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Seletividade penal na Lei de Drogas - Lei n. 11.343/2006

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Agenda 25/03/2014 às 16:03

III.           IDENTIFICAÇÃO DO USUÁRIO 

A Lei 11.343/2.006, no §2º de seu artigo 28, estabeleceu uma série de critérios para definir se a droga destina-se ou não ao consumo pessoal:

§2º - Para determinar se a droga destinava-se a consumo pessoal, o juiz atenderá à natureza e à quantidade da substância apreendida, ao local e às condições em que se desenvolveu a ação, as circunstâncias sociais e pessoais, bem como à conduta e aos antecedentes do agente.       

Conforme o exposto no texto da lei acima, pode-se entender que os critérios diferenciadores se traduzem em: natureza e quantidade da substância apreendida (objeto material do delito), local e condições em que se desenvolveu a ação (o desvalor da ação), circunstâncias sociais e pessoais, bem como a conduta e os antecedentes do agente (agente do fato).

Em outras palavras, pode-se dizer que a quantidade da droga, por si só, não constitui em regra, critério determinante, salvo exceções, como quando se tratar de casos com enormes quantidades de entorpecentes. Daí a necessidade de se valorar não apenas um isolado critério, sendo este o quantitativo, mas sim todos os fixados na Lei.

O contexto vivenciado pela sociedade brasileira deixa nítido que o legislador buscou inovar no tratamento dado ao traficante e ao usuário com a vigência da nova lei de drogas.

Não faltam críticas doutrinárias ao novel diploma, principalmente no que se diz respeito aos critérios e à forma de utilização destes pelos agentes que atuam no enquadramento da conduta praticada por cada indivíduo. Contudo, essas críticas serão tratadas em outro capítulo deste trabalho.

Luiz Flávio Gomes (2007, p. 161), em uma de suas ilustres obras, discorre de maneira clara e objetiva sobre os sistemas legais:

[…] Há dois sistemas legais para se decidir sobre se o agente (que está envolvido com a posse ou porte de droga) é usuário ou traficante: (a) sistema de quantificação legal (fixa-se, nesse caso, um quantum diário para o consumo pessoal; até esse limite legal não há que se falar em tráfico); (b) sistema do reconhecimento judicial ou policial (cabe ao juiz ou à autoridade policial analisar cada caso concreto e decidir sobre o correto enquadramento típico). A última palavra é a judicial, de qualquer modo, é certo que a autoridade policial (quando o fato chega ao seu conhecimento) deve fazer a distinção entre usuário e traficante.                                              

O referido doutrinador, ainda em suas obras, destaca que o ordenamento jurídico pátrio adotou o segundo critério, o do sistema de reconhecimento judicial ou policial. Sendo assim, compete ao juiz ou a autoridade policial reconhecer, com fundamento nos critérios legais objetivos, se a droga encontrada destina-se ao consumo pessoal ou ao tráfico. Porém, o julgamento do magistrado não pode constituir-se em apreciação meramente subjetiva, pois terá como parâmetro os critérios legais para valorar se o fato configura tráfico ou consumo pessoal de drogas. Logo, o critério adotado pela lei brasileira, foi o de que o critério de avaliação é objetivo e não subjetivo.

No direito comparado, a jurisprudência (v.g. espanhola) por vezes consolida quantidades tanto para a tipificação quanto para a aplicação da pena. Porém entre o ordenamento jurídico brasileiro, não há nada parecido, apesar de mencionado no art. 28, §2º, fazer referência à natureza e à quantidade da substância, e o 42 da Lei dispor que, para efeito de individualização da pena, o juiz considerará, como circunstâncias preponderantes, a qualidade e a quantidade da droga.

Há grande discussão no que diz respeito aos critérios elencados pelo §2º do art. 28 da referida lei, e um dos que mais se destacam é o da quantidade de drogas que o agente possui, de modo que dá-se como solução à essa discussão inserir no dispositivo quantidades determinadas de cada substância entorpecente, de maneira que se pudesse objetivamente enquadrar o indivíduo como usuário ou traficante a partir da quantidade de drogas que possuísse. Sem dúvidas essa modificação legislativa contribuiria para a redução de equívocos cometidos pelas autoridades policias no momento de classificar o agente como traficante ou usuário.

