supremo Tribunal Federal – STF, que admite, agora, a tese da mitigação da independência entre as esferas, dando ênfase que o trancamento da ação penal por falta de justa causa, podendo ser arguido como causa impeditiva do recebimento e processamento de ações de Improbidade Administrativa, se o conjunto fático-probatório for o mesmo.

Isso porque a Improbidade Administrativa integra o Direito Administrativo Sancionador e muito se aproxima da metodologia da persecução penal. Deve, portanto, ser compreendido como extensão do jus puniendi estatal, ainda que processada na esfera cível.

Esse avanço jurisprudencial é muito importante, pois evitará que se perpetue injustiças contra agentes púbicos que, mesmos não tendo praticado ilícito funcional, caíram na “desgraça” do Ministério Público ou da Chefia imediata.

A eternização de investigações no Direito Administrativo Sancionador não pode mais subsistir e deve o operador do direito buscar a efetividade da independência mitigada entre as instâncias penal e administrativa na interpretação da Lei de Improbidade Administrativa, com o objetivo de manter efetivo o princípio de vedação ao chamado bis in idem.


II – RCL Nº 41.557 MC/SP – STF – DIREITO ADMINISTRATIVO SANCIONADOR NÃO ADMITE O BIS IN IDEM NA RELAÇÃO COM O DIREITO PENAL                       

Com o aumento das operações policiais que se avolumaram com a era da “Operação Lava Jato”, com frequência o Ministério Público inicia a persecução penal, após uma série de medidas cautelares antecedentes à denúncia e, a posteriori, compartilha as mesmas provas para fins de ajuizamento da Ação Civil Pública por Ato de Improbidade Administrativa, repetindo-se, geralmente, os mesmos fatos e sem inovação no contexto probatório.

Essas repetições de ações judiciais (penal e administrativa) não são vedadas pelo ordenamento jurídico, mas devem ser devidamente sopesados os seus resultados entre as instâncias, pois a unidade do direito exige a observação da “independência mitigada” das respectivas esferas jurídicas.

O provimento a um determinado recurso administrativo pode retirar o tipo penal, originado pela prematura representação criminal do órgão administrativo. Exemplo: sonegação fiscal, crime contra o sistema financeiro nacional etc.

Da mesma forma, ocorre quando se trata do Direito Administrativo Sancionador e a extensão do jus puniendi estatal e do sistema criminal.

Ou seja, quando se tranca a ação penal por falta de justa causa, afastando-se a autoria delitiva ou negando-se os fatos, retornar à já exaurida questão da autoria delitiva para ajuizar-se ação civil pública por ato de improbidade, sem a presença de fatos novos que apontem para um acervo probatório independente com relação ao criminal, é perpetuar-se o bis in idem, em verdadeiro assédio processual.

Na RC 41557/MG-SP, o Min. Rel. Gilmar Mendes defendeu o entendimento que a Ação Civil Pública de Improbidade Administrativa trata de um procedimento que se integra ao Direito Administrativo Sancionador que, por sua vez, se aproxima muito do direito penal e deve ser compreendido como uma extensão do jus puniendi estatal e do sistema criminal.

Nesse sentido, o Ministro Gilmar Mendes cita Ana Carolina Oliveira:[6]

“A lei de Improbidade Administrativa é uma importante manifestação do Direito Administrativo Sancionador no Brasil.”

Em seguida é realçado:[7]

“A fim de poder julgar as demandas de violações aos direitos processuais a ele direcionadas, o TEDH firma um conceito unitário em matéria punitiva dos Estados, a fim de concretizar o conteúdo do que compreendia como matéria penal e poder, assim, decidir sobre as demandas que recebia. O Tribunal estabelece um conceito de direito penal em sentido amplo (...) o Direito Administrativo Sancionador deve ser entendido como um autêntico subsistema penal.

Na verdade, como diz Suay Rincón,[8] os ilícitos administrativos estão à semelhança do que ocorre com os ilícitos penais, a serviços de valores substantivos.

Em assim sendo, o Direito Administrativo Sancionador não poderá ser arbitrário ou insensível à salutar influência do direito penal.

O direito punitivo estatal único compreende os ilícitos penais e administrativos, como realçado por Alejandro Nieto,[9] desdobrados do Direito Penal e do Direito Administrativo Sancionador, se integrando em um edifício único de surpreendente harmonia, formado pelo ius puniendi do Estado.

Existindo uma identidade ontológica entre os delitos e as infrações administrativas, nasce o direito punitivo único, como unidade do ius puniendi estatal, em prol da segurança jurídica e da estabilidade das relações com o poder público.

Isso porque, quando for o mesmo fato ilícito investigado, não há por que não se adotar um enfoque conjunto no campo da política sancionadora, como averbado pela professora Helena Lobo da Costa:[10]

"Para além de refletir e buscar solucionar os complexos problemas dogmáticos trazidos pela aproximação entre direito penal e direito administrativo, é, também, preciso adotar um enfoque conjunto no campo da política sancionadora. Assim, seguindo a proposta Rando Casemiro, crê-se que uma política jurídica conjunta, que leve em conta os dois ramos sancionadores, é imprescindível para aportar um mínimo de racionalidade à questão."

As instâncias independentes permitem a existência de dois processos distintos, responsabilizando o agente público sobre os mesmos fatos. Sendo o primeiro processo penal trancado, via a impetração de habeas corpus, a instauração do segundo processo (ação civil de Improbidade Administrativa) deverá o poder estatal comprovar a existência de fatos novos, que apontem para um acervo probatório independente com relação ao primeiro processo.

Frequente é a repetição dos mesmos fatos e do mesmo acervo probatório, compartilhado da instância penal para a Improbidade Administrativa.

Basta existir a mesma identidade do acervo fático-probatório, com a repetição de imputação no processo penal e na Improbidade Administrativa (Direito Administrativo Sancionador), que estará se repetindo fatos e acusações já decididos judicialmente, sob outro rito.

Com a limitação do jus puniendi estatal, o Ministro Gilmar Mendes enalteceu a impossibilidade de repetições de acusações, sob o mesmo fundamento, entre o Direito Penal e Direito Administrativo Sancionador, em face da vedação de bis in idem.

Nesse sentido, é de se abrir parênteses para as sólidas conclusões do Ministro Gilmar Mendes:[11]

“O ponto central de tensão que aqui nos interessa nessa relação, para além de traçar uma diferenciação formal e material entre o ilícito penal e o ilícito administrativo – algo que foi objeto de preocupação da doutrina desde a publicação de Das Verwaltungsstrafrecht, por Goldschmidt, em 1902 – é a limitação do jus puniendi estatal por meio do reconhecimento (1) da proximidade entre as diferentes esferas normativas e (2) da extensão de garantias individuais tipicamente penais para o espaço do Direito Administrativo Sancionador.

Nessa linha, o Tribunal Europeu de Direitos Humanos (TEDH) estabelece, a partir do paradigmático caso Oztürk, em 1984, um conceito amplo de direito penal, que reconhece o Direito Administrativo Sancionador como um “autêntico subsistema” da ordem jurídico-penal. A partir disso, determinados princípios jurídico-penais se estenderiam para o âmbito do Direito Administrativo Sancionador, que pertenceria ao sistema penal em sentido lato. (OLIVEIRA, Ana Carolina. Direito de Intervenção e Direito Administrativo Sancionador. 2012. p. 128).”

Em seguida, destaca-se na citada decisão liminar, que foi confirmado pela 2ª Turma do Supremo Tribunal Federal, onde foi preconizado que a unidade do jus puniendi estatal obriga a transposição de garantias constitucionais e penais para o Direito Administrativo Sancionador, conforme o Magistério de Ana Carolina Oliveira.[12]

A unidade do jus puniendi do Estado obriga a transposição de garantias constitucionais e penais para o Direito Administrativo Sancionador. As mínimas garantias devem ser: legalidade, proporcionalidade, presunção de inocência e “ne bis in idem".

A ilicitude jurídica é uma só, do mesmo modo que um só, na sua essência, é o dever jurídico.[13]

Assim, a mitigação das instâncias resulta na unidade do Direito que não permite que se viole o princípio do ne bis in idem com repetição de fatos e de provas.

Essa baliza hermenêutica qualifica a relação jurídica entre o poder estatal persecutório e o agente público investigado, como averbado pelo Ministro Gilmar Mendes.

