4. O que está por trás dos números
O cooperativismo está presente em praticamente todos os setores da economia do país. Sua representatividade em números prova que é impossível ignorar suas conquistas. Hoje, as cooperativas respondem por nada menos que 35% do PIB agrícola e, ao todo 6% do PIB nacional.
São 218 mil empregos diretos gerados diretamente por essa força, ao lado da contagem de 7,3 milhões de associados a 7.603 cooperativas, aqui contadas apenas as filiadas ao Sistema OCB/SESCOOP. Delas, 1.549 são do ramo agropecuário, em que 80% dos associados são pequenos produtores. Esses trabalhadores rurais vêm nessas sociedades uma possibilidade de organização inclusiva, que agrega valor ao conjunto de suas produções individuais indispensável para a conquista de mercados.
Para não destacar apenas o ramo agropecuário, acrescenta-se que, segundo um ranking nacional realizado pela revista Exame, dentre as 500 maiores empresas do país, 47 são cooperativas de consumo. Elas atuam promovendo a compra em comum de artigos de consumo para seus cooperados.
O faturamento anual soma 68 bilhões de reais. Por esse e muitos outros motivos, o cooperativismo é referência social e econômica no cenário brasileiro.
Por trás de toda essa pujança, mantém-se ativas muitas pseudo-cooperativas. Como já foi dito no decorrer deste trabalho, ninguém ignora que empresários mal intencionados se utilizam da fachada do cooperativismo para esconder as mais perversas sonegações a direitos básicos de trabalhadores.
Conforme alerta o Secretário Nacional de Economia Solidária do Ministério do Trabalho e Emprego, Paul Singer, "a única razão de existir das cooperativas falsas é roubar dos trabalhadores seus direitos históricos". Por isso, à medida que a Justiça do trabalho e a fiscalização do Ministério do Trabalho passem a punir essas cooperativas e os sindicatos e trabalhadores atuem no sentido de defender seus direitos sociais e constitucionais, as falsas cooperativas desaparecerão.
Há de se difundir a noção de que são Direitos Fundamentais o salário mínimo, a jornada normal de 44 horas semanais, os valores do FGTS, a aposentadoria e outros tantos.
É certo que muitos membros de cooperativas têm consciência de sua condição de ilegalidade. Apesar de identificarem a injustiça a que estão submetidos, acham-se impossibilitados de lutar contra patrões que detêm os instrumentos de controle necessários à sobrevivência desses grupos. Guardam em seus escritórios, como ouro, atas que os habilitam a fazer de um tudo, sob as máscaras de diretorias eleitas.
Aceitar trabalhar em condições inferiores contribui nessa prática que majora a lucratividade com o desoneramento de encargos trabalhistas e previdenciários, atentando contra o sistema cooperativo, jurídico e as garantias trabalhistas.
Conclusão
O Estado tem se mostrado omisso na tarefa de evitar os abusos denunciados nesse trabalho, os quais, na maioria das vezes, são impossíveis de ser freados pelas próprias vítimas. A retórica utilizada para iludir trabalhadores sobre uma pretensa autonomia – que se atribui a quem teria qualificação para ser dono e usuário da empresa cooperativa – é a sedução do crime. Compara-se mesmo com a atividade aliciadora de mão de obra escrava, guardadas as devidas proporções.
Outro expediente comum é a simples omissão do pano de fundo da contratação de trabalhadores, quando os patrões transformam sorrateiramente todos os seus empregados em sócios. Aproveitam-se de sua situação de superioridade para fazê-los assinar declarações de "adesão livre e voluntária".
Assim são criadas cooperativas de cortadores de cana, faxineiros, domésticas, mecânicos, operadores de máquinas...
Um brevíssimo raciocínio leva-nos a perceber a total ausência de affectio societatis entre tais pessoas. Em que esses trabalhadores podem ser chamados de autônomos, gestores do seu negócio, empresários? Pois é isso que sócios de cooperativas devem ser: indivíduos que apenas preferiram somar seus esforços para constituir uma organização que a eles preste serviços, não o contrário.
A situação atual de verificação do cumprimento da legislação cooperativista é, no mínimo, hipócrita.
Em tese, o SESCOOP recebe receita para cumprir sua bela missão legalmente instituída de controlar, monitorar e fiscalizar as cooperativas de todo o Brasil.
