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A supremacia do interesse público na ordem constitucional brasileira

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O princípio da supremacia do interesse público não deve ser considerado absoluto e sem limitações, de forma que sua aplicação concreta deve ocorrer nos termos da Constituição Federal.

Resumo: O regime jurídico administrativo, além de conferir autonomia e identidade ao Direito Administrativo, norteia a atividade do Estado. Composto por prerrogativas e sujeições, um de seus pilares fundamentais, o princípio da supremacia do interesse público sobre o interesse privado é objeto de críticas em diversos aspectos, havendo autores que chegam a apontar a insubsistência do princípio da supremacia do interesse público na ordem constitucional brasileira. Desta forma, os objetivos são analisar as principais críticas ao princípio da supremacia do interesse público e a definição atual de interesse público, para verificar se, atualmente, tal princípio possui sustentação na CRFB/1988. O interesse público que possui supremacia é o interesse público primário, consistente na realização dos direitos fundamentais elencados pela CRFB/1988. A supremacia não é absoluta, mas, após análise do caso concreto, verificado que o interesse público possui maior peso naquela situação fática. Eventuais colisões se resolvem no caso concreto, pelo exercício da ponderação, instrumentalizado pela máxima da proporcionalidade. No aspecto teórico, o trabalho pretende apresentar reflexões sobre a supremacia do interesse público na ordem constitucional brasileira; sobre as principais críticas apontadas a esse princípio, bem como sobre a definição atual de interesse público.

Palavras-chave: interesse público, supremacia, ordem constitucional.

Sumário: 1 A supremacia do interesse público – 1.1 O regime jurídico do Direito Administrativo – 1.1.1 O “princípio” da supremacia do interesse público – 1.1.2 O princípio da indisponibilidade do interesse público – 1.2 O interesse público - 2 Críticas à supremacia do interesse público - 3 A ordem constitucional brasileira - 3.1 Características do novo constitucionalismo - 3.2 Princípios instrumentais da nova hermenêutica constitucional - 3.3 Releitura do “princípio” da supremacia do interesse público - Considerações finais – Referências.


INTRODUÇÃO

As origens do Direito Administrativo e sua evolução frente às mudanças da sociedade contemporânea são palco de debates entre os estudiosos do Direito, surgindo daí conclusões antagônicas quanto a alguns aspectos. Dentre as diversas discussões que envolvem a existência de prerrogativas para a Administração, parte da doutrina tem questionado um dos pilares fundamentais do sistema de normas e princípios que regem a atividade do Estado: o princípio da supremacia do interesse público sobre o interesse privado.

Não apenas questionam alguns aspectos, mas rechaçam em absoluto sua aplicação, afirmando ser tal princípio inconstitucional, incompatível com a nova hermenêutica constitucional, bem como ser uma forma de forjar um Direito Administrativo autoritário, com traços do absolutismo, uma vez que haveria tão somente subordinação do indivíduo para com o Estado.

Aqui são abordados os elementos que sustentam as críticas ao princípio da supremacia do interesse público sobre o interesse privado, alcançando o exame de alguns aspectos da ordem constitucional brasileira, bem como algumas características do novo constitucionalismo e os princípios da nova hermenêutica constitucional, aplicados na solução de eventuais colisões entre interesses públicos e interesses privados.

Inicialmente, o ensaio apresenta as linhas gerais acerca do tema, situando o princípio da supremacia do interesse público no Direito Administrativo, considerado pilar fundamental do regime jurídico administrativo, junto com o princípio da indisponibilidade do interesse público, bem como breves noções do conceito atual de interesse público.

Posteriormente, sem qualquer pretensão exauriente, são elencados os principais argumentos desenvolvidos em desfavor do princípio da supremacia do interesse público, sua inconstitucionalidade, seu caráter vago, o suposto desrespeito aos direitos fundamentais, a idéia de arbitrariedade e a incompatibilidade com a técnica da ponderação.

Em arremate, a abordagem de elementos da ordem constitucional brasileira, em especial a nova hermenêutica constitucional, permite uma releitura da idéia de supremacia do interesse público em conformidade com as características do novo constitucionalismo.