“A assunção desse pressuposto pelo intérprete, principalmente no tocante ao princípio do ne bis in idem, resulta na compreensão, como será observado, que tais princípios devem ser aplicados não somente dentro dos subsistemas, mas também e principalmente na relação que se coloca entre ambos os subsistemas - trata-se aqui justamente de uma baliza hermenêutica para a qualidade da relação.”

A unidade originária do jus puniendi vincula-se quando for o mesmo fato ilícito, não havendo por que não se adote a carga declaratória do julgado penal que se absolva o agente público, para fins de retirar a subsunção da conduta no ato ímprobo.

Tal princípio projeta-se também quando se afasta a autoria ou nega-se o fato através do trancamento da ação penal, por força de deferimento de habeas corpus.

Mesmo que se argumente que o art. 37, § 4º, da CRFB/88, estabeleça a independência entre as diferentes esferas sancionadoras, prevalece o princípio da independência mitigada.

Eis a dicção do art. 37, § 4º, da CRFB/88:

“Art. 37 – (...)

§ 4º Os atos de Improbidade Administrativa importarão a suspensão dos direitos políticos, a perda da função pública, a indisponibilidade dos bens e o ressarcimento ao erário, na forma e gradação previstas em lei, sem prejuízo da ação penal cabível.”

A independência das instâncias deve ser interpretada de forma mitigada, “sem ignorar a máxima do ne bis in idem” como afirmado pelo Ministro Gilmar Mendes na RCL 41.557/SP.

Destarte, apesar de o art. 12 da Lei nº 8.429/92, deixar claro que, independentemente das sanções penais, civis e administrativas prevista na legislação específica, o responsável pelo ato de improbidade estará sujeito às cominações legais dispostas na referida lei, não se pode ter como absoluto tal dogma, visto que o Direito Administrativo Sancionador não admite mais a independência total das instâncias, tendente a possibilitar o bis in idem.

Analisando tal questão e priorizando a independência mitigada das instâncias em face da máxima do ne bis in idem, é de se registrar as considerações do Min. Gilmar Mendes na RCL nº 41557 MC/SP:

“Tal independência, contudo, é complexa e deve ser interpretada como uma independência mitigada, sem ignorar a máxima do ne bis in idem. Explica-se: o subsistema do direito penal comina, de modo geral, sanções mais graves do que o Direito Administrativo Sancionador. Isso significa que mesmo que se venha a aplicar princípios penais no âmbito do Direito Administrativo Sancionador – premissa com a qual estamos totalmente de acordo, o escrutínio do processo penal será sempre mais rigoroso. A consequência disso é que a compreensão acerca de fatos fixada definitivamente pelo Poder Judiciário no espaço de subsistema do direito penal não pode ser revista no âmbito do subsistema do Direito Administrativo Sancionador. Todavia, a construção reversa da equação não é verdadeira, já que a compreensão acerca de fatos fixada definitivamente pelo Poder Judiciário no espaço do subsistema do Direito Administrativo Sancionador pode e deve ser revista pelo subsistema do direito penal – este é o ponto da independência mitigada”.

O art. 935 do Código Civil também prestigia a interpretação do Supremo Tribunal Federal – STF:

“Art. 935. A responsabilidade civil é independente da criminal, não se podendo questionar mais sobre a existência do fato, ou sobre quem seja o seu autor, quando estas questões se acharem decididas no juízo criminal.”

Em igual sentido, o art. 126 da Lei nº 8.112/90:

“Art. 126.  A responsabilidade administrativa do servidor será afastada no caso de absolvição criminal que negue a existência do fato ou sua autoria.”

A negativa de autoria ou do fato fixada da instância penal impede as ações civil de indenização e a de Improbidade Administrativa, repercutindo na seara do Direito Administrativo Sancionador.[14]

Ou seja, a garantia da independência mitigada, preservadora do ne bis in idem, possui dupla fundamentação: o princípio da culpabilidade e da segurança jurídica, como informado pelo Professor Paulo Rangel:[15]

“A primeira (culpabilidade) impede que se aplique no mesmo sujeito, pelo mesmo fato, uma sanção que exceda o limite proporcional da sua culpa. A segunda (segurança jurídica) considera que não admite num Estado Democrático de Direito a ameaça permanente de diferentes sanções (simultâneas ou sucessivas do tempo) pelo mesmo fato ao mesmo sujeito; isso seria desumano.”

Essa segurança jurídica projeta-se para todo o ordenamento jurídico, projetando e expandindo a decisão do caso penal com a força de caso julgado material, para que os seus efeitos sejam vinculantes para o futuro, com o objetivo que o acusado não seja exposto a um novo processo sobre o mesmo fato.[16]

Nessa linha de entendimento, o Brasil é signatário o Pacto Interno dos Direitos Civis e Políticos e da Convenção Americana dos Direitos Humanos (Pacto de São José da Costa Rica), que estabelecem respectivamente:

“PACTO DOS DIREITOS CIVIS E POLÍTICOS:

Art. 14 (...)

7. Ninguém poderá ser processado ou punido por um delito pelo qual já foi absolvido ou condenado por sentença passada em julgado, em conformidade com a lei e os procedimentos penais de cada país.”

“CONVENÇÃO AMERICANA DOS DIREITOS HUMANOS

Art. 8º (...)

(...)

Item 4 – O Acusado absolvido por sentença transitada em julgado não poderá ser submetido a novo processo pelos mesmos fatos.”

Cabe, ainda, registrar que o art. 29 da Convenção de Direitos Humanos consagra o princípio da prevalência da norma mais benéfica.

Isso significa que a Convenção só se aplica se ampliar, fortalecer e aprimorar o grau de proteção de direito, constituindo-se na primazia, onde a ordem jurídica de um Estado-Parte somente se aplicará se trouxer benefícios para a aplicação da normatividade de direitos humanos do indivíduo.

Com a Emenda Constitucional nº 45, de 8 de dezembro de 2004, houve o acréscimo do parágrafo 5º, que estabelece que, se o Tratado ou a Convenção sobre Direitos Humanos for aprovado pelo Congresso Nacional, possuem status de lei ordinária. Contudo, se os Tratados e Convenções Internacionais sobre direitos humanos, se aprovados em cada Casa do Congresso Nacional, em dois turnos, por três quintos dos votos dos respectivos membros serão equivalentes às emendas constitucionais.

Assim sendo, o ordenamento jurídico não pode ser tido como um conjunto desconexo de normas jurídicas, submetido apenas ao princípio da hierarquia.[17]

Para tanto a melhor interpretação do ordenamento jurídico é aquela de se mitigar a independência absoluta entre o Direito Penal e o Direito Administrativo Sancionador, como forma de evitar-se o equívoco metodológico, onde muitas injustiças foram perpetradas em nome da ampla impenetrabilidade de uma esfera sobre a outra.

Além de desumano submeter o agente público a uma plêiade de acusações sobre o mesmo fato, se ele for absolvido em todas as instâncias, sucumbirá ao desgaste de cada investigação autônoma.

O objetivo da independência das instâncias não é a de massacrar a parte investigada, mas, sim, a de dar autonomia às autoridades legalmente constituídas, na busca da verdade real sobre a prática de atos ilícitos.

A adoção de uma noção de independência mitigada entre as esferas penal e administrativa não enfraquece o poder persecutório estatal, mas o fortalece por qualificá-lo.

Assim sendo, não há como se validar a independência absoluta da instância administrativa sancionadora sobre a penal, pois, se decidida, nesta última esfera, determinado fato, resta claro que o mesmo se replicado na Ação de Improbidade Administrativa, regida pela Lei nº 8.429/92, ficará prejudicada pelo fato de já ter sido resolvido no processo criminal.

Isso porque, a mesma narrativa fático probatória que deu ensejo a uma decisão definitiva na esfera penal, quer transitada em julgado, quer trancada a persecução penal por Habeas Corpus, que fixa uma tese onde se vislumbra a inexistência do fato ou de negativa de autoria, se já tiver sido proposta a Ação de Improbidade Administrativa similar, esta deverá sofrer a devida repercussão, como um sistema lógico da unidade ilícita.