A grande diferença entre os artigos 28 e 33, reside no dolo, devendo ser investigado se o agente utilizará para o uso ou para o comércio. Faticamente a promoção da circulabilidade é um elemento objetivo importante para se aferir o dolo no caso concreto.

Tem-se observado que na prática – para fugir da despenalização do artigo 28 - há um exagero ainda maior dos órgãos policiais e judiciais na classificação dos fatos para tipifica-los artificialmente como sendo fatos afetos ao artigo 33.

Sendo assim, torna-se imprescindível acentuar os elementos do tipo do artigo 28, não só para sua configuração, mas também para que haja uma tentativa de diferenciar com menor imprecisão as condutas do artigo 33.

Pelo fato dos tipos penais previstos nos artigos 28 e 33 da Lei 11.343/2.006 conterem em seu texto legal diversos núcleos do tipo iguais, para que se verifique se a droga que foi apreendida tinha como destino o consumo pessoal e não o da promoção da circulabilidade, o que deve ser analisado são as circunstâncias que são analisadas pelo magistrado.

A primeira delas, trata-se da natureza e da quantidade da substância apreendida. Este é um fator fundamental para que os tipos penais sejam diferenciados. Como já exposto acima, não temos um parâmetro numérico para configurar se o agente trata-se de um mero usuário ou um traficante, e com isso, na prática acabam ocorrendo inúmeros erros grosseiros quanto à essa caracterização. O ideal seria que a lei o fizesse. A subjetividade judicial resta alargada e a jurisprudência ficará encarregada dos contornos da pequena quantidade. É importante destacar que para cada tipo de droga deverá ser fixado critério diferente para a afirmação de pequena quantidade.

Se a quantidade de tóxico apreendida em poder do réu é muito pequena, de modo a sugerir que se trate de porte para uso próprio e não havendo qualquer indício que faça supor o tráfico, o delito se enquadra no art. 28 da Lei. 11.343/06. (TACRIM – SP – AC 228.517 – Rel. Jefferson Perroni – JUTACRIM 64/191).

Não se desclassifica o crime para simples uso quando a quantidade de droga apreendida é capaz de denunciar a destinação criminosa do tráfico de entorpecentes. (TJSE – AC 103/95 – Rel. Gilson Gois Soares – RT 737/684).

Neste primeiro parâmetro, pode haver a aplicação do princípio da insignificância quanto ao delito previsto no artigo 28 da Lei 11.343/2.006. Dessa maneira, se a quantidade de droga apreendida for ínfima a ponto de nem mesmo causar alteração no próprio indivíduo, a atipicidade deverá ser reconhecida.

Quando a insignificância estiver presente, haverá ausência de justa causa tanto para a promoção da ação penal, para a manutenção de um processo, quanto para justificar uma condenação penal.

Quantidade ínfima de maconha – Inocuidade para gerar distorções psíquicas – Fato atípico (TJSP – AC 42.883 – Rel. Gonçalves Sobrinho – RJTJSP 102/451).

Em sentido contrário:

Para a caracterização do crime previsto nos arts. 12 e 16 da Lei. 6.368/76 basta a verificação dos fatos ali descritos. Irrelevante, por isso mesmo, a circunstância de ser ínfima a quantidade apreendida com o agente, como causa desfiguradora. (STJ – Resp – Rel. Fláquer Scartezzini – JSTJ-TRF 16/202).

No que se diz respeito ao ônus probatório, não cabe ao acusado produzir qualquer espécie de provas de que é usuário, cabendo ao Estado todo o ônus da prova, aplicando-se o principio constitucional da presunção de inocência. A situação duvidosa perante a autoridade policial ou judicial necessariamente deve funcionar a favor da versão de quem está em situação de se envolver com a droga e que alega o consumo pessoal.