1 O PRINCÍPIO DA SUPREMACIA DO INTERESSE PÚBLICO

1.1 O REGIME JURÍDICO DO DIREITO ADMINISTRATIVO

O Direito Administrativo pode ser considerado como um ramo do Direito Público que tem como objeto os órgãos, agentes e pessoas jurídicas administrativas que integram a Administração Pública, assim como a atividade jurídica não contenciosa que desempenha e os bens de que se utiliza para a consecução de seus fins, de natureza pública.[1] Disto depreende-se a existência de um regime jurídico próprio, que vai delinear sua fisionomia peculiar específica.

O regime jurídico administrativo, consoante Geraldo Ataliba citado por Celso Antônio Bandeira de Mello, é um sistema reportado ao Direito Administrativo, em que é possível reconhecer uma composição coerente e harmônica de diversos elementos, em uma perspectiva unitária, integrado em uma realidade maior.[2]

Trata-se, pois, de um conjunto sistematizado de princípios e regras que conferem identidade a esse ramo do Direito, demonstrando assim a existência de princípios que lhe são peculiares e que guardam em si uma relação lógica de coerência e unidade compondo um sistema ou regime jurídico autônomo.[3]

Composto por vários cânones, o regime administrativo estabelece ditames para o entendimento e interpretação do Direito Administrativo, que vigora segundo determinadas condições, regulamentações e limites, admitindo variantes, temperamentos e qualificações particulares em busca de um significado singular. Assim, estes princípios, noções e elementos se articulam e se equilibram em razão da racionalidade do sistema,[4] desempenhando a função de orientar a compreensão da disciplina como um todo, unificando-a e conferindo organicidade e coesão, bem como admitindo certas refrações e particularidades ao encontrarem, in concreto, conformações peculiares ditadas pelos seus fins.[5]

Nesse sentido, o regime jurídico administrativo, conforme o entendimento majoritário da doutrina,[6] basicamente resume-se a duas palavras: prerrogativas e sujeições.[7]

A Administração Pública possui poderes especiais equilibrados pela imposição de restrições especiais à sua própria atuação, não existentes nas relações típicas de Direito Privado. Tais prerrogativas e sujeições ou restrições se traduzem, respectivamente, nos princípios da supremacia do interesse público e da indisponibilidade do interesse público.[8]

Estas prerrogativas e restrições constituem o binômio fundamental sobre o qual se erige o regime jurídico administrativo, sendo o entrosamento destes dois termos que lhe delineia fisionomia;[9] são os dois pilares sobre os quais todo o Direito Administrativo é construído, sendo indissociáveis – duas faces da mesma vinculação da Administração Pública ao interesse público.[10]

Sobre os pilares fundamentais da supremacia e da indisponibilidade do interesse público se estruturam, de um lado, as chamadas prerrogativas de potestade pública e, de outro, as sujeições de potestade pública, que corporificam o conteúdo da atividade administrativa.[11]

Adiante são examinados alguns aspectos dos princípios da supremacia do interesse público e da indisponibilidade do interesse público, bem como da definição atual de interesse público, até para entender sua relevância como pilares fundamentais do regime jurídico administrativo.

1.1.1. O “princípio” da supremacia do interesse público

No âmbito da chamada “doutrina clássica nacional”, a exemplo de Celso Antônio Bandeira de Mello, Maria Sylvia Zanella Di Pietro, Hely Lopes Meirelles, dentre outros, o princípio da supremacia do interesse público proclama a superioridade do interesse da coletividade, firmando sua prevalência sobre o interesse do particular, como condição da sobrevivência e do asseguramento deste último, consoante leciona Mello, como sendo verdadeiro axioma reconhecível no moderno Direito Público.[12]

Sua existência se fundamenta na obrigação do Estado em atingir uma série de finalidades, indicadas pela Constituição e pelas leis. Para atingir esses objetivos o Estado necessita de poderes não disponíveis aos particulares, justificando-se, entretanto, tão somente na estrita medida necessária à consecução destes fins impostos pelo ordenamento jurídico.[13]

O princípio da supremacia do interesse público é apresentado como pressuposto de uma ordem social estável, no sentido de que em sua posição privilegiada, conferida pela ordem jurídica, a Administração Pública pode assegurar a conveniente proteção aos interesses públicos, bem como porque a manifestação de vontade do Estado tem em vista o interesse geral, como expressão do interesse do todo social.[14]