A mitigação absoluta, que não permite haver o devido reflexo da decisão penal sobre a Ação de Improbidade Administrativa ou sobre o processo administrativo disciplinar, fere o plasmado da proporcionalidade, da subsidiariedade e da necessidade, visto não ser possível uma dupla punição para o mesmo agente público, devendo o ne bis in idem ser adotado em respeito aos efeitos do título penal já decididos, quando se cuidar de fatos idênticos.[18]

Havendo a imputação do fato tido como crime idêntico ao Direito Administrador sancionador, não há como se dissociar os efeitos jurídicos da decisão penal do contexto geral.[19]


III – TRANCAMENTO DA AÇÃO PENAL E A REPERCUÇÃO NO DIREITO ADMINISTRATIVO SANCIONADOR

O jus puniendi do Estado não é concretizado de forma irresponsável, tendo em vista que a época do processo inquisitório já se encerrou em nossa história e na atualidade vivemos um Estado Democrático de Direito, com amplas garantias constitucionais e processuais, onde prevalece o processo acusatório, como instrumento ético de a busca da verdade real de um determinado fato.

Pois bem, o habeas corpus possui a natureza jurídica de uma ação autônoma de impugnação, cuja pretensão é de liberdade de locomoção que decorre da ilegalidade ou abuso de Poder.

Paulo Rangel[20] define:

“O habeas corpus possui a natureza jurídica de uma ação autônoma de impugnação cuja pretensão é de liberdade e por ser uma ação tem os seus elementos (partes, causa de pedir e pedido) e suas condições para o seu regular exercício (legitimidade, interesse processual, possibilidade jurídica e justa causa), possibilitando a provocação da jurisdição e instrução de um processo.”

Rogério Lauria Tucci,[21] ensina:

“É o habeas Corpus ação pela qual, originada a instauração de um processo do mesmo nome, exteriorizado em procedimento sumaríssimo, e reivindica a liberdade de locomoção.”

A Constituição Federal/88 elenca, no art. 5º, inc. LXVIII, que será concedido habeas corpus sempre que alguém sofrer ou se achar ameaçado de sofrer violência ou coação em sua liberdade de locomoção, por ilegalidade ou abuso de poder.

As hipóteses de cabimento do habeas corpus encontram-se enumerados no art. 648 do CPP.

“Art. 648.  A coação considerar-se-á ilegal:

I - quando não houver justa causa;

II - quando alguém estiver preso por mais tempo do que determina a lei;

III - quando quem ordenar a coação não tiver competência para fazê-lo;

IV - quando houver cessado o motivo que autorizou a coação;

V - quando não for alguém admitido a prestar fiança, nos casos em que a lei a autoriza;

VI - quando o processo for manifestamente nulo;

VII - quando extinta a punibilidade.”

Nos interessa no presente contexto explorar quando o habeas corpus é deferido no curso da Ação Penal proposta e ela não tiver justa causa ou for objeto de ilegalidade ou abuso de poder ou seu reflexo direto no Direito Administrativo Sancionador.

Essa repercussão terá que ser imediata se o fato e a autoria do ilícito penal tiverem sido negados, porque o habeas corpus, como um processo autônomo instaurado, possui objeto delimitado, e, uma vez transitado em julgado a sua decisão, não poderá ser objeto de novo pedido, salvo nova causa de pedir.

Fazendo coisa julgada como toda causa e qualquer decisão de mérito,[22] ela não poderá ser desprezada pelo Direito Administrativo Sancionador se reconhecida a inexistência do fato ou ausência de autoria.

A doutrina e a jurisprudência dominantes ainda não despertaram sobre a necessidade da estabilidade das relações jurídicas e do grande perigo de preconizar sobre a total independência das instâncias quando se trata de apuração do mesmo ilícito do agente público.

Nesse sentido, reforçando a linha de fundamentação constituída na RCL 41.557/MC/SP, e aqui replicada, a professora Helena Lobo da Costa[23], em monografia pela qual recebeu o título de Livre Docente pela Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo, destaca.

Isto porque decisões e penais que reconheçam a inexistência de fato ou ausência de autoria não podem ser simplesmente desconsideradas pelo órgão administrativo (...) O princípio da proporcionalidade configura o fundamento jurídico do direito do ne bis in idem relativo às searas penal e administrativa (...) Para a identificação das hipóteses de aplicação do ne bis in idem examinado, devem-se verificar identidade de sujeitos, de objeto ou fatos e de efeitos jurídicos das sanções (natureza punitiva ou sancionadora). (...) Examinada a possibilidade de aplicação do ne bis in idem entre sanção penal e sanção administrativa no direito brasileiro, verificou-se que não apenas inexiste qualquer óbice para sua adoção, senão também que o princípio da proporcionalidade o impõe, já que a cumulação das vias penal e administrativa viola o subprincípio da necessidade." 

Se o efeito motivador da Ação de Improbidade Administrativa ou o Processo Administrativo Disciplinar é o mesmo fato/crime, com fundamento idêntico e sobre o mesmo agente público, não há como defender-se um resultado diferente na esfera sancionadora daquele resultado obtido na esfera criminal.

Em outra oportunidade deixamos consignado:[24]

“Ora, inexistindo prova suficiente para condenação criminal, sendo de consequência o denunciado absolvido, observando-se que no processo criminal, o rigor jurídico é extremamente elevado, inclusive mais do que existente em uma comissão disciplinar e tratando-se do mesmo ilícito objeto da investigação, em tese, praticado pelo servidor público, resulta como lógico e óbvio que a prova deve ser insuficiente também na esfera disciplinar, para fins de condenação e consequente imposição de sanção administrativa disciplinar.”

Assim sendo, se o fato não existiu ou a autoria foi negada pela jurisdição penal, através de uma sentença de mérito, tais situações não poderão subsistir no âmbito do exercício da jurisdição do Direito Administrativo Sancionador.[25]

Então, trancada a ação penal, os seus efeitos se projetam perante o ordenamento jurídico, e não poderão ser ignorados pelo Direito Administrativo Sancionador por ser uma consequência lógica do título judicial.

Isso porque, o princípio do non bis in idem é um dogma constitucional inerente a dignidade humana e possui como finalidade evitar-se a duplicidade de punição e de processos contra o indivíduo, não é admissível que o próprio Estado, através de sua jurisdição (judicial ou administrativa), admita decisões díspares e conflitantes sobre o mesmo fato ilícito.[26]

Ora, se no juízo penal houver absolvição por concessão de habeas corpus por falta de justa causa com consequente extinção do processo (art. 651 do CPP), o reflexo no Direito Administrativo Sancionador terá que ser imediato, influenciando a ação de Improbidade Administrativa correspondente, bem como o processo administrativo disciplinar, sob pena de existirem decisões do poder persecutório estatal conflitantes, com descrédito para os atos do Estado.

A segurança jurídica, a independência mitigada das instâncias e harmonia entre os poderes estatais deve ser suficiente para não pairar sobre o agente público a espada de Dâmocles sobre sua cabeça.

Provada determinada situação jurídica perante o órgão do Poder Judiciário, os efeitos dessa decisão que tranca a ação penal não poderão ficar sob o manto do silêncio e não repercutir sob as instâncias respectivas.

Em sendo assim, quando se retira o elemento subjetivo de determinada conduta antijurídica do agente público, não há como rejeitar tal fato perante o ordenamento jurídico do Direito Administrativo Sancionador.

Em sendo assim, afastado o dolo ou negado determinado fato jurídico criminoso, tal reconhecimento judicial, em sede de habeas corpus ou após a tramitação da ação penal, deve projetar-se, para verificação de possível conduta ímproba, em face da unidade do direito.[27]

A duração indefinida ou ilimitada de investigações ou do processo judicial sobre o mesmo fato em diversas instâncias do direito afasta não apenas e de forma direta a ideia de proteção judicial efetiva, como compromete de modo decisivo a proteção da dignidade da pessoa humana.[28]

Como o ordenamento brasileiro não define prazos específicos para a realização do processo, da investigação criminal ou administrativa, a solução de litígios em um menor tempo além de trazer a devida credibilidade para a persecução estatal, evita o excesso de desgaste do ser humano.

Definida a conduta ou o fato jurídico investigado pela instância penal, deve tal carga declaratória ser adotada para o mesmo lícito do Direito Administrativo Sancionador para evitar-se conflitos de decisões sobre o mesmo fato investigado, independentemente da esfera jurídica.

