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A atuação do Judiciário na efetivação do direito à saúde e a reserva do possível: colisão com direitos

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Agenda 11/03/2011 às 09:59

4. O PAPEL DO JUDICIÁRIO NA EFETIVAÇÃO DO DIREITO À SAÚDE

4.1 As medidas judiciais utilizadas para recebimento de medicamentos e tratamentos de alto custo

As concessões de medidas liminares, de antecipação de tutela e mandados de segurança para fornecimento de medicamentos e tratamentos de saúde tornam-se cada vez mais polêmicas no meio jurídico. Se junta a essa polêmica a frequente estratégia de defesa dos órgãos administrativos nas ações judiciais, que são baseadas no princípio da Reserva do Possível e impossibilidade orçamentária.

É baseada na solidariedade entre os entes federativos que diversas ações são ajuizadas diariamente tentando fazer valer um direito que, para muitos, encontra-se perfeitamente assegurado, mas que na prática é atingido somente por via de medidas liminares ou mandados de segurança. As ações buscam as ordens judiciais determinando o fornecimento de remédios de alto custo, tratamentos diversos, cirurgias urgentes, internações, entre outros.

Encontram-se com maior frequência as ações ajuizadas contra os entes da União, Estados e municípios (de residência dos autores) com pedidos de antecipação de tutela, pois para esta ação deverá ser apresentado ao juiz o fundamento de que o dano poderá ser irreversível ao paciente, baseando-se no artigo 273 e ss do CPC. Em tese, é melhor opção do que o Mandado de Segurança.

Para o Mandado de Segurança, deverá ser apontado o órgão ou pessoa infratora do direito, fumus bonis iuris, periculum in mora e a prova do direito líquido e certo (requisitos básicos para o Mandado de Segurança). Pode ser perfeitamente realizado, mas reduziria consideravelmente a possibilidade de êxito do determinado pedido. No caso, a ação seria ajuizada somente contra o órgão ou sujeito infrator e não contra todos os entes federativos, o que aumenta, e muito, a possibilidade de insucesso do pedido.

4.2 As consequências do desrespeito às liminares pelas autoridades coatoras

Como as ações judiciais para fornecimento de medicamentos ou tratamentos diferenciados são baseadas em dispositivos constitucionais e em leis infraconstitucionais, há também os efeitos do descumprimento de tais ordens judiciais, que são construídos pelo Código Penal, Código de Processo Civil, pela doutrina e jurisprudência.

Diversos julgados são favoráveis à possibilidade de se punir os órgãos ou seus responsáveis que não cumprirem os mandados judiciais com multas diárias e até mesmo com prisões em último caso.

As astreintes são fixadas aos órgãos responsáveis ou pólos passivos da ação, com base no artigo 14 e ss do CPC, por entender que qualquer ato negativo ao cumprimento da ordem judicial trata-se de ato atentatório à dignidade da justiça:

Art. 14 - São deveres das partes e de todos aqueles que de qualquer forma participam do processo:

V - cumprir com exatidão os provimentos mandamentais e não criar embaraços à efetivação de provimentos judiciais, de natureza antecipatória ou final.

Parágrafo Único. Ressalvados os advogados que se sujeitam exclusivamente aos estatutos da OAB, a violação do disposto no inciso V deste artigo constitui ato atentatório ao exercício da jurisdição, podendo o juiz, sem prejuízo das sanções criminais, civis e processuais cabíveis, aplicar ao responsável multa em montante a ser fixado de acordo com a gravidade da conduta e não superior a vinte por cento do valor da causa; não sendo paga no prazo estabelecido, contado do trânsito em julgado da decisão final da causa, a multa será inscrita sempre como dívida ativa da União ou do Estado. (grifo nosso)

Os artigos 461 e 461-A do CPC dão amparo aos juízes para estipularem as multas pelo descumprimento das ordens judiciais concedidas:

Art. 461. Na ação que tenha por objeto o cumprimento de obrigação de fazer ou não fazer, o juiz concederá a tutela específica da obrigação ou, se procedente o pedido, determinará providências que assegurem o resultado prático equivalente ao do adimplemento.

[...]

§ 4º O juiz poderá, na hipótese do parágrafo anterior ou na sentença, impor multa diária ao réu, independentemente de pedido do autor, se for suficiente ou compatível com a obrigação, fixando-lhe prazo razoável para o cumprimento do preceito.