Verifica-se, assim, que o princípio da supremacia do interesse público respalda toda atuação administrativa de imperatividade, em que sejam impostas, unilateralmente, obrigações ao administrado, ou ainda, em que seja restringido ou condicionado o exercício de atividades ou de direitos dos particulares.[15]

A legitimidade do uso do princípio da supremacia do interesse público encontra-se na medida necessária ao atendimento dos interesses públicos e não da pessoa que exerce o poder administrativo, nem tão somente do aparelho estatal.[16]

Desta forma, o princípio da supremacia do interesse público sofre limitações e temperamentos, tendo lugar na conformidade do sistema normativo, segundo seus limites e condições, respeitados os direitos adquiridos e atendidas as finalidades contempladas nas normas que o consagram.[17]

Para vislumbrar a ação do princípio da supremacia do interesse público como fundamento do regime jurídico administrativo, relevante destacar os exemplos colhidos por Mello de situações em que se verificam algumas “vantagens” para a Administração Pública em decorrência deste princípio: a presunção de veracidade e legitimidade dos atos administrativos; o benefício dos prazos maiores para intervenção ao longo do processo judicial; prazos especiais para prescrição das ações em que é parte o Poder Público, dentre outros.[18]

1.1.2 O princípio da indisponibilidade do interesse público

Especificamente em razão do princípio da indisponibilidade do interesse público, compreendido como parte da estrutura de atuação da Administração Pública, os bens, direitos, interesses e serviços públicos não se acham à livre disposição dos órgãos públicos, cabendo-lhes apenas guardá-los e aprimorá-los para a finalidade a que estão vinculados, conforme explica Diógenes Gasparini.[19]

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De acordo com Mello, na Administração Pública os bens e os interesses qualificados como próprios da coletividade não se encontram entregues à livre disposição de quem quer que seja, por serem inapropriáveis, de forma que o próprio órgão administrativo que os representa não tem disponibilidade sobre eles, incumbindo-lhe apenas assegurá-los.[20]

Destaca o referido autor que a Administração Pública não titulariza interesses públicos, mas sim o Estado, que, em certa esfera, os protege e exercita mediante o conjunto de órgãos, veículos da vontade estatal consagrada em lei.[21]

Como exemplos concretos, Gasparini menciona a necessidade de lei para alienar bens públicos, para outorgar concessão de serviço público, para transigir, renunciar, confessar, relevar a prescrição, bem como, por força desse princípio não pode a Administração Pública deixar de usar dos meios judiciais e extrajudiciais para repelir a turbação, esbulho e a indevida utilização de áreas públicas ou deixar de recorrer, dentre outras atividades a cargo dos órgãos e agentes da Administração Pública.[22]

Significa, pois, que precisamente por não poder dispor dos interesses públicos cuja guarda é atribuída à Administração por lei, os poderes atribuídos à Administração Pública têm o caráter de poder-dever, no sentido de que a autoridade não pode deixar de exercê-los, pois cada vez que se omite no exercício de seus poderes, é o interesse público que está sendo prejudicado.[23]

Consoante a doutrina de Odete Medauar, segundo tal princípio é vedado à autoridade administrativa deixar de tomar providências ou retardar providências que são relevantes ao atendimento do interesse público, em virtude de qualquer outro motivo, uma vez que estaria prejudicando o interesse público, deixando de agir com vistas à sua efetivação.[24]

1.2 O INTERESSE PÚBLICO

A definição do interesse público não deixa de reconhecer tratar-se de uma expressão subjetiva e modificável no decorrer da História, que depende dos atores sociais e das condições históricas em dado período, de forma que não deve ser considerado um conceito singular e estático, mas plurissignificativo e aberto.[25]

A concepção atual de interesse público não se encontra ligada ao interesse da Administração Pública tão somente.[26] Nesta esteira, Mello adverte sobre o frequente equívoco “de supor que, sendo os interesses públicos interesses do Estado, todo e qualquer interesse do Estado seria ipso facto um interesse público”.[27]

O interesse público não deve ser confundido com o interesse privado do agente público nem do aparato estatal, porque os fins da Administração se encontram em posição alheia aos interesses particulares do agente e do órgão que o exercita, compreendendo o bem comum, a justa e equitativa distribuição dos direitos e encargos sociais entre os cidadãos.[28]

Nesse ponto, tem-se a distinção fundamental de interesse público em primário e secundário, analisada por Renato Alessi e reavivada no Direito brasileiro, primeiramente por Mello,[29] e, posteriormente por Luís Roberto Barroso,[30] Diogo de Figueiredo Moreira Neto,[31] dentre outros autores.

