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Cárcere, estigma e reincidência: o mito da ressocialização

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Agenda 21/07/2013 às 14:05

4. A LABELING THEORY OU TEORIA DA ROTULAÇÃO

Após traçar as funções básicas da pena e fazer uma breve exposição da história da prisão até o que ela mais ou menos representa atualmente, iniciaremos a análise da Labeling Theory ou Teoria da Rotulação, cuja maior contribuição foi ter oferecido um novo ponto de vista ao estudo do desvio e, consequentemente, da criminalidade.

No início dos anos 1960, a publicação do livro Outsiders, do cientista social norte-americano Howard Becker, representou uma verdadeira revolução no conhecimento a respeito do que se chamava delinquência. A transgressão deixou de ser produto de personalidades falhas e de situações sociais adversas e passou a ser vista como desvio social, de modo que este seria resultante de um processo de rotulação que envolveria, além do comportamento dos atores definidos como desviantes, aqueles que formulam as regras sociais e suas sanções, bem como os designados para fazê-las cumprir.

Embora esta teoria tenha recebido diversas críticas num primeiro momento, o livro de Becker tornou-se um marco no interacionismo - corrente sociológica que postula que os indivíduos agem em relação às coisas de acordo com o significado que atribuem a essas coisas, a partir de sua interação com outros indivíduos e com a sociedade como um todo - e constitui um clássico das ciências sociais. A rotulação continua sendo amplamente estudada até hoje, influenciando diversos estudos e pesquisas sobre as sociedades urbanas e seus segmentos, inclusive pela Criminologia, cuja abordagem será examinada posteriormente.

4.1. Escorço histórico

A publicação do livro Outsiders deu-se num momento de crítica e reavaliação das antigas estruturas teóricas da sociologia, em contraposição aos estudos sociológicos tradicionais sobre a criminalidade, que seguiam um rumo completamente diverso.

No início dos anos 60, os sociólogos estudavam o crime e outras formas de transgressão questionando o que levava as pessoas a agirem daquele modo, violando as normas sociais consensualmente aceitas e levando vidas “anormais”. Uns atribuíam o comportamento antissocial a falhas na personalidade do agente, que o faziam “comportar-se mal”; outros culpavam situações em que havia uma disparidade entre o que as pessoas almejavam em termos de ascensão social, conforme lhes haviam ensinado, e o que de fato poderiam alcançar, legitimando-lhes a utilização de métodos desviantes de mobilidade social, como o crime (BECKER, 2008, p. 10).

Essas teorias, porém, não agradavam aos sociólogos de uma nova geração, menos conformistas e mais críticos com relação às instituições sociais da época. Os sociólogos tradicionais consideravam óbvio o fato de que a responsabilidade pelos crimes era dos criminosos, o que os levava a conduzir seus estudos de acordo com o seguinte questionamento: “Por que as pessoas que identificamos como criminosos fazem as coisas que identificamos como crimes?”. Por outro lado, o combate e a repressão do crime ficavam a cargo unicamente do sistema de justiça criminal, como ainda é até hoje, cujas organizações consistiam na única fonte de estatísticas nas quais aqueles estudiosos poderiam basear suas pesquisas.

No entanto, o monopólio da fonte de dados estatísticos gerava graves erros nos resultados das pesquisas, pois a taxa de criminalidade era calculada com base apenas nos crimes denunciados à polícia, desconsiderando os crimes que não eram denunciados. Além disso, havia também os ajustes frequentemente levados a cabo pela polícia, que modificava os números a fim de aparentar ao público, às companhias de seguro e aos políticos que estava fazendo um bom trabalho. Assim, os sociólogos reformadores adotaram uma abordagem alternativa, baseada no interacionismo, segundo o qual as pessoas agem com base em sua compreensão do mundo e do que há nele, a fim de obter dados mais precisos e resultados mais condizentes com a realidade.

A problemática das pesquisas sobre criminalidade no âmbito das ciências sociais passou a ser a questão de como as coisas são definidas, quem está definindo que tipos de atividade e de que maneira.