§ 5º Para a efetivação da tutela específica ou a obtenção do resultado prático equivalente, poderá o juiz, de ofício ou a requerimento, determinar as medidas necessárias, tais como a imposição de multa por tempo de atraso, busca e apreensão, remoção de pessoas e coisas, desfazimento de obras e impedimento de atividade nociva, se necessário com requisição de força policial.

Art. 461-A Na ação que tenha por objeto a entrega de coisa, o juiz, ao conceder a tutela específica, fixará o prazo para o cumprimento da obrigação.

[...]

§ 3º Aplica-se à ação prevista neste artigo o disposto nos §§ 1º a 6º do art. 461.

Em decisões do STJ, verifica-se a possibilidade de se aplicar astreintes objetivando o cumprimento dos mandados de fornecimento de medicamento ou tratamento médico:

PROCESSUAL CIVIL E ADMINISTRATIVO – AGRAVO REGIMENTAL – FORNECIMENTO DE MEDICAMENTOS – MULTA DIÁRIA COMINATÓRIA – ASTREINTES – APLICABILIDADE CONTRA A FAZENDA PÚBLICA – POSSIBILIDADE.

Inexiste qualquer impedimento quanto a aplicação da multa diária cominatória, denominada astreintes, contra a Fazenda Pública, por descumprimento de obrigação de fazer. Inteligência do art. 461 do CPC. Precedentes. Agravo regimental improvido.

(STJ - AgRg no REsp 903.113/RS, Rel. Ministra ELIANA CALMON, SEGUNDA TURMA, julgado em 03.05.2007, DJ 14.05.2007 p. 276)

E ainda, com a inteligência do parágrafo 5º do artigo 461 do CPC, os juízes podem até mesmo bloquear valores das contas públicas como forma de coagir os órgãos a cumprirem as decisões, possibilidade que até o momento é decisão pacífica do STJ.

PROCESSUAL CIVIL E ADMINISTRATIVO – VIOLAÇÃO DO ART. 535 DO CPC – INEXISTÊNCIA. – FORNECIMENTO DE MEDICAMENTOS – ART. 461, § 5º, DO CPC – BLOQUEIO DE VALORES PARA ASSEGURAR O CUMPRIMENTO DA DECISÃO JUDICIAL – POSSIBILIDADE.

Tem prevalecido no STJ o entendimento de que é possível, com amparo no art. 461, § 5º, do CPC, o bloqueio de verbas públicas para garantir o fornecimento de medicamentos pelo Estado.

Embora venha o STF adotando a "Teoria da Reserva do Possível" em algumas hipóteses, em matéria de preservação dos direitos à vida e à saúde, aquela Corte não aplica tal entendimento, por considerar que ambos são bens máximos e impossíveis de ter sua proteção postergada.

Recurso especial parcialmente conhecido e, nesta parte, não provido.

(STJ - REsp 784.241/RS, Rel. Ministra Eliana Calmon, Segunda Turma, julgado em 8.4.2008, DJ 23.4.2008 p. 1) (grifo nosso)

Além das multas e sequestros de valores das contas públicas, outra forma de conferir o cumprimento das ordens judiciais por parte dos responsáveis pelo sistema de saúde dos municípios, estados, Distrito Federal e União é a possibilidade de enquadramento destas pessoas em crimes, de acordo com o Código Penal.

Não é difícil encontrar, mesmo em juízos cíveis, decisões que fazem referência à possibilidade de punição dos responsáveis pelos órgãos relacionados à saúde que descumprem ou se mostram de alguma forma propensos a protelar as ordens judiciais de fornecimento de medicamentos ou tratamentos.

Tais pessoas são, geralmente, enquadradas no crime de Prevaricação (artigo 319) e Desobediência (artigo 330), todos do Código Penal.

Artigo 319 - Retardar ou deixar de praticar, indevidamente, ato de ofício, ou praticá-lo contra disposição expressa de lei, para satisfazer interesse ou sentimento pessoal.

Artigo 330 - Desobedecer a ordem legal de funcionário público.