A partir dessa distinção, Barroso explica que os interesses públicos primários compreendem os interesses efetivos, reais, a razão de ser do Estado, sintetizando-se nos fins que cabem a ele promover, como a justiça, a segurança, o bem-estar social, dentre outros. Já os interesses públicos secundários são aqueles tidos pelo Estado enquanto pessoa jurídica (incluindo União, Estado-membro, Município ou autarquias), o interesse do erário, que é o de maximizar a arrecadação e minimizar as despesas.[32]

Por conseguinte, Mello apresenta a seguinte definição de interesse público: “a dimensão pública dos interesses individuais, ou seja, dos interesses de cada indivíduo enquanto partícipe da Sociedade (entificada juridicamente no Estado), nisto se abrigando também o depósito intertemporal destes mesmos interesses [...].[33]

Desta maneira, verifica-se que o interesse público não é compreendido de forma dissociada dos interesses dos indivíduos, pois o interesse do todo, do conjunto social, também corresponde, necessariamente, aos interesses de cada indivíduo, ou seja, a coletividade se beneficia com a efetiva tutela dos interesses de seus membros.[34]

O conteúdo do interesse público está relacionado aos valores fundamentais erigidos pela Constituição, independentemente de estarem relacionados ao ser humano considerado individualmente ou coletivamente, já que consubstanciam os valores mais essenciais de uma sociedade, atuando como impulso e direção do Estado.[35]

Assim, depreende-se uma conotação ética e valorativa associada ao significado de interesse público, no sentido de que ele será “obtido apenas diante do caso concreto e corresponderá à solução que melhor atenda aos valores e princípios constitucionais e aos direitos fundamentais garantidos a todos os cidadãos [...]”.[36]

No ponto, Barroso afirma que em um Estado Democrático de Direito, marcado pela centralidade e supremacia hierárquica da Constituição, pela consagração da teoria dos direitos fundamentais, edificada sobre o princípio da dignidade da pessoa humana, a realização do interesse público compreende também a preservação e satisfação de determinados interesses privados, ou seja, quando o Estado cumpre satisfatoriamente o seu papel, mesmo que em relação a um único cidadão.[37]


2 CRÍTICAS À SUPREMACIA DO INTERESSE PÚBLICO

A partir do último vicênio, observam-se vivamente estudos que pretendem por em dúvida a manutenção da centralidade do princípio da supremacia do interesse público na ordem constitucional brasileira.[38] Discute-se sua origem, seu caráter vago propenso a arbitrariedades, a indeterminação do significado de interesse público, além da sua obtusa relação com os direitos fundamentais e com a proporcionalidade.

Uma forte crítica contraposta ao princípio da supremacia do interesse público refere-se aos seus fundamentos, uma vez que tal princípio guardaria resíduos de um modelo estatal absolutista, ao classificar a relação entre cidadão e Estado como de subordinação.[39]

Em verdade, o princípio da supremacia teria sido forjado na origem de um Direito Administrativo autoritário, não se consubstanciando no advento do Estado de Direito e no princípio da separação dos poderes, mas sim em uma elaboração jurisprudencial do Conselho de Estado francês de autovinculação do Poder Executivo a sua própria vontade.[40]

Tratar-se-ia, portanto de um princípio de preservação daquela autoridade do Antigo Regime pela mesma lógica de poder, e não, como amplamente difundido, enquanto garantia dos cidadãos.[41] Em seus trabalhos, Gustavo Binenbojm questiona a origem do Direito Administrativo, afirmando que suas categorias jurídicas peculiares representam, em verdade, uma forma de manter as práticas administrativas do Antigo Regime e não sua superação.[42]

Desta forma, o princípio da supremacia do interesse público seria uma forma disfarçada de manter o poder absoluto nas mãos do Estado, estando o cidadão em patamar inferior nesta relação (subordinação).

