Símbolo do Jus.com.br Jus.com.br
Artigo Selo Verificado Destaque dos editores

O direito ao (não) esquecimento como um direito humano

Exibindo página 1 de 3
Agenda 04/09/2014 às 12:22

Além da falta de normatização específica no Brasil em relação ao direito ao esquecimento, a jurisprudência e a doutrina sobre o assunto é ainda ínfima, não constituindo um consenso sobre a matéria.

Resumo: O presente trabalho tem como objetivo a análise do direito ao esquecimento, em especial, se seu desrespeito afetaria a dignidade da pessoa humana, verificando-se o enquadramento desse direito como um direito humano. Examina-se também a doutrina e a jurisprudência no Brasil e em alguns outros países. O método utilizado para o desenvolvimento do trabalho permitiu um aprofundamento no tema do direito ao esquecimento, que é tão atual e relevante, adentrando na liberdade de expressão, no direito à informação, na dignidade da pessoa humana e no direito à privacidade. Ademais a Lei da Anistia foi considerada uma forma de aplicação do direito ao esquecimento expondo as consequências negativas desse instituto, bem como o perigo que essa amnésia geraria para a Sociedade. Com a realização desse estudo, constatou-se que, apesar de outros países já estarem mais avançados na discussão do direito ao esquecimento, no Brasil esse assunto ainda precisa ser mais debatido para se ter um respaldo legal, que dê segurança jurídica à sociedade.

Palavras-chave: Direito ao Esquecimento. Direitos Humanos. Direito à informação. Dignidade da Pessoa Humana. Lei da Anistia.


1 INTRODUÇÃO

Ao longo da história, a população se deparou com a maldade do ser humano, a falta de empatia de criminosos para com outros indivíduos em casos que apavoraram toda sociedade, e surgiram questionamentos acerca da necessidade de reviver histórias que causam grandes sofrimentos às partes envolvidas nos casos, a fim de levar ao conhecimento do público em geral essas atrocidades.

O presente estudo aborda o tema do Direito ao Esquecimento, mais especificamente acerca da edição do Enunciado 531 da VI Jornada de Direito Civil do Centro de Estudos Judiciários do Conselho da Justiça Federal, o qual determina que: “A tutela da dignidade da pessoa humana na sociedade da informação inclui o direito de esquecimento”, tendo como justificativa assegurar a possibilidade de discussão do uso que é dado aos fatos passados, especificamente o modo e a finalidade com que são recordados. [1]

O Enunciado faz parte de uma orientação doutrinária, ou seja, é o entendimento majoritário de doutrinadores convocados, que ao interpretarem o Código Civil, nesse caso, incluíram o direito ao esquecimento como um direito de personalidade (artigo 11 do Código Civil).

A discussão acerca do direito ao esquecimento tomou grandes proporções ao ser ponderado através de dois recursos especiais, no ano de 2013, tendo em vista ter sido a primeira vez que uma corte superior discutiu esse tema no Brasil. Diante da recente análise do Superior Tribunal de Justiça frente ao direito ao esquecimento, trata-se de um tema atual por ainda não ter legislação regulamentadora sobre o assunto e suas consequências, proibindo-a ou autorizando-a, nem jurisprudência firmada sobre o assunto, apesar da extrema relevância do tema, provocando incerteza de como proceder nesses casos.

A partir da análise dos recursos especiais é possível verificar a existência de um contraponto: de um lado temos o princípio da Dignidade da Pessoa Humana, assegurado no Art. 1º, III da Constituição Federal[2] e o direito fundamental à Privacidade (Art. 5º, X, CF); e de outro a Liberdade de Expressão do Art. 5º, IX da CF e o direito fundamental à Informação (Art. 5º, XIV, CF).

Desse modo, a escolha do presente tema justifica-se devido à atualidade e a sua importância para a Sociedade, pois se ele for pacificado e tratado em norma própria, trará uma mudança significativa para o modo como fatos históricos são retratados nos meios de comunicação, podendo, assim, gerar um avanço para as questões dos direitos humanos. Pretende-se dessa forma contribuir na discussão sobre o tema proposto.

A discussão acerca do presente tema também é necessária a fim de compreender a abrangência do direito de esquecer, o modo como os meios de comunicação retratam fatos pretéritos, bem como da discussão em outros países acerca desse tema.

