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Comissão da Verdade: até que ponto?

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Agenda 17/07/2012 às 10:33

3. A verdade e a Justiça. O que são?

Quid est veritas? O que é a verdade? Essa pergunta perpassa os séculos desde que Pôncio Pilatos ao julgar Jesus Cristo retrucou a este indagando o que era a verdade.

Com efeito, de acordo no Evangelho de São João, Capítulo 18 versículos 37 e 38, acerca de Cristo na presença de Pôncio Pilatos para ser julgado, ocorre o seguinte diálogo:

Disse-lhe, pois, Pilatos: Logo tu és rei?

Jesus respondeu: Tu dizes que eu sou rei. Eu para isso nasci, e para isso vim ao mundo, a fim de dar testemunho da verdade. Todo aquele é da verdade ouve a minha voz.

Disse-lhe Pilatos: Que é a verdade? E, dizendo isto, tornou a ir ter com os judeus, e disse-lhes: Não acho nele crime algum. (Sem grifo no original).

A partir de então sempre se colocou a verdade numa dimensão filosófica. E então, o que é a verdade?

No dicionário Aurélio encontra-se a seguinte definição de verdade: “Conformidade com o real”.

Já numa dimensão filosófica, há quem sustente que os filósofos começaram a se perguntar sobre as mais diversas questões que passam pelo pensamento humano. Dentre elas esta a verdade e sobre ela se pergunta: o que é a verdade?

Platão apud Wisley Francisco Aguiar11 inaugura seu pensamento sobre a verdade afirmando: “Verdadeiro é o discurso que diz as coisas como são; falso aquele que as diz como não são”. É a partir daí que começou a se formar a problemática em torno da verdade. Certo é que não existe uma verdade cujo sujeito possa ser o seu detentor.

A Filosofia distingue cinco conceitos fundamentais da verdade, a saber: a) a verdade como correspondência, que é a verdade que garante a realidade, isto é, o objeto falado é apresentado como ele é; b)a verdade como revelação, que é aquela que surge de forma empirista, através das sensações ; c) a verdade como conformidade a uma regra, que é aquela que deve se adaptar a uma regra ou a um conceito; d) a verdade como coerência, que é a verdade que critica o mundo da experiência humana partindo da idéia de que “o princípio de que o que é contraditório, não pode ser real”, isso o fez aceitar que “a verdade é coerência perfeita”; por fim, e) a verdade como utilidade, onde o verdadeiro não significa em geral senão o que é apto à conservação da humanidade.

Na ótica do filósofo Wisley Francisco Aguiar12 “a verdade possui inúmeros significados, dependendo da pessoa que a defina. Ela continuará sendo uma das questões mais abordadas nestes últimos tempos. Estamos em um mundo de grandes transformações”.

De acordo com ele, ainda, “muitas ideologias nos sãos apresentadas como verdades inquebrantáveis. Somos forçados a acreditar na mídia, na política e na manifestação religiosa. Isso acontece de uma maneira inconsciente”.

Ele ainda assegura que: “o que nos libertará de toda essa prisão é nossa atitude como sujeitos formadores de consciência crítica. A questão é ir a fundo sobre aquilo que nos é apresentado. Fugir do senso comum e criar opiniões próprias. Depende de você encarar isso como verdade”.

À toda evidência, o primeiro conceito, isto é, aquele que diz que a verdade como correspondência é a verdade que garante a realidade, isto é, o objeto falado é apresentado como ele é. Só mesmo ele estaria afinado com uma apuração integral feita pela Comissão da Verdade. Essa, sim, seria a dimensão correta de verdade. Mas seria essa a verdade desejada pela dita Comissão?

E quando a verdade, em qualquer de seus ângulos ora focalizados é justa?

Aqui, outra vez, se socorre da filosofia para esclarecer o que é ser justo, o que é justiça.

Por mais que professores, filósofos e operadores das ciências jurídicas tentem, uma das mais árduas missões do Direito é definir o que, afinal de contas, pode ser considerado como “Justiça”.