Outra consistente crítica em desfavor do princípio da supremacia do interesse público refere-se ao seu caráter indeterminado, que propiciaria arbitrariedades, sendo, desta forma, uma tautologia e não um princípio. Pela ausência de definição exata do interesse público, não poderia um princípio afirmar que qualquer que seja o conteúdo de “interesse público” obtido em concreto, ele sempre prevalecerá, significando que o que há de prevalecer sempre prevalecerá.[43]

Tal crítica também teria origem no fato da divisão público/privado ser singela demais para explicar o cenário atual, em que há múltiplos espaços, pautados por diversas lógicas. Esses espaços não poderiam ser rigidamente classificados de uma forma ou de outra, uma vez que, frequentemente, se cruzam, devendo ser envolvidos por princípios atrelados aos direitos humanos e à democracia.[44]

Afirma-se, desta forma, que o princípio da supremacia do interesse público abriria possibilidades para abusos e arbitrariedades, por conferir uma discricionariedade exagerada e por seu caráter vago e indeterminado, pondo os direitos fundamentais à disposição dos Poderes Públicos e sacrificando-os em nome de interesses da coletividade, que muitas vezes não possuem estatura constitucional. Nesta esteira, Daniel Sarmento comenta sobre a chamada cláusula de comunidade, existente na Alemanha e semelhante ao princípio da supremacia do interesse público.[45]

Há, ainda, argumentos relacionados à constitucionalidade da utilização de argumentos não institucionais para restrição de direitos constitucionalmente assegurados, uma vez que essa restrição seria manipulada conforme os interesses dos envolvidos, ante a ausência de pontos de referência, ou seja, de previsão no ordenamento jurídico.[46]

Outra crítica ao princípio da supremacia do interesse público ataca sua (in)constitucionalidade, uma vez que tal princípio atuaria em desrespeito aos direitos fundamentais, que são desconsiderados a priori, quando confrontados com um dito interesse público supremo e inquestionável, o que seria uma afronta à democracia.[47]

Binenbojm sustenta a inconsistência teórica do princípio da supremacia do interesse público com uma sistemática constitucional cidadã, a qual é comprometida com a proteção e promoção dos direitos individuais de maneira ponderada e compatível com a realização das necessidades e aspirações da coletividade como um todo.[48]

Com efeito, seguindo a doutrina tradicional, no caso de uma confrontação entre um direito fundamental e o interesse público, este sempre partiria em vantagem na ponderação a ser realizada entre os valores.[49]

Segundo Sarmento, os direitos fundamentais, por sua própria natureza, visam a resguardar aos particulares certos bens jurídicos considerados essenciais para a promoção da sua dignidade, e, por isso, devem ser beneficiados com verdadeira proteção diante dos poderes públicos, inclusive quando estes afirmem estar perseguindo interesses coletivos, devendo haver maior carga argumentativa para sua restrição.[50]

Em outras palavras, sob a ótica constitucional deveriam os direitos fundamentais partir em vantagem ao direito contraposto (supremacia dos direitos fundamentais), impondo-se maior carga argumentativa ao direito em conflito com aquele, mesmo que amparado pelo princípio do interesse público. Segundo Sarmento, os direitos fundamentais não são absolutamente imunes, mas, diante da possibilidade de ponderação com interesses coletivos, no mínimo deve haver fortes argumentos para a superação do direito fundamental em proveito do interesse público em confronto.[51]

Paulo Ricardo Schier menciona que a assunção prática da supremacia do interesse público, como cláusula geral de restrição de direitos fundamentais, teria possibilitado a emergência de uma política autoritária de realização constitucional, de forma que direitos, liberdades e garantias fundamentais sempre cedem aos interesses do Estado.[52]

Nesse sentido, Sarmento afirma que além dos riscos para a tutela dos direitos fundamentais, há uma absoluta inadequação entre o referido princípio da supremacia do interesse público e a ordem jurídica brasileira, por conter traços autoritários.[53]

Isso porque o princípio da supremacia do interesse público seria baseado em uma compreensão equivocada da relação entre a pessoa humana e o Estado, o que seria incompatível com o Estado Democrático de Direito, uma vez que as pessoas não existem para servir ao Poder Público. Inversamente, é o Poder Público existe para servir às pessoas.[54]

Também seria inconstitucional por ferir o princípio da isonomia, uma vez que são feitas diferenciações aos particulares, em vista do interesse público, o que deve estar previsto constitucionalmente. As hipóteses de diferenciação permitidas em relação aos particulares deveriam estar sujeitas a rígidos critérios fundamentados na lógica constitucional da igualdade. [55]

Ademais, há ainda relevante discussão acerca da incompatibilidade do princípio da supremacia do interesse público com os princípios constitucionais da proporcionalidade e da concordância prática.

