Processo nº 2007.101460-6 (07/07R)
Vistos.
Trata-se de ação de retificação promovida JOSÉ RENATO GUEDES NETO em que pretende a retificação de seu assento de nascimento para que conste RENATA GUEDES NETO. Juntamente com a petição inicial, vieram documentos.
O representante ministerial manifestou-se contrariamente ao feito às fls. 62.
É, em breve síntese, o que cumpria relatar.
FUNDAMENTO E DECIDO.
É importante na análise do presente caso se fixem algumas premissas:
1- o autor não pretende alterar seu sexo no assento de nascimento;
2- o autor não fez qualquer modificação sexual pois ainda não se sente preparado para tal;
3- transexual não precisa de cirurgia para ser considerado como tal;
4- o autor é notoriamente conhecido como Renata consoante se verifica do documento de fls. 13, 18 e, especialmente, a declaração dos pais de fls. 20.
Em que pese o respeitável entendimento do representante ministerial, esse Magistrado entende ser possível o pedido formulado pelo autor pelas razões que passa a expor.
Como tem entendido em uma série de decisões nos feitos em que autuei, o principio da dignidade da pessoa humana, fundamento da República Federativa do Brasil, a teor do artigo 1º da Constituição Federal apresenta-se como norte interpretativo e finalístico para todas as regras vigentes do sistema legal brasileiro. Seu conteúdo, em uma visão kantiana, implica no reconhecimento de que a pessoa merece o tratamento amplo e máximo autorizado pelo sistema. Vale dizer: a pessoa, como centro de potencialidade plenas e infinitas deve ser tratada como tal e não como uma coisa ou usando de neologismo a pessoa não pode ser "coisificada".
Dito isto, é de rigor observar que há outro principio aplicável no presente caso apresentado pelo d. representante ministerial: trata do principio da veracidade registrária. Ora, tal princípio deve ser lido a partir do principio da dignidade humana de forma que o registro, a documentação, represente efetivamente a situação vivida pela pessoa. Disto decorre a seguinte situação: o autor não pretende fazer, por ora, a cirurgia de mudança e, assim, o representante ministerial entende que o princípio da veracidade registrária seria ferido, pois haveria incongruência entre o nome Renata e o sexo masculino aposto no documento. Mas essa incongruência já existe no plano concreto da vida: o autor, com sua aparência feminina, é constantemente objeto, no mínimo, de olhares curiosos quando instado a apresentar sua documentação.
Ora, esta segunda situação acaba sendo, com a devida vênia, perniciosa: conduz o autor cada vez mais para um processo de interiorização e, por vezes, de negação de sua própria identidade. Não se pode jamais esquecer, que apesar dos avanços, as violências diárias sofridas por transexuais são relatadas de maneira ampla pela imprensa. Adotar o posicionamento do representante ministerial, com a devida vênia, equivaleria a forçar o autor a fazer a cirurgia, quando ainda não se sente preparado para tal. Esta opção individual acaba por ser um dos núcleos da dignidade da pessoa humana e não pode o Poder Judiciário direta ou indiretamente, tanger a vontade do autor neste aspecto.
Há um outro aspecto: poder-se-ia objetar que a alteração do nome induziria a erro sobre a pessoa em que se refere aos homens que eventualmente se relacionassem com o autor. Ora, nesta situação, é de se ponderar três argumentos contrários a esta tese:
1- tal possibilidade já existe hoje tendo em vista a aparência feminina do autor;
2- trata-se de característica e preço a ser pago por força da modernidade e do Estado Democrático de Direito;
3- o autor é tão conhecido (este argumento "evidentemente" só aplicável a este caso), que sabe-se da situação biológica do autor ante sua aparição na mídia.
Desta forma, deve-se deixar claro o que se ressaltou até aqui: o princípio da veracidade registrária e o constrangimento que passa o autor autorizam a modificação pretendida, quando lidos a partir da ótica do principio da dignidade da pessoa humana.
Ante o exposto, julgo PROCEDENTE o pedido a fim de que o nome do autor seja alterado para RENATA GUEDES NETO.
Após certificado o trânsito em julgado, concedo o prazo de 3 (três) dias para a extração de cópias necessárias à expedição do mandado.
Custas à parte autora.
Ciência ao Ministério Público.
Oportunamente, arquivem-se os autos.
P.R.I.
São Paulo, 12 de julho de 2007.
Guilherme Madeira Dezem
Juiz de Direito
Publicação:
D O E - Edição de 20/07/2007
Arquivo: 1381 Publicação: 146
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