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A supremacia do interesse público na ordem constitucional brasileira

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3 A ORDEM CONSTITUCIONAL BRASILEIRA

3.1 CARACTERÍSTICAS DO NOVO CONSTITUCIONALISMO

A Sociedade contemporânea vem marcada pelo intenso pluralismo,[62] o multiculturalismo,[63] os movimentos da sociedade civil organizada que denotam a existência de diversos grupos de interesses que devem ser protegidos e, comumente, entram em choque, propugnando por soluções.

O modelo de Estado Democrático de Direito, também chamado de Estado Constitucional de Direito, desenvolveu-se a partir do término da Segunda Guerra Mundial, tendo por características a busca pela composição harmônica e integrada, das cláusulas político-econômicas liberais e sociais, como fruto da evolução dos paradigmas anteriores e, principalmente a subordinação da legalidade a uma Constituição.[64]

Em decorrência do fracasso das concepções jusnaturalistas e positivistas, estruturam-se as idéias de construção da corrente pós-positivista, como uma terceira via entre as referidas concepções: não trata com desimportância as demandas por certeza e objetividade, mas também não concebe o Direito separado da moral e de uma filosofia política.[65]

A partir desse contexto, desenvolveu-se o chamado novo constitucionalismo, sob os auspícios da já mencionada doutrina filosófica personalista, que encara o ser humano como ser concreto, cuja dimensão coletiva, não obstante autorize eventuais restrições a direitos constitucionais, desde que respeitada a proporcionalidade, não o afasta do contexto da máxima eficácia dos direitos fundamentais individuais, que impõe o implemento do mínimo existencial.[66]

Para Barroso, o chamado neoconstitucionalismo trouxe um conjunto de idéias ricas e heterogêneas: o reconhecimento da normatividade dos princípios e de sua diferença qualitativa em relação às regras; a reabilitação da razão prática e da argumentação jurídica; a formação de uma nova hermenêutica; o desenvolvimento de uma teoria de direitos fundamentais edificada sobre a dignidade da pessoa humana, denotando uma reaproximação entre o Direito e a moral,[67] a ponderação de valores por meio da proporcionalidade e, principalmente, que a Constituição passa a ser a lente através da qual se interpretam as normas infraconstitucionais, dando novo sentido e alcance a todos os ramos jurídicos.[68]

Por conseguinte, necessário analisar alguns aspectos essenciais dos princípios trazidos por essa nova interpretação constitucional, elencados por Barroso como os princípios instrumentais de interpretação constitucional e reconhecidos pacificamente pela doutrina e pela jurisprudência.[69]

3.2 PRINCÍPIOS INSTRUMENTAIS DA NOVA HERMENÊUTICA CONSTITUCIONAL

Ao tratar dos princípios que compõem a nova hermenêutica constitucional,[70] Barroso ressalta não haver desprezo ou abandono do método clássico subsuntivo, nem dos elementos tradicionais da hermenêutica: gramatical, histórico, sistemático e teleológico, de forma que continuam existindo e tendo relevante aplicação no Direito.[71]

Pontua o referido jurista, entretanto, que durante muito tempo a subsunção foi a única fórmula para compreender a aplicação do Direito e, recentemente, a dogmática jurídica se deu conta dos seus limites, uma vez que não é possível aplicar tal método frente a colisões entre princípios, quando existe mais de uma norma aplicável, a priori, àquela situação.[72]

Desta forma, há o princípio da supremacia da Constituição que indica a posição hierárquica superior da Constituição em relação às demais normas do sistema, em razão de ser fruto de uma manifestação especial da vontade popular, em uma conjuntura própria, em um momento constitucional, nos dizeres de Barroso, de forma que suas normas condicionam a validade e o sentido de todo o ordenamento jurídico.[73]

É certo que todos os órgãos públicos devem pautar sua conduta na Constituição. As leis e os atos do Poder Público são considerados constitucionais, compreendendo-se que essa visão decorre do princípio da presunção de constitucionalidade das leis e dos atos do Poder Público.[74] Esse princípio desempenha função primordial na manutenção da imperatividade das normas jurídicas e na harmonia do sistema, pois significa que as leis e atos do Poder Público, mesmo havendo interpretações que indiquem sua inconstitucionalidade ou evidenciem dúvida em meio à outra interpretação que permita afirmar a compatibilidade da norma com a Constituição, deve o intérprete optar pela interpretação legitimadora.[75]