São comuns, conforme abaixo, decisões que responsabilizam penalmente os agentes administrativos responsáveis pelos órgãos de saúde:

CONSTITUCIONAL. ADMINISTRATIVO. SAÚDE. FORNECIMENTO DE MEDICAMENTOS PARA EPILEPSIA A HIPOSSUFICIENTE. RESPONSABILIDADE SOLIDÁRIA ENTRE UNIÃO, ESTADOS-MEMBROS E MUNICÍPIOS. LEGITIMIDADE PASSIVA AD CAUSAM DA UNIÃO. PRECEDENTES DO TRF 1ª REGIÃO E DO STJ. Medicamento insubstituível e indispensável à saúde da Autora. Produção em território nacional suspensa desde 2004. Importação a alto custo. Assistência médica devida pelos entes públicos. CF/88, Arts. 196 e 198. Dignidade da pessoa humana. Descumprimento de decisão judicial que antecipou os efeitos da tutela. Agente público. Prevaricação. Código Penal, art. 319.

Não sendo cumprida decisão que antecipou os efeitos da tutela, determinando o fornecimento imediato do medicamento de que necessita a parte autora, é possível aplicação de multa ao agente do Ministério da Saúde responsável, pois, a sanção que dispõe o parágrafo único do art. 14 do CPC se aplica a qualquer pessoa que, de alguma forma, participe do processo ou tenha responsabilidade no cumprimento da ordem judicial.

Entende-se, ainda, que o descumprimento de ordem judicial, seja por vontade de desobedecer, pura e simplesmente, seja por prevaricação, no caso do servidor, o que configura uma infração à lei penal (art. 330 do Código Penal).

(TRF1 – Apelação Cível nº 2005.38.00.003684-8/MG – Relatora: Des. Fed. Selene Maria de Almeida – Decisão em: 02/07/2008) (grifo nosso)

Ainda que seja uma ordem judicial reconhecendo o direito do cidadão, não há a certeza de que será acatada por diversos motivos. Não são raros os casos morte de pacientes graves enquanto aguardam o cumprimento das decisões judiciais para fornecimento de medicamentos, tratamento de alto custo, internações em UTI, etc.

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5. DA PRIMEIRA INSTÂNCIA AO STF: UM LONGO CAMINHO PARA CONFIRMAÇÃO DO DIREITO À SAÚDE

5.1 Decisões judiciais de Primeira Instância e dos Tribunais Regionais

A polêmica persiste, existem correntes doutrinárias de que não pode haver o fornecimento de um medicamento ou tratamento de alto custo em detrimento de outros pacientes que não têm acesso a tratamentos tão onerosos.

Como falado anteriormente, são diversas as ações ajuizadas, a grande maioria com sucesso e outras não. E, ao contrário do que muitos imaginam, nem todas elas têm a liminar concedida de imediato.

Abaixo, decisão de Primeira Instância não concedendo de imediato o medicamento:

SUBSEÇÃO JUDICIÁRIA DE UBERLÂNDIA. JUÍZO DA 3ª VARA FEDERAL. AÇÃO ORDINÁRIA. PROCESSO Nº 2009.38.03.006551-6. DECISÃO Nº 143/2009. .JUÍZA FEDERAL: LANA LÍGIA GALATI. DECISÃO EM: 07/10/2009.

A saúde é direito social fundamental e dever do Estado, no sistema constitucional brasileiro (arts. 6º e 196 e SS. da CF) refletindo-se sobre a esfera das relações entre particulares, destinatários das normas que asseguram tais direitos e deveres. Nesse sentido, o direito à saúde não pode ser interpretado sob a ótica de direito puramente subjetivo e absoluto. [...]

É certo que não se justifica a negativa da satisfação do direito à saúde com base apenas na teoria da reserva do possível e nos princípios da competência parlamentar em matéria orçamentária, nem o da separação dos poderes, sendo necessário definir o parâmetro do "mínimo existencial" no tocante ao "direito à saúde", no caso concreto. [...]

No caso vertente, em juízo de cognição sumária, verifico a possibilidade terapêutica alternativa para o tratamento da autora. [...]

