4 APLICABILIDADE DE MEDIDAS COERCITIVAS EM FACE DA FAZENDA PÚBLICA
Pretende-se aqui por em pauta a possibilidade da aplicação da multa prevista no §4° do art. 461 do CPC em face da Fazenda Pública, uma vez que na doutrina e na jurisprudência pátria encontram-se posicionamentos divergentes a esse respeito, mesmo que em sua grande maioria sejam favoráveis à aplicação.
O primeiro ponto a ser considerado é a questão da titularidade da referida multa, onde no ordenamento pátrio já encontra-se pacificaado o posicionamento de que quem é titular do referido instituto jurídico é o autor da demanda. Tal não ocorre em alguns outros países, a exemplo da Alemanha que a reverte em favor do Estado, sob o argumento de que a multa não tem cunho ressarcitório, mas sim de coator de determinadas condutas.
Do modo que é aplicada hodiernamente, a multa cominatória se tornou objeto ambição, principalmente para alguns advogados, que vêem nesta a possibilidade de multiplicar seus ganhos, desvirtuando o instituto, o que não ocorreria se tais valores fossem convertidos em favor da Fazenda Pública.
Entretanto, caso assim fosse, talvez, os entes públicos não atribuíssem o devido respeito à força da astreinte, vez que, quando de sua imposição em face destes, seria como se a Fazenda estivesse pagando para ela própria. Ademais, já existe no ordenamento jurídico pátrio multa pelo descumprimento, que é interpretado como desobediência, e que se reverte em favor do Estado, é a instituída no parágrafo único do art. 14 do CPC. Aparentemente o instituto não é corriqueiramente utilizado pelos magistrados, diferentemente da astreinte, infelizmente.
Para sanar a dúvida, o Superior Tribunal de Justiça reconhece e a aplica a multa cominatória em face da Fazenda Pública, mesmo gerando controvérsias. É o que se pode ver dos informativos jurisprudenciais de número 460 (Anexo D) e 469 (Anexo E), respectivamente:
No caso dos autos, trata-se de multa cominatória imposta pelo juízo singular em ação mandamental, em função do descumprimento pela Fazenda Nacional de ordem judicial para a apresentação de cópias das fichas financeiras dos servidores públicos federais, objetivando a apuração da existência de descontos indevidos nos vencimentos.
Sucede que agora a hipótese dos autos é diversa, visto que cuidam da possibilidade de imposição de multa cominatória (astreintes) — prevista no art. 461 do CPC pelo não cumprimento da obrigação de fazer —, qual seja, o fornecimento de extratos das contas vinculadas ao FGTS. Para o Min. Relator, o juiz, de ofício ou a requerimento da parte, pode fixar as denominadas astreintes contra a empresa pública, com o objetivo de forçá-la ao adimplemento da obrigação de fazer no prazo estipulado.
Nesse ponto, o que merece análise mais cautelosa é o fato de que as astreintes quando fixadas contra a Fazenda Pública terminam na verdade por onerar o contribuinte. Ora, a verba disponibilizada para qualquer órgão que faça parte da estrutura Estatal, seja ela da administração pública direta ou indireta, ou seja, autarquias, fundações públicas, empresas públicas, sociedades de economia mista onde o sócio majoritário é o Estado, dentre várias outras possíveis, vêem indubitavelmente do bolso do contribuinte.