Pesquisadores que trabalhavam nessa tradição não aceitavam que tudo que a polícia dizia ser crime “realmente” o fosse. Pensavam, e sua pesquisa confirmava, que ser chamado de criminoso e tratado como tal não tinha conexão necessária com qualquer coisa que a pessoa pudesse realmente ter feito. Era possível haver uma conexão, mas ela não era automática ou garantida. Isso significava que a pesquisa que usava as estatísticas oficiais estava cheia de erros, e a correção desses erros podia levar a conclusões bem diferentes. (BECKER, 2008, p. 12)

 No estudo de Becker e de outros estudiosos do tema, o foco deixou de ser a questão de quem comete o crime e passou a ser o desvio. Este termo mostrou-se mais adequado, pois abrange todas as atividades nas quais as pessoas, quando envolvidas em ação coletiva, definem certas atitudes como “erradas”, que não devem ser feitas, e geralmente adotam medidas para impedir que se faça o que assim foi definido; nesse contexto, aquele que infringe as regras adotadas pela coletividade passa a ser um outsider, um indivíduo que não se ajusta às normas estipuladas pelo grupo.

4.2. Outsiders

Becker explica que todos os grupos sociais elaboram regras que determinam situações e tipos de comportamentos a eles apropriados, definindo alguns como “certos” e outros como “errados”, e tentam, em determinadas circunstâncias, impô-las aos indivíduos do grupo. Dessa forma, “quando uma regra é imposta, a pessoa que presumivelmente a infringiu pode ser vista como um tipo especial, alguém de quem não se espera viver de acordo com as regras estipuladas pelo grupo. Essa pessoa é encarada como um outsider” (BECKER, 2008, p. 15).

No entanto, pode ser que a pessoa que infringiu a regra tenha uma opinião diferente sobre a questão e não aceite a regra pela qual está sendo julgada; pode não encarar aqueles que a julgam competentes ou legitimamente autorizados a fazê-lo. Assim, aquele que infringe a regra pode pensar que seus juízes são outsiders, dando um novo sentido ao termo.

O grau em que alguém é considerado outsider, em qualquer dos dois sentidos, varia conforme a gravidade da transgressão e, por conseguinte, a força da regra imposta. Costumamos perceber determinados comportamentos transgressores – como uma infração no trânsito ou alguém que bebe demais numa festa – com certa tolerância, pois, afinal, não somos tão diferentes. Já um ladrão é visto como menos semelhante a nós, e tendemos a puni-lo com severidade. Por fim, crimes como o estupro ou o homicídio causam uma aversão tal que vemos o transgressor como um legítimo outsider, fazendo-o merecedor de uma punição ainda mais severa.

4.3. O desvio

Antes da mudança de paradigma operada pela abordagem da rotulação, os estudos científicos sobre os desviantes procuravam explicar as causas que os levavam a transgredir, aceitando a premissa do senso comum segundo a qual há algo inerentemente desviante - e, portanto, qualitativamente distinto - em atos que infringem ou parecem infringir as normas sociais, além de pressupor que o ato desviante ocorre porque alguma característica da pessoa que o comete torna necessário ou inevitável que ela o cometa. Assim, não se questionava o rótulo “desviante” quando aplicado a atos ou pessoas em particular, e, quando questionado, eram aceitos os valores do grupo que estava formulando o julgamento.

Adotavam-se concepções limitadas sobre o desvio, deixando de lado fatores importantes que levariam a conclusões mais exatas sobre o comportamento desviante. A concepção mais simples de desvio era essencialmente estatística, pois definia como desviante tudo que variava excessivamente com relação à média; assim, ser canhoto ou ruivo seria desviante, porque a maioria das pessoas é destra e morena (BECKER, 2008, p. 18).

Outra concepção de desvio muito comum, embora menos simples, o identificava como algo patológico, um comportamento não-saudável, a partir de uma analogia médica que considerava o corpo social como um organismo. No entanto, é impossível encontrar um consenso quanto ao que constitui um comportamento saudável, pois as pessoas utilizam critérios diferentes para classificar os comportamentos de acordo com o que entendem por “certo” e “errado”, diferentemente do que ocorre com a saúde física, em que são utilizados critérios comumente aceitos por todos para ser aferida.

