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Direito à saúde: cidadania constitucional e reação judicial

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Agenda 11/06/2011 às 07:41

7. ESTUDO DE CASOS: O DIREITO À SAÚDE NO PIAUÍ E A DISCRIMINAÇÃO GEOGRÁFICA

No Piauí, ou se é piauiense, ou não se tem acesso a atendimento médico de alta complexidade do SUS. Isso porque, ao tentar ter acesso à prestação de serviços médicos, os agentes do Estado realizam pesquisas nos cadastros mantidos pelas pessoas junto ao Ministério da Saúde. Caso identifiquem que o doente é inscrito no SUS num outro Estado, é remoto o acesso ao Sistema.

O Ministério da Saúde, com a Portaria SAS/MS nº 39, de 06 de fevereiro de 2006, instituiu a descentralização do processo de autorização dos procedimentos de tratamento de saúde que fazem parte Central Nacional de Regulação de Alta Complexidade - CNRAC.

No momento no qual se precisa de procedimentos nas especialidades contempladas na CNRAC, cuja oferta seja existente na Unidade da Federação solicitante, mas insuficiente, a solicitação só ocorre após a avaliação técnica da insuficiência pelo Ministério da Saúde. Esta avaliação será solicitada à Coordenação-Geral de Regulação e Avaliação – CGRA/DRAC/SAS/MS que responderá no prazo de até 45 (quarenta e cinco) dias. É obrigatório o uso do Cartão Nacional de Saúde para a solicitação.

Somente os Estados com ausência de serviços nas especialidades de Cardiologia, Oncologia, Ortopedia, Neurocirurgia e Epilepsia, poderão efetuar solicitação na CNRAC.

Cada Estado tem a sua Central Estadual de Regulação de Alta Complexidade (CERAC), responsável pela autorização do procedimento de saúde ao paciente do SUS [69].

O Estado do Piauí teve de se adaptar à regra do Ministério da Saúde. A adaptação deu espaço para horrores.

Temos, abaixo, quatro casos relatados na peça inicial do Ministério Público Federal no Piauí, ao propor ação contra a União, o Estado do Piauí e o município de Teresina [70]. A inicial está disponibilizada no site da Procuradoria da República do referido Estado [71]. Iremos utilizá-la para narrar os casos.

L.J.S, portadora de câncer de mama, iniciou tratamento médico em Teresina, por meio do SUS. No momento da cirurgia indicada pelo médico especialista, a Secretaria Estadual de Saúde/PI negou-lhe a cirurgia. O motivo? L.J.S. era maranhense [72].

R.F.S. procurou o Ministério Público Estadual para dividir o desespero que sentia na tentativa de conseguir a autorização de uma cirurgia para seu filho, J.F.S [73], no SUS piauiense.

O filho precisava realizar uma cirurgia com urgência. Procurou a rede pública de saúde. Fez o pedido de realização da cirurgia indicada pelo especialista. A Secretaria Estadual de Saúde negou-lhe o pedido. Qual a razão? J.F.S. era cearense. Dia 27 de março de 2008, J.F.S. faleceu.

M.D.C era portador de câncer no fígado. Ele iniciou tratamento médico no Hospital Getúlio Vargas, seguindo para o Hospital São Marcos, conveniado ao SUS. Tudo em Teresina, cidade onde ele residia [74].

M.D.C possuía uma espécie de sítio no Município de Chapadinha, no Maranhão. Certa vez, sua esposa soube que estava havendo, próximo àquele sítio, um cadastramento para atendimento pelo SUS. Ela fez seu cadastro e recebeu um cartão. Por esse motivo, tanto o cartão do SUS, como o cartão do Hospital São Marcos, possuíam o endereço do Estado do Maranhão.

M.D.C. realizou todo o tratamento no Hospital São Marcos, em Teresina, na rede pública de saúde, conveniada ao SUS. Após exames e procedimentos, o médico responsável entendeu pela necessidade de cirurgia. Procurando o setor competente para o agendamento da cirurgia, M.D.C. ficou sabendo que o Hospital não realizaria o procedimento indicado pelo SUS, vez que ele era do Maranhão.