Dessa forma, considerando as conclusões do perito judicial, entendo que os elementos trazidos dos autos, até o presente momento, não se mostram suficientes para o deferimento, por ora, da decisão liminar. (grifo nosso)

Observa-se na decisão que a Reserva do Possível e a limitação orçamentária foi mais uma vez utilizada na defesa de um ou todos os entes do pólo passivo da ação. Mas também pode-se verificar que a Juíza não se baseou nesse princípio para negar o fornecimento de liminar, e sim em circunstâncias técnicas. Muito pelo contrário, ela simplesmente relativizou o pedido, determinando o fornecimento de outro tratamento indicado pelo perito da justiça e não o medicamento específico indicado pelo médico da paciente.

Os tribunais de segunda instância também não são unânimes na confirmação do direito ao recebimento dos medicamentos, conforme exemplo abaixo:

MANDADO DE SEGURANÇA - MUNICÍPIO - FORNECIMENTO DE MEDICAMENTOS QUE NÃO FAZEM PARTE DA FARMÁCIA BÁSICA - RESPONSABILIDADE PELO FORNECIMENTO - AUSÊNCIA. - Se os recursos públicos são escassos, principalmente os municipais, devem ser harmonizados para atendimento de todos os direitos fundamentais sociais. Portanto, o particular deverá reclamar do Município aqueles medicamentos incluídos na Farmácia Básica e do Estado os medicamentos excepcionais, assim definidos através de Portaria expedida pelo Ministério da Saúde, não se afigurando razoável que um ente responda pelas atribuições do outro, sem qualquer previsão orçamentária para tanto. - Sentença reformada.

(TJMG – Processo nº 1.0699.06.064557-8/002 – Relator: Des. Eduardo Andrade – Decisão em: 05/08/2008) (grifo nosso)

O Desembargador, nesse caso, acolheu as considerações do Município de que não há recursos públicos disponíveis para o fornecimento do medicamento em detrimento de outras garantias básicas (direitos fundamentais sociais), ainda na justificativa, o município não poderá arcar com atribuições de outro ente federativo. A decisão acima acolhe, assim, a justificativa da "Reserva do Possível".

A grande maioria das decisões, por outro lado, é favorável ao reconhecimento do direito de acesso integral à saúde pelo cidadão, um direito garantido constitucionalmente e, por consequência, aos medicamentos e tratamentos de alto custo.

Abaixo, um dos vários exemplos encontrados, inclusive em tribunais de justiça:

MANDADO DE SEGURANÇA - DIREITO À SAÚDE - MOLÉSTIA GRAVE - FORNECIMENTO DE MEDICAMENTO - DEVER DO ESTADO - SEGURANÇA CONCEDIDA. Dispõe o art.196 da Constituição Federal que a saúde é direito de todos e dever do Estado, que deverá garanti-lo mediante políticas sociais e econômicas que visem à redução do risco à doença e outros agravos. O fato de o medicamento não fazer parte das especialidades disponíveis pela rotina do SUS não exime o Estado de fornecê-lo ao usuário que não dispõe de recursos para custeá-lo e necessita urgentemente do tratamento. Rejeitada a preliminar, concede-se a segurança.

(TJMG – Processo nº 1.0000.09.512642-1/000 – Relator: Des. Kildare Carvalho – Decisão em: 05/08/2010) (grifo nosso)

No exemplo o Desembargador reconhece o direito ao medicamento. Ainda que o mesmo não estivesse na RENAME, não eximiu o Estado da obrigação de assistência.

5.2 A tendência de confirmação do Direito à Saúde pelo STF

O Supremo Tribunal Federal, na tentativa de pacificar um assunto tão polêmico, acolheu como matéria de repercussão geral um Recurso Extraordinário impetrado pelo Estado do Rio Grande do Norte. O Recurso questiona a solidariedade entre os entes nas ações em busca de fornecimento de medicamentos e/ou tratamentos de alto custo.