Portanto, se o fundamento do fato (crime e infração administrativa) é idêntico e já tiver a definição penal sobre o mesmo, não pode haver duplicidade de processo por grave violação ao ne bis in idem[29], devendo a ação de Improbidade Administrativa ser extinta com o julgamento do mérito, se definida a conduta no juízo criminal (afastado o dolo ou a culpa) e a negativa do fato.


IV – DA COISA JULGADA

Como já consignado, não resta dúvida que o reflexo da decisão penal no âmbito do Direito Administrativo Sancionador é uma consequência da subordinação dos atos administrativos ao resultado produzido na via judicial, quando os fatos jurídicos forem os mesmos e previstos como ilícitos penais.

A responsabilidade do cargo ou da função do agente público pode ser oriunda de uma violação de normas estabelecidas tanto no Direito Administrativo Sancionador quanto no Direito Penal. Essa violação de deveres e obrigações funcionais configura a infração que, como visto, pode gerar múltiplas incidências (civil, administrativo e penal).

A infração funcional é formal, decorrente de uma ação ou de uma omissão ocasionada em razão da função exercida.

Se tratando de um ilícito previsto como crime, a ordem jurídica une o Direito Administrativo Sancionador ao Direito Penal para que uma mesma ilicitude, com reflexos nas duas instâncias, seja decidida pelo Poder Judiciário, a fim de estabelecer a devida segurança jurídica e a paz social.

Essa solução decorre do caráter subsidiário do Direito Penal que, de acordo com a unidade da ordem jurídica (unidade de ilícitos criminosos e administrativos), submete-se a um único Regime Jurídico Constitucional.

Segundo esse entendimento, um simples ato administrativo pode funcionar como causa de exclusão da ilicitude criminal, bem como a declaração de inexistência ou da falta de prova da prática de um ilícito penal possuem o efeito de retirar a tipicidade de uma infração explicitada na Lei nº 8.429/92. Isso porque o mesmo fato considerado como ilícito no âmbito penal também se desdobra para o Direito Administrativo Sancionador.

A harmonização do direito é uma obrigação quando se trata de um idêntico fato investigado, mesmo que ele reflita em duas esferas distintas do direito. Essa imbricação visa privilegiar o princípio da igualdade como valor da justiça, pois não é jurídico, crível e nem moral, que o agente público seja absolvido na instância penal e condenado no âmbito do direito administrativo exatamente por igual fato ilícito.

O princípio da unidade do ilícito foi concebido pelo Direito Administrativo Sancionador com a finalidade de proteger a capacidade funcional da Administração Pública, “            o qual impõe a consideração global das diferentes violações de deveres cometidos por um agente administrativo, atenta até a continuidade da relação”[30], aplicando-se, via de consequência, essa orientação quando houver reflexo para outra esfera do direito, quando o ilícito investigado for o mesmo.

Admitir o isolamento de uma infração prevista como ilícito pelo ordenamento jurídico, em decorrência do fato das instâncias serem independentes, viola o subprincípio constitucional da segurança jurídica.

Por essa razão é que o legislador infraconstitucional estabeleceu a ligação estreita do Direito Penal ao Direito Administrativo, quando é afastado a autoria ou negado o fato ilícito investigado (art. 126 da Lei nº 8.112/90).

Independentemente da capitulação da sentença penal, negado o fato ou afastada a autoria, mesmo que a conclusão seja por falta de provas, existe a repercussão imediata do julgado penal.

Por essa razão, o trancamento da ação penal, através do habeas corpus possui contato imediato com o Direito Administrativo Sancionador.

Absolvido criminalmente o agente público, há a declaração de inexistência formal de um determinado ilícito, que se projeta na esfera do Direito Administrativo Sancionador.

Essa nova fase do Direito Administrativo Sancionador afasta a ultrapassada visão de que a independência total das instâncias possui a força de não deixar penetrar uma na outra, com as necessárias influências visando uma solução justa para uma situação já decidida pelo Poder Judiciário.

Isso porque, o jus puniendi estatal se manifesta através de vários órgãos (instâncias), limitados pelo Direito Constitucional.

Sobre a necessidade de coordenação dos conjuntos normativos do jus puniendi do Estado, visando incidir a mesma realidade jurídica com o objetivo de se evitar situações injustas e lesivas a direitos e a garantias individuais, Francisco Javiar Villalba[31] aduna:

“Para la protección de dichos intereses el Estado se reserva la capacidade de crear y ejecutar sanciones, en aquellos supuestos en que una conducta dañe o incumpla las prescripciones derivadas de las normas jurídicas. Es el donominado ius puniendi estatal, que se manifesta a través de diversos órganos y dentro del marco jurídico delimitado por el orden constitucional, de ahí necesidad de coordenación ‘para que todos los conjuntos normativos que incidan en una misma realidad se edifiquen sobre un global y claro conocimiento de la misma y tiendan hacia metas idénticas o armónicas’, así como de determinación de los condicionamientos que inciden en dicha capacidad. De esta forma se evitarán situaciones injustas o lesivas de los derechos individuales, como puede ser la imposición de una sanción desproporcionada en función del daño cometido, situación proyectada en lo princípio tradicionalmente denominado ne bis in idem” 

Ainda, em defesa da unidade fundamental do Direito, quando é debatido o direito sancionatório, Enrique R. Aftalión,[32] sustenta também posição de supremacia do Direito Penal:

“(...) la tesis que sostengo - de la unidade fundamental de todo el Derecho Represivo: delitos y falta, leyes penales nacionales y disposiciones locales-encuentra um sólido fundamento en esa continua recurrencia a las normas de la Parte General del Código Penal, recurrencia que es un dato de nuestra experiencia jurídica de nuestro Derecho tal como es vivido y aplicado por las jueces.”

No direito brasileiro também não há diferença ontológica, e sim dogmática, visto que o art. 1º da Lei de Introdução ao Código Penal considera crime a infração penal a que a lei comina pena de reclusão ou de detenção, depreendendo-se que a sua regulação se faz pela lei penal, ao passo que a infração disciplinar que não esteja classificada como tal é regulada pelas normas do Direito Administrativo Sancionador. Sendo que a plena autonomia do Direito Administrativo Sancionador se estabelece quando o ilícito é puramente disciplinar, sem se desdobrar em ilícito criminal.

Constituindo-se em subespécies do ius puniendi estatal, os princípios do Direito Penal se aplicam ao direito administrativo, “con ciertos matizes o modulaciones”.[33]

Referendando o que foi dito, Fábio Medina Osório[34] aduz:

“Não há diferenças substanciais que separem o ilícito penal do ilícito administrativo, mas apenas critério dogmático. Assim o é também, no direito brasileiro, em que vinga o critério dogmático da sansão carcerária prevista no ar. 1º, da Lei de Introdução ao Código Penal, cujo comando estabelece claramente a linha que separa ilícitos penais e administrativos.”

Assim, o jus puniendi do Estado deve ser compatibilizado com os preceitos fundamentais que são instituídos para tutelar o direito da liberdade da coletividade, ou em outras palavras, havendo declaração judicial de inocência, através de sentença, de um agente público, que foi processado por ter praticado – em tese – determinado ilícito penal, que também serve de suporte para a instauração de Processo Administrativo Disciplinar ou para a propositura de Ação de Improbidade Administrativa, ela deve refletir como consequência legal do que foi decidido no âmbito penal.

Como se manter a presença do dolo em uma conduta funcional do agente público, se ela foi retirada pelo título penal?

O respeito e observância ao texto constitucional é que dão validade aos atos estatais, constituindo-se em dever para as normas legislativas infraconstitucionais.

Havendo coisa julgada penal, o efeito é o mesmo no processo civil, não podendo ser mais modificada a decisão.

Em sendo assim, a decisão que decide tanto a ação penal originária quanto a do Habeas Corpus que tranca a demanda produz regras para preservar a coisa julgada em nome da segurança jurídica.

Sobre a coisa julgada penal, Paulo Rangel afirma:[35]

“O caso julgado penal tem efeito, única e exclusivamente negativo: não se poderá novamente conhecer daquele mesmo fato da vida julgado e imputado ao mesmo indivíduo.”

Giovanni Leone ensina:[36]

“Coisa julgada significa decisão imutável e irrevogável. Significa imutabilidade da ordem que nasce a sentença.”