O presente trabalho, assim, tem como objetivo geral analisar se o desrespeito ao direito ao esquecimento afetaria a dignidade da pessoa humana. Tal abordagem iniciará no segundo capítulo, onde serão tratados os direitos humanos na sua conceituação, além do princípio da dignidade humana. Já no terceiro capítulo será considerado o direito à informação, mais especificamente a liberdade de imprensa, bem como uma análise acerca da Lei da Anistia. Ademais, no quarto capítulo, será abordado o direito ao esquecimento, questão principal do presente estudo, perpassando os casos de maior repercussão do assunto, além de algumas considerações acerca do entendimento de outros países quanto ao presente caso.


2 DIREITOS HUMANOS           

A questão sobre o direito ao esquecimento ser um direito humano é recente, tendo em vista que os direitos humanos não têm sua classificação estagnada, imutável, estando em constante evolução, conforme apontado por Norberto Bobbio:

[...] os direitos do homem, por mais fundamentais que sejam, são direitos históricos, ou seja, nascidos em certas circunstâncias, caracterizadas por lutas em defesa de novas liberdades contra velhos poderes, e nascidos de modo gradual, não todos de uma vez e nem de uma vez por todas. [3]

Assim, se os “direitos não nascem todos de uma vez. Nascem quando devem ou podem nascer” [4], o direito ao esquecimento pode ser um novo direito a ser classificado como direito humano.

Nesse sentido, José Afonso da Silva leciona que enunciados das declarações de direitos reconhecendo explicitamente direitos fundamentais do homem é algo recente “e está longe de se esgotarem suas possibilidades, já que cada passo na etapa da evolução da Humanidade importa na conquista de novos direitos” [5].

Portanto, primeiramente, faz-se necessário tecer algumas considerações acerca da diferenciação que os doutrinadores fazem entre direitos humanos e direitos fundamentais, tratando sobre o conceito de direitos humanos, além de fazer referência ao princípio da dignidade da pessoa humana, o que será visto a seguir.

2.1 CONCEITO DE DIREITOS HUMANOS

São muitos os conceitos sobre direitos humanos. De forma geral, entende-se como normas essenciais para que o homem consiga viver em sociedade com dignidade, tendo sido resultado de lutas históricas contra regimes de opressão, “o que desencadeou uma série de valores que, segundo o consenso contemporâneo, devem estar presentes em qualquer sociedade.” [6].

A dificuldade que se tem em definir precisamente o que são direitos humanos ocasiona-se pela extensa quantidade de expressões que são tratadas como sinônimos de direitos fundamentais. Dentre as várias expressões, as que denotam uma maior relevância é a distinção entre direitos fundamentais e direitos humanos.

Essas duas expressões são confundidas, principalmente, por ter um mesmo titular de direitos, qual seja o ser humano, no entanto há uma distinção essencial que consiste no termo direitos fundamentais ser utilizado para direitos dentro do ordenamento jurídico de cada Estado e o termo direitos humanos ter referência a direitos no âmbito internacional, não necessitando de uma vinculação com alguma ordem constitucional, demonstrando, assim, este último, um “caráter supranacional (internacional)”  [7].

Paulo Hamilton Siqueira Jr., ao fazer uma diferenciação entre direitos humanos e fundamentais refere que: “Os direitos humanos são válidos para todos os povos e em todos os tempos. Os direitos fundamentais são os jurídico-institucionalizados, garantidos e limitados no tempo e no espaço.” [8].

Ainda, existe na doutrina a divisão dos direitos humanos em três dimensões. A primeira dimensão diz respeito aos direitos de liberdade, direitos civis e políticos, que representam direitos de oposição perante o Estado, por terem o indivíduo como titular [9].

De acordo com Alexandre de Moraes, a primeira geração corresponde aos: “[...] direitos e garantias individuais e políticos clássicos (liberdades públicas) [...]”, sendo consolidados institucionalmente a partir da Magna Carta [10].

Fique sempre informado com o Jus! Receba gratuitamente as atualizações jurídicas em sua caixa de entrada. Inscreva-se agora e não perca as novidades diárias essenciais!
Os boletins são gratuitos. Não enviamos spam. Privacidade Publique seus artigos

Quanto aos direitos de segunda dimensão, Miguel Augusto Machado de Oliveira refere que são os direitos econômicos, sociais e culturais, os quais necessitam do Estado o exercício de sua função de garantidor de forma positiva, com sua intervenção, levando-se em consideração o princípio da igualdade [11].