Nesse sentido:

Apreensão de alentada quantidade de maconha – “Para que se reconhece a existência de tráfico ou comércio de drogas, é mister prova absolutamente segura. No caso de dúvida em se saber se o réu é traficante ou usuário, deve subsistir a segunda hipótese, como solução benéfica do in dubio pro reo”I (TJSP – AC 133.383-3 – Rel. Egydio de Carvalho – JTJ 140/276).

Embora possuindo o agente razoável quantidade de maconha mas não comprovada, quantum satis, a traficância, a solução mais justa é considerar a droga como para uso próprio (TJSC – AC 16.592 – Rel. Aloysio de Almeida Gonçalves – JC 34/545).

Tráfico de entorpecente – Delito não comprovado – Desclassificação para porte, por ser o acusado viciado – Revisão deferida – Inteligência dos arts. 12 e 16 da Lei 6.368/76 – Embora não fosse pequena a quantidade de tóxico apreendida com o acusado, desclassifica-se a infração no art. 12 para o art. 16 da Lei 6.368/76, se não ficou evidente a sua condição de traficante e de que aquele se destinasse ao comércio maldito. (TACRIM-SP – Ver. – Rel. Silvia Leme – RT 516/338).

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Quanto ao segundo critério, que se refere ao local e às condições em que se desenvolveu a ação, o magistrado ao julgar a conduta do agente deverá levar em conta a forma de armazenamento da droga, se se encontra ou não em invólucros destinados à mercância; ao local em que se encontra tanto a droga, como o agente no momento da flagrância, se o local em questão era local suspeito, se era conhecido por haver tráfico ou reuniões de usuários; se as condições em que foi feita a apreensão do agente era suspeita ou não, à exemplo deste se encontrar na porta de uma escola, no interior de uma festa.

Tratando-se do critério “das circunstâncias sociais e pessoais”, este se refere às condições financeiras do agente, de como este estava vestido, se transparece ser de boa ou má índole, se o agente possui emprego e renda fixa ou se trata de mero desocupado. Nesta linha de pensamento:

Tráfico – Apreensão de grande quantidade de cocaína – Desclassificação pra uso – Inadmissibilidade - Acusado, individuo desocupado e sem emprego fixo – Suficiência, para tanto, da prova do tráfico, conjugando-se a quantidade do entorpecente. (TJSP – AC 124.618-3 – Rel. Cunha Bueno – RJTJSP 138/453).

Entorpecente – Transporte – Denúncia anônima à Polícia Federal – Ônibus, intermunicipal, em que viajava o réu, que é interceptado na estrada – Encontro da droga, com o acusado, que a escondia sob a culpa – Fato corrobado por testemunhas – Quantidade da droga transportada que caracteriza o réu como traficante – Sentença condenatória mantida – Certo que se classifica o traficante pela quantidade exagerada do tóxico. Mas no caso em tela, não há fugir tratar-se de traficante de cocaína: a quantidade, 320,123g, a condição pessoal do réu, ausente capacidade econômica para vinculação ao uso, as condições de sua prisão, ausência total de prova a seu favor, ocupação de ônibus intermunicipal carregando a elevada quantidade de droga, demonstram ser ele traficante. (TJSP – AC 122.729-3/8 – Rel. Renato Talli – RT 691/297).

Finalmente, quanto ao último critério de avaliação a ser feito pelo magistrado, se relaciona com a conduta e aos antecedentes do agente. Neste, basta uma leitura para sua integral interpretação, sendo que a conduta refere-se ao modo com que o agente estava praticando a ação no momento deflagrador. Quanto aos antecedentes do agente, levar-se-á em consideração se o réu já possui condenações pelos crimes dispostos da Lei n. 11.343/2.006.

Quando explorados os critérios dos antecedentes, Bizzoto (2010, p. 82) defende que “somente se houver condenação penal irrecorrível em fatos ligados ao tráfico de drogas é que os antecedentes podem servir de indicador contrário ao consumo e, mesmo assim, desde que haja coerência com os demais elementos de informação colhidos”.