Não é demais afirmar que sempre se disse que a busca da Justiça é o ideal que persegue todo o direito, e o fato de ter havido e haver direitos injustos, não destrói esse ideal.

Contudo, antes de se deter mais atentamente aos meandros da definição de Justiça, é de extrema importância observar-se os motivos pelos quais a Justiça seria necessária em uma sociedade.

Nesse sentido, diversos filósofos e cientistas sociais chegam a um acordo quanto à necessidade de o homem viver em sociedade. Resumindo drasticamente, pode-se considerar que o ser humano possui uma ordem social, ou seja, um desejo / necessidade de coexistir. Deste modo, segundo Daniel Christianini Nery13, os principais motivos para os homens procurarem vida em sociedade e a paz seriam:

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- o medo da morte; e

- o desejo de uma vida confortável.

Consoante ainda o autor retromencionado, a única maneira para se atingir tais objetivos – que, em uma palavra, podem ser resumidos pelos termos autopreservação ou ainda bem-comum – é a criação de um Estado. Porém, essa criação humana só é possibilitada pela realização de pactos recíprocos entre os homens e, sendo a justiça a manutenção dos pactos, é evidente a importância desse conceito.

Em Hobbes apud Christianini14, este leciona que essa idéia inicial pode ser obtida pela leitura do conceito de justiça contido n’O Leviatã, cuja análise também ocorre em dois momentos interdependentes. Primeiramente, Hobbes explica que a justiça é a manutenção dos pactos, algo fundamental e, inclusive, necessário à sobrevivência da vida do Estado. Exatamente por isso, num segundo momento – decorrente do primeiro –, cabe ao Estado, a partir de sua criação, possibilitar que a justiça sempre prevaleça.

Para ele, ainda segundo aquele filósofo, para que as palavras "justo" e "injusto" possam ter lugar, é necessário que o Estado detenha alguma espécie de poder coercitivo, capaz de obrigar igualmente os homens ao cumprimento dos seus pactos, mediante a ameaça de alguma sanção que seja superior ao benefício que o ofensor esperava tirar com o rompimento do pacto.

Para Ulpiano, também apud Christianini15, justiça é "a vontade firme e permanente de dar a cada um o seu direito" (justitia est constans et perpetua voluntas jus suum cuique tribuere).

Numa concepção religiosa, justiça seria "não fazer aos outros aquilo que não quiseres que façam a ti".

Percebe-se até aqui que a justiça seria um pressuposto que leva a sociedade a um bem-estar e felicidade social, bem como estaria implicitamente ligado ao conceito de igualdade / isonomia.

O mesmo autor antes declinado, após tecer as suas considerações acerca da justiça paritária, da justiça valorativa, da justiça restaurativa, da justiça proporcional, bem como da justiça corretiva, preocupa-se em definir a justiça como sendo o conjunto de características e valores, mutáveis em razão da evolução social, pelas quais o Estado (de forma coercitiva), e os demais membros da sociedade organizada (de forma crítica), se balizam para criar e seguir regras que, isonomicamente, visem a manutenção dos pactos sociais estabelecidos para a criação e manutenção da sociedade, sendo um elemento essencial para a obtenção do bem comum. Justiça é, entre outros valores, virtude, liberdade, igualdade, racionalidade, boa vontade, boa fé, humildade ante a finitude da vida humana, moderação nas ações, honestidade e aplicação de sanções àqueles que descumprirem suas obrigações perante a sociedade.

A justiça é uma eterna procura.

Na doutrina, Friede16 anota que:

Não obstante o fato de possuir o juiz uma determinada condição, em princípio, acima da própria autoridade pública, de modo geral, por exercitar mais diretamente _agindo como Estado em nome do próprio Estado – o poder estatal, através da jurisdição, em nenhuma hipótese, tem o magistrado uma autoridade e um poder que não estejam nitidamente previstos e limitados pela Constituição Federal e pelas leis infraconstitucionais que para ela convergem.