Na prática, o consenso é de que a personalidade de direito privado do SESCOOP, especialmente por sua estreitíssima relação com a OCB, o desabilita a exercer qualquer poder de polícia.
A proposta de responder a este dilema pode estar no desmembramento de uma estrutura que confunde o público com o privado, na redistribuição de competências entre órgãos oficiais ou mesmo na criação de um fiscalizador autônomo com poder de polícia administrativa, a fim de evitar os desastres que o Poder Judiciário não pode antever.
Enquanto isso não ocorre, estão as entidades estaduais do Sistema empenhadas em manter a credibilidade arduamente conquistada pelos princípios do cooperativismo e de suas conquistas históricas. Isso naturalmente passa pelo desdobramento que cada uma, em seus respectivos estados, faz para ver cumprida a legislação pertinente.
Ainda que fosse considerada a situação hipotética de restabelecer o registro compulsório ao Sistema Cooperativista, para viabilizar tal poder numa parceria com a iniciativa privada, ter-se-ia outra situação crítica. Já que a direção do Sistema é eleita pelas próprias cooperativas integrantes, qual legitimidade teria ela como fiscal dos seus companheiros próximos?
Fazendo um paralelo, poder-se-ia imaginar que as gerências regionais da Agência Nacional de Telecomunicações fossem eleitas pelos donos de rádios e de operadoras de telefonia. Ou ainda que a cúpula da Agência Nacional de Aviação Civil fosse disputada entre votos oriundos das empresas de aviação. O resultado desse esboço é, em larga medida, previsível.
Se o Estado não tem se preocupado com a questão, só se pode concluir que alguém se beneficia com isso tudo. Como não reconhecer que existe uma posição confortável da OCB/SESCOOP em não lidar com essa árdua tarefa? Estariam interessados em virar esse quadro os poderosos donos de cooperativas alheias ao Sistema, que a ninguém precisam prestar contas além dos Conselhos Fiscais amigavelmente posicionados? Com os exemplos de desestatização e a crescente desregulação da atividade econômica, a partir da onda neoliberal iniciada nos anos 90, seria um programa de Estado incrementar seu aparelhamento fiscalizatório?
Pelo visto, o contexto é favorável para muitos. Porém, tirano para os pobres envolvidos, injusto para os sem instrução, constrangedor para a sociedade consciente, árduo para o Ministério Público do Trabalho e estafante para o Judiciário.
Referências
ANNAN, Kofi, Discurso do Secretário-Geral da ONU proferido em 02/07/2005. Centro de Informação das Nações Unidas em Bruxelas – RUNIC. Disponível em <http://www.nossosaopaulo.com.br/Reg_SP/Barra_Escolha/ONU_Cooperativas.htm>. Acesso em 11/04/2009.
AQUINO, Eudes de Freitas. A tábua e os tempos. Revista Mundo Coop. São Paulo-SP, n. 23, p. 50, outubro de 2007
BECHO, Renato Lopes. Elementos de direito cooperativo. São Paulo: Dialética, 2002.
BRASIL. Constituição (1988). Constituição da República Federativa do Brasil. Brasília, DF, Senado, 1988.
______. Decreto 3.017, de 6 de abril de 1999. Aprova o Regimento do Serviço Nacional de Aprendizagem do Cooperativismo - SESCOOP. Diário Oficial da União, 7 de abril de 1998; Brasília-DF.
______. Decreto de 4 de julho de 2003. Institui Grupo de Trabalho Interministerial encarregado de analisar e apresentar proposta para viabilizar a implementação de plano para o desenvolvimento do cooperativismo. Diário Oficial da União, 7 de julho de 2003; Brasília-DF.
______. Lei 10.406, de 10 de janeiro de 2002. Institui o Código Civil. Diário Oficial da União, 12 de janeiro de 2002; Brasília-DF.
______. Lei 5.764, de 16 de dezembro de 1971. Define a Política Nacional de Cooperativismo, institui o regime jurídico das sociedades cooperativas, e dá outras providências. Diário Oficial da União, 16 de dezembro de 1971; Brasília-DF.
______. Medida Provisória 1.715, de 3 de setembro de 1998. Dispõe sobre o Programa de Revitalização de Cooperativas de Produção Agropecuária - RECOOP, autoriza a criação do Serviço Nacional de Aprendizagem do Cooperativismo - SESCOOP, e dá outras providências. Diário Oficial da União, 4 de setembro de 1998; Brasília-DF.