Na decisão de acolhimento do Recurso o Ministro Marco Aurélio assim se pronunciou:

REPERCUSSÃO GERAL – COMPETÊNCIA DO PLENÁRIO – ADMISSIBILIDADE – ASSISTÊNCIA À SAÚDE – FORNECIMENTO DE MEDICAMENTO DE ALTO CUSTO – EXTRAORDINÁRIO DO ESTADO

O Tribunal de Justiça do Estado do Rio Grande do Norte desproveu apelação assentando a obrigatoriedade de o Estado fornecer medicamento de alto custo. Este tema tem-se repetido em inúmeros processos. Diz respeito à assistência do Estado no tocante à saúde, inegavelmente de conteúdo coletivo. Em outras palavras, faz-se em jogo, ante limites orçamentários, ante a necessidade de muitos considerada relação de medicamentos, a própria eficácia da atuação estatal. Em síntese, questiona-se, no extraordinário, se situação individual pode, sob o ângulo do custo, colocar em risco o grande todo, a assistência global a tantos quantos dependem de determinado medicamento, de uso costumeiro, para prover a saúde ou minimizar sofrimento decorrente de certa doença. Aponta-se a transgressão dos artigos, 2º, 5º, 6º, 196 e 198, § 1º e § 2º, da Carta Federal. Impõem-se o pronunciamento do Supremo, revelando-se o alcance do texto constitucional.

Admito a repercussão geral articulada em capítulo próprio no extraordinário. Submeto aos integrantes do Tribunal a matéria para deliberação a respeito.

(STF - RECURSO EXTRAORDINÁRIO Nº 566.471-6 – RELATOR MIN. MARCO AURÉLIO. DECISÃO EM 24/10/2007).

De lá para cá, desde a decisão unânime dos Ministros do STF de submeter o assunto ao plenário, o Recurso Extraordinário vem recebendo diversas solicitações de ingresso nas formas de "Amicus Curiae" e de terceiros interessados. Estes interessados ingressaram na ação tanto como parte ativa quanto parte passiva.

Atualmente, além do Estado do Rio Grande do Norte na condição de Recorrente do Recurso Extraordinário, constam como terceiros interessados todos os demais Estados da Federação e mais a União; como Amicus Curiae constam no RE as seguintes pessoas de direito: Defensor Público-Geral da União; ABRAM - Associação Brasileira de Assistência à Mucoviscidose; Instituto de Bioética, Direitos Humanos e Gênero – Anis [11].

Ocorreram nos dias 27, 28 e 29 de abril, e 4, 6 e 7 de maio de 2009 audiências públicas no Supremo Tribunal Federal, cujo tema central foi o Direito à Saúde. Foram ouvidos diversos palestrantes, especialistas de vários setores da sociedade organizada, Executivo Federal e Estadual.

As audiências tiveram como principal objetivo a formação de consciência e opinião dos Ministros quanto ao tema, ou seja, se o Estado deve ou não garantir o acesso integral à saúde dos cidadãos, mesmo que com esta garantia signifique a possibilidade de colocar em risco os orçamentos e a Responsabilidade Fiscal. É a saúde como direito fundamental sendo confrontada com a Reserva do Possível.

Mesmo ainda sem julgamento da Repercussão Geral, pelas recentes decisões do STF percebem-se as opiniões de alguns dos Ministros sobre o assunto.

O Ministro Gilmar Mendes, em 17/03/2010, em uma das mais importantes decisões do Supremo Tribunal Federal relativas ao fundamental acesso à Saúde, negou Suspensão de Tutela Antecipada e Suspensão de Liminar referentes à concessão de medicamentos de alto custo. Dentre diversos pontos importantes contidos na decisão, faz-se necessária a citação de alguns deles, mesmo sendo, de certa forma, extensa a síntese colhida dada à extensão da decisão do Ministro:

Suspensão de Segurança. Agravo Regimental. Saúde pública. Direitos fundamentais sociais. Art. 196 da Constituição. Audiência Pública. Sistema Único de Saúde - SUS. Políticas públicas. Judicialização do direito à saúde. Separação de poderes. Responsabilidade solidária dos entes da Federação em matéria de saúde. Fornecimento de medicamento. Não comprovação de grave lesão à ordem, à economia, à saúde e à segurança públicas. Agravo regimental a que se nega provimento.

Na Presidência do Tribunal existem diversos pedidos de suspensão de segurança, de suspensão de tutela antecipada e de suspensão de liminar, com vistas a suspender a execução de medidas cautelares que condenam a Fazenda Pública ao fornecimento das mais variadas prestações de saúde(fornecimento de medicamentos, suplementos alimentares, órteses e próteses; criação de vagas de UTIs e leitos hospitalares; contratação de servidores de saúde; realização de cirurgias e exames; custeio de tratamento fora do domicílio, inclusive no exterior, entre outros).