Esse caso foi ainda pior do que os demais.

É que o paciente também não seria atendido em outro Estado, já que havia iniciado seu tratamento no Piauí. Essa situação tornaria impossível qualquer tratamento de saúde para ele, uma vez que, em Chapadinha, município de sua origem, não havia profissional, nem hospital especializado.

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M.D.C. residia em Teresina há mais de cinquenta anos. Ele corria risco de morrer. Para suportar as dores, estava tomando morfina.

B.S.B era portadora de câncer no útero. Ela havia morado durante muito tempo em Teresina, mas estava residindo em Timon/MA, cidade localizada ao lado da capital piauiense, cujo limite geográfico é somente um rio, o Rio Parnaíba. A senhora pleiteou a realização da cirurgia. A Secretaria Estadual de Saúde negou-lhe. Motivo? B.S.B morava em Timon.

Segundo o Ministério Público Federal, somente no período de janeiro a junho de 2007, houve um total de 232 pacientes de outros Estados que não conseguiram autorização para o tratamento médico, em função de sua origem. Isto apenas em relação à especialidade médica oncologia [75].

Essa era a política pública voltada para a saúde. Esse foi o resultado de um processo de formulação de políticas públicas que provavelmente percorreu todas as etapas da burocracia do Poder Executivo, contando com inúmeras reuniões e com a participação de vários conselhos. Elaborou-se uma Portaria que afronta fortemente a Constituição Federal.

O Judiciário piauiense, num caso, foi acionado. O Tribunal de Justiça determinou que o Estado fornecesse o medicamento Tasigna, cuja substância ativa é o Nilotinibe, necessário para o tratamento de leucemia mielóide crônica a que se submetia a criança F.P.G.S.

Uma ação foi ajuizada em favor da garotinha, internada no Hospital São Marcos em decorrência do agravamento de sua situação. Ela era portadora de leucemia (câncer das células brancas do sangue).

A ação foi ajuizada pelo Ministério Público. Segundo consta nos autos, a família da garota era pobre. Seus pais solicitaram o medicamento junto à Farmácia de medicamentos especiais, mas esta lhe negou. A alegação, mais uma vez, era de que aquela garotinha "residia em outro Estado da Federação".

O Estado do Piauí afirmou que o SUS não reservou aos Estados, mas sim, à União, o dever de garantir o acesso da população ao tratamento para o câncer. Disse que o medicamento Nilotinib não constava do rol de medicamentos abrangidos pela política de medicamentos de dispensação excepcional do SUS, nos termos da Portaria n.º 2.577/GM, de 27 de outubro de 2006. Disse, ainda, que não havia previsão orçamentária para a aquisição da medicação. Finalizou dizendo que as prestações de saúde devem ser executadas dentro da "reserva do possível" [76].

O STF manteve a determinação do fornecimento do medicamento à garotinha que sofria de câncer. O exercício da cidadania constitucional, aliada à concretização judicial do direito à saúde, conseguiu tirar do desamparo uma pessoa que foi esquecida pelos executores de políticas públicas.

Não faz qualquer sentido negar um remédio a uma criança enferma pelo fato de ela não ter nascido naquele Estado. É mais um absurdo que aparece nesse quadro de horrores do direito à saúde no Brasil. Causa calafrios imaginar que alguém sustentou a constitucionalidade de tal medida administrativa. Deixar ao desamparo, uma criança doente, pelo fato de ela ter nascido em outro lugar que não o Estado no qual ela tem condições de tentar se socorrer.

Vale recordar o caso Louis Khosa e outros versus o Ministério do Desenvolvimento Social, apreciado pela Corte Constitucional da África do Sul, em 4.03.2004, no qual as partes questionaram a recusa do governo em fornecer as concessões de bem-estar social para crianças e pessoas mais velhas, pelo fato de elas serem somente residentes permanentes da África do Sul e não cidadãos sul africanos [77].