A coisa julgada penal possui o efeito erga omnes[37] em relação a todas e, em se tratando de jus puniendi estatal, não há como se dissociar os seus efeitos do Direito Administrativo Sancionador.

A declaração definitiva de inexistência de um fato ou de uma autoria ilícita é capaz de gerar efeitos (art. 935, do CC e art. 126, da Lei nº 8.112/90) para o direito sancionador estatal, pois torna imutável e indiscutível o que já fora decidido.

O novo Código de Processo Civil estabelece em seu art. 502:

“Art. 502. Denomina-se coisa julgada material a autoridade que torna imutável e indiscutível a decisão de mérito não mais sujeita a recurso.”

A alteração do novo CPC retirou a palavra “sentença” para introduzir a “decisão” de mérito, ampliou o seu espectro para admitir os seguintes atos judiciais:

- decisão interlocutória;

- sentença;

- decisão monocrática do relator;

- acórdão.

Essa alteração do Código de Processo Civil retirou o dogma que somente era possível de ser coberta pela coisa julgada a sentença, apesar de que era pacífico no Código anterior que também o acórdão e decisão final do relator eram abrangidos pela coisa julgada.

Mas, o que interessa para nós no presente estudo, é que as decisões proferidas nos habeas corpus se inserem no presente contexto e projetam-se no Direito Administrativo Sancionador para fins garantir a segurança jurídica sobre o fato jurídico julgado, e agora pacificado.

A Ação de Improbidade Administrativa sofrerá os efeitos da coisa julgada penal, como decidido no presente precedente:[38]

“APELAÇÃO CÍVEL. DIREITO PÚBLICO NÃO ESPECIFICADO. AÇÃO CIVIL PÚBLICA, IMPROBIDADE ADMINISTRATIVA. TRÂNSITO EM JULGADO DE SENTENÇA PENAL DE ANSOLVIÇÃO POR NEGATIVA DE AUTORIA. EXTINÇÃO DA AÇÃO CÍVEL EM RAZÃO DA COISA JULGADA.

1. No caso dos autos, não há controvérsia sobre a concluso da sentença penal, nem os seus efeitos sobre a esfera cível.

2. Pretende o recorrente o reconhecimento de que a conduta imputada ao réu na presente ação civil pública é diversa da conduta descrita na ação penal, de modo a possibilitar o julgamento nesta esfera jurisdicional.

3. Na espécie, não é possível dar interpretação defendida pela recorrente, de que a acusação é distinta, na medida em que ambas as ações, a cível e a penal, partes dos mesmos fatos, da ação praticada pelo Réu (a retirada da arma do local e a posterior entrega à autoridade policial), sobre a qual recai sentença penal absolutória por negativa de autoria e cuja conclusão foi confirmada pela apelação crime.

4. Manutenção da sentença de extinção da ação civil pública em razão da coisa julgada.”

A negativa de autoria ou a inexistência d o fato criminoso definidor na instância criminal deve repercutir integralmente na Ação de Improbidade Administrativa,[39] em respeito ao instituto da coisa julgada.

Hipótese interessante foi a julgada pela 1ª Turma do Superior Tribunal de Justiça – STJ no REsp 1634627/RS,[40] onde o dolo foi retirado de determinado agente público, para fins de enriquecimento ilícito (art. 9º, da Lei nº 8.429/92), em face do demandado ter sido absolvido na seara penal em virtude de sua inimputabilidade.

Retirado o elemento do tipo para a subsunção da conduta do imputado no tipo definido pelo enriquecimento ilícito, o ressarcimento ao erário foi indeferido, em face da incidência do título penal.

Em outro firme precedente, a 1ª Turma do Superior Tribunal de Justiça – STJ, no AgInt no AREsp 1098135/MA[41] ancorando-se nas conclusões do excelso Supremo Tribunal Federal – STF que há reflexos da ação criminal na ação de Improbidade Administrativa, averba:

“I. DIREITO SANCIONADOR. AGRAVO INTERNO EM ARESP. AÇÃO CIVIL PÚBLICA DE IMPROBIDADE ADMINISTRATIVA. INICIAL DA AÇÃO FOI REJEITADA NO TRIBUNAL DE ORIGEM. PRETENSÃO DO MPF DE REFORMA DO ACÓRDÃO DO TRF DA1a. REGIÃO QUE FEZ PERCURTIR DECRETO DE REJEIÇÃO DE DENÚNCIA PENAL NA AÇÃO DE IMPROBIDADE. PROCLAMAÇÃO DE QUE A LIDE CRIMINAL FOI REJEITADA SOB A EXCLUSÃO DE CONDUTA DELITUOSA QUANTO AOS MESMOS FATOS APONTADOS NA ACP. A INVERSÃO DE TAL CONCLUSÃO DESAFIA A REANÁLISE DE PROVAS. APLICAÇÃO DA SÚMULA 7-STF. II. ENUNCIADO SUMULAR 18-STF: PELA FALTA RESIDUAL, NÃO COMPREENDIDA NA ABSOLVIÇÃO PELO JUÍZO CRIMINAL, É ADMISSÍVEL A PUNIÇÃO ADMINISTRATIVA DO SERVIDOR PÚBLICO. INOCORRÊNCIA DE RESÍDUO SANCIONÁVEL, PORQUE A DECISÃO DO STF, NESTE CASO, ABRANGEU A TOTALIDADE DA IMPUTAÇÃO. ACÓRDÃO EM PLENA CONVERGÊNCIA COM JULGADOS DESTE TRIBUNAL SUPERIOR. III. AGRAVO INTERNO DO DOUTO ÓRGÃO ACUSADOR DESPROVIDO.

1.   Cinge-se a controvérsia em exercer controle de legalidade acerca do acórdão que rejeita petição inicial de ação de improbidade em relação à parte ora agravada, à constatação de que há decisão de bloqueio, oriunda de denúncia penal rejeitada, pelo Supremo Tribunal Federal, abrangente dos mesmos fatos, e com trânsito em julgado. Não se trata de afirmar que a Corte Suprema absolveu a recorrida da imputação de ato ímprobo - é óbvio que o STF não examinou tal matéria - mas de assegurar que, na ausência de resíduopunível, a absolvição criminal repercute beneficamente na esfera administrativa sancionadora (Súmula 18-STF).

2.   Sobre o tema, esta Corte Superior tem a diretriz de que são independentes as esferas cível, penal e administrativa, somente sendo admitida a vinculação do julgado em caso de estar provada a inexistência do fato ou de o réu não ter concorrido para a infração penal (art. 386, I e IV do CPP) (REsp. 1.344.199/PR, Rel. Min. OG FERNANDES, DJe 1o.8.2017; AgRg no AREsp. 644.371/CE, Rel. Min. REYNALDO SOARES DA FONSECA, DJe 1.8.2017). Esses respeitáveis entendimentos judiciais não têm, no entanto, aplicabilidade ao caso vertente.

3.   Ressalva de entendimento do Ministro Relator, quanto a este ponto, de que, ainda nas hipóteses de absolvição por ausência de provas de que o réu concorreu para o fato, é comunicável o desfecho do julgamento frente às ações cíveis, como as de improbidade. Se o órgão de acusação penal não consegue estabelecer o liame pertinente à autoria do ato punível, mediante prova suficiente, não se poderá atribuir a imputada conduta alguma e, por conseguinte, não se lhe deverá impor qualquer restrição de direito, que tenha a sua origem nos mesmos fatos que constituíram o objeto da lide criminal.

4.   Com efeito, na espécie, trata-se de ação de improbidade ajuizada pelo MPF contra então Governadora do Estado do Maranhão e outros 40 réus, alegando, segundo transcreve o acórdão, irregularidades na aplicação de recursos advindos do Fundo de Investimento da Amazônia-FINAM, administrado pela antiga Superintendência de Desenvolvimento do Nordeste-SUDAM, no chamado projeto USIMAR, cujo objetivo é a fundição de metais ferrosos e não ferrosos, fabricação e usinagem de componentes automotivos, prospecção, transformação e beneficiamento de minério, importação e exportação de produtos fabricados pela empresa USIMAR, tudo com anuência dos integrantes do Conselho Deliberativo da SUDAM-CONDEL, que participaram da reunião plenária em que aprovado o projeto.

