5. A relativização (quebra) do direito ao sigilo.
Entendendo o sistema jurídico como aberto, assim como entendido igualmente em vários países do mundo[11], o sigilo bancário e fiscal, apesar de sua grande importância como desdobramento da proteção ao direito de intimidade, não tem caráter absoluto, como, aliás, nenhum direito o tem. Assim, a relativização do direito aos sigilos bancário e fiscal deve ser analisada sob a lente dos princípios orientadores, efetuando-se um processo de hierarquização para que o intérprete, analisando o caso concreto, possa torná-los em legítimos direitos subjetivos[12].
A questão da possibilidade da quebra (relativização) do direito aos sigilos bancário e fiscal foi reacendida com a redação dada ao inciso XII do artigo 5º da Constituição Federal de 1988, uma vez que o dispositivo, constante do catálogo dos direitos fundamentais, estatui a inviolabilidade do sigilo da correspondência, das comunicações telegráficas, de dados e das comunicações telefônicas, excepcionando, a própria Carta, neste último caso e por ordem judicial, nas hipóteses de investigação e processo criminais. Pela redação defeituosa, parece que apenas o sigilo das comunicações telefônicas poderia ser excepcionado, tendo os demais um caráter absoluto, o que não se coaduna com a relatividade característica dos direitos subjetivos.
Em virtude disso, entende-se hoje que a exceção acima citada caracteriza-se como “cláusula de reserva de jurisdição”, somente podendo ser relativizada por decisão judicial motivada (como, aliás, todas devem ser), permitindo-se ao legislador, quanto aos demais sigilos elencados no inciso XII do referido artigo 5º, normatizar as hipóteses em que tal garantia pode ceder.
O legislador, atento aos fundamentos e objetivos da República, vinculado que está ao princípio da legalidade proporcional, visando ao bem comum, pode estabelecer, via legislação autorizadora, a relativização (quebra) dos sigilos bancário e fiscal, como de fato o fez, no caso do sigilo bancário, a teor do revogado artigo 38 da Lei n.º 4.595/64, acima transcrito.
A despeito de outras normas versarem sobre o assunto referente aos sigilos tratados neste ensaio (Leis n.º 8.021/90, 9.311/96, 10.174/01), o legislador brasileiro editou as recentes Lei Complementar n.º 104 (alterando dispositivos do Código Tributário Nacional, acima citados) e Lei Complementar n.º 105 (a qual dispôs sobre o sigilo das operações de instituições financeiras), com artigos regulamentados pelos Decretos n.º 3.724/2001 e 4.489/2002, prevendo as hipóteses em que tais sigilos podem/devem ser relativizados (quebrados).
A Lei Complementar n.º 105/2001, em particular, estabelece o que são consideradas instituições financeiras e estabelece em que hipóteses não considera violação ao dever de sigilo, a teor do parágrafo terceiro do artigo 1º da citada norma legal. Estabelece, outrossim, que a quebra do sigilo poder ser decretada quando necessária para apuração de ocorrência de qualquer ilícito, em qualquer fase do inquérito ou do processo judicial, principalmente quando da ocorrência de crimes como terrorismo, tráfico de entorpecentes, tráfico de armas, extorsão mediante seqüestro, crime contra a Administração Pública, contra o sistema financeiro, contra a ordem tributária e a previdência social, lavagem de dinheiro e aqueles praticados por organizações criminosas, não se revestindo de numerus clausus, podendo o sigilo ceder em outras hipóteses que não somente aquelas elencadas no dispositivo legal citado.
Verifica-se, como já dito anteriormente, que por não se tratar de norma constitucional com cláusula de reserva de jurisdição, bem como porque o comando legal dispõe que a quebra de sigilo poderá ser decretada, sem especificar a autoridade que poderá fazê-lo, sendo o Ministério Público o detentor constitucional do poder de processar criminalmente (nos casos de ação penal pública, por óbvio), detendo poder constitucional requisitório, como se verá adiante, poderá ele, segundo pensamos, independentemente de ordem judicial, determinar a quebra do sigilo em tais casos.
O artigo 5º do citado diploma legal estabelece que o Poder Executivo disciplinará a periodicidade e os limites de valor que serão informados à administração tributária, fazendo circular as informações sigilosas no interesse público arrecadatório.
Já o artigo 6º da referida Lei Complementar estabelece que as autoridades e agentes fiscais, das três esferas de governo, poderão ter acesso ao sigilo bancário quando houver interesse da administração tributária, bem como quando existir processo administrativo instaurado ou procedimento fiscal em curso e essas informações sigilosas sejam consideradas indispensáveis pela autoridade administrativa competente. Dessume-se daí, salvo engano, que o ato de quebra de sigilo, em tais hipóteses, deverá ser motivado.
O artigo 9º, da mesma LC, determina que se o Banco Central do Brasil e a Comissão de Valores Mobiliários verificarem a ocorrência de crime definido em lei como de ação pública, ou indícios da prática de tais crimes, informarão ao Ministério Público, juntando à comunicação dos documentos necessários à apuração ou comprovação dos fatos. Por certo, que tais documentos hão de estar ao abrigo do sigilo, que chegará as mãos do parquet sem que o mesmo tenha requerido sua quebra, o que reforça a tese de que a Instituição, por dispor de poder requisitório constitucional, poderá quebrá-lo diretamente, como no tópico a seguir se tentará demonstrar.