[...]

Após ouvir os depoimentos prestados por representantes dos diversos setores envolvidos, ficou constatada a necessidade de se redimensionar a questão da judicialização do direito à saúde no Brasil, isso porque na maioria dos casos a intervenção judicial não ocorre em razão de uma omissão absoluta em matéria de políticas públicas voltadas à produção do direito à saúde, mas tendo em vista uma necessária determinação judicial para o cumprimento de políticas já estabelecidas.

[...]

O fato é que o denominado problema da "judicialização do direito à saúde" ganhou tamanha importância teórica e prática, que envolve não apenas os operadores do direito, mas também os gestores públicos, os profissionais da área de saúde e a sociedade civil como um todo.

[...]

O direito à saúde é estabelecido pelo artigo 196 da Constituição Federal como (1) "direito de todos" e (2) "dever do Estado", (3) garantido mediante "políticas sociais e econômicas [...]".

(1) direito de todos:

É possível identificar, na redação do referido artigo constitucional, tanto um direito individual quanto um direito coletivo à saúde. Dizer que a norma do artigo 196, por tratar de um direito social, consubstancia-se tão somente em norma programática, incapaz de produzir efeitos, apenas indicando diretrizes a serem observadas pelo poder público, significaria negar a força normativa da Constituição. [...]

Não obstante, esse direito subjetivo público é assegurado mediante políticas sociais e econômicas, ou seja, não há um direito absoluto a todo e qualquer procedimento necessário para a proteção, promoção e recuperação da saúde, independentemente da existência de uma política pública que o concretize. Há um direito público subjetivo a políticas públicas que promovam, protejam e recuperem a saúde.

(2) dever do Estado:

O dispositivo constitucional deixa claro que, para além do direito fundamental à saúde, há o dever fundamental de prestação de saúde por parte do Estado (União, Estados, Distrito Federal e Municípios). [...]

O fato de o Sistema Único de Saúde ter descentralizado os serviços e conjugado os recursos financeiros dos entes da Federação, com o objetivo de aumentar a qualidade e o acesso aos serviços de saúde, apenas reforça a obrigação solidária e subsidiária entre eles. [...]

(3) garantido mediante políticas sociais e econômicas:

A garantia mediante políticas sociais e econômicas ressalva, justamente, a necessidade de formulação de políticas públicas que concretizem o direito à saúde por meio de escolhas alocativas [...]. É incontestável que, além da necessidade de se distribuírem recursos naturalmente escassos por meio de critérios distributivos, a própria evolução da medicina impõe um viés programático ao direito à saúde, pois sempre haverá uma nova descoberta, um novo exame, um novo prognóstico ou procedimento cirúrgico, uma nova doença ou a volta de uma doença supostamente erradicada.

[...]

Assim, apesar da responsabilidade dos entes da Federação em matéria de direito à saúde suscitar questões delicadas, a decisão impugnada pelo pedido de suspensão, ao determinar a responsabilidade da União no fornecimento do tratamento pretendido, segue as normas constitucionais que fixaram a competência comum (art. 23, II, da CF), a Lei Federal n.º 8.080/90 (art. 7º, XI) e a jurisprudência desta Corte. Entendo, pois, que a determinação para que a União arque com as despesas do tratamento não configura grave lesão à ordem pública.

[...]

Melhor sorte não socorre à agravante quanto aos argumentos de grave lesão à economia e à saúde públicas, visto que a decisão agravada consignou, de forma expressa, que o alto custo de um tratamento ou de um medicamento que tem registro na ANVISA não é suficiente para impedir o seu fornecimento pelo Poder Público.

Além disso, não procede a alegação de temor de que esta decisão sirva de precedente negativo ao Poder Público, com possibilidade de ensejar o denominado efeito multiplicador, pois a análise de decisões dessa natureza deve ser feita caso a caso, considerando-se todos os elementos normativos e fáticos da questão jurídica debatida. [...]

(STF - STA 175 AgR, Relator(a): Min. GILMAR MENDES (Presidente), Tribunal Pleno, julgado em 17/03/2010) (grifo nosso)

Observa-se que o Magistrado, além de Acórdãos do próprio STF, valeu-se da audiência Pública realizada nos meses de abril e maio de 2009 para fundamentar sua decisão. Há na decisão o reconhecimento da responsabilidade solidária dos entes federativos e a necessidade de assegurar, por meio de políticas públicas, o acesso à saúde nos mesmos níveis da dignidade garantida na Constituição Federal.