Por essa razão não podem os juízes –como erroneamente supõem os menos avisados – realizar o que se convencionou atecnicamente denominar-se justiça, de forma ampla, subjetiva e absoluta, considerando que o verdadeiro e único Poder, outorgado legítima e tradicionalmente aos magistrados – desde o advento da tripartição funcional dos poderes – é a prestação da tutela jurisdicional, com o conseqüente poder de interpretação e aplicação jurídico vigente, majoritariamente criado – em sua vertente fundamental pelo Poder Legislativo, rigorosamente limitado à absoluta observância de regras próprias e específicas que, forçosamente, restringem o resultado final do que e convencionou chamar de justiça à sua acepção básica, objetiva e concreta e, portanto, dependente da efetiva preexistência de um denominado Direito Justo.

De acordo com Friede17, ainda, “hoje, entende-se por justiça a aplicabilidade eficiente e correta das leis vigentes em um determinado pais. Um juiz faz justiça quando imparcialmente, sem propender emocionalmente para esta ou aquela parte, aplica os preceitos legais cabíveis naquele caso em pauta”.

Diante das anotações ora postas acerca tanto da verdade quanto da justiça, torna-se pertinente a seguinte pergunta: Teria sido justa a decisão do Supremo Tribunal Federal ao rejeitar a ADPF 153 e, por conseqüência afirmar a constitucionalidade da Lei da Anistia?

Pelo conceito de justiça sim. Para as vítimas das torturas não importa tal conceito.


4. A Comissão da Verdade como fator de esquecimento ou recrudescimento da tortura?

Há muito se sustenta na doutrina que nenhum direito fundamental é absoluto. Parece não haver discussão quanto a isso.

Seria de s indagar: então o direito de não ser torturado não é absoluto? Parece que sim por tal raciocínio.

Entrementes, a despeito da maciça maioria em tal direção, quer parecer que Norberto Bobbio18, pensa de maneira diferente, assim:

Inicialmente, cabe dizer que, entre os direitos humanos, como já se observou várias vezes, há direitos com estatutos muito diversos entre si. Há alguns que valem em qualquer situação e para todos os homens indistintamente: são os direitos acerca dos quais há a exigência de não serem limitados nem diante de casos excepcionais, nem com relação a este ou aquela categoria, mesmo restrita, de membros do gênero humano, (é o caso, por exemplo, do direito de não ser escravizado e de não sofrer tortura) esses Direitos são privilegiados porque não são postos em concorrência com outros direitos, ainda que também fundamentais. (Sem grifo no original).

Com certeza o pensamento do filósofo italiano está mais voltado para a realidade do que a corrente que sustenta não existir direito fundamental absoluto.

Ora, se é verdade que existe o direito absoluto de não ser torturado também pode ser verdade que é possível uma revisão pelo Congresso Nacional da Lei de Anistia que, equivocadamente, perdoou até os algozes da ditadura militar. Isso em consonância com o resultado da decisão do Supremo ao apreciar a ADPF 153.

Somente assim, o Brasil estaria dando àqueles que sofreram torturas com a ditadura militar uma resposta estatal decente digna e com a verdadeira justiça.

Logo, dizer que com a Comissão da Verdade, manca como nasceu, irá dar a cada um o que seu na visão justa de Ulpiano, é puro engodo.

Comissão manca porque já nasceu impedida por de lei de promover qualquer procedimento judicial penal contra os torturadores.

De que adiantará, por exemplo, a viúva de Vladimir Herzog ter a confirmação do médico legista Harry Shibata, que fez a necropsia em seu marido, ficar sabendo agora que, na verdade, ele foi executado pelos militares e não se suicidou? Qual o consolo ela terá? Como funcionará em sua mente saber de tudo isso? Sua dor irá desaparecer, diminuir ou aumentar ao saber que nada poderá ser feito penalmente? Que justiça decorre disso tudo para ela? Ao que parece nada.

No jornal “O Globo” edição de 20 de maio de 2012, no Caderno o País, Clarice Herzog, viúva de Vladimir afirma que “não adianta esperar que a comissão traga alívio para a mágoa, a dor e a perda”.