Ao afirmar a superioridade a priori de um dos bens envolvidos sobre o outro, estaria eliminada qualquer possibilidade de balanceamento racional dos interesses, premiando de antemão, o interesse público envolvido, independentemente das nuances do caso concreto. Isto imporia o consequente sacrifício do interesse privado contraposto, o que confrontaria a máxima da proporcionalidade,[56] importantíssimo parâmetro para aferição da constitucionalidade das restrições aos direitos fundamentais.[57]

Com o princípio da supremacia do interesse público, ao invés de busca racional de solução equilibrada entre o interesse público e privado implicados no caso, prestigiar-se-ia apenas um dos pólos da relação, o que também se afigura desconforme ao princípio da concordância prática, que orienta o intérprete a buscar solução jurídica que harmonize, na medida do possível, os bens jurídicos constitucionalmente protegidos, sem optar pela realização integral de um, em prejuízo do outro.[58].

Assim, pelo fato de que a preservação (na maior medida possível) dos direitos individuais constitui porção do próprio interesse público, esta harmonização não se coadunaria com qualquer regra absoluta de prevalência a priori dos papéis institucionais do Estado sobre os interesses individuais privados.[59]

O princípio da supremacia do interesse público, ao rejeitar as especificidades de cada caso, impondo uma única e invariável relação de prevalência do interesse público, distanciar-se-ia da máxima da proporcionalidade, principalmente quanto às suas acepções – adequação, necessidade e proporcionalidade em sentido estrito –, nas quais sobressalta a relevância da análise casuística pelo aplicador e intérprete da norma.[60]

Vale destacar que, embora Schier seja contrário à tese da supremacia do interesse público sobre o privado, concorda que tal idéia se verificaria em algumas situações específicas, em condições definidas e limitadas constitucionalmente.[61] Desta forma, vislumbra-se a priori a possibilidade da existência de uma supremacia do interesse público sobre o privado, desde que limitada pelos princípios constitucionais.

Vencido o exame (ainda que sumário e sem pretensões exaurientes) dos principais argumentos contrários ao princípio da supremacia do interesse público, mostra-se oportuno examinar alguns aspectos da ordem constitucional brasileira, que devem ser considerados na solução de colisões entre interesses públicos, interesses individuais e fundamentais, a fim de proceder a uma releitura do princípio da supremacia do interesse público.

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Sobre os autores
Lilian Pfleger

Bacharel em Direito pela Universidade para o Desenvolvimento do Alto Vale do Itajaí (RS).

José Sérgio da Silva Cristóvam

Professor Adjunto de Direito Administrativo (Graduação, Mestrado e Doutorado) da UFSC. Subcoordenador do PPGD/UFSC. Doutor em Direito Administrativo pela UFSC (2014), com estágio de Doutoramento Sanduíche junto à Universidade de Lisboa – Portugal (2012). Mestre em Direito Constitucional pela UFSC (2005). Membro fundador e Presidente do Instituto Catarinense de Direito Público (ICDP). Membro fundador e Diretor Acadêmico do Instituto de Direito Administrativo de Santa Catarina (IDASC). ex-Conselheiro Federal da OAB/SC. Presidente da Comissão Especial de Direito Administrativo da OAB Nacional. Membro da Rede de Pesquisa em Direito Administrativo Social (REDAS). Coordenador do Grupo de Estudos em Direito Público do CCJ/UFSC (GEDIP/CCJ/UFSC).

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

PFLEGER, Lilian ; CRISTÓVAM, José Sérgio Silva. A supremacia do interesse público na ordem constitucional brasileira . Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 18, n. 3554, 25 mar. 2013. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/24044. Acesso em: 19 abr. 2024.

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