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Os desaparecidos políticos e os crimes permanentes diante de decisão do Supremo Tribunal Federal

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Agenda 03/10/2014 às 08:58

3. A QUESTÃO DA PRIMAZIA DA NORMA MAIS FAVORÁVEL EM MATÉRIA DE DEFESA DE DIREITOS HUMANOS

A lição que se tem é de que a chamada primazia da norma mais favorável significa que deve ser aplicada pelo intérprete necessariamente a norma que mais favoreça o indivíduo. Assim, a primazia da norma mais favorável nos leva a aplicar que a norma internacional quer a norma interna, a depender da que seja a mais favorável ao indivíduo.

Tal princípio é verdadeiro dispositivo convencional internacional, uma verdadeira clausula tradicional insculpida nos tratados internacionais de direitos humanos.

Cito aqui a lição de Cançado Trindade11 para quem no Direito Internacional dos Direitos Humanos encontra-se superada a polêmica entre monistas e dualistas.

Disse ele:

¨No presente domínio de proteção, não mais há pretensão de primazia do Direito Internacional ou do Direito Interno, como ocorria na polêmica clássica e superada entre monistas e dualistas. No presente contexto, a primazia é da norma mais favorável às vítimas que melhor as proteja, seja ela norma de Direito Internacional ou de Direito Interno.¨

É salutar lembrar as observações de Cançado Trindade:

“A disposição do artigo 59 (2) da Constituição Brasileira vigente, de 1988, segundo a qual os direitos e garantias nesta expressa não excluem outros decorrentes dos tratados internacionais em que o Brasil é parte, representa, a meu ver, um grande avanço para a proteção dos direitos humanos em nosso país. Por meio deste dispositivo constitucional, os direitos consagrados em tratados de direitos humanos em que o Brasil seja parte incorporam-se ipso jure ao elenco dos direitos constitucionalmente consagrados. Ademais, por força do artigo 5° (1) da Constituição, têm aplicação imediata. A intangibilidade dos direitos e garantias individuais é determinada pela própria Constituição Federal, que inclusive proíbe expressamente até mesmo qualquer emenda tendente a aboli-los (artigo 60 (4) (IV). A especificidade e o caráter especial dos tratados de direitos humanos encontram-se, assim, devidamente reconhecidos pela Constituição Brasileira vigente. Se, para os tratados internacionais cm geral, tem-se exigido a intermediação pelo Poder Legislativo de ato com força de lei de modo a outorgar a suas disposições vigência ou obrigatoriedade no plano do ordenamento jurídico interno, distintamente, no tocante aos tratados de direitos humanos em que o Brasil é parte, os direitos fundamentais neles garantidos passam, consoante os parágrafos 2 e 1 do artigo 5° da Constituição Brasileira de 1988, pela primeira vez entre nós a integrar o elenco dos direitos constitucionalmente consagrados e direta e imediatamente exigíveis no plano de nosso ordenamento jurídico interno. Por conseguinte, mostra-se inteiramente infundada, no tocante em particular aos tratados de direitos humanos, a tese clássica — ainda seguida em nossa prática constitucional — da paridade entre os tratados internacionais e a legislação infraconstitucional. Foi esta a motivação que me levou a propor à Assembléia Nacional Constituinte, na condição de então Consultor jurídico do Itamaraty, na audiência pública de 29 de abril de 1987 da Subcomissão dos Direitos e Garantias Individuais, a inserção em nossa Constituição Federal — como veio a ocorrer no ano seguinte — da cláusula que hoje é o artigo 5° (2). Minha esperança, na época, era no sentido de que esta disposição constitucional fosse consagrada concomitantemente com a pronta adesão do Brasil aos dois Pactos de Direitos Humanos das Nações Unidas e à Convenção Americana sobre Direitos Humanos, o que só se concretizou em 1992. E esta a interpretação correta do artigo 52 (2) da Constituição Brasileira vigente, que abre um campo amplo e fértil para avanços nesta área, ainda lamentavelmente e em grande parte desperdiçado. Com efeito, não é razoável dar aos tratados de proteção de direitos do ser humano (a começar pelo direito fundamental à vida) o mesmo tratamento dispensado, por exemplo, a um acordo comercial de exportação de laranjas ou sapatos, ou a um acordo de isenção de vistos para turistas estrangeiros. A hierarquia de valores, deve corresponder uma hierarquia de normas, nos planos tanto nacional quanto internacional, a ser interpretadas e aplicadas mediante critérios apropriados. Os tratados de direitos humanos têm um caráter especial, e devem ser tidos como tais. Se maiores avanços não se têm logrado até o presente neste domínio de proteção, não tem sido em razão de obstáculos jurídicos — que na verdade não existem —, mas antes da falta de compreensão da matéria e da vontade de dar real efetividade àqueles tratados no plano do direito interno, (Apud MENDES, 2011, p. 749).”