Alfim, não se pode olvidar que as Comissões Parlamentares de Inquérito, por deterem poderes investigatórios próprios de autoridade judiciária, também poderão, por ato motivado e tomado pela maioria dos membros (por ser órgão colegiado) determinar a quebra dos sigilos bancário e fiscal, já que não se trata, como já dito nesta exposição, de cláusula constitucional com reserva de jurisdição, possuindo, assim, as CPIs o poder de quebra de tais sigilos.
Não obstante a edição de tal Lei Complementar, várias ADI(s)[13] foram ajuizadas junto ao Supremo Tribunal Federal, questionando a constitucionalidade de tal diploma legal, uma vez que estariam sendo violadas as liberdades individuais dos indivíduos, dando-se carta branca para a fiscalização tributária, em detrimento das garantias individuais estabelecidas pela Constituição Federal, com status de direitos fundamentais, como o direito à privacidade, ao sigilo, à inafastabilidade da jurisdição, motivação, presunção de inocência etc., uma vez que em nome da ética e da moralidade se estaria suprimindo garantias fundamentais do cidadão.
Todavia, entendemos, com base no caráter não absoluto dos direitos fundamentais, bem como atento à cláusula de reserva de jurisdição, pode o legislador disciplinar, via comando legal, as hipóteses em que o direito aos sigilos bancário e fiscal pode ceder, em face do interesse público preponderante, cabendo ao Poder Judiciário, uma vez acionado, identificar e coibir as situações que desbordem da autorização legal, punindo, se for o caso, os eventuais responsáveis.
6. A legitimação do Ministério Público.
O poder requisitório do Ministério Público vem previsto no artigo 129 da Constituição Federal, a qual prevê que é função institucional do parquet expedir notificações nos procedimentos administrativos de sua competência, requisitando informações e documentos para instruí-los, na forma da lei complementar respectiva, consoante se verifica no teor do inciso IV do dispositivo constitucional citado.
Assim, o acesso do Ministério Público aos sigilos bancário e fiscal (para ficar somente nestes), encontra guarida constitucional, constituindo-se uma de suas principais funções instrumentais, entendendo-se que o artigo 129 da Constituição Federal trata das funções materiais, ou seja, dos bens jurídicos a serem protegidos pela atuação da Instituição, e das instrumentais, que são os mecanismos necessários à consecução das funções materiais.
Em nível infraconstitucional, a matéria vem regulada pelas Leis n.º 8.625/93 (Lei Orgânica Nacional do Ministério Público), assim como a Lei Complementar n.º 75/93, a qual dispõe sobre a organização, as atribuições e o estatuto do Ministério Público da União. A Lei n.º 8.625/93 dispõe no artigo 26, incisos I, letras b) e c), e parágrafo segundo, que no exercício de suas funções o Ministério Público poderá instaurar inquéritos civis e outras medidas e procedimentos administrativos e, para instruí-los, requisitar informações, exames periciais e documentos de autoridades federais, estaduais e municipais, bem como dos órgãos e entidades da administração direta, indireta ou fundacional, de qualquer dos Poderes da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios, promovendo investigações e diligências investigatórias junto às autoridades, órgãos e entidades antes referidas, ficando o membro do parquet responsável pelo uso indevido das informações e documentos que requisitar, inclusive nas hipóteses legais de sigilo.
A Lei n.º 4.595/64 adotou um regramento restritivo, somente permitindo o acesso a dados sigilosos mediante ordem judicial ou por requisição do Poder Legislativo, conforme seu artigo 38. Não obstante, a Lei n.º 4.728/65, que disciplinou o mercado de capitais, determinou, no artigo 4º, ao Banco Central que represente ao Ministério Público, a fim de ser instaurado inquérito policial, toda vez que viesse a tomar conhecimento da ocorrência de crime de ação penal pública, disponibilizando o material colhido, o que leva à Instituição o acesso a dados sigilosos independentemente de qualquer ordem judicial, fato que levou Walberto Fernandes de Lima[14], ao analisar tais dispositivos legais, afirmar que, contraditoriamente, não desejou o legislador incluir o parquet dentre aqueles entes investidos de autoridade para a quebra do sigilo bancário, porém, logo a seguir, admitiu por lei que a Instituição se constitua no repositário das provas coligidas, a quem as mesmas seriam entregues para a propositura de uma ação penal, revelando, assim, ao órgão ministerial, informações que até então lhe eram sigilosas.
Na Lei n.º 7.492/86, que define os crimes contra o sistema financeiro nacional, autorizou o Ministério Público a requisitar informações sigilosas, a teor do seu artigo 29, abrandando a restrição acima mencionada. A própria Lei Complementar n.º 75/93, assim como a Lei n.º 8.625/93 prevêem responsabilização civil e criminal dos membros do Ministério Público pelo uso indevido das informações e documentos que requisitar, inclusive nas hipóteses legais de sigilo.