______. Ministério do Desenvolvimento, Indústria e Comércio Exterior. Secretaria do Comércio e Serviços. Departamento Nacional de Registro do Comércio. Instrução normativa n. 101, de 19 de abril de 2006. Aprova o Manual das Cooperativas. Disponível em: <http://www.dnrc.gov.br/legislacao/normativa/ in101.htm>. Acesso em 09 de setembro de 2007.
______. Supremo Tribunal Federal. Acórdão em ação direta de inconstitucionalidade n. 2.045. Partido Social Trabalhista - PST. Relator: Ministro Ilmar Galvão. DJ, 17 de outubro de 2003. Vencidos os senhores Ilmar Galvão e Marco Aurélio.
CARVALHO FILHO, José dos Santos. Manual de Direito Administrativo. 8ª ed. Rio de Janeiro: Lúmen Júris, 2001.
COSTA, Nelson Nery. Monografia jurídica brasileira. Rio de Janeiro: Cia Forense, 2005.
______. Constituição Federal anotada e explicada. Rio de Janeiro: Forense, 2002.
GASPARINI, Digenes. Direito Administrativo. 10. ed. São Paulo: Saraiva, 2005.
KRUEGER, Guilherme; DE MIRANDA, André Branco (Coord.) Comentários à legislação das Sociedades Cooperativas. Belo Horizonte: Mandamentos, 2007. Tomo II.
LEWIS, Sandra Barbon. A tributação no sistema cooperativista: dimensão social e importância econômica das cooperativas justificam tratamento fiscal diferenciado. Revista FAE Business. Curitiba-PR, n. 12, p. 41-44, setembro de 2005.
MIRANDA, Jorge. Manual de Direito Constitucional. 3 ed. Coimbra: Coimbra Editora, 2000, t. IV, p. 476/478.
MORAES, Alexandre de. Direito Constitucional. 14. ed., atual. com a EC 40/03. São Paulo: Atlas, 2003. 836 p.
Organização das Cooperativas Brasileiras – OCB. O Cooperativismo Brasileiro: "Uma História" - Brasília, DF: Versão Br Comunicação e Marketing, 2004.
Organização das Cooperativas Brasileiras. Portal Brasil Cooperativo. Ramos. Disponível em: <http://www.ocb.org.br/site/ramos/index.asp> Acesso em 13 de janeiro de 2008.
SILVA FILHO, José Carlos Bastos. Cooperativas: a liberdade de associação e o registro obrigatório na OCB. Jus Navigandi, Teresina, ano 11, n. 1568, 17 out. 2007. Disponível em: <http://jus.com.br/revista/texto/10495>. Acesso em: 09 set. 2007.
Notas
"REF.: OBRIGATORIEDADE DO REGISTRO DE COOPERATIVAS NO SISTEMA OCB E DO PAGAMENTO DA CONTRIBUIÇÃO COOPERATIVISTA. LEGALIDADE CONFORME DISPOSIÇÕES DA LEI 5764/71.
[...] Pode-se afirmar com total segurança, que as sociedades que não estiverem obedecendo as regras insculpidas na Lei 5764/71, notadamente as previstas nos artigos 107 e 108, são pseudocooperativas. Nesses casos, recomenda-se às Organizações Estaduais que seja feito um levantamento de dados dessas sociedades irregulares que estão utilizando indevidamente a bandeira cooperativista como forma societária, com posterior encaminhamento das informações aos órgãos de fiscalização: Federal, Estadual e Municipal para que os mesmos façam criteriosa apuração das irregularidades cometidas."
Art. 4º As cooperativas são sociedades de pessoas, com forma e natureza jurídica próprias, de natureza civil, não sujeitas a falência, constituídas para prestar serviços aos associados, distinguindo-se das demais sociedades pelas seguintes características:
I - adesão voluntária, com número ilimitado de associados, salvo impossibilidade técnica de prestação de serviços; (...)
III - limitação do número de quotas-partes do capital para cada associado (...);
IV - incessibilidade das quotas-partes do capital a terceiros, estranhos à sociedade;
V - singularidade de voto, (...);
VI - quorum para o funcionamento e deliberação da Assembléia Geral baseado no número de associados e não no capital; (...)