5.   Sustenta o autor da ação que teriam sido constatadas supostas irregularidades na aplicação dos recursos públicos, tais como a inexistência de aporte financeiro por parte da empresa USIMAR, no valor de R$ 102.520.300,00, que deveria ter sido integralizado através do fornecimento de máquinas e equipamentos que seriam adquiridos pela pessoa jurídica que é sócia majoritária e controladora do projeto, bem como emissão de notas fiscais fraudulentas pelos prestadores de serviços em favor da USIMAR, com a finalidade de liberar os recursos, celeridade demasiada na aprovação do projeto e interferência de agentes públicos na sua aprovação.

6.   No caso dos autos, o Tribunal Regional da 1a. Região, com Base na moldura fático-probatória que se represou no caderno processual -gize-se, impermeáveis a modificações em sede de recorribilidade extraordinária - Súmula 7 do STJ - dessumiu que há notícia nos autos de que a Suprema Corte confirmou decisão que rejeitou denúncia penal quanto a idênticos fatos que estavam sendo apurados na ação civil pública. Não há, portanto, neste caso, resíduo sancionável na via administrativa (Súmula 18-STF), porque a decisão da Suprema Corte esgotou a apreciação da ilicitude.

7.   A Corte Regional valeu-se da conclusão do excelso STF de que os atos objetivamente vinculados à acusada (participação em reunião do CONDEL e transferência de terreno em que se localizaria o empreendimento) constituem atos de administração superior que, em certa medida, fazem parte da rotina de qualquer Governador de Estado. Tais atos, se por um lado poderiam (em tese) permitir discussões quanto à sua adequação à disciplina legal-administrativa, por si sós não permitem vislumbrar indícios da prática dos crimes descritos na denúncia e atribuídos à ex-Governadora do Estado do Maranhão (fls. 157). Trata-se, como se vê, de clara e manifesta negação de autoria dos alegados ilícitos.

8.   Segundo o aresto regional, fosse correta a abordagem adotada pelo órgão acusador, no que toca especificamente à recorrida, que é o que interessa no caso, restaria inviabilizado o exercício dos cargos de direção máxima no âmbito de qualquer Poder da República. De fato, na linha da acusação, sempre que houvesse um crime no âmbito da Administração Pública, não seria difícil estabelecer o indício incriminador de um governador ou mesmo do Presidente da República, tendo em vista a posição de supremacia hierárquica e tais autoridades em relação a todos os servidores (fls. 158).

9.   A Corte Regional, ancorando-se nas conclusões do excelso STF, registrou que há reflexos da ação criminal na ação de improbidade porque o STF não se restringiu a afirmar que o fato descrito não se constituía em crime. De fato, apenas essa constatação não afetaria o processamento da ação originária porque um fato pode não ser considerado crime e ser ímprobo. Entretanto, o Ministro Gilmar Mendes concluiu que a ora agravante agiu como administradora e que não participou de qualquer ilícito. O afastamento do caráter ilícito da conduta na esfera criminal tem prevalência também no cível. Restou demonstrado que não houve ato de corrupção. Não houve má-fé (fls. 156/159). Essas conclusões do TRF1 não podem ser alteradas no STJ, ex ope da vedação da Súmula 7-STJ, cujo enunciado é invocado por intensa assiduidade.

10.  Portanto, há cabal constatação no acórdão regional de que não houve rejeição por simples ausência de provas, mas sim que não houve fato ilícito algum quanto à conduta praticada pela então Governadora de Estado. Como disse o eminente Relator, Ministro GILMAR MENDES, na decisão que serviu de base ao acórdão do TRF1, não há qualquer demonstração de que exista algum nexo entre a conduta da acusada e um específico ato criminoso.

11.  Como alertou o ilustre Magistrado do STF, em outra passagem de sua referida decisão, cabe asseverar, por oportuno, que a admissão de processos criminais sem qualquer indício de autoria representa inaceitável ofensa ao princípio da dignidade humana. Não é difícil perceber os danos que a mera existência de uma ação penal impõe a um indivíduo. Daí a necessidade de rigor e prudência por parte daqueles que têm o poder de iniciativa nas ações penais, que não devem ser calcadas em conjecturas. Lembre-se, sobretudo, do significado especial que a ordem constitucional conferiu ao princípio da dignidade humana (art. 1º, III). Na sua acepção originária, este princípio proíbe a utilização ou transformação do ser humano em objeto de degradação por meio de processos e ações estatais.

12.  E arremata o jus constitucionalista que o Estado está vinculado ao dever de respeito e proteção do indivíduo contra exposição a ofensas ou humilhações. A propósito, em comentário ao art. 1o. da Constituição alemã, afirma Günther Düríg que a submissão do ser humano a um processo judicial indefinido e sua degradação como objeto do processo estatal atenta contra o princípio da proteção judicial efetiva (...) e fere o princípio da dignidade humana (...). Negar proteção judicial nas hipóteses em que é devida e, no presente caso, inexorável (pois não há qualquer elemento nos autos que ofereça fundamento para submeter a requerida a uma ação penal), implica em ferir a uma só tempo o princípio da proteção efetiva (art. 5º., XXV) e o princípio da dignidade humana (art. 1º., III).

13.  A solução conferida pela Corte Regional não se aparta, portanto, das conclusões a que este Tribunal Superior possui em relação ao tema, motivo pelo qual o aresto merece ser preservado. Não se deve submeter pessoa alguma aos vexames de uma ação sancionadora, a não ser quando a sua justa causa, não seja apenas simplesmente afirmada, mas seja devidamente demonstrada pela acusação e pelo juízo que aprecia a respectiva imputação.

14.  Agravo Interno do Órgão Acusador desprovido.”

Ora, se a coisa julgada imutabiliza o fato delituoso praticado ou não pelo agente, que foi objeto de apreciação no processo penal ou como consequência de julgado em habeas corpus, impedindo que haja nova acusação sobre o mesmo fato, não resta dúvida que o mesmo ilícito penal que é investigado na instância administrativa subjetivamente, fica prejudicado após o exaurimento da via judicial. Não se admite, pela coisa julgada, que se adote decisão diferente da que é estabelecida no título judicial.

Assim, a absolvição criminal deve abarcar o objeto do processo em sua totalidade.[42]

“La Cosa juzgada abarca tal objeto procesal em su totalidade. (...) La cosa juzgada abarca el hecho bajo todos los puntos de vista jurídicos.”

Dessa forma, a coisa julgada sobre os fatos e fundamentos vinculados no provimento judicial que afastou a responsabilidade penal do acusado, a teor do art. 5º, XXXVI, da CRFB/88, retira o resíduo da Improbidade Administrativa, se os fatos e os elementos probatórios forem os mesmos já decididos.

A intercomunicação das instâncias é uma consequência lógica da segurança jurídica, pois, mesmo elas sendo independentes, a responsabilidade penal e administrativa do agente público quanto à autoria da conduta não é objetiva, e sim subjetiva. Sem a prova de sua responsabilidade criminal onde o agente público foi denunciado não poderá ter outro desfecho senão a absolvição; fato esse que reflete na jurisdição administrativa sancionadora, quando o ilícito penal for o mesmo, pois somente se pune a conduta com certeza. Sendo que a presunção de certeza é elidida pelo julgado penal, no âmbito administrativo sancionador.


IV – CONCLUSÃO

A autoridade da sentença penal absolutória e os seus efeitos em relação ao Direito Administrativo Sancionador, exatamente quando os mesmos elementos fático-probatórios são tratados em ambas as esferas, não pode ser mais ignorado por parte da doutrina e da jurisprudência, pois a multiplicidade de sanções (bis in idem) ou, não raro, decisões conflitantes, ainda prevalecem em um sistema arcaico de interpretação equivocada de independência total das instâncias.

A independência mitigada das instâncias serve para exteriorizar o direito justo e evitar punições injustas e desqualificadas pela realidade dos fatos.

Assim, uma vez decidido através de sentença pelo juízo criminal que não houve a prática de ilícito contra a Administração Pública, e não havendo resíduo que justifique a punição administrativa (mesmos elementos fático-probatórios), prevalece a decisão judicial, mesmo porque cabe ao Poder Judiciário decidir ou não sobre a existência de um crime, observando o devido processo legal e as garantias a ele inerentes.

A independência das instâncias não é sinônimo de indiferença, como averbado por Luís Vasconcelos Abreu:[43]

“Processo Penal e Procedimento Disciplinar não se encontram de ‘costas voltadas para um para o outro’. A conhecida independência não é sinônima de indiferença, nomeadamente da entidade administrativa relativamente à sentença criminal.”