A Corte Constitucional, após analisar a validade de diferenciação baseada na cidadania, determinou que a restrição era desarrazoada e violava os direitos à igualdade e à seguridade social. Como resultado, não-cidadãos residentes permanentes passaram a ser habilitados às concessões que cidadãos em situação similar também recebiam [78].

No caso do Piauí, foi negado o pedido inicial feito pelo Ministério Público Federal, na ação que moveu contra a União, o Estado do Piauí e o município de Teresina. Na África do Sul, em situação parecida, o pedido foi acolhido e a violação à igualdade foi afastada. Temos muito a aprender com a África do Sul.

Após percorrermos esses casos, dá medo imaginar tudo o que é possível acontecer se encamparmos a bandeira de que o direito a saúde deve ser entregue ao Poder Executivo e Poder Legislativo sem que caiba à jurisdição constitucional qualquer tipo de controle acerca das políticas públicas por eles implementadas.


8. NOTAS FINAIS

Tentamos fornecer elementos que demonstrassem que, dentro da realidade brasileira, caiu por terra o argumento segundo o qual as políticas públicas, mesmo num Estado Constitucional, são soberanas, ou seja, não podem se sujeitar a controle por parte da jurisdição constitucional.

Pudemos fazer uma panorâmica sobre as políticas públicas implementadas no Brasil e no mundo, percebendo que os debates que se anunciam hoje no nosso país já foram travados, até com maior intensidade, por outros países.

Na seqüência, tivemos a oportunidade de conhecer correntes teóricas que tentam decifrar as razões que fazem o Poder Judiciário reagir à inércia estatal quanto à concretização do direito constitucional à saúde.

Também pudemos percorrer vários dispositivos constitucionais dentro de uma dogmática voltada para o direito à saúde, tendo-a como uma conquista importante para a qual não se é possível virar às costas valendo-se da ficção de que os direitos sociais não podem ser sindicados pelo Poder Judiciário.

Por fim, conhecemos a experiência piauiense quanto à discriminação geográfica relativa às pessoas que necessitam dos serviços públicos de saúde, percebendo, netse ponto, a distância que há entre as teorias apresentadas a todos nós e a prática vivida por aqueles que necessitam da saúde pública brasileira. .

Centralização excessiva de poder. Pessoas despidas de um verdadeiro espírito público integrando o processo de formulação de políticas públicas. Ausência de jurisdição constitucional e de uma Constituição efetiva. Predominância de teorias que limitam a concretização judicial dos direitos sociais. Esses são os ingredientes que temperam o caos na saúde pública em qualquer nação.

Por outro lado, Constituição, jurisdição constitucional e mobilização popular. Esse é o ingrediente que possibilita a mudança do panorama da saúde pública brasileira. Nada de ativismo judicial. Simplesmente, cidadania.


REFERÊNCIAS

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Processos no Supremo Tribunal Federal

RE 566471/RN (Rel. Min. Marco Aurélio), julgado em 15/11/2007.

SL 228/CE, julgada em 14/10/2008, de relatoria do Ministro Gilmar Mendes.

Processos no Superior Tribunal de Justiça

Resp. 1.069.810/RS (Rel. Min. Luiz Fux).

Resp. 1.102.457/RJ (Rel. Min. Benedito Gonçalves).

Resp. 1.110.552/CE (Rel. Min. Eliana Calmon)

Sobre o autor
Saul Tourinho Leal

Professor de Direito Constitucional do Intituto de Ensino Superior de Brasília (IESB). Mestrando em Direito Constitucional pelo Instituto Brasiliense de Direito Público (IDP). Advogado.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

LEAL, Saul Tourinho. Direito à saúde: cidadania constitucional e reação judicial. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 16, n. 2901, 11 jun. 2011. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/19319. Acesso em: 22 nov. 2024.

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