Já a terceira dimensão tem relação com direitos de solidariedade/ fraternidade, que “englobam o direito a um meio ambiente equilibrado, a uma saudável qualidade de vida, ao progresso, à paz, à autodeterminação dos povos e a outros direitos difusos [...]” [12]. Carlos Weis acrescenta que essa dimensão correlaciona com direitos referentes a toda humanidade [13].

Essas três dimensões dos direitos humanos são pacíficas na doutrina, no entanto há reflexão acerca da existência de uma quarta dimensão de direitos, a qual teria relação com o desenvolvimento da globalização política, tendo como exemplo os direitos à democracia, informação e pluralismo [14].

Paulo Bonavides explica que “a globalização política na esfera da normatividade jurídica introduz os direitos da quarta geração, que, aliás, correspondem à derradeira fase de institucionalização do Estado social” [15]. Ademais, acrescenta que a quarta dimensão concentra o futuro com a liberdade dos povos, sendo indispensáveis para a globalização política referida anteriormente [16].

Todavia, Tatiana Stroppa faz a seguinte ressalva:

[...] é preciso deixar claro que uma dimensão não se sobrepõe à outra, ou seja, os direitos de uma dimensão posterior não são mais importantes que os da anterior. Além disso, o contínuo reconhecimento de direitos não significa que os elencados em uma dimensão anterior tenha conseguido uma plena efetividade.

[...]

Na verdade, eles se interpenetram e revelam uma interconexão resultante da maior abrangência dada, paulatinamente, ao conceito de dignidade da pessoa humana. Tanto assim que, hodiernamente, fica cada vez mais patente que o desfrutar efetivo dos direitos de uma dimensão anterior depende do reconhecimento e da efetividade da proteção dos demais [...].[17]

A seguir, será analisado o conceito de dignidade da pessoa humana, bem como sua ligação com o direito à privacidade.

2.2 DIGNIDADE DA PESSOA HUMANA E DIREITO À PRIVACIDADE

O princípio da dignidade da pessoa humana, também chamado de princípio da humanidade, encontra-se disseminado ao longo do texto constitucional, sendo um dos fundamentos do Estado Democrático de Direito [18]. Esse princípio reproduz ideais humanitários inseridos desde 1948 na Declaração Universal dos Direitos Humanos, segundo a qual, em seu Artigo I, “todas as pessoas nascem livres e iguais em dignidade e direitos” [19].

A dignidade, portanto, é uma qualidade essencial aos humanos e deve ser “reconhecida, respeitada, promovida e protegida, não podendo, contudo (no sentido ora empregado) ser criada, concedida ou retirada (embora possa ser violada), já que existe em cada ser humano como algo que lhe é inerente” [20].

Essa dignidade inerente ao ser humano é a base para os direitos humanos, conforme explica Paulo Hamilton Siqueira Júnior:

A evolução histórica dos direitos humanos está adstrita à luta da humanidade pela afirmação da dignidade da pessoa humana. Essa luta encontra fundamento respectivamente no campo religioso, filosófico e científico. A conclusão é que o alicerce dos direitos humanos é a dignidade da pessoa humana. O desafio dos direitos humanos é a sua conscientização, o meio mais eficaz da sua plena realização. [21]

Ademais, a dignidade da pessoa humana está atrelada aos direitos humanos, pois foi a partir de violações de direitos humanos, como, por exemplo, o regime nazista, o fascista e o ditatorial, que se viu a necessidade de reconhecer expressamente a proteção da dignidade. Nesses termos, explica Marcelo Novelino:

A escravidão, a tortura e, derradeiramente, as terríveis experiências feitas pelos nazistas com seres humanos, fizeram despertar a consciência sobre a necessidade de proteção da pessoa, com o intuito de evitar sua redução à condição de mero objeto. [22]

Outrossim, em virtude dessa vinculação dos direitos humanos com a dignidade da pessoa humana, na Constituição brasileira, a dignidade foi elevada a valor supremo constitucional, que inspira toda a ordem jurídica, englobando “o conteúdo de todos os direitos fundamentais do homem” [23].