Para que não ocorram obscuridades nas decisões, defende-se que cada caso merece que todos os critérios legais colocados no artigo 28, §2º da Lei 11.343/06 sejam mencionados de forma fundamentada na decisão judicial, sendo que o principio constitucional da presunção da inocência impõe valoração benéfica ao perseguido penal para as situações em que não haja elementos de informação nos autos. 


IV.           LABELLING APPROACH

O labelling approach é denominado na literatura, alternativa e sinonimicamente, pela teoria do interacionismo simbólico, rotulação, paradigma da “reação social”, do “controle” ou como mais conhecido, teoria do etiquetamento.

Coelho e Mendonça (2009, p. 13) conceituam em simples palavras que:

A teoria do labelling approach parte da premissa de que a criminalidade não existe na natureza, não é um dado, mas uma construção da sociedade, uma realidade que decorre de processos de definição e de interação social. O crime passa a ser compreendido não como uma qualidade intrínseca, determinada, e sim como uma decorrência de critérios seletivos e discriminatórios que o definem como tal.

Hassemer (2005, p. 101-102) também conceitua essa teoria:

O labelling approach significa enfoque do etiquetamento, e tem como tese central a idéia de que a criminalidade é resultado de um processo de imputação, a criminalidade é uma etiqueta, a qual é aplicada pela polícia, pelo ministério público e pelo tribunal penal, pelas instâncias formais de controle social. O labeling approach remete especialmente a dois resultados da reflexão sobre a realização concreta do Direito: o papel do juiz como criador do Direito e o caráter invisível do ‘lado interior do ato.

Molina (1996, p. 229), em sua obra, demonstra que há duas formas de labelling, sendo uma radical e uma moderada, onde a tendência radical acentua a função criadora de criminalidade exercida pelo controle social: o crime é uma etiqueta que a polícia, os promotores e os juízes (instâncias do controle social formal) colocam no infrator, independentemente de sua conduta ou merecimento. Enquanto que a moderada afirma que a justiça penal apenas integra uma mecânica formadora da criminalidade. 

Conde e Hassemer destacam que:

Segundo uma versão radical dessa teoria, a criminalidade é simplesmente a etiqueta que se aplica pelos policiais, pelos promotores de justiça e pelos tribunais penais, ou seja, pelas instâncias formais de controle social. Outros representantes desta teoria, menos radicais, reconhecem que os mecanismos do etiquetamento não se encontram somente no âmbito do controle social formal, mas também no informal [...] A direção moderada do intervencionismo simbólico admite que a justiça penal se integra na mecânica do controle social geral da conduta desviada. Isso não constitui exculpação do fato da definição seletiva da criminalidade, mas comporta o reconhecimento de que o sistema penal não leva a cabo o processo de estigmatização à margem ou inclusive contrário aos processos ferais de controle social. Pelo contrário, a direção radical faz uma crítica muito mais devastadora da própria Administração da Justiça, sustentado que é o Direito Penal que faz o delinquente, sem nenhum respeito ao principio da igualdade, pois recai mais fortemente sobre as camadas sociais mais baixas que sobre as demais(2008, p. 111-112).

O labelling approach, segundo os ensinamentos de Pereira de Andrade (2003, p. 208), possui três níveis explicativos para o fenômeno criminológico, sendo eles:

a)              Um nível orientado para a investigação do processo de definição da conduta desviada, ou criminalização primária, que corresponde ao processo de criação das normas penais, em que se definem os bens jurídicos protegidos, bem como as definições informais apresentadas pelo público, onde se pode incluir a mídia (definições de senso comum).

b)              Um nível orientado para a investigação do processo de atribuição do status criminal, ou processo de seleção ou criminalização secundária, sendo tal o processo de aplicação das normas penais pela polícia e pela justiça, sendo este o momento da atribuição das etiquetas ao desviante (etiquetamento ou rotulação), que pode ir desde a simples rejeição social até a reclusão de um indivíduo em uma prisão ou manicômio;

c)              Por fim, um nível orientado para a investigação do impacto de atribuição do status do criminoso na identidade do desviante, definindo o chamado “desvio secundário”, onde se estuda as “carreiras desviadas”, evidenciando que a intervenção do sistema penal, em especial a prisão, ao invés de exercer um efeito reeducativo sobre o delinquente, acaba na grande maioria dos casos consolidando uma verdadeira carreira criminal.