Destacam-se os votos dos Ministros Celso de Melo, Carlos Brito e Marco Aurélio. acompanhando o Relator. Ou seja, mais três exemplos de convicções favoráveis de ministros do STF à responsabilidade do Estado em fornecimento de medicamentos e tratamento de alto custo.

Para Celso de Melo:

[...] o alto significado social e o irrecusável valor constitucional de que se reveste o direito à saúde não podem ser menosprezados pelo Estado, sob pena de grave e injusta frustração de um inafastável compromisso constitucional [...].

Para Carlos Ayres Brito, o relator falou:

[...] e muito bem – não apenas da saúde como direito público subjetivo, como direito fundamental, mas também da saúde como política pública, politicamente onipresente [...]. Além disso, sugeriu que, no caso concreto, o problema não é do demandante das ações dos serviços de saúde, mas do Poder Público, que, muitas vezes, não entende, não sabe como acudir a essa demanda [...].

De acordo com Marco Aurélio:

[...] entre proteger a inviolabilidade do direito à vida e à saúde [...] ou fazer prevalecer, contra essa prerrogativa fundamental, um interesse financeiro e secundário do Estado, impõe-se ao julgador, uma vez configurado esse dilema, uma só e possível opção: precisamente aquela que privilegia, por razões de natureza ético-jurídica, o respeito indeclinável à vida e à saúde humana.

Mais recentemente, o Ministro Joaquim Barbosa foi relator de uma decisão concedendo Tutela Antecipada para pedido de fornecimento de medicamento de alto custo, conforme se segue:

STF. ACO – AÇÃO CÍVEL ORIGINÁRIA Nº 1670. ORIGEM SANTA CATARINA – RELATOR MIN. JOAQUIM BARBOSA. DECISÃO EM: 28/10/2010

Nos termos das respostas aos quesitos formulados para perícia técnica, o diagnóstico clínico da autora é de asma grave, trata-se de doença potencialmente letal, o medicamento omalizumabe é eficaz para tratar o quadro, e há medicamentos mais baratos, mas "a autora já usou, ou usa, todos esses, ainda sem controle adequado da doença [...]".

Problemas processuais, a complexa divisão das responsabilidades no Sistema Único de Saúde – SUS, o remoto risco à separação dos Poderes e a insistentemente alegada insuficiência dos recursos públicos são postos em segundo plano, ainda que temporariamente, diante da realidade do risco à saúde.

Ante o exposto, concedo a antecipação dos efeitos da tutela, para determinar ao estado-réu que forneça à autora o medicamento com princípio ativo omalizumabe, de acordo com as prescrições médicas apresentadas periodicamente. (grifo nosso)

Dessa forma, expostas as opiniões de cinco Ministros, tem-se a clara visão de que o entendimento majoritário do Tribunal Superior é de acolhimento dos Pedidos de acesso aos medicamentos e tratamentos de alto custo, desde que devidamente demonstrada a necessidade e eficácia do tratamento. Os Ministros estão, assim, nada mais nada menos confirmando o princípio constitucional positivado, como eles mesmos expressam em suas decisões.

Porém, há Ministros que não são totalmente favoráveis ao reconhecimento da saúde irrestrita e do direito de acesso aos medicamentos e tratamentos sem que antes sejam verificadas as condições financeiras do Estado.

É o caso da Ministra Ellen Gracie, conforme sua decisão a respeito:

STF. SUSPENSÃO DE SEGURANÇA Nº 3.073/RN. RELATORA MIN. ELLEN GRACIE. DECISÃO EM: 09/02/2007

O Estado do Rio Grande do Norte, com fundamento no art. 4º da Lei 4.348/64, requer a suspensão da execução da liminar concedida pela desembargadora relatora do Mandado de Segurança nº 2006.006795-0 (fls. 31-35), em trâmite no TJ/RN , que determinou àquele ente federado o fornecimento dos medicamentos Mabithera (Rituximabe) + Chop ao impetrante, paciente portador de câncer, nos moldes da prescrição médica. [...]