Cabe ressaltar também que o princípio da dignidade da pessoa humana deve ser aplicado de modo que não resulte nem em desrespeito a valores igualmente fundamentais e constitucionais nem em medidas demasiadamente brandas, porquanto inofensivas. Ao versar sobre os meandros da relativização dos direitos humanos, Ingo Wolfgang Sarlet esclarece que:

[...] o princípio da dignidade da pessoa impõe limites à atuação estatal, objetivando impedir que o poder público venha a violar a dignidade pessoal, mas também implica (numa perspectiva que se poderia designar de programática ou impositiva, mas nem por isso destituída de plena eficácia) que o Estado deverá ter como meta permanente, proteção, promoção e realização concreta de uma vida com dignidade para todos [...]. [24]

Esse caráter dúplice do princípio da dignidade da pessoa humana reflete em um limite e uma tarefa aos poderes estatais [25]. Dessa forma, Ingo Wolfgang Sarlet ressalta que o princípio da dignidade da pessoa humana é utilizado também para justificar ações que venham a restringir direitos fundamentais, atuando o princípio como limitador desses direitos fundamentais [26].

Por conseguinte, sendo ele um limitador de direitos fundamentais, surge então a questão: A dignidade da pessoa humana é um princípio absoluto?

No entendimento de Ingo Wolfgang Sarlet, existe uma relativização da dignidade da pessoa humana quando se trata de conflito entre a dignidade de um indivíduo com outro. Admite-se, então, uma “certa relativização, desde que justificada pela necessidade de proteção da dignidade de terceiros” [27]. Ou seja, ao se deparar com dignidades em conflito, uma pode ser “superada” a fim de proteger várias dignidades.

Por outro lado, a dignidade da pessoa humana não é algo isolado, uma vez que engloba os direitos de personalidade [28], os quais possuem uma dimensão geral, relacionada a manifestações de personalidade humana, e uma específica, abarcando o direito ao nome, à imagem, à privacidade [29].

Portanto, atrelado ao princípio da dignidade da pessoa humana está o direito à privacidade, constante no art. 5º, X da CF, que se refere principalmente ao direito à proteção da própria imagem quando vinculada em meios de comunicação [30].

Ademais, Anderson Schreiber menciona que o direito à intimidade está inserido no direito à privacidade, uma vez que esse direito tutela além da proteção à vida íntima da pessoa, a proteção a seus dados pessoais [31].

A privacidade abarca igualmente a proteção à imagem das pessoas, sendo esta corriqueiramente desrespeitada, em virtude da grande quantidade de meios de comunicação existentes, em especial, a internet e a televisão [32]. Como tentativa de inibir a divulgação de imagens ou fatos pessoais que tenha intuito de explorar comercialmente o produto, buscando uma maior “audiência”, sem a autorização da pessoa exposta, é atribuída ao autor da divulgação responsabilidade pela indenização de danos morais e materiais, quando houver [33].

Desse modo, o direito à privacidade é um dos limites à liberdade dos meios de comunicação [34], que será tratada no capítulo seguinte, tendo previsão expressa dessa limitação no artigo 220, § 1º da CF.

É possível, portanto, que seja aplicado sempre o direito à privacidade, de forma absoluta, sem observância de outros fatores? Anderson Schreiber afirma que não é possível, uma vez que:

[...] a privacidade se sujeita, como qualquer outro direito da personalidade, a ponderações que, à luz das circunstâncias concretas, a fazem ora prevalecer, ora ceder passagem a outros interesses que, também voltados à realização e desenvolvimento da pessoa humana, mostram-se merecedores de igual proteção pela ordem jurídica. [35]

Logo, podemos concluir que assim como o princípio da dignidade da pessoa humana, o direito à privacidade também é uma questão que deve ser analisada em seu conjunto, a fim de avaliar qual a melhor solução em cada caso.

No próximo capítulo, discutiremos o direito à informação, liberdade de expressão e sua relação com a Lei da Anistia.


3 DIREITO À INFORMAÇÃO

Os fatos devem ser noticiados para o público, tanto aqueles que ocorreram há muito tempo, quanto os que acontecem atualmente. É importante a sociedade ter acesso a essas informações para que eventos desastrosos, situações de perigo não se revelem, mais uma vez, nos mesmos moldes que outrora.