Assim, quando uma parte recebe valores advindos da aplicação de uma astreinte em face da Fazenda Pública, na verdade ele está recebendo de volta uma pequena fração do que pagou com impostos, taxas, contribuições, etc. Essa é a posição encontrada no acórdão proferido pelo Tribunal Regional Federal da 5º Região, no agravo de instrumento de nº 112672/AL (Anexo F), in verbis:
Como instrumento delimitador da astreinte, para que o seu valor não seja ínfimo nem seja excessivamente oneroso para os cofres públicos, de modo a descaracterizá-la, reduzo a multa diária para R$ 1.000,00 (mil reais), ‘assim o fazendo, entendo que a finalidade coercitiva das astreintes restará cumprida, bem como não se estará onerando excessivamente aquele que, de fato, irá arcar com a penalidade - o contribuinte, como sempre -, pois ainda que seja a União a destinatária da decisão judicial, a multa pelo seu descumprimento será desembolsada pela Fazenda Pública'. (Parecer do MPF).[27]
Já quem defende que a aplicação da multa contra a Fazenda é ineficaz, argumenta que não há força coercitiva em face dos órgãos públicos, perdendo então o instituto jurídico seu objeto. Neste sentido, é esclarecedor a opinião colacionada no julgado proferido pelo então Desembargador do Tribunal de Justiça do Estado do Rio Grande do Sul, Araken de Assis[28], in verbis:
Em princípio, aplica-se às pessoas jurídicas de direito público a disciplina do art. 461 do Cód. de Proc. Civil. Mas, há que atentar para a razoabilidade no uso dos meios coercitivos, pois a Administração, jungida à legalidade, nem sempre exibe condições de atender, prontamente, as chamadas “prestações positivas” resultantes dos comandos constitucionais. E ainda há que considerar que, por lastimável deficiência do ordenamento jurídico pátrio, a multa grava o Erário, jamais o agente político ou o servidor com competência para praticar o ato, pessoalmente, o que, no fundo, a torna inócua. A função da técnica de coerção patrimonial é pressionar, psicologicamente, quem pode cumprir a ordem judicial, ameaçando-lhe com sanção pecuniária, objetivo frustrado pela impossibilidade de atingir aquelas pessoas. No caso, avulta a inexistência de recusa em cumprir a ordem judicial.
A posição posta no julgado acima merece reflexão, uma vez que a multa possui caráter de coação, não conferirá tamanha pressão psicológica no administrador público, já que a multa não recairá sobre ele. Entretanto, tal administrador pode vir a sofrer as conseqüências civis e penais por causar prejuízo ao erário, inclusive através de processo de Tribunal de Contas. Entrementes, sabe-se que por muitas vezes o administrador direto, tal qual o diretor de um hospital público, não age com dolo ou culpa quando descumpre uma decisão judicial, recaindo tal responsabilidade para o administrador político, o governador ou o prefeito.
O que vale lembrar, é que há a possibilidade de aplicação não só da multa cominatória, mas também dos outros meios de coerção instituídos no § 5º do art. 461 do CPC, tais como a busca e apreensão de pessoas e coisas, desfazimento de obras, dentre outras, como a interdição da cozinha de um hospital público devido à falta de condições mínimas de higiene, o que irá obrigar ao administrador público a reparar os vícios existentes para que volte a por em funcionamento aquele setor. Devendo-se observar para tanto, qual medida é mais proporcional e razoável de ser aplicada ao caso concreto pelo juízo competente, e que obviamente trará ao processo maior efetividade e celeridade, sem prejuízo do devido processo legal.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
A problemática da falta de efetividade/eficiência enfrentada pelo ordenamento jurídico pátrioreclama sem sombra de dúvidas à dificuldade enfrentada para se fazer com que as decisões judiciais sejam cumpridas. Certamente a execução e o cumprimento de sentença são os meios de se satisfazer a prestação jurisdicional, onde podem ser aplicados métodos que vão atribuir maior eficiência em tais fases processuais. Entretanto, há de se observar, que em nome da efetividade não se pode relativizar a segurança jurídica, devendo esta ser garantida pelo devido processo legal.
Assim, a aplicação de meios de coerção patrimonial como forma de buscar maior efetividade/eficiência à prestação jurisdicional, atribuídos em cada caso concreto respeitando-se a razoabilidade e a proporcionalidade, é uma arma poderosa contra o devedor recalcitrante. Podem e devem ser aplicados com firmeza pelo magistrado, uma vez que se deve ter em mente a premissa que o direito do credor é mais importante do que a fragilidade do devedor. Ou seja, moralmente falando, o credor é quem tem a razão, assim garantido por uma decisão que julgou o direito material, e que faz com que o devedor sofra as conseqüências de sua conduta danosa em entregar o bem da vida, seja ela a satisfação de uma obrigação de fazer, não fazer, ou entrega de coisa.
O melhor meio de se fazer isso, é sujeitar o executado a uma pressão psicológica, através da possibilidade de ver seu patrimônio diminuído por uma penalidade, tipo a multa cominatória, para que cumpra espontaneamente a prestação. É muito mais fácil e barato ao Estado que o devedor cumpra de bom grado a decisão judicial, do que ter que se valer de meios de constrição patrimonial, tais como a penhora, ou a busca e apreensão, para entregar ao credor a tutela jurisdicional específica, ou até mesmo diversa através de perdas e danos.