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Uma concepção sociológica mais próxima do pensamento de Becker identificava o desvio como a falha em obedecer a regras do grupo. Dessa forma, descritas as regras que um grupo impõe a seus membros, era possível afirmar com alguma precisão que o comportamento que infringisse aquelas normas seria desviante. Falhava, no entanto, no momento de decidir quais regras deviam ser tomadas como padrão de comparação em relação ao comportamento medido e julgado desviante, tendo em vista que uma pessoa faz parte, dentro de determinada sociedade, de vários grupos, os quais podem ter regras incompatíveis entre si; pressupunha uma homogeneidade nas regras criadas por cada grupo dentro de um grupo maior, o que nem sempre ocorre. Por fim, ao definir o desvio como a infração de alguma regra geralmente aceita, esta concepção tendia a questionar quem infringia as regras e a procurar os fatores nas personalidades e situações de vida dessas pessoas que supostamente poderiam explicar suas infrações, pressupondo que aqueles que infringiram a regra cometeram o mesmo ato desviante.

Baseado em tais concepções, e ciente de suas falhas e limitações, Becker formulou sua própria tese, segundo a qual o desvio é criado pela sociedade - não no sentido de que suas causas estão localizadas na situação social do desviante ou em “fatores sociais” que incitam sua ação infratora, mas que “grupos sociais criam desvio ao fazer as regras cuja infração constitui desvio, e ao aplicar essas regras a pessoas particulares e rotulá-las como outsiders” (BECKER, 2008, p. 21-22).

Desse ponto de vista, o desvio não é uma qualidade do ato que a pessoa comete, mas uma consequência da aplicação por outros de regras e sanções a um “infrator”. O desviante é alguém a quem esse rótulo foi aplicado com sucesso; o comportamento desviante é aquele que as pessoas rotulam como tal. (BECKER, 2008, p. 22)

O desvio é, entre outras coisas, a consequência das reações das pessoas de determinado grupo ao ato de uma em particular, a quem se atribui a infração de uma regra; sendo assim, não se pode supor que um grupo de pessoas rotuladas como desviantes constitui uma categoria homogênea, já que é possível que algumas delas tenham sido rotuladas de desviantes sem ter infringido regra alguma. Por outro lado, nem sempre os que infringem as regras são incluídos na categoria de desviantes, às vezes porque conseguiram escapar à detecção do desvio, ou mesmo em razão de seu status social, por exemplo.

Para que haja desvio, é necessário que exista uma regra que proíba determinado comportamento, que o considere desviante; mas, afinal, quem faz as regras e com que autoridade?

Em qualquer sociedade, por mais simples que seja, existem diversos grupos – étnicos, religiosos, profissionais, estudantis, de lazer, de familiares, amigos etc. -, sujeitos a diferentes regras. Um jovem pode, por exemplo, estar submetido às leis de seu país, ao mesmo tempo em que se sujeita aos mandamentos de sua religião, às normas da Universidade em que estuda e às regras de sua família, por exemplo. No entanto, nem sempre as regras são compatíveis entre si, e pode ser que o sujeito simplesmente não aceite as normas que lhe são impostas.

Podemos citar como exemplo o problema do narcotráfico no Brasil. Existe uma lei formalmente elaborada e promulgada que criminaliza a comercialização de entorpecentes no país, e o Poder Público empreende esforços para combatê-la na medida do possível. No entanto, pode ser que quem as comercializa – desde o “avião” até o dono da “boca-de-fumo” – não reconheça em tal prática um crime; podem vê-la apenas como uma atividade comercial comum, como uma forma de ganhar a vida e até como um serviço de utilidade pública. Não obstante sua resistência em aceitar a norma, não rotulados de desviantes, de traficantes, embora assim não se reconheçam; do seu ponto de vista, outsiders são os outros, aqueles que tentam rotulá-los como tal, pois eles é que não se ajustam às suas próprias normas.

Dessa forma, BECKER (2008, p. 30) chama atenção para o fato de que, além de reconhecer que o desvio é criado pelas reações de pessoas a tipos particulares de comportamento, pela rotulação desse comportamento como desviante, devemos também ter em mente que as regras criadas e mantidas por essa rotulação não são universalmente aceitas – constituem objeto de conflito e divergência, que é parte do processo político da sociedade.