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Muito semelhante, o princípio da interpretação conforme a Constituição, em que o aplicador da norma infraconstitucional, dentre mais de uma interpretação possível, deverá buscar aquela que a compatibilize com a Constituição, ainda que não seja a que mais obviamente decorra do seu texto.[76] Mesmo que determinada norma seja suspeita de inconstitucionalidade, deve ser preservada sua validade, bem como ser atribuído sentido às normas infraconstitucionais de forma que melhor realizem os mandamentos constitucionais.[77]

Nessa linha, por ser a Constituição o documento que dá unidade ao sistema jurídico, depreende-se o princípio da unidade, do equilíbrio e da harmonia da Constituição, uma vez que em havendo aparente conflito de normas ou colisão de princípios constitucionais, cabe ao intérprete buscar uma harmonização in concreto, entre os princípios ou normas que tutelam os valores ou interesses que se contraponham, não havendo hierarquia entre as normas da Constituição.[78]

Quanto ao princípio da unidade, importante a lição de Konrad Hesse, mencionado por Schier, ao afirmar que o sentido da Constituição só pode ser compreendido na realidade da vida histórico-concreta, por meio da unidade política e da ordem jurídica. O autor defende que unidade política não significa a produção de um estado harmônico de concordância geral, de tudo, não a abolição de diferenciações sociais, políticas, uma vez que os conflitos constituem força movente, sem a qual a transformação histórica não iria se efetuar.[79] Em outras palavras, apreende-se que a unidade tem o significado de coexistência na diferença, de pluralidade, de forma que a unidade deva remeter a solução de eventuais conflitos às dimensões concretas da vida.[80]

No rol de princípios instrumentais da nova hermenêutica constitucional, Barroso inclui, ainda, a razoabilidade ou a proporcionalidade, afirmando que, dada a importância assumida por esse princípio na dogmática jurídica contemporânea, não se deve deixar de registrar sua relevância como princípio específico de interpretação constitucional. Considera-o valioso instrumento de proteção dos direitos fundamentais e do interesse público, já que permite o controle da discricionariedade dos atos do Poder Público, além de “funcionar como medida com que uma norma deve ser interpretada no caso concreto para a melhor realização do fim constitucional nela embutido.[81]

Em seu estudo, Barroso aborda o princípio da efetividade, que simboliza a necessária aproximação, tanto quanto possível, entre o dever-ser normativo e o ser da realidade social, de forma que o compromisso do intérprete é prestigiar, dentre diversas interpretações possíveis, aquela que permita a efetivação da vontade constitucional, ou seja, a eficácia.[82]

Considerando que a Constituição é um documento dialético, que tutela valores e interesses potencialmente conflitantes, Barroso afirma ter sido desenvolvida a idéia de ponderação de valores, já que os critérios tradicionais de solução de conflitos entre regras não se mostram adequados para solucionar uma colisão entre princípios.[83] A técnica da ponderação, em síntese, objetiva considerar, na medida de sua importância e pertinência ao caso concreto, todos os distintos elementos normativos incidentes sobre aquele conjunto de fatos, sendo aplicável aos seguintes casos: colisão entre princípios constitucionais; colisão entre direitos fundamentais e colisão entre direitos fundamentais e outros valores e interesses constitucionais.[84]

Desta forma, por meio da ponderação, devem ser detectadas no sistema as normas relevantes para a solução do caso, identificando-se eventuais conflitos entre elas, passando-se, em seguida, ao exame do fato concreto e sua interação com os elementos normativos, a fim de poder apurar o peso de cada valor em disputa e, desta forma, o grupo de normas que deve preponderar no caso concreto.[85] Além disso, é necessário realizar uma graduação da intensidade da solução escolhida por determinado grupo de normas em detrimento aos demais. Tal graduação é possível, adotando-se a teoria de normas que as distingue em regras e princípios, tendo como instrumento que conduz tal processo intelectual, segundo Barroso, a máxima da proporcionalidade.[86]

3.3 RELEITURA DO PRINCÍPIO DA SUPREMACIA DO INTERESSE PÚBLICO

Nada obstante as reflexões críticas ao princípio da supremacia do interesse público, também se constata na doutrina uma geração de autores que propõe a sua releitura, conformando-o ao paradigma do Estado Democrático de Direito, em razão da importância do referido princípio no ordenamento jurídico.