Esse três níveis explicativos podem dar uma luz para o entendimento de como a criminalização das drogas, ao invés de proteger a saúde pública, acaba por criar uma rotina punitiva de “cartas marcadas”, que tem seu início no processo legislativo de aumento de penas e restrições às liberdades individuais daqueles que são escolhidos para responder pela conduta definida como “tráfico de drogas”, bem como a criação de carreiras criminais no sistema penitenciário para estes “etiquetados”.

Para explicar o processo de criminalização secundária, o ponto de partida das teorias da reação social, é que este reside na observação de que o desvio é criado pela própria sociedade.

Não quero dizer com isto o que se compreende normalmente, ou seja, que as causas do desvio estão localizadas na situação social do desviante ou nos “fatores sociais” que induzem a ação. Quero dizer mais do que isso, que os grupos sociais criam o desvio ao fazer as regras cuja infração constitui desvio e ao aplicar essas regras à pessoas particulares e rotulá-las como marginais e desviantes. Deste ponto de vista, o desvio não é uma qualidade do ato que a pessoa comete, mas uma consequência da aplicação por outras pessoas de regras e sanções a um “transgressor”. O desviante é alguém a quem aquele rótulo foi aplicado com sucesso; comportamento desviante é o comportamento que as pessoas rotulam como tal (BECKER, 1977, p. 60).

Para Becker, o fato de alguém infringir uma regra não significa que os outros reagirão como se isso tivesse acontecido, bem como o fato de alguém não violar uma regra não significa que não será ameaçado, em algumas circunstancias como se tivesse feito. Portanto, na definição do desvio, o importante é a resposta dos outros àquele comportamento.

O mesmo comportamento pode ser uma infração de regras num momento e não em outro; pode ser uma infração quando cometido por uma pessoa, mas não quando cometido por outra; algumas regras são quebradas com impunidade, outras não. Em resumo, se um determinado ato é desviante ou não depende em parte da natureza do ato (ou seja, se ele viola ou não uma regra) e em parte do que as pessoas fazem em relação a ele. (BECKER, 1977, p. 64)           

A teoria da rotulação, segundo Becker (1977, p. 64), prossegue ao definir diferentes graus em que outras pessoas reagirão a um ato dado como desviante. Pode-se dizer que o primeiro tipo de variação da resposta encontra-se no fato tempo, já que “uma pessoa que se acredita haver cometido um determinado ato desviante pode, num momento, receber uma resposta muito mais indulgente que em outro momento”.

A reação à posse de drogas, como nos ensina Nilo Batista (1999, p.34) , é um bom exemplo desta variação de respostas no tempo, que vão de um modelo sanitarista ao atual modelo bélico. Para se ter uma ideia, essa conduta de quem tem a posse de substâncias proibidas para uso próprio, já foi tratado pela nossa legislação como sendo fato atípico, fato equiparado ao tráfico, sendo hoje considerada infração de menor potencial ofensivo. Ao passo que, as condutas definidas pelo artigo 33 da Lei 11.343/06 – tráfico de drogas ilícitas – ganharam relevância punitiva ao serem equiparadas a crimes hediondos, a partir da Constituição Federal de 1.988.

Becker (1977, p. 63) ainda diz que “o grau em que o ato será tratado como desviante depende também de quem cometeu o ato e de quem sente que foi prejudicado por ele”, fazendo com que as regras tendam a ser aplicada mais a algumas pessoas do que a outras.