Esse direito às informações, garantido pelos artigos 5º, XIV e 220 da CF, possui duas vertentes, uma que diz respeito à garantia de liberdade na divulgação da informação e outra concernente à liberdade de acesso à informação [36]. No entanto, só estão protegidos por esse direito apenas fatos verdadeiros, objetivos e claros [37].

A fim de esclarecer o conceito de liberdade de informação, Otávio Piva diferencia a liberdade de informação da liberdade de manifestação do pensamento. Menciona que a primeira liberdade, prevista no art. 5º, XIV da CF, exige que a transmissão de informações seja “exata e verificável, inclusive com a divulgação das fontes, na medida em que o sigilo é exceção que só se permite em casos de necessidade profissional” [38]. Já na liberdade de manifestação de pensamento, prevista no art. 5º, IV da CF, “não há, necessariamente, compromisso com a veracidade das idéias manifestadas” [39].

Ainda, Tatiana Stroppa ressalta que a liberdade de manifestação de pensamento “visa assegurar um livre fluxo de informações na sociedade, mais como garantia da opinião pública do que da opinião pessoal” [40].

Assim, o direito à informação deve ser analisado conjuntamente com o direito à privacidade, tratado no capítulo anterior, com o intuito de evitar a responsabilização, da pessoa que divulgou os dados, por danos materiais e morais. Contudo, sendo verdadeiras essas informações, constitui-se um direito de liberdade dirigido a todas as pessoas, sem qualquer distinção [41].

Desse modo, com o acesso a informações, sendo amplamente divulgados esses acontecimentos, acarretará numa mudança das regras de segurança, pela população ou pelo Estado, ao longo do tempo, a fim de ficar “em estado de alerta” para que tragédias não sejam repetidas, e também, com essa investida crescente na propagação de informações de interesse público, possibilitará um avanço significativo quanto à transparência de aspectos do passado.

No entanto, ainda verifica-se o receio na divulgação de fatos pretéritos usando como subterfúgio a parte final do inciso XXXIII, do artigo 5º da CF, o qual prevê que todos têm o direito de receber informações dos órgãos públicos, “ressalvadas aquelas cujo sigilo seja imprescindível à segurança da sociedade e do Estado” [42].

Diante dessa ressalva na parte final, Uadi Lammêgo Bulos traz os seguintes questionamentos:

[...] que matérias podem ser consideradas imprescindíveis à segurança do Estado e da sociedade? Até onde vai o direito de receber dos órgãos públicos informações? Por que manter em segredo dados da própria pessoa, a exemplo daqueles contidos em arquivos da ditadura ou nas famosas listas de desaparecidos do regime militar? [43]

No entanto, o autor relata que tais dúvidas “não foram respondidas, mesmo diante das inúmeras tentativas de regulamentar o assunto” [44] e cita como um dos exemplos o Decreto nº 5.584/2005 [45].

Tal Decreto instituiu grupos para fazer a organização e classificação de informações produzidas na ditadura e, a partir de 31 de dezembro de 2005, “documentos secretos produzidos durante a ditadura militar e mantidos em sigilo pela Agência Brasileira de Inteligência (ABIN) ficaram ao dispor da população no Arquivo Nacional do Rio de Janeiro” [46].

Em seguida, contudo, o autor supracitado faz a seguinte observação:

Os documentos considerados “ultrassecretos”, porém, que possam trazer risco para a sociedade e para o Estado, e aqueles que causem danos à imagem das pessoas continuarão sob sigilo, nos termos da Lei n. 8.159, de 8 de janeiro de 1991, que regula a política nacional de arquivos públicos e privados. Ela estabelece que tais documentos “são originariamente sigilosos”. [47]

Assim, o Decreto mencionado foi uma das tentativas frustradas de regulamentar o direito de receber informações dos órgãos públicos, uma vez que permanecem ainda os questionamentos levantados pelo autor.

Portanto, será verificado a seguir quão “livremente” esses episódios podem ser veiculados em meios de comunicação, bem como algumas considerações acerca da Lei da Anistia.

3.1 LIBERDADE DE EXPRESSÃO

O direito à informação, explicitado acima, assim como a liberdade de imprensa e a liberdade de manifestação de pensamento, além de outros, estão inseridos no âmbito da Liberdade de Expressão [48], prevista expressamente no artigo 5º, IX da CF.