Jean Colbert Dias, Anderson Ferreira e Alexandre Magno Augusto Moreira,[44] em belíssimo artigo que será submetido ao III ENCONTRO VIRTUAL DE CONPEDI (ocorrerá em junho de 2021), com brilho averbam:

“Não há como admitir que o Direito Administrativo Sancionador ultrapasse e subjugue garantias constitucionais baseados numa propalada e insustentável independência absoluta do seu caráter sancionatório.

Neste espeque exsurge a problemática: ‘qual o grau de vinculação da sentença absolutória criminal sobre o mesmo fato objeto de apuração na seara do Direito Administrativo Sancionador (Improbidade Administrativa)?

É possível afirmar, respeitando posições diversas sobre o tema, que havendo identidade de sujeitos, do conjunto fático-probatório e que esses elementos sejam objeto de apuração em esferas sancionatórias inseridas no macrossistema punitivo estatal que realmente haverá independência do Direito Penal e o Direito Administrativo Sancionador, com ascendência do primeiro em relação ao segundo em razão das limitações impostas pelo ne bis in idem, agregada a outros princípios e garantias individuais emoldurados na Carta Magna e em tratados e Convenções Internacionais.

Ademais, ficou demonstrado que o sistema jurídico necessita adequar-se aos parâmetros jurídicos internacionais que o Brasil é signatário, suprimindo modais punitivos excessivos e que valoram duplamente a responsabilidade da pessoa por atos ilícitos, inclusive adotando os parâmetros estruturados em Convenções Internacionais e decisões de Cortes internacionais sobre o tema, evitando sanções penais e sanções administrativas pelo mesmo fato.”

                   Portanto, a absolvição criminal pelos mesmos elementos fático-probatórios da Improbidade Administrativa possui caráter absoluto ou erga omnes da coisa julgada proferida pela jurisdição penal, projetando-se no sistema jurídico como forma a estabilizar as relações.

Em assim sendo, os fundamentos, em que serão analisadas as questões de fato e de direito[45] da sentença/acórdão penal, devem ser observados no âmbito da Ação de Improbidade Administrativa, pois a retirada de dolo ou a negativa do fato possui o condão de retirar a subsunção de conduta do ato ímprobo, inexistindo resíduo punitivo, em respeito ao ne bis in idem.

Na atual fase do direito, pouco importa a análise isolada do dispositivo da sentença, pois, mesmo que ela absolva o Réu por falta de provas, mas se na sua fundamentação negue o fato ou a autoria delitiva, não resta dúvida de sua higidez para fins de Direito Administrativo Sancionador.

Daí porque o trancamento da Ação Penal pela via do habeas corpus, ou ocorrendo o julgamento de mérito da demanda, afastando o fato ou a autoria delituosa, consequentemente, ensejará a rejeição da Ação de Improbidade Administrativa ou a sua improcedência, se presentes os mesmos elementos fáticos probatórios.

Rio de Janeiro, 13 de abril de 2021.

MAURO ROBERTO GOMES DE MATTOS

OAB/RJ 57.739


[1] MATTOS, Mauro Roberto Gomes de. Lei nº 8.112/90 Interpretada e Comentada. 6. ed., Niterói-RJ: Impetus. 2012, p. 687.

[2] OSÓRIO, Fábio Medina, Direito Administrativo Sancionador, São Paulo: RT. 2000, p. 17.

[3] NIETO, Alejandro. Derecho Administrativo Sancionador. 5. ed. Madrid: Tecnos: 2012, p. 26.

[4] MATTOS, Mauro Roberto Gomes de. Lei nº 8.112/90 Interpretada e Comentada, 5. ed. Niterói – RJ: Impetus, 2010, p. 748/786.

[5] STF, Rel. Min. Gilmar Mendes, 2ª T., Medida Cautelar na RC nº 41.557-SP, julg em 30.06.2020.

[6] OLIVEIRA. Ana Carolina. Direito de Intervenção e Direito Administrativo Sancionador, 2012, p. 190.

[7] OLIVEIRA. Ana Carolina. Direito de Intervenção e Direito Administrativo Sancionador, 2012, p. 190.

[8] RINCÓN, José Suay. Sanciones administrativas. Studio Albormotiana. Bolonia: Publicacniones del Real Colegio de Espanha, 1989, p. 100.

[9] “Una técnica que se reproduce simétricamente con el supraconcepto del ilícito comum, en el que se engloban las variedades de los ilícitos penal y administrativo y que se corona, en fin, con la creación de un Derecho punitivo único, desdoblado en el Derecho Penal y en Derecho Administrativo Sancionador.” (ALEJANDRO NIETO, Derecho Administrativo Sancionador, 4. ed, Madrid: Tecnos, 2012, p. 124).

[10] COSTA, Helena Lobo da. Direito Penal Econômico e Direito Administrativo Sancionador. 2013, p. 122.

[11] STF, Rel. Min. Gilmar Mendes, RCL 41557 MC/SP, despacho liminar deferido em 30.06.2020.

[12] OLIVEIRA. Ana Carolina. Direito de Intervenção e Direito Administrativo Sancionador, 2012, p. 240.

[13] HUNGRIA, Nelson. Ilícito Administrativo e Ilícito Penal. RDA, Seleção Histórica. Rio de Janeiro:  Renovar. Fundação Getúlio Vargas, 1991, p. 15.

[14] STF: “Processo administrativo disciplinar. Cassação da aposentadoria. Constitucionalidade. Independência das esferas penal e administrativa. Precedentes. 1. O Supremo Tribunal Federal já se pronunciou no sentido da possibilidade de cassação da aposentadoria, em que pese o caráter contributivo do benefício previdenciário. 2. Independência entre as esferas penal e administrativa, salvo quando, na instância penal, se decida pela inexistência material do fato ou pela negativa de autoria, casos em que essas conclusões repercutem na seara administrativa, o que não ocorre na espécie. 3. Agravo regimental não provido, insubsistente a medida cautelar incidentalmente deferida nos autos. 4. Inaplicável o art. 85, § 11, do CPC, haja vista tratar-se, na origem, de mandado de segurança (art. 25 da Lei 12.016/09). (STF, Rel. Min. Dias Toffoli, RE nº 1044681AgR/SP, 2ª T., DO  de  21.03.18).

[15] RANGEL, Paulo. A COISA JULGADA NO PROCESSO PENAL BRASILEIRO COMO INSTRUMENTO DE GARANTIA, Rio de Janeiro: Atlas, 2012, p. 330,

[16] Cf. Paulo Rangel, A COISA JULGADA NO PROCESSO PENAL BRASILEIRO COMO INSTRUMENTO DE GARANTIA. São Paulo: Atlas, 2012, p. 230.

[17] “Em nossa doutrina e, especialmente, em nossa jurisprudência prevalece ainda o paradigma de ‘independência entre instâncias’,         que além de não apresentar  fundamentação científica convincente, gera diversos resultados paradoxais. Além disso, constrói um modelo que pouco se coaduna com a ideia de unidade da ordem jurídica, como um sistema jurídico estruturado e dotado de racionalidade interna. O ordenamento jurídico não pode ter tido como um conjunto desconexo de normas jurídicas, submetidas somente ao princípio da hierarquia. (...) Portanto, a ideia de independência entre as instâncias apresenta diversas inconsistências , não podendo ser abraçadas como dogma inquestionável, bem ao contrário.” (COSTA, Helena Lobo da. Direito Penal Econômico e Direito Administrativo Sancionador. 2013, os. 119 e 222).

[18] “A adoção de uma noção de independência mitigada entre as esferas penal e administrativa – esta parece ser a posição mais acertada diante dos princípios constitucionais reitores do sistema penal, principalmente da proporcionalidade, da subsidiariedade e da necessidade – na interpretação da lei de Improbidade Administrativa (Lei 8.429/92), sobretudo do art. 12 (“Independentemente das sanções penais, civis e administrativas previstas na legislação específica, está o responsável pelo ato de improbidade sujeito às seguintes cominações, que podem ser aplicadas isolada ou cumulativamente, de acordo com a gravidade do fato:”), nos leva ao entendimento de que a mesma narrativa fático-probatório que deu ensejo a uma decisão de mérito definitiva na esfera penal, que fixa uma tese de inexistência do fato ou de negativa de autoria, não pode provocar novo processo no âmbito do Direito Administrativo Sancionador – círculos concêntricos de ilicitude não podem levar a uma dupla persecução e, consequentemente, a uma dupla punição, devendo ser o bis in idem vedado no que diz respeito à persecução penal e ao Direito Administrativo Sancionador pelos mesmos fatos.” (STF, Rel., Min, Gilmar Mendes, RCL 41.557 MC/SP, 2ª T., decisão de 30.06.2020).