Meninos de áreas de classe média não sofrem um processo legal que vá tão longe quando são presos como garotos das favelas. É menos provável que o menino de classe média, quando apanhado pela polícia, seja levado ao posto policial; é menos provável, quando levado ao posto policial, ele seja fichado; e é extremamente improvável que seja indiciado e julgado. Essa variação ocorre mesmo se a infração original da regra for a mesma nos dois casos.

Na lição da professora Maria Lúcia Karam, a criminalização desigual das condutas definidas como tráfico de drogas é o exemplo vivo da seletividade qualitativa (em razão da qualidade da pessoa ou até mesmo dos países):

A distribuição desigual do status criminoso determina a ideia de criminalidade como um comportamento característico de indivíduos provenientes daquelas camadas mais baixas e marginalizadas, levando à identificação das classes subalternas como classes perigosas. No caso das drogas, pense-se, por exemplo, nas favelas do Rio de Janeiro, em relação às quais se passa a ideia de uma ligação generalizada de seus moradores com o tráfico, reproduzindo-se a mesma linha que, internacionalmente, cria o já mencionado estereótipo delitivo latino-americano. Neste caso de países perigosos, basta lembrar que, quando se fala de drogas, não se pensa, por exemplo, na Suíça, lavando mais branco, mas apenas na Colômbia com seus cartéis, ou na Bolívia, com suas folhas de coca.

As possibilidades de uma pessoa ser etiquetada como delinquente, com todas as consequências que isso implica, encontram-se desigualmente distribuídas.

A teoria do etiquetamento recusa o monismo cultural e o modelo de consenso como explicativos das normas penais, e Da Fonseca (2006, p. 35), defende que as normas penais são decorrentes de um pluralismo, sendo que seu processo de criação não deriva de um amplo consenso social nem é guiado pela efetiva tutela dos interesses gerais, mas sim representam as relações de poder existentes.

É interessante destacar que o labelling nega alguns princípios da criminologia tradicional, como o principio da igualdade, que é considerado a base do direito penal, pois idealiza que todos devem ser tratados iguais perante a lei já que a reação penal se aplica de modo isonômico a todos os autores dos delitos. Este principio é severamente questionado, pois segundo o labelling approach, o desvio e a criminalidade não são entidades ontológicas preconcebidas, mas, ao revés, um status atribuído a determinados sujeitos através dos mecanismos oficiais e não-oficiais de seleção (ANDRADE, 2003, p. 201-203).

Outro princípio que é renegado pelo labelling approach é o princípio do interesse social e do delito natural. Fonseca (2006, p. 32-33) diz que:

Este princípio concebe que os interesses protegidos pelo direito penal são comuns a toda sociedade (delito natural) e apenas uma pequena parte dos delitos representa a violação de determinados arranjos políticos e econômicos, sendo punidos em função da supremacia(ainda que momentânea) deste grupo de poder. Entretanto, a teoria do etiquetamento confronta tal idéia através da localização das variáveis do processo de definição nas relações de poder e nos grupos sociais, tomando em conta a estratificação social e os conflitos de interesse. Há, segundo a teoria em estudo, não apenas uma desigual distribuição do status de criminoso, mas também uma desigual distribuição entre os grupos sociais das pessoas que podem ditar o que é criminalidade. Assim, aqueles que detêm este poder, o fazem em prestígio a ideologia do grupo ao qual pertencem e não em nome dos interesses fundamentais para uma determinada sociedade ou para toda a sociedade. Como conseqüência, aquele aspecto político dos delitos artificiais(diagnosticado pela Defesa Social) é estendido a todos os delitos, como resultado do fenômeno total da criminalidade, como realidade social não preconcebida mas criada através dos processos de criminalização.

Sendo assim, o princípio da finalidade (prevenção) vislumbra na pena o fim preventivo, não apenas o retributivo, visto que deve criar no criminoso o receio da prática do comportamento desviante, o qual questiona-se na medida em que as instituições totais não reeducam, e muito menos ressocializam, pelo contrário, geram sanções estigmatizantes.