O professor Alessandro Baratta destaca o estudo de Edwin M. Lemert, cuja teoria do desvio baseia-se na perspectiva da reação social, distinguindo o desvio “primário” do desvio “secundário”:

Lemert sustenta que são dois os principais problemas de uma teoria da criminalidade: o primeiro é “como surge o comportamento desviante”; o segundo, “como os atos desviantes são ligados simbolicamente, e as consequências efetivas desta ligação para os desvios sucessivos por parte da pessoa”. Enquanto o desvio primário se reporta, pois, a um contexto de fatores sociais, culturais e psicológicos, que não se centram sobre a estrutura psíquica do indivíduo, e não conduzem, por si mesmos, a uma “reorganização da atitude que o indivíduo tem para consigo mesmo, e do seu papel social”, os desvios sucessivos à reação social (compreendida a incriminação e a pena) são fundamentalmente determinados pelos efeitos psicológicos que tal reação produz no indivíduo objeto da mesma; o comportamento desviante (e o papel social correspondente) sucessivo à reação “torna-se um meio de defesa, de ataque ou de adaptação em relação aos problemas manifestos e ocultos criados pela reação social ao primeiro desvio”. (BARATTA, 2002, p. 90)

Assim, por diversos motivos e em muitos casos, a infração de uma regra e, principalmente, a aplicação eficaz do rótulo de “desviante” conduz o sujeito a uma situação em que as condições sociais se tornam tão hostis que não lhe resta muito que fazer senão recorrer ao desvio novamente, utilizando-o como instrumento de adaptação e mobilidade social, constituindo o que Becker denomina carreira desviante.

4.4. Carreiras desviantes

O primeiro passo na maioria das carreiras desviantes é o cometimento de um ato não apropriado, que infringe algum conjunto de regras em particular. Nem sempre esse ato é motivado, realizado com o propósito consciente de infringir a regra; outras vezes, nasce do conflito de interesses do agente, que, embora aceite a regra que proíbe determinado comportamento, age contrariamente visando a um bem que julga maior; por fim, pode resultar, ainda, da mera não-aceitação da regra imposta.

No entanto, um dos elementos mais decisivos no processo de construção de um padrão estável de comportamento desviante é ser rotulado publicamente de desviante, por meio da imposição da regra que foi violada. Ainda que ninguém descubra que foi cometida determinada impropriedade, ou deixe de impor a regra, o indivíduo que a cometeu pode, ele próprio, impor-se a regra, marcando a si mesmo como desviante em razão do que fez e punindo-se de uma maneira ou de outra por seu comportamento.

Ser marcado como desviante tem importantes e profundas consequências para a participação social e a auto-imagem do indivíduo. A mais importante é uma mudança drástica em sua identidade pública; cometer o ato impróprio e ser apanhado lhe confere um novo status. É rotulado, por exemplo, de criminoso e, via de consequência, tratado como tal (BECKER, 2008, p. 42).

Muitas vezes o rótulo de desviante compreende não só o traço principal que caracteriza o desvio, mas abrange também traços auxiliares que reforçam o estigma. Assim, “a posse de um traço desviante pode ter um valor simbólico generalizado, de modo que as pessoas dão por certo que seu portador possui outros traços indesejáveis presumivelmente associados a ele” (BECKER, 2008, p. 43).

Para ser rotulado de criminoso só é necessário cometer um único crime, isso é tudo a que o termo formalmente se refere. No entanto a palavra traz consigo muitas conotações que especificam traços auxiliares característicos de qualquer pessoa que carregue o rótulo. Presume-se que um homem condenado por arrombamento, e por isso rotulado de criminoso, seja alguém que irá assaltar outras casas; a polícia, ao recolher delinquentes conhecidos para investigação após um crime, opera com base nessa premissa. Além disso, considera-se provável que ele cometa também outros tipos de crime, porque se revelou uma pessoa sem “respeito pela lei”. Assim, a detenção por um ato desviante expõe uma pessoa à probabilidade de vir a ser encarada como desviante ou indesejável em outros aspectos. (BECKER, 2008, p. 43).

Ao se tratar alguém como desviante em geral, segundo o diagnóstico popular que descreve sua maneira de ser, e não particularmente desviante em relação a determinado fato, põe-se em movimento diversos mecanismos que agem sobre a pessoa de forma a moldá-la segundo a imagem que os outros têm dela, produzindo um desvio crescente. Isso ocorre porque, após ser identificada como desviante, ela passa a ser isolada dos grupos mais convencionais, inclusive dos quais fazia parte, e acaba por encontrar dificuldades em se conformar a outras regras que não tem a intenção de infringir, tornando-se forçosamente desviante também em relação a essas últimas, em um impulso desesperado de sobrevivência.