IX - neutralidade política e indiscriminação religiosa, racial e social;
X - prestação de assistência aos associados, e, quando previsto nos estatutos, aos empregados da cooperativa; (...)
Anote-se, ainda, que o STF ainda expressou, na ementa do acórdão, que a liberdade de associação é "garantia constitucional de duvidosa extensão às pessoas jurídicas" (!?).
(...)
III - estabelecer normas gerais em matéria de legislação tributária, especialmente sobre:
(...)
c) adequado tratamento tributário ao ato cooperativo praticado pelas sociedades cooperativas.
I - organizar, administrar e executar o ensino de formação profissional e a promoção social dos trabalhadores e dos cooperados das cooperativas em todo o território nacional;
II - operacionalizar o monitoramento, a supervisão, a auditoria e o controle em cooperativas, conforme sistema desenvolvido e aprovado em Assembléia Geral da Organização das Cooperativas Brasileiras - OCB;
III - para o desenvolvimento de suas atividades, o SESCOOP contará com centros próprios ou atuará sob a forma de cooperação com órgãos públicos ou privados.
- Parecer CONJUR 008/2000, da assessoria jurídica da OCB:
- Art. 72, § 8º: "A todos é lícito associarem-se e reunirem-se livremente e sem armas; não podendo intervir a polícia senão para manter a ordem pública."
- Art. 113, nº 12: "É garantida a liberdade de associação para fins lícitos, nenhuma associação será compulsoriamente dissolvida senão por sentença judiciária."
- Art. 122, nº 9, assegurando "a liberdade de associação, desde que os seus fins não sejam contrários à lei penal e aos bons costumes;"
- XVI - todos podem reunir-se pacificamente, sem armas, em locais abertos ao público, independentemente de autorização, desde que não frustrem outra reunião anteriormente convocada para o mesmo local, sendo apenas exigido prévio aviso à autoridade competente;
- Em discurso proferido no Dia Internacional das Cooperativas, o Secretário-Geral da ONU, Kofi Annan, enfatizou que "no quadro das iniciativas mundiais em prol da redução da pobreza e da promoção do desenvolvimento sustentável, devemos ver nas cooperativas instrumentos de eficácia comprovada (...)", arrematando com as seguintes palavras "é por esta razão que a ONU se esforça por promover as cooperativas. Neste Dia Internacional, exorto vivamente os governos a fazerem isso também." (ANNAN, 2005)
- Dados disponíveis em <http://www.ica.coop/coop/index.html>.
- Art. 3° Celebram contrato de sociedade cooperativa as pessoas que reciprocamente se obrigam a contribuir com bens ou serviços para o exercício de uma atividade econômica, de proveito comum, sem objetivo de lucro.
- Art. 174. (...) § 2º - A lei apoiará e estimulará o cooperativismo e outras formas de associativismo.
- Talvez a opinião deste autor esteja bastante defasada para o Supremo Tribunal Federal, que julgou, em abril de 2003, a ADIn nº 2.054-4, questionando o sistema unificado de gestão coletiva de direitos autorais. O Plenário do STF declarou constitucional o art. 99 da atual Lei de Direito Autoral (9.610/98), mantendo o ECAD como único responsável pela arrecadação e distribuição daqueles direitos. O Escritório, na visão da Corte Suprema, não constitui, portanto, "monopólio privado".
- Relatório final da proposta para a implementação de plano para o desenvolvimento do cooperativismo do Grupo de Trabalho Interministerial do Cooperativismo.
- Art. 146. Cabe à lei complementar:
- Atualmente vigora a MP 2.168-40, de 24 de agosto de 2001, sua 39ª reedição.
- A versão atual foi instituída pela instrução normativa no 101, 19 de abril de 2006, do DNRC, que considerou a necessidade de simplificar e uniformizar os serviços de Registro do Comércio em todo o País, bem como os estudos e debates realizados pela COJUR/DNRC e representantes das Juntas Comerciais, designados pela Portaria nº 04, publicada no D.O.U. de 23 de agosto de 2005, pg. 21, seção 2.
- disponível em http://www.dnrc.gov.br/legislacao/normativa/in101.htm
- Art. 2o Constituem objetivos do SESCOOP:
- Disponível no processo 06/019671-8, de 28 de junho de 2006, da Junta Comercial do Estado do Piauí.