O princípio do interesse social e do delito natural, como um dos postulados da ideologia da defesa social, apresentada por Baratta (2002, p. 42), é questionado pelas teorias do conflito que, desenvolvidas sobre a base do labbeling, tratam de localizar as verdadeiras variáveis do processo de definição nas relações de poder e nos grupos sociais, tomando em conta a estratificação social e os conflitos de interesse.

A criminologia da reação social “assenta, pois na recusa do monismo cultural e do modelo de consenso como teoria explicativa da gênese das normas penais”. De acordo com Baratta (2002, p. 42):

A legitimação tradicional do sistema penal como um sistema necessário à tutela de condições essenciais de vida de toda a sociedade civil, além da proteção de bens jurídicos e de valores igualmente relevantes para todos os consórcios, é fortemente problematizada no momento em que se passa – como é lógico em uma perspectiva baseada na reação social – da pesquisa sobre a aplicação seletiva das leis penais à pesquisa sobre a formação mesma das leis penais e das instituições penitenciárias.

A teoria do etiquetamento se propõe a compreender a delinquência não como fenômeno real, mas sim como fenômeno definitorial, como fenômeno atribuído contra os membros das classes sociais marginalizadas por aqueles que manejam o poder. Desta forma, trata-se de uma explicação fatorial da criminalidade, já que esta, como se concebe no labelling, não existe: é um produto inventado. (BARATTA, 2002, p. 88)

É nítido que as desigualdades sociais presentes na sociedade motivaram os processos sociais de etiquetamento e de reação social. Com isso, a teoria do labelling tenta mostrar que o desvio e a criminalidade não são entidades inerentes ao indivíduo, mas sim rótulos que determinados processos de seleção, altamente discriminatórios colocados e direcionados a certos sujeitos por meio de regras impostas pela sociedade.

Becker (2008, p. 15) explica de que forma as regras são feitas e como, em certos momentos, tentam impô-las. Essas regras sociais definem padrões de comportamentos, que apontam uns como certos e proibindo outros como errados, e quando um individuo infringe tal regra é considerado errado pelo grupo.

Segundo Coelho e Mendonça (2009, p. 16), de acordo com o labelling, o processo de rotulação tem inicio com o cometimento do primeiro delito – criminalização primária – onde a sociedade responderá com a celebração de atos punitivos, denominada de cerimônias degradantes. Tais cerimônias são processos ritualizados, onde um indivíduo que cometeu um delito é submetido, e se traduzem no contato com as instâncias de controle formal, polícia, Ministério Público, Judiciário e com o processo, em que uma nova identidade lhe é dada.

Porém, em si nenhuma conduta é criminal, nem seu autor um criminoso por concretos traços de sua personalidade ou influência de seu meio ambiente. A criminalidade é revelada principalmente como sendo um status atribuído a determinadas pessoas mediante um duplo processo: a “definição” legal de crime, que atribui à conduta o caráter criminal, e a “seleção” que etiqueta e estigmatiza um autor como criminoso entre todos aqueles que praticam tais condutas.

Pode-se dizer que são dois os principais problemas de uma teoria da criminalidade: o primeiro é como surge o comportamento desviante; e o segundo, como os atos desviantes são ligados simbolicamente, e as consequências efetivas desta ligação para os desvios sucessivos por parte da pessoa. Baratta apud Lemert (2002, p. 90) sustenta que enquanto houver o desvio primário se reporta, pois, a um contexto de fatores sociais, culturais e psicológicos, que não se centram sobre a estrutura psíquica do indivíduo, e não conduzem, por si mesmos.

Em tese os grupos criam o desvio ao fazer as regras cuja infração constitui o desvio e aplicar as ditas regras a certas pessoas em particular e qualifica-las de marginais (estranhos). Desde esse ponto de vista, o desvio não é uma qualidade do ato cometido pela pessoa, senão uma consequência da aplicação que os outros fazem das regras e sanções para um ofensor. O desviante é uma pessoa a quem se pode aplicar com êxito dita qualificação (etiqueta). A conduta desviante é a conduta assim chamada pela gente. (ANDRADE, 2003, p. 41).