A Lei 4.348/64, em seu art. 4º, autoriza o deferimento do pedido de suspensão de segurança para evitar grave lesão à ordem, à saúde, à segurança e à economia públicas. [...]

Verifico estar devidamente configurada a lesão à ordem pública, considerada em termos de ordem administrativa, porquanto a execução de decisões como a ora impugnada afeta o já abalado sistema público de saúde.

Com efeito, a gestão da política nacional de saúde, que é feita de forma regionalizada, busca uma maior racionalização entre o custo e o benefício dos tratamentos que devem ser fornecidos gratuitamente, a fim de atingir o maior número possível de beneficiários.

Entendo que a norma do art. 196 da Constituição da República, que assegura o direito à saúde, refere-se, em princípio, à efetivação de políticas públicas que alcancem a população como um todo, assegurando-lhe acesso universal e igualitário, e não a situações individualizadas. [...]

No presente caso, ao se deferir o custeio do medicamento em questão em prol do impetrante, está-se diminuindo a possibilidade de serem oferecidos serviços de saúde básicos ao restante da coletividade.

Ante o exposto, defiro o pedido para suspender a execução da liminar concedida nos autos do Mandado de Segurança [...] (grifo nosso)

A visão da Ministra é de que o artigo 196 da Constituição refere-se à efetivação de políticas públicas de acesso igualitário a todos os cidadãos e não de forma diferenciada, pois estaria, dessa forma, reduzindo o acesso do restante da coletividade aos serviços de saúde básicos. Assim, está demonstrado que opiniões divergentes sobre o tema existem, e estão dentro do próprio Superior Tribunal Federal.

Para Salazar e Grou, assim como na decisão de Gilmar Mendes, deve haver sempre um tratamento diferenciado para cada caso concreto para a concessão do pedido formulado:

Não se trata de dar ao indivíduo um cheque em branco que, desprezando as escolhas administrativas, lhe permite ter acesso a todo e qualquer tratamento e/ou medicamento, em detrimento do planejamento e organização inicialmente estabelecidos. Extrapolar os itens eleitos pelo administrador para compor a assistência a saúde, somente deverá ser permitido diante das peculiaridades do caso concreto a exigir determinada prestação fora das anteriormente selecionadas. Isso pode ocorrer, por exemplo, diante da raridade da doença em questão, das características do avanço de determinada doença, ou ainda das especificidade de um problema de saúde em um determinado indivíduo [12].

Não é possível visualizar uma forma do Supremo Tribunal Federal votar alguma decisão no sentido de uniformizar uma política de saúde que limite a análise do judiciário e, consequentemente, a concessão dos medicamentos ou serviços diferenciados aos mais necessitados. Por fim, pode-se recorrer novamente a Salazar e Grou, quando afirmam que a negativa do Judiciário em proteger a saúde e a dignidade dessas pessoas, quando os mesmos batem à sua porta, seria condená-los à morte:

[...] nossa ordem constitucional (acertadamente, diga-se de passagem) veda expressamente a pena de morte, a tortura e a imposição de penas desumanas e degradantes mesmo aos condenados por crime hediondo, razão pela qual não se poderá sustentar – pena de ofensa aos mais elementares requisitos da razoabilidade e do próprio senso de justiça – que, com base numa alegada (e mesmo comprovada) insuficiência de recursos – se acabe virtualmente condenando à morte a pessoa cujo único crime foi o de ser vítima de um dano à saúde e não ter condições de arcar com o custo do tratamento [13].

A Repercussão Geral a ser votada no STF promete ser mais um capítulo deste problema que se torna um verdadeiro jogo de "empurra-empurra" com a negativa de responsabilidades por parte dos entes federativos envolvidos no assunto da saúde.

Sobre o autor
Flávio José dos Santos

Graduado em Sistemas de Informação, Especialista em Gerenciamento de Projetos pela FGV, atua como Gerente de Projetos em empresa de TI em Uberlândia MG. Bacharel em Direito pelo Centro Universitário do Triângulo - UNITRI também em Uberlândia.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

SANTOS, Flávio José. A atuação do Judiciário na efetivação do direito à saúde e a reserva do possível: colisão com direitos. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 16, n. 2809, 11 mar. 2011. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/18627. Acesso em: 23 dez. 2024.

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