Dessa forma, fica claro que o comportamento desviante é, muitas vezes, uma consequência da reação pública ao desvio, e não um efeito das qualidades inerentes ao ato desviante. A questão é que o tratamento dado aos desviantes lhes nega os meios comuns de levar adiante as rotinas da vida cotidiana acessíveis à maioria das pessoas e, em razão dessa negação, o desviante é levado a desenvolver rotinas ilegítimas para sobreviver, gerando um ciclo progressivo de desvio. No entanto, evidentemente nem sempre aquele que comete um ato desviante e recebe o respectivo rótulo é vítima da inevitabilidade da carreira desviante; é possível que, no momento em que a regra lhe é imposta pela primeira vez, ainda tenha a possibilidade de seguir por caminhos diversos que não o da transgressão, dependendo da força do estigma que recebeu.

4.4.1. Subculturas desviantes

O último estágio dentro da carreira desviante é a participação em um grupo desviante organizado, a qual exerce forte impacto sobre a concepção que o desviante tem de si mesmo. Por terem o desvio em comum, os membros de grupos desviantes organizados desenvolvem um sentimento de pertença em relação àquele grupo; sentem que estão no mesmo “barco” e acreditam que devem enfrentar os mesmos problemas juntos, o que os leva a criar uma cultura própria baseada na perspectiva que têm do mundo, solidificando a identidade desviante de cada um.

Os grupos desviantes organizados tendem a racionalizar sua posição, desenvolvendo justificativas históricas, psicológicas e até legais para a atividade desviante; assim, a primeira consequência que se opera na carreira do desviante a partir do momento em que passa a fazer parte de um grupo organizado é a internalização de tais justificativas, fundamentando sua permanência na atividade desviante. A segunda consequência surge quando o novato aprende o repertório de soluções de problemas que os mais experientes oferecem, de modo a aperfeiçoar sua atuação na atividade desviante.

Assim, o desviante que ingressa num grupo desviante organizado e institucionalizado tem mais probabilidade que nunca de continuar nesse caminho. Ele aprendeu, por um lado, como evitar problemas; por outro, assimilou uma fundamentação para continuar. (BECKER, 2008, p. 49)

Dessa forma, surgem as subculturas desviantes, organizações de outsiders baseadas em atividades transgressoras, fundamentadas no repúdio geral às normas convencionais e em justificativas que legitimam a atividade desviante.

4.5. As regras e sua imposição

Feitas algumas considerações sobre os outsiders e seu processo de rotulação, examinaremos brevemente os responsáveis pela elaboração das regras e sua imposição.

A simples existência de uma regra não assegura sua imposição; para BECKER (2008, p. 129), “não é possível dizer que a ‘sociedade’ é prejudicada a cada infração e age para restaurar o equilíbrio”. Em regra, é necessário que algo provoque a sua imposição, a qual, portanto, requer explicação.

A justificação da imposição das regras baseia-se em quatro premissas fundamentais: a) a imposição da regra é um empreendimento - é necessário que alguém tome a iniciativa de punir o culpado pelo descumprimento da regra; b) a infração deve ser tornada pública por aqueles que desejam ver a regra cumprida - depois que a infração é do conhecimento de todos, não pode mais ser ignorada; c) a possibilidade de obter vantagem com o cumprimento da regra estimula os delatores a tomar a iniciativa de sua imposição, a qual se dá segundo seu interesse pessoal; e, por fim, d) o tipo de interesse pessoal que leva à imposição varia conforme a complexidade da situação em que a imposição tem lugar.

Em sociedades mais simples, onde há pouca divergência em relação às regras, basta que alguém se sinta prejudicado pelo seu descumprimento e torne tal fato público; logo, os outros membros do grupo se mobilizarão a fim de punir o infrator, eliminando a tensão e restabelecendo o equilíbrio social. Em contrapartida, em sociedades urbanas mais complexas, nas quais há possibilidade de interpretações divergentes da infração, é possível que haja conflitos com relação à imposição da regra; a punição depende mais da disputa de interesses entre grupos antagônicos que do mero descumprimento da norma.

Pode acontecer que a infração ocorra dentro de uma mesma organização na qual há dois grupos que, em tese, apresentam interesses diversos um do outro, como, por exemplo, em um supermercado. É muito comum que os auxiliares desses estabelecimentos cometam pequenos furtos sem que haja qualquer tipo de repreensão pela gerência, a qual, muito embora procure conter as infrações, não as torna públicas. Essa tolerância tem lugar devido ao fato de que a gerência sabe que os auxiliares recebem baixos salários e trabalham arduamente, criando um sistema de compensação que favorece às duas partes.