Ao instalar a Comissão da Verdade, um dos seus integrantes, José Paulo Cavalcanti foi entrevistado pelo Jornal O Globo no dia 18 de maio de 2012, no Caderno O País, e na abertura a manchete está dito que “Focar o início do trabalho na apuração de informações sobre desaparecidos políticos e não fomentar qualquer tentativa de revisão da Lei da Anistia foram as duas principais orientações da presidente Dilma Rousseff aos integrantes da Comissão da Verdade”.

Ai está a confirmação de que a Comissão nasceu manca e de que com certeza nenhuma utilidade terá a não ser recrudescer velhas mágoas com o fato de nada se poder fazer contra os torturadores que forem identificados.

Quem em sã consciência ficará satisfeito quando souber, pela verdade levantada, que determinado parente morreu vítima de torturas praticadas por determinado agente do Estado e que contra o mesmo nada poderá ser feito penalmente justamente porque a Comissão a Verdade está impedida a tanto? Pior ainda. Quando souber que pela recomendação da Corte Interamericana referida comissão deveria buscar a tutela penal para os torturadores e tal não foi acatado, como reagirá o parente da vítima? À toda evidência ficará mais revoltado.

O que poderá cobrar os parentes das vítimas de tal Comissão? Nada, pois ela foi castrada pela própria lei que a criou.

Lado outro, não se pode perder de vista também que pela Lei 9140 de 1995, sancionada pelo Presidente Fernando Henrique Cardoso, todos os desaparecidos, mais de 100 pessoas ali relacionadas, passaram a ser consideradas como mortas, assim:

Art. 1º São reconhecidos como mortas, para todos os efeitos legais, as pessoas que tenham participado, ou tenham sido acusadas de participação, em atividades políticas, no período de 2 de setembro de 1961 a 5 de outubro de 1988, e que, por este motivo, tenham sido detidas por agentes públicos, achando-se, deste então, desaparecidas, sem que delas haja notícias. (Redação dada pela Lei nº 10.536, de 2002)

Art. 2º A aplicação das disposições desta Lei e todos os seus efeitos orientar-se-ão pelo princípio de reconciliação e de pacificação nacional, expresso na Lei nº 6.683, de 28 de agosto de 1979 - Lei de Anistia.

Em suma, a Comissão da Verdade apenas servirá para aumentar o sofrimento de tais pessoas. Haverá, pois o recrudescimento, repete-se, das mágoas. Ele constitui um verdadeiro engodo político e normativo.

Averbe-se em prol disso que o Jornal do Brasil, edição de 22 de junho deste ano publicou que o governo brasileiro, em resposta à Comissão Interamericana de Direitos Humanos, informou que a Lei da Anistia impede que se abra no país uma investigação sobre a morte do jornalista Vladimir Herzog, ocorrida em 1975, durante a ditadura militar.

Para piorar, a própria Presidenta da República, Dilma Rousseff, anunciou no jornal O Globo de 23 de junho deste ano, no caderno O País, que não tem ódio dos seus torturadores, nem vontade de vingança, mas que não os perdoa.

Ora, se a representante maior de uma nação afirma que não perdoa os seus torturadores, como se pode esperar das demais vítimas uma posição conformista?

O tempo dirá acerca da eficácia da Comissão da Verdade.

Sobre o autor
Sebastião Raul Moura Júnior

Mestre em Direito pela Faculdade de Direito de Campos, RJ. Pós-graduado em Magistério Superior em Direito pela Universidade Estácio de Sá. Pós-graduado em Direito Penal e Processo Penal pela Universidade Estácio de Sá. Pós-graduando em Direito Público na Unisal. Promotor de Justiça aposentado pelo Estado de Minas Gerais. Ex-Defensor Público do Estado do Rio de Janeiro. Ex-Professor de Processo Penal da Faculdade de Direito de Valença, RJ. Atualmente, professor de Processo Penal no UBM-Centro Universitário de Barra Mansa-RJ.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

MOURA JÚNIOR, Sebastião Raul. Comissão da Verdade: até que ponto?. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 17, n. 3303, 17 jul. 2012. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/22225. Acesso em: 22 dez. 2024.

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