Desta forma, a rotulação seria o processo pelo qual um papel desviante se cria e se mantém através da imposição dos rótulos delitivos.

A título de exemplo, imagine dois jovens – um branco, de classe média, vestido como “playboyzinho” típico dos bairros nobres; outro negro e pobre, de camiseta surrada, bermuda velha, boné virado e sandália de dedo – estão em uma padaria no momento em que uma senhora dá pela falta de sua carteira, deduz que a furtaram e pede socorro. Um policial que estava à paisana na padaria, puxa a arma e ordena que ninguém saia da padaria. O policial dirige-se à porta, passa os olhos de águia em sobrevoo pelos fregueses e escolhe o suspeito. Não preciso lhe dizer quem foi brindado pela sorte, ou pelo azar. Todos os fregueses se retiram do estabelecimento, enquanto o policial revista o jovem negro e malvestido.

O outro rapaz escapa trêmulo, e lívido, mas sem dar bandeira. Carrega no bolso várias trouxinhas de maconha que acabara de comprar no morro próximo à padaria para servir aos convidados em sua festa de aniversario. Seu nervosismo não se justifica. Ele sabe, pela experiência de seus amigos, que, se fosse pego, nada lhe aconteceria. Seria levado à delegacia, autuado, mas, apesar de a quantidade permitir o enquadramento no crime de tráfico, seria liberado, porque os policiais – assim como o juiz, depois deles – aceitariam suas explicações de que comprara um pouco mais somente para estoque pessoal, evitando idas e vindas à favela. Se os policiais não aceitassem sua explicação, seu pai os convenceria com os fortes argumentos de sua conta bancária. E o caso nem chegaria ao conhecimento do juiz.

Já o rapaz malvestido, o qual não havia furtado a carteira da senhora, e nunca furtara na vida, porém estava servindo de aviãozinho, se encontrava com a mesma quantidade de drogas que o rapaz bem de vida. O menino tenta se explicar para a polícia, mas as trouxinhas são numerosas e permitem seu enquadramento no crime de tráfico. O garoto grita, esperneia, e leva uns tapas do policial. Pedestres se aglomeram, e inclusive alguns querem linchá-lo.

A Constituição proclama que todos são iguais perante as leis, por isso, em nosso pais vigora o Estado democrático de direito. O que ocorre na prática é que, uns são “mais iguais” que outros. A desigualdade no acesso à Justiça é nosso maior motivo de vergonha perante o que se convencionou chamar “mundo civilizado” e constitui a mais mesquinha, cínica e cruel manifestação de desrespeito coletivo que ainda toleramos no Brasil.

Essa desigualdade começa com a abordagem policial (que varia de acordo com a classe social, cor da pele, vestuário, idade e gênero abordado) e termina com a sentença determinada pelo juiz, e o cumprimento da pena, mas também passa pela eficiência na garantia de direitos, que varia de acordo com a classe social daqueles que os reivindicam.

É nítido habitualmente, que são vários mecanismos os responsáveis por propagar e vincular a conduta dita como desviada à criminalizada, onde destaca-se como um dos principais percussores a mídia, responsável por atingir todas as camadas sociais, levando noticias e influenciando como se tudo que ali fosse dito fosse consenso, e ainda categorizando os que ali estão sendo noticiados como bons ou maus.

Do que foi exposto, pode-se afirmar que somente será considerada desviante, a conduta que a sociedade e seus órgãos punitivos decidem perseguir como tal. A partir dessa etiqueta que lhe é colocada o individuo passa a ser criminoso, e não exatamente pelo ato por ele praticado.

Sobre a autora
Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

GODOY, Gabriella Talmelli. Seletividade penal na Lei de Drogas - Lei n. 11.343/2006. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 19, n. 3919, 25 mar. 2014. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/27071. Acesso em: 23 dez. 2024.

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