Quanto maior o número de grupos rivais envolvidos na situação, mais difícil se torna conciliar seus interesses e alcançar o equilíbrio de poder entre eles, fazendo com que a solução do conflito se torne impossível. Nessas circunstâncias, a publicidade da infração torna-se uma variável importante, pois aqueles aos quais não interessa impor a regra tentam como podem impedir a notificação das infrações. Isso ocorre, por exemplo, nos acordos feitos entre políticos, polícia e bicheiros, quando aqueles fazem vista grossa à prática do jogo do bicho a fim de obter vantagem para si; dessa forma, todos saem ganhando por meio de uma prática corrupta, mas que corresponde aos interesses de todos. No entanto, se o acordo é descoberto e divulgado por uma organização da sociedade civil que repudia tal prática, logo surgirá um movimento anticorrupção encarregado de extirpá-la e puni-la.

Em resumo, podemos dizer que:

A iniciativa, gerada por interesse pessoal, armada com publicidade e condicionada pelo caráter da organização, é portanto a variável-chave na imposição da regra. A iniciativa opera da maneira mais imediata numa situação em que há acordo fundamental em relação às regras a serem impostas. Uma pessoa com um interesse a ser atendido divulga uma infração e providências são tomadas; se nenhuma pessoa com iniciativa aparecer, nenhuma providência é tomada. Quando dois grupos competem pelo poder na mesma organização, a imposição só ocorrerá quando falharem os sistemas de conciliação que caracterizam sua relação; de outro modo, o interesse de todos será mais bem atendido permitindo-se que as infrações continuem. Em situações que contêm muitos grupos de interesses rivais, o resultado é variável, dependendo do poder relativo dos grupos envolvidos e de seu acesso aos canais de publicidade. (BECKER, 2008, p. 135-136)

Em sendo as regras produto da iniciativa de alguém – os chamados empreendedores morais - podemos definir claramente duas categorias nesse processo: os criadores de regras e os impositores de regras.

4.5.1. Criadores de regras

De modo geral, as regras se originam da iniciativa de pessoas que - por acreditarem poder, de alguma forma, contribuir para extirpar o mal da sociedade – empreendem verdadeira cruzada moral contra as situações que lhes parecem insustentáveis ao bem-estar da comunidade, de acordo com sua própria concepção de valores. Não é que o cruzado moral tente impor sua própria moral aos outros, apenas; ele acredita que, se as pessoas agirem de acordo com o que julga certo, isso será bom para elas também, revelando uma motivação humanitária em seu intento (um exemplo é o caso de Glória Perez, roteirista de novelas da Rede Globo que utilizou a mídia para angariar o apoio popular a fim de incluir o homicídio qualificado no rol da Lei dos Crimes Hediondos após o assassinato de sua filha Daniella Perez, atriz da mesma emissora, no que foi exitosa).

Nem sempre a cruzada moral é bem-sucedida a ponto de criar uma nova regra, válida para todos. Por outro lado, quando a regra é estabelecida, cria-se um verdadeiro aparato de imposição da norma, e a cruzada torna-se institucionalizada. Assim, “o que começou como uma campanha para convencer o mundo da necessidade moral de uma regra torna-se finalmente uma organização dedicada à sua imposição” (BECKER, 2008, p. 160). O resultado final da cruzada moral é, então, o surgimento de uma força policial.

4.5.2. Impositores de regras

O policial impositor da regra difere sensivelmente do cruzado moral. Enquanto este último se preocupa com o conteúdo da norma e defende sua criação e imposição fervorosamente, chegando por vezes a ser hipócrita, o policial dispõe de uma visão neutra e objetiva de seu trabalho, que é impor a regra; dessa forma, o impositor “pode não estar interessado no conteúdo da regra como tal, mas somente no fato de que a existência da regra lhe fornece um emprego, uma profissão e uma raison d’être” (BECKER, 2008, p. 161).

A atividade de imposição da regra é condicionada por dois interesses básicos do impositor: a) sente a necessidade de justificar a existência de sua posição; e b) deve ganhar o respeito daqueles com quem lida.