Tais autores não consideram adequado conferir ao interesse público uma supremacia in abstractu, pois isso eliminaria qualquer espaço de ponderação, mas também não se filiam aos argumentos que rechaçam de forma radical a teoria da supremacia do interesse público.[87]

Nesse ponto, há quem defenda o princípio do interesse público (apartado da taxativa idéia de supremacia), uma vez que o interesse público não se impõe por sua supremacia, mas por força da Constituição, quando tiver sua prevalência nela prevista.[88] Relevante mencionar a conclusão de Cláudio Grande Júnior acerca das divergências sobre a denominação do princípio da supremacia do interesse público:

Da análise conjunta do pensamento dos grandes doutrinadores acima citados, entende-se neste trabalho que existe um princípio relacionado ao atendimento do interesse público. Não é de sua supremacia, porque se há supremacia de algo é da Constituição, promulgada no Estado Democrático de Direito, objetivando atender ao melhor interesse público primário.[89]

Afirma-se que, para estar em conformidade com a nova ordem constitucional, “o núcleo do Direito Administrativo não deve residir na concepção pretérita de interesse público, mas na contemporânea promoção dos direitos fundamentais, por serem estes o verdadeiro interesse público”.[90]

Para Barroso, somente o interesse público primário desfruta de supremacia, porquanto consiste na vontade constitucional, nos valores fundamentais, sendo, por isso, o parâmetro da ponderação. Desta forma, o autor afirma que o interesse público secundário, consubstanciado no interesse da pessoa jurídica, no interesse do erário, jamais desfrutará de supremacia a priori e abstrata em face do interesse particular. Assim, se ambos entrarem em colisão, caberá ao aplicador da norma proceder à ponderação adequada, à vista dos elementos normativos e fáticos relevantes para o caso concreto.[91]

Quanto ao interesse público primário, consubstanciado em valores fundamentais como justiça e segurança, o constitucionalista afirma haver de desfrutar de supremacia em um sistema constitucional e democrático, devendo tal interesse pautar todas as relações jurídicas e sociais.[92]

Desta forma, afirma-se que o interesse público primário desfruta de supremacia porque não é passível de ponderação, sendo ele o parâmetro da ponderação, pois, como supramencionado, consiste ele na melhor realização possível, à vista da situação concreta a ser apreciada, da vontade constitucional, dos valores fundamentais que ao intérprete cabe preservar e promover.[93]

Quando a questão se torna complexa, havendo confronto entre o interesse público primário consubstanciado em uma meta coletiva e o interesse público que se realiza mediante a garantia de um direito fundamental, como por exemplo, a liberdade de expressão e a manutenção de padrões mínimos de ordem pública ou o direito de propriedade com o objetivo de se constituir um sistema justo e solidário no campo, segundo Barroso, o intérprete deverá observar a dignidade humana e a razão pública.[94]

Em uma análise semelhante, Alice Gonzalez Borges afirma que a questão da desconstrução do princípio da supremacia do interesse público está, na verdade, no exato entendimento do que se deve considerar como interesse público digno de supremacia, o que evitaria ou ao menos dificultaria os frequentes desvirtuamentos da aplicação do referido princípio ao verdadeiro interesse público por governantes bem ou mal intencionados.[95]

Para a autora, as críticas referentes ao princípio da supremacia do interesse público não se sustentam quanto ao princípio em si, mas quanto a sua aplicação prática, de forma que os desvirtuamentos e arbitrariedades cometidos por certas autoridades administrativas não podem ser confundidos com a essência do alicerce das estruturas democráticas e pilar do regime jurídico-administrativo.[96]

Com efeito, a supremacia do interesse público não deve ser considerada absoluta e sem limitações, como, em regra, nenhum princípio é assim considerado. Deve ter delineada sua aplicação nos termos da Constituição de forma a não permitir a concretização das várias situações arguidas por seus críticos, como os possíveis desvios arbitrários, traços do Absolutismo, e, principalmente, a restrição aos direitos fundamentais.

Contudo, considerando que o princípio da supremacia do interesse público constitui uma das prerrogativas da Administração Pública, há quem defenda que sua ausência provocaria verdadeiro caos, uma sociedade anárquica e desorganizada, sendo os cidadãos privados de um de seus bens mais preciosos, que é o mínimo de segurança jurídica, indispensável para a vida em sociedade.[97]

Nesse sentido, também concorda Sarmento ao afirmar que a desvalorização total dos interesses públicos diante dos particulares pode conduzir à anarquia e ao caos geral, inviabilizando qualquer possibilidade de regulação coativa da vida humana em comum.[98]

A supremacia não vai decorrer, como alguns críticos argumentam, da existência permanente de um antagonismo entre o interesse individual e o interesse público, do qual decorreria, necessariamente e sempre, a superioridade deste sobre aquele,[99] mas sim a partir do exercício da ponderação, em análise aos elementos do caso concreto, por ser um interesse majoritário, que se confunde e assimila com o querer valorativo atribuído à comunidade.[100]

Com efeito, constata-se a possibilidade de, havendo conflito entre interesses, proceder ao exercício da ponderação, analisando-se o peso relativo de cada um dos valores por meio da aplicação das máximas que integram a máxima da proporcionalidade - adequação, necessidade e proporcionalidade em sentido estrito.