A liberdade de expressão possui duas dimensões: uma substantiva referente ao ato de pensar; e uma instrumental correspondente ao meio utilizado para divulgar o pensamento [49]. Quanto à primeira dimensão, é possível afirmar que “diz respeito à autodeterminação do indivíduo, sensivelmente conectada com a dignidade da pessoa humana” [50], uma vez que, ao analisar opiniões manifestadas por terceiros, a pessoa pode vir a refletir e formar sua própria convicção [51].

Sobre esse assunto, Paulo Gustavo Gonet Branco leciona que a formação plena da personalidade depende do conhecimento da realidade, assim, a liberdade de expressão é “enaltecida como instrumento para o funcionamento e preservação do sistema democrático (o pluralismo de opiniões é vital para a formação de vontade livre)” [52].

Nessa linha, Tatiana Stroppa acrescenta que:

[...] para que uma pessoa possa formar e expressar, conscientemente, suas opiniões, idéias e até sentimentos, ela precisa conhecer a realidade na qual está inserida, o que depende do acesso às informações, que se revelam como alicerces para que seja possível a construção de escolhas pessoais livres e autônomas. [53]

Quanto à segunda dimensão da liberdade de expressão, é viável condensá-la na “possibilidade de eleger o meio mais adequado para veicular, transmitir as opiniões e idéias emitidas pelo indivíduo, com a finalidade de que se atinja certo número de receptores, o que, aliás, está ínsito à própria idéia de expressão” [54]. Esta dimensão é considerada muito importante, em virtude da dimensão substantiva se tornar completa através do ato de comunicação, da exteriorização do pensamento, os quais são satisfeitos com a dimensão instrumental [55].

Ao decidir sobre qual assunto vai se expressar, bem como por qual meio irá transmitir suas opiniões, sua manifestação não pode sofrer nenhum tipo de censura. Acerca dos tipos de censura, José Afonso da Silva diz que existe a censura prévia e a censura posterior. A censura prévia está relacionada com a “intervenção oficial que impede a divulgação da matéria” [56].

Já a censura posterior, está vinculada à “intervenção oficial que se exerce depois da impressão, mas antes da publicação, impeditiva da circulação de veículo impresso” [57].

A despeito de haver previsão constitucional de proibição à censura, essa não é absoluta, conforme expõe Alexandre de Moraes, pois “a responsabilização posterior do autor e/ou responsável pelas notícias injuriosas, difamantes, mentirosas sempre será cabível, em relação a eventuais danos materiais e morais” [58].

Quanto ao caráter relativo da liberdade de expressão, Inocêncio Mártires Coelho explica que ao haver a concorrência entre liberdade de expressão e o direito à privacidade deve-se entender que: “integrados na mesma Constituição, esses valores não são absolutos, antes se tornam mutuamente relativos” [59].

À vista disso, os ideais expostos na liberdade de expressão podem sofrer “limitações se e na medida em que atentarem, desproporcionalmente, contra outros direitos protegidos constitucionalmente” [60]. Logo, é necessário ponderar em cada caso qual princípio deve prevalecer, em virtude da proporcionalidade.

A seguir será tratado como a Lei da Anistia serviu como uma forma de esquecimento, como um limitador ao direito à informação e à liberdade de expressão.

3.2 LEI DA ANISTIA

A Lei da Anistia (Lei nº 6.683/79) surgiu no final da Ditadura Militar para perdoar os crimes políticos cometidos tanto pelos civis, quanto pelos militares (representando o Estado). Assim, o propósito dessa lei, além da anistia, era de apaziguar os ânimos da população para que a transição para a fase da Democracia fosse completada sem incidentes.

Por outras palavras, podemos resumir que tal:

[...] norma anistiou todos que haviam cometido “crimes políticos” entre 1961 e 1979. Opositores foram perdoados, exilados voltaram. Desde então, agentes do Estado acusados de sequestro, tortura, assassinato e ocultação de cadáver também passaram a recorrer a ela para evitar punições. Eles alegam que se tratou de uma espécie de pacto nacional pelo esquecimento recíproco das violências. Juridicamente, citam um trecho da lei segundo o qual a anistia também vale para “crime conexo”. [61]

Mas o que seria esse “crime conexo” que autorizaria crimes violadores de direitos humanos? Há, quanto a esse aspecto, divergência no tocante ao significado dessa expressão:

Para os acusados de tortura, conexos seriam todos aqueles crimes praticados no contexto geral da disputa política da época, independentemente do lado em que estavam. Para os defensores da revisão da lei, essa interpretação não faz sentido jurídico, já que, na prática, representaria uma autoanistia. [62]

Ainda sobre a enigmática expressão “crimes conexos”, Carlos Fico afirma, em seu artigo acadêmico exibido na revista “Anistia - política e justiça de transição”, que tal termo:

[...] não encobria apenas a inclusão dos torturadores, mas abrangia todos os crimes praticados pelos militares por motivação política, inclusive aqueles que afrontaram o ordenamento jurídico brasileiro com as diretrizes secretas que criaram o sistema de repressão - ordens emanadas dos gabinetes de oficiais generais. [63]

Diante desse conflito de interpretação, o Supremo Tribunal Federal, ao analisar o assunto em 2010, “decidiu que a Lei da Anistia também valia para os torturadores do regime militar” [64].

Essa decisão do Supremo impediu a busca das famílias pela condenação de agentes da repressão brasileira. Desse modo, não havendo mais possibilidade de recurso interno, o caso foi levado à Corte Interamericana de Direitos Humanos da Organização dos Estados Americanos, em dezembro de 2010, que:

[...] entendeu que a Lei de 1979 configura-se como uma autoanistia para os agentes do regime e, mais ainda, funciona como mecanismo de impunidade frente a graves violações de direitos humanos não passíveis de anistia segundo a Convenção de San José da Costa Rica. Em seu acórdão, a Corte não apenas considerou ilegal e nula de qualquer efeito a Lei de Anistia para o caso em análise (Caso nº 11.552, Gomes Lund e outros versus Brasil, mais conhecido como caso “Guerrilha do Araguaia”), como estabeleceu que a mesma lei não poderia obliterar a investigação e o processamento de qualquer outro crime de Estado. [65]

No presente trabalho não se tem como objetivo avaliar se os torturadores deveriam ser devidamente processados e julgados (entendo que deveriam), mas o direito da população de ser informada do que aconteceu nesse e em outros períodos, para que tais atrocidades não voltem a acontecer.

Porém, com o fim da Ditadura em 1985 e o restabelecimento da Democracia, a partir da edição da Constituição Federal de 1988, os arquivos e todo material elaborado pelos militares, enquanto estavam no poder, foram escondidos, destruídos ou “desapareceram”.

Esses documentos não podem ser ocultados do público, pois, com o acesso a todas essas informações, a Sociedade terá uma noção mais clara da situação na época, das atrocidades cometidas em nome do Estado, das restrições aos direitos individuais e do esquecimento dos direitos humanos. Com essa transparência, o povo não ficará alienado, podendo, então, influir na política e decidir o melhor para seu país, não deixando a nação retroceder às barbáries.

Consequentemente, o direito à informação é um importante instrumento formador de opinião, o qual é uma garantia de todos, portanto se ele não ofende a honra, a imagem e a intimidade de terceiros, bem como não seja essencial para a proteção do interesse público, então não pode ser restringido.

Por conseguinte:

[...] assiste, a toda a sociedade, o direito de ver esclarecidos os fatos ocorridos em período tão obscuro de nossa história, direito este que, para ser exercido em plenitude, não depende da responsabilização criminal dos autores de tais fatos, a significar, portanto, que a Lei nº 6.683/79 não se qualifica como obstáculo jurídico à recuperação da memória histórica e ao conhecimento da verdade. [66]

Atrelado a esse anseio pelo esclarecimento de fatos, pela preservação da memória histórica está o chamado direito ao (não) esquecimento. Desse modo, serão apresentados dois casos, julgados pelo Superior Tribunal de Justiça, que tratam da aplicação desse direito.

Sobre a autora
Jamile Magalhães Barreto Fontes

Advogada.<br>Graduada no Curso de Graduação em Direito na Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul – PUCRS.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

FONTES, Jamile Magalhães Barreto. O direito ao (não) esquecimento como um direito humano. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 19, n. 4082, 4 set. 2014. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/31543. Acesso em: 26 dez. 2024.

Publique seus artigos Compartilhe conhecimento e ganhe reconhecimento. É fácil e rápido!