Entende-se então que a não utilização dos meios de coerção patrimonial acarretam em uma diminuição da eficiência do Poder Judiciário brasileiro, o que termina trazendo para a sociedade um grave problema de desrespeito às normas jurídicas, e consequentemente prejuízos de ordem econômica e social, vez que a sociedade se sujeitaria a um maior número de contratos inadimplidos e de devedores contumazes.
referências
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ANEXOS
ANEXO A – Sentença obrigação de fazer Juizado Especial Cível
PODER JUDICIÁRIO DO ESTADO DO RIO GRANDE DO NORTE
COMARCA DE NATAL
1ºJUIZADO ESPECIAL CÍVEL – UNIDADE CENTRAL
Processo nº.: 001.2010.042.713-5
Parte Autora: xxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxx
Parte Ré: GOLDEN CROSS
SENTENÇA
Vistos etc.
Trata, o presente feito, de pedidos de cumprimento de obrigação contratual e indenizatório, formulados pela autora em função da negativa da ré de custear procedimentos médicos que lhe foram prescritos: cistoscopia com implante de sling vaginal, a serem realizados por profissional de sua confiança.
Manifestando-se sobre o pleito antecipatório, a empresa afirma que autorizou o procedimento, a ser realizado, contudo, por médico diverso do desejado pela autora, uma vez que a profissional por ela escolhida não teria credenciamento para tanto, porém estaria excluída contratualmente a cobertura para a prótese sling.
Plausíveis as teses da defesa, foi denegado o pleito antecipatório.
Frustrada a composição amigável, a ré repetiu, em contestação, as alegações já conhecidas.
Em réplica, a autora diz que o contrato juntado pela empresa não é o que foi firmado pelas partes, tratando-se de mero modelo. Pede atenção para o fato de que o plano da autora é CLUB DAME ESPECIAL, e o instrumento anexado não se referiria a tal modalidade de plano. A restrição relativa à prótese, ademais, seria abusiva, visto que inerente ao procedimento cirúrgico.
Em audiência de instrução e julgamento não foram produzidas provas.
É o sucinto relatório. Passo a decidir.
Analisando os documentos dos autos, considero, com efeito, que o contrato acostado pela empresa ré não pode vincular a demandante, posto que não contém sua assinatura e o instrumento não consta expressamente que se refere à modalidade de plano contratada pela demandante, que é, segundo a carteira juntada, da espécie DAME II TOTAL. Assim, a cláusula restritiva prevista no documento acostado, relativa à não cobertura do dispositivo desejado, sling, não pode, a meu ver, ser aplicada ao caso, sendo suficiente dúvida a respeito para que se decida a favor da consumidora (arts. 46 e 47 do CDC).
Reconheço ilícita, portanto, a negativa de custeio do sling prescrito, porém não enxergo que o fato, por si, tenha sido capaz de gerar transtornos psicológicos exacerbados a ponto de caracterizarem danos morais, notadamente porque a empresa autorizou a cobertura do procedimento principal. Pode-se exigir da ré, no entanto, restrição que é conhecida da própria autora, que custeie despesas médicas apenas se os profissionais forem credenciados para o tipo de procedimento desejado, não se podendo inferir o inverso ainda que não tenha sido juntado o contrato pertinente ao vínculo.
Postas essas considerações, julgo parcialmente procedentes os pleitos iniciais. Determino à empresa que custeie integralmente os procedimentos prescritos para a demandante e aqui referidos, inclusive o implante do sling, realizados por médico de escolha da cliente entre os credenciados para tanto, sob pena de conversão da obrigação em pagar quantia certa equivalente aos custos dos procedimentos, acrescida de multa de 10% (dez por cento). É improcedente o pedido de indenização por danos morais.
Sem condenação em custas, em observância ao disposto nos arts. 54 e 55 da Lei nº. 9.099/95.
Publique-se. Intimem-se.
Natal/RN, 06 de novembro de 2010.
ANA CHRISTINA DE ARAÚJO LUCENA MAIA
Juíza de Direito