Hugo Nigro Mazzilli[15] assevera que exceto em matéria em que a própria Constituição exija a quebra do sigilo sob autorização judicial, autoridade alguma poderá opor ao Ministério Público, sob qualquer pretexto, a exceção de sigilo, sem prejuízo da subsistência do caráter sigiloso da informação, do registro, do dado ou do documento.
A Lei Complementar n.º 105/2001, que atualmente disciplina o sigilo bancário, não previu a possibilidade de o Ministério Público ter acesso direto aos dados bancários, ao contrário das Instituições por ela autorizadas. Todavia, o artigo 9.º deste dispositivo legal impôs ao Banco Central e à Comissão de Valores Mobiliários o dever de informarem ao Ministério Público a ocorrência de crime de ação pública, juntando à comunicação os documentos necessários à apuração ou comprovação dos fatos.
Entretanto, embora a omissão legal, em razão dos dispositivos constitucionais aludidos, regrados pelas normas infraconstitucionais antes referidas, entendemos que o Ministério Público detém prerrogativas para a quebra dos sigilos bancário e fiscal, mormente na defesa do patrimônio público, uma vez que a própria Carta Constitucional aduz ser função institucional do parquet a instauração de inquérito civil para a proteção do patrimônio público, não podendo esta função estar subordinada a uma decisão do Poder Judiciário, pois, como acentuam Emerson Garcia e Rogério Alves[16], soa evidente que quem comete os fins (defesa do patrimônio público por intermédio do inquérito e da ação civil pública) deve, também, conferir os meios eficazes que garantam a máxima potencializaçao dos preceitos constitucionais.
A jurisprudência do Supremo Tribunal Federal, no entanto, sedimentou o entendimento de que o acesso ao sigilo somente pode ser dar por intermédio de ordem judicial, a teor do Recurso Extraordinário n.º 215.301-CE, sob o fundamento de que se trata de um direito que tem status constitucional e a quebra não pode ser feita por quem não tem o dever de imparcialidade, tendo este somente a autoridade judiciária.
Mesmo tratamento vem recebendo a matéria junto ao Superior Tribunal de Justiça.
Nessa quadra da exposição, porém, não poderíamos deixar de assentar que as autoridades legitimadas pela Lei Complementar n.º 105/2001, igualmente não têm o dever de parcialidade referido na decisão supra.
Contudo, merece destaque o julgado MS n.º 21.729-4/DF[17], onde restou afirmado pelo STF que em se tratando de dinheiro com origem pública a exceção de sigilo é inoponível ao Ministério Público, em razão do princípio da publicidade inscrito no artigo 37, caput, da Constituição Federal de 1988.
7. Conclusão.
O direito ao sigilo surge como espécie do direito à intimidade, necessidade de proteger o indivíduo ante o desenvolvimento dos meios de comunicação nos dias de hoje.
Esteve previsto em todas as Constituições brasileiras e ganhou destaque como garantia fundamental do cidadão na atual Constituição Federal de 1998. Todavia, a ordem jurídica democrática não é receptiva a direitos absolutos. Sendo assim, a garantia do sigilo bancário e fiscal pode e deve ser afastada por autorização judicial, atentando-se para a razoabilidade da medida e da prevalência do interesse público ou social relevante.
As Comissões Parlamentares de Inquérito, conforme disposto na Constituição Federal, podem determinar a quebra dos sigilos bancário e fiscal, porquanto a própria Constituição emprestou-lhes poderes investigatórios próprios de autoridade judiciária, desde que atendidos os requisitos da motivação e do quorum necessário para tanto. No mesmo passo, a partir da edição da Lei Complementar 105/2001, a Administração Tributária passou a ter acesso direto a tais dados, ainda que se discuta a constitucionalidade de tal prerrogativa. O Ministério Público, entretanto, segundo a Constituição Federal e as Leis Orgânicas, pode requisitar diretamente dados acobertados pelos sigilos bancário e fiscal às entidades privadas, muito embora a jurisprudência dominante entenda que é necessária e imprescindível a intervenção judicial.
O que não se pode permitir, arrimados no pensamento de Sacha Calmon Navarro Coelho,[18] é que a ordem jurídica de um país razoavelmente civilizado faça do sigilo bancário um baluarte em prol da impunidade, a favorecer proxenetas, lenões, bicheiros, corruptos, contrabandistas e sonegadores de tributos. O que cumpre ser feito é uma legislação cuidadosa que permita a manutenção dos princípios da privacidade e do sigilo de dados, sem torná-los bastiões da criminalidade. De resto, reza a sabedoria popular de que não deve não teme. A recíproca é verdadeira.
Por certo que a eminente autora proferiu tal assertiva antes da edição da LC n.º 105/2001, a qual veio disciplinar, em parte, as medidas legais contra os problemas por ela sugeridos. Todavia, tal norma, poderia ter conferido tais poderes também ao Ministério Público (embora, frise-se, nos pareça desnecessário, ante o arcabouço jurídico já existente), situação na qual, certamente, contribuiria para a rapidez no deslinde de vários casos de corrupção e improbidade administrativa que teimam em assolar o dia-a-dia da República.