Segundo Becker:

Ao justificar a existência de sua posição, o impositor de regras enfrenta um duplo problema. Por um lado, deve demonstrar para os outros que o problema ainda existe; as regras que supostamente deve impor têm algum sentido, porque as infrações ocorrem. Por outro lado, deve mostrar que suas tentativas de imposição são eficazes e valem a pena, que o mal com que ele supostamente deve lidar está sendo de fato enfrentado adequadamente. (BECKER, 2008, p. 161-162)

Dessa forma, as organizações encarregadas de impor as regras oscilam entre duas posturas. Por vezes afirmam que, em razão de seus esforços, o problema está próximo de ser solucionado; em outros momentos, dizem que o problema está mais grave que nunca – embora não por culpa sua -, e que é necessário renovar e intensificar os esforços para mantê-lo sob controle. Assim, os impositores fornecem uma boa razão para que sua posição continue a existir.

Outra característica desses profissionais é a tendência a formar uma visão pessimista da natureza humana; atribuem as constantes infrações que presenciam à maldade do homem e à sua incapacidade de cumprir regras, motivo pelo qual são céticos em relação a tentativas de reformar os infratores. Seu pessimismo e ceticismo podem ser explicados, no entanto, pelo fato de que, fossem as pessoas perfeitas, e fosse possível corrigi-las permanentemente, seu trabalho deixaria de existir.

O impositor sente também necessidade de impor respeito em relação àqueles com quem lida, pois, caso contrário, perde o sentimento de segurança e torna-se muito difícil realizar seu trabalho. Dessa forma, boa parte da atividade de imposição é dedicada não à aplicação da regra em si, mas à imposição de respeito aos infratores, o que indica que uma pessoa pode ser rotulada de desviante não porque infringiu uma regra, mas porque demonstrou desrespeito pelo impositor. Caso o impositor tenha a opção de impor ou não a regra, sua postura será baseada na atitude do infrator em relação a ele; assim, “se o infrator for respeitoso, o impositor pode suavizar a situação. Se for desrespeitoso, as sanções poderão lhe ser aplicadas” (BECKER, 2008, p. 164).

Por ter uma postura profissional em relação às regras que impõe, bem como por estar ciente de que seus recursos são, em geral, escassos, o impositor age com calma na aplicação da regra, pois sabe que não poderá resolver o problema sozinho; o combate ao comportamento desviante requer tempo e só produz resultado em longo prazo. Para trabalhar com eficiência, o impositor estabelece prioridades, lidando com uma coisa de cada vez, enfrentando primeiramente os problemas mais urgentes e deixando os menos graves para depois, o que acaba por relativizar a atividade de imposição das regras.

Um dos critérios que o impositor usa em sua ponderação de prioridades é a existência de um “intermediário” – pessoa de influência política ou know-how que presta serviços, mediante pagamento, a infratores normalmente experientes, que utilizam seus serviços a fim de evitar a imposição da regra. Desse modo, os infratores menos experientes costumam receber a imposição eficaz da regra, enquanto que aqueles experientes e gabaritados, respaldados por um “intermediário”, frequentemente escapam ilesos da punição.

Os impositores, portanto, respondendo às pressões de sua própria situação de trabalho, aplicam as regras e criam outsiders de uma maneira seletiva. Se uma pessoa que comete um ato desviante será de fato rotulada de desviante depende de muitas coisas alheias a seu comportamento efetivo: depende de o agente da lei sentir que dessa vez deve dar alguma demonstração de que está fazendo seu trabalho a fim de justificar sua posição; de o infrator mostrar a devida deferência ao impositor; de o “intermediário” entrar em ação ou não; e de o tipo de ato cometido estar incluído na lista de prioridades do impositor. (BECKER, 2008, p. 166)

Pelo exposto, podemos concluir que o desvio é sempre o resultado de um empreendimento; não se caracteriza somente pela simples infração da regra, mas principalmente por quem faz as regras e pelo modo como se dá sua imposição.

Sobre o autor
Sergio Enrique Ochoa Guimarães

Assessor da Área Criminal da Defensoria Pública do Estado do Amazonas Especialista em Ciências Penais

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

GUIMARÃES, Sergio Enrique Ochoa. Cárcere, estigma e reincidência: o mito da ressocialização. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 18, n. 3672, 21 jul. 2013. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/24285. Acesso em: 22 dez. 2024.

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