Havendo confronto entre interesse público e interesse privado, o princípio do interesse público será aplicado com a observância das circunstâncias do caso concreto, buscando concretizar ambos os interesses até um grau máximo, onde um deles prevalecerá, por meio da ponderação, à luz dos princípios e fundamentos constitucionais, em especial a dignidade humana e a razão pública.

Desta forma, o princípio do interesse público, considerando sua força e importância na Administração Pública, como prerrogativa, a fim de concretizar os objetivos expressos na CRFB/88, não deve ser desconstruído. A questão essencial está na exata noção do interesse público que terá supremacia frente ao interesse particular e da aplicação da técnica da ponderação de valores por meio da máxima da proporcionalidade no caso concreto.

Relevante destacar que, embora Schier conclua que, em caráter geral, não se sustenta a tese indiscriminada de existência de um princípio da supremacia do interesse público sobre o privado, a idéia da supremacia do público se verifica em algumas situações específicas, em condições constitucionalmente definidas e limitadas. Referido autor ressalta que quando a supremacia do interesse público se manifesta constitucionalmente, como critério de solução de colisões de interesses constitucionais, ela não poderá ser absoluta, eis que utilizada como medida de ponderação.[101]

Ademais, outros doutrinadores tradicionais, embora considerem valiosas as reflexões da corrente crítica que defende a efetividade dos direitos fundamentais em contraposição ao princípio da supremacia do interesse público, permanecem na defesa do referido fundamento do regime jurídico-administrativo, como Celso Antônio Bandeira de Mello,[102] Fábio Medina Osório,[103] Maria Sylvia Zanella Di Pietro,[104] Lúcia Valle Figueiredo,[105] José dos Santos Carvalho Filho,[106] dentre outros.

Nesse sentido, mostra-se salutar trazer o comentário de Carvalho Filho acerca das críticas ao referido princípio, no sentido de que tal princípio é corolário natural do regime democrático, calcado na preponderância das maiorias, de forma que sua “desconstrução” espelha uma visão distorcida e coloca em risco a própria democracia, devendo, sim, ser adaptado à dinâmica social.[107]

Verifica-se, nada obstante os argumentos e conclusões apontados, em geral os estudiosos indicam a necessária releitura do princípio (forte ou fraca), assim como aqueles considerados “contestadores” evidenciam a necessidade de proteção dos valores fundamentais erigidos pela Constituição, conferindo somente à Lei Maior, portanto, a possibilidade de uma supremacia a esses valores essenciais – o conteúdo do interesse público primário.[108]

Sobre os autores
Lilian Pfleger

Bacharel em Direito pela Universidade para o Desenvolvimento do Alto Vale do Itajaí (RS).

José Sérgio da Silva Cristóvam

Professor Adjunto de Direito Administrativo (Graduação, Mestrado e Doutorado) da UFSC. Subcoordenador do PPGD/UFSC. Doutor em Direito Administrativo pela UFSC (2014), com estágio de Doutoramento Sanduíche junto à Universidade de Lisboa – Portugal (2012). Mestre em Direito Constitucional pela UFSC (2005). Membro fundador e Presidente do Instituto Catarinense de Direito Público (ICDP). Membro fundador e Diretor Acadêmico do Instituto de Direito Administrativo de Santa Catarina (IDASC). ex-Conselheiro Federal da OAB/SC. Presidente da Comissão Especial de Direito Administrativo da OAB Nacional. Membro da Rede de Pesquisa em Direito Administrativo Social (REDAS). Coordenador do Grupo de Estudos em Direito Público do CCJ/UFSC (GEDIP/CCJ/UFSC).

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

PFLEGER, Lilian; CRISTÓVAM, José Sérgio Silva. A supremacia do interesse público na ordem constitucional brasileira . Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 18, n. 3554, 25 mar. 2013. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/24044. Acesso em: 22 dez. 2024.

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