[19] “A proibição do non bis in idem também é aplicável a todo tipo de sanção e, por conseguinte, não somente a derivada de um processo penal. Esta afirmação conduz ao problema da relação entre as sanções penais e as administrativas.” (QUIROGA, Jacob López Borja. Non bis in idem. Madrid: Dynkinson, 2004, p. 58).

[20] RANGEL, Paulo. A Coisa Julgada no Processo Penal Brasileiro como Instrumento de Garantia.” São Paulo: Atlas, 2012, p. 264.

[21] TUCCI, Rogério Lauria. Habeas Corpus. Ação e Processo Penal. São Paulo: Saraiva, 1978, p. 6.

[22] “A decisão proferida na ação de habeas corpus faz caso julgado como Toda e qualquer decisão de mérito.” (RANGEL, Paulo. A coisa julgada no Processo Penal Brasileiro como Instrumento de Garantia, São Paulo: Atlas, 2012, p. 265.

[23] COSTA, Helena Lobo da. Direito Penal Econômico e Direito Administrativo Sancionador. 2013, p. 236-237.

[24] MATTOS, Mauro Roberto Gomes de. Lei nº 8.112/90 interpretada e comentada – 5. ed., Niterói – RJ: Impetus, 2010, p. 759.

[25] “No processo civil – como no administrativo – a sentença penal poderá aplicar uma eficácia vinculante relativamente ao fato nessa investigação no limite fixado nos arts. 651, 652, 653, 654 CP.” (Aldo Attardi, Diritto Processualle Civile: parte geral: CEDAM, p. 458, v. 1, tradução Livre).

[26] “O direito de não ser submetido a uma pluralidade de sanções proíbe, em princípio, a acumulação de sanções penais e administrativas, sempre que o pressuposto dessa acumulação sancionatória seja o mesmo, definindo-se a identidade a partir da concorrência de três elementos: identidade de fato, de sujeito e de fundamento.” (MANZANO, Mercedes Pérez. Lá Proibición Constitucional de incurrir en in bis in iden. Valencia: Tirant Lo Blanch, 2002, p. 23. Tradução livre).

[27] “Identidade essencial – A identidade essencial entre o delito administrativo e o delito penal, é atestada pelo próprio fato histórico, aliás, reconhecido por GOLDSCHMIDT, de que existem poucos delitos penais que não tenham passado pelo estágio do delito administrativo (...) A disparidade entre um e outro repita-se – é apenas quantitativa. Qual oura diferença, senão de grau, v.g., entre o retardamento culposo de um ato de ofício e a prevaricação entre uma infração sanitária e um crime contra a saúde pública, entre uma infração fiscal e o descaminho, entre violações de posturas municipais e contravenções penais.” (HUNGRIA, Nelson. Ilícito Administrativo e Ilícito Penal. Seleção Histórica, Revista de Direito Administrativo, Rio de Janeiro: Fundação Getúlio Vargas, Renovar, 1991, p. 17).

[28] GIACOMOLLI. Nereu José. O devido processo penal: abordagem conforme a Constituição Federal e o Pacto de São José da Costa Rica. 2. ed. São Paulo: Atlas, p. 321ss, PASTOR, Daniel R. El plazo razonable em el processo del Estado del Derecho. Buenos Aires: Ad-Hoc, 2002, p. 406ss).

[29] “Quando a infração penal já contempla a condição de funcionário público como exigência típica relativa ao autor, então, o princípio nom bis in idem produz efeitos tornando incompatíveis amas as sanções” (QUIROGA, Jacob López Borja de., El princípio: no bis in idem. Madrid: Dykinson, 2004, p. 40).

[30] ABREU, Luis Vasconcelos. Para o Estudo do Procedimento Disciplinar no Direito Administrativo. Português Vigente: As relações com o Processo Penal. Coimbra: Almedina, 1993, p. 46.

[31] VILLALBA, Francisco javier de León. Acumulación de Sanciones penales y administrativos.” (Barcelona, Bosh, 1998, p. 29).

[32] AFTALIÓN. Enrique R. Derecho Penal Administrativo. Buenos Aires: Ediciones Arayú. 1955, p. 14.

[33] CRETONA, Blanca Louzada. “Las Fronteira del Código Penal de 1995 y Derecho Administrativo Sancionador”, in Cuadernos de Derecho Judicial. Madrid: Conselho General del Poder Judicial, 1997, p. 51.

[34] OSÓRIO, Fábio Medina. Direito Administrativo Sancionador. São Paulo: RT. 2000, p. 108.

[35] RANGEL, Paulo. A COISA JULGADA NO PROCESSO PENAL BRASILEIRO COMO INSTRUMENTO DE GARANTIA. São Paulo: Atlas, 2012. P. 161.

[36] LEONE, Giovanni. Tratado de Derecho procesal penal. Tradução de MELENDO, Santiago Santís. Buenos Aires: Ejea, 1989, T. III, p. 321.

[37] “A coisa julgada penal vale, portanto, erga omnes, isto é, não somente esta faz lei entre a parte que interveio, na causa, senão em relação a todos aqueles que, em juízo, não intervierem.” (ROCCO, Arturo. Trattado dela Cosa Judicata, v. 1, Madeira: tipografia Solari, 1904, p. 230).

[38] TJ/RS, Rel. Des. Luis Felipe Silveira Difini, Ap. Cível nº 700807,6812, 22ª CC, julgado em 25.04.2019.

[39] STJ, Rel. Min. Benedito Gonçalves, 1ª T., AgInt nos ADCL no AREsp 1464563/RE, DJ de 7.12.2020.

[40] STJ, Rel. Min. Gurgel de Faria, REsp nº 1634627/RS, 1ª T., DJ de 15.10.2020.

[41] STJ, Rel. Min. Napoleão Nunes Maia Filho, AgInt no AREsp 1098135/MS, 1ª T., DJ de 02.06.2020.

[42] ROXIN, Claus. Derecho Penal, 25. ed. tradução de CÓRDOBA, Gabriela E. e PASTPR Daniel R. Buenos Aires: Editores Del Puerto, 2000, p. 437.

[43] ABREU, Luís Vasconcelos de. Para o Estudo do Procedimento Disciplinar no Direito Administrativo Português Vigente: As Relações com o Processo Penal. Coimbra: Almedina, 1993, p. 117.

[44] DIAS, Jean COLBERT, FERREIRA, Anderson e MOREIRA, Alexandre Magno Augusto, O Direito Penal e o Direito Administrativo Sancionador como Peças do Macrossistema Punitivo e a Rejeição ao Bis in Idem.

[45] Conf. Art. 489, § 2º, NCPC.


Autor

  • Mauro Roberto Gomes de Mattos

    Advogado no Rio de Janeiro. Vice- Presidente do Instituto Ibero Americano de Direito Público – IADP. Membro da Sociedade Latino- Americana de Direito do Trabalho e Seguridade Social. Membro do IFA – Internacional Fiscal Association. Conselheiro efetivo da Sociedade Latino-Americana de Direito do Trabalho e Seguridade Social. Autor dos livros "O contrato administrativo" (2ª ed., Ed. América Jurídica), "O limite da improbidade administrativa: o direito dos administrados dentro da Lei nº 8.429/92" (5ª ed., Ed. América Jurídica) e "Tratado de Direito Administrativo Disciplinar" (2ª ed.), dentre outros.

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MATTOS, Mauro Roberto Gomes de. Da nova visão do Supremo Tribunal Federal sobre decisão judicial que acolhe HC para trancar ação penal e a impossibilidade da propositura de ação de improbidade administrativa sobre os mesmos fatos (bis in idem). Mitigação da independência das instâncias penal e administrativa. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 26, n. 6700, 4 nov. 2021. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/89917. Acesso em: 19 abr. 2024.