Essa primazia na matéria de direitos humanos da norma mais favorável pode ser vista pela leitura do artigo 29 b da Convenção Americana de Direitos Humanos quando se lê:

¨Nenhuma disposição da presente Convenção pode ser interpretada no sentido de:

b – limitar o gozo e o exercício de qualquer direito de liberdade que possa ser reconhecido em virtude de leis de qualquer dos Estados-partes ou em virtude de Convenções em que seja parte um dos referidos Estados.¨

A isso se some que a Convenção Americana de Direitos Humano, surgida em 1969, com força de tratado internacional, e que entrou em vigor em 1978, estabeleceu direitos de ordem político, social, civil e ainda estabeleceu uma Corte Interamericana de Direitos Humanos, um autêntico tribunal, que pode exercer, para aqueles Estados partes que reconhecem sua jurisdição, uma prestação jurisdicional de caráter contencioso relativos a casos concretos com relação a Convenção Americana e ainda outros tratados de proteção a pessoa humana, na esfera da comunidade interamericana.

O certo é que, de há muito, havia discussão á nível doutrinário e jurisprudencial com relação a posição hierárquica dos tratados e convencionais internacionais sobe direitos humanos recepcionados pelo Brasil, sendo a matéria pacificada, no entendimento do Supremo Tribunal Federal, em 3 de dezembro de 2008, quando no julgamento do Recurso Extraordinário 466.343- 1/SP, prevaleceu a tese da supralegalidade dos Tratados Internacionais dos Direitos Humanos, suscitada pelo Ministro Gilmar Mendes.

De toda sorte, lanço as principais teses na matéria:

  1. Hierarquia Infraconstitucional – Ordinária – 1977 a 2004 – defendida pelo Ministro Xavier de Albuquerque no RE 80.004 – SE;

  2. Hierarquia Supraconstitucional – 1999 – defendida por Celso Duvivier de Albuquerque Mello;

  3. Hierarquia Constitucional – 2008 – Teoria defendida pelo Ministro Celso de Mello no julgamento do RE 466.343 – 1/SP;

  4. Hierarquia Supralegal – 2008 – defendida pelo Ministro Gilmar Mendes no julgamento referenciado.

Destaco, ab initio, que, no passado, o Supremo Tribunal Federal entendia pela não prevalência automática dos atos internacionais em face da lei ordinária, já que, para aquela jurisprudência a ocorrência de conflito entre essas normas deve ser resolvida pela aplicação do critério cronológico(a normatividade posterior prevalece) ou pela aplicação do critério da especialidade.12

Por oportuno, lembro entendimento havido no julgamento da Carta Rogatória 8.279 – República Argentina, Ministro Celso de Mello, onde o Supremo Tribunal Federal analisou caso envolvendo a Convenção Americana dos Direitos Humanos, incorporada internamente em 1992, pelo Decreto Legislativo 27/92 e promulgada pelo Decreto Executivo 678/92.

Mas não se pode deixar de entender como razoável que a Constituição de 1988, da leitura do artigo 5º, parágrafo primeiro e segundo, incorporou automaticamente as normas de tratados internacionais de direitos humanos ratificados pelo Brasil, dotando tais normas de dignidade constitucional

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Celso de Albuquerque Mello é defensor da tese de que há preponderância dos tratados internacionais de direitos humanos em relação ás normas constitucionais, que não teriam, no seu entender, poderes revogatórios em relação às normas internacionais.

Tal modelo tem concretude no direito comparado do que se lê das Constituições do Paraguai, Argentina e Venezuela.

Trago a posição do Ministro Rezek, que argumentou:

“A disposição do artigo 59 (2) da Constituição Brasileira vigente, de 1988, segundo a qual os direitos e garantias nesta expressa não excluem outros decorrentes dos tratados internacionais em que o Brasil é parte, representa, a meu ver, um grande avanço para a proteção dos direitos humanos em nosso país. Por meio deste dispositivo constitucional, os direitos consagrados em tratados de direitos humanos em que o Brasil seja parte incorporam-se ipso jure ao elenco dos direitos constitucionalmente consagrados. Ademais, por força do artigo 5° (1) da Constituição, têm aplicação imediata. A intangibilidade dos direitos e garantias individuais é determinada pela própria Constituição Federal, que inclusive proíbe expressamente até mesmo qualquer emenda tendente a aboli-los (artigo 60 (4) (IV). A especificidade e o caráter especial dos tratados de direitos humanos encontram-se, assim, devidamente reconhecidos pela Constituição Brasileira vigente. Se, para os tratados internacionais cm geral, tem-se exigido a intermediação pelo Poder Legislativo de ato com força de lei de modo a outorgar a suas disposições vigência ou obrigatoriedade no plano do ordenamento jurídico interno, distintamente, no tocante aos tratados de direitos humanos em que o Brasil é parte, os direitos fundamentais neles garantidos passam, consoante os parágrafos 2 e 1 do artigo 5° da Constituição Brasileira de 1988, pela primeira vez entre nós a integrar o elenco dos direitos constitucionalmente consagrados e direta e imediatamente exigíveis no plano de nosso ordenamento jurídico interno. Por conseguinte, mostra-se inteiramente infundada, no tocante em particular aos tratados de direitos humanos, a tese clássica — ainda seguida em nossa prática constitucional — da paridade entre os tratados internacionais e a legislação infraconstitucional. Foi esta a motivação que me levou a propor à Assembléia Nacional Constituinte, na condição de então Consultor jurídico do Itamaraty, na audiência pública de 29 de abril de 1987 da Subcomissão dos Direitos e Garantias Individuais, a inserção em nossa Constituição Federal — como veio a ocorrer no ano seguinte — da cláusula que hoje é o artigo 5° (2). Minha esperança, na época, era no sentido de que esta disposição constitucional fosse consagrada concomitantemente com a pronta adesão do Brasil aos dois Pactos de Direitos Humanos das Nações Unidas e à Convenção Americana sobre Direitos Humanos, o que só se concretizou em 1992. E esta a interpretação correta do artigo 52 (2) da Constituição Brasileira vigente, que abre um campo amplo e fértil para avanços nesta área, ainda lamentavelmente e em grande parte desperdiçado. Com efeito, não é razoável dar aos tratados de proteção de direitos do ser humano (a começar pelo direito fundamental à vida) o mesmo tratamento dispensado, por exemplo, a um acordo comercial de exportação de laranjas ou sapatos, ou a um acordo de isenção de vistos para turistas estrangeiros. A hierarquia de valores, deve corresponder uma hierarquia de normas, nos planos tanto nacional quanto internacional, a ser interpretadas e aplicadas mediante critérios apropriados. Os tratados de direitos humanos têm um caráter especial, e devem ser tidos como tais. Se maiores avanços não se têm logrado até o presente neste domínio de proteção, não tem sido em razão de obstáculos jurídicos — que na verdade não existem —, mas antes da falta de compreensão da matéria e da vontade de dar real efetividade àqueles tratados no plano do direito interno, (Apud MENDES, 2011, p. 749).”

O próprio Ministro Gilmar Mendes reconhece a dificuldade de adequação dessa tese à realidade dos Estados que, como o Brasil, estão fundados em sistemas regidos pelo princípio da supremacia formal e material da Constituição sobre todo o ordenamento jurídico.

Para o Ministro Gilmar Mendes os poderes públicos brasileiros não estão menos submetidos à Constituição quando atuam nas relações internacionais em exercício do treaty-making power. Sendo assim os tratados e convenções devem ser celebrados em consonância não só com o procedimento formal descrito na Constituição, mas com respeito ao seu conteúdo material, especialmente no tema de direitos e garantias fundamentais(RE 466.343 – 1/SP, Relator Ministro Gilmar Mendes, DJe de 12/12/2008).

De forma conclusiva, expressou-se o Ministro Gilmar Mendes:

“É mais consistente a interpretação que atribui a característica de supralegalidade aos tratados e convenções de direitos humanos. Essa tese pugna pelo argumento de que os tratados sobre direitos humanos seriam infraconstitucionais, porém, diante de seu caráter especial em relação aos demais atos normativos internacionais, também seriam dotados de um atributo de supralegalidade. Em outros termos, os tratados sobre direitos humanos não poderiam afrontar a supremacia da Constituição, mas teriam lugar especial reservado no ordenamento jurídico. Equipará-los à legislação ordinária seria subestimar o seu valor especial no contexto do sistema de proteção dos direitos da pessoa humana, (MENDES, 2011, p. 750).”

Se assim é como dar sobrevida à lei de anistia diante do texto da Convenção Americana? Sobre isso responde Thomas Buergenthal:13

¨Os Estados-partes à Convenção Americana têm a obrigação não apenas de ¨respeitar¨ estes direitos garantidos na Convenção, mas também de ¨assegurar¨ o livre e pleno exercício destes direitos. Um governo tem, consequentemente, obrigações positivas e negativas relativamente à Convenção Americana. De um lado, há a obrigação de não violar direitos individuais; por exemplo, há o dever de não torturar um individuo ou privá-lo de um julgamento justo. Mas a obrigação do Estado vai além desse dever negativo e pode requerer a adoção de medidas afirmativas necessárias e razoáveis em determinadas circunstâncias para assegurar o pleno exercício dos direitos garantidos pela Constituição americana.¨

No plano da jurisdição contenciosa faço referência história ao caso Velasquez-Rodriguez, atinente ao desaparecimento forçado de indivíduo no Estado de Honduras. Acolhendo comunicação encaminhada pela Comissão Interamericana, a Corte condenou o Estado de Honduras ao pagamento de indenização aos familiares do desaparecido, em decisão publicada em 21 de julho de 1989. Foram lembrados os artigos 4º da Convenção que confere a qualquer pessoa o direito de ter sua vida respeitada; o artigo 5º, no sentido de que ninguém deve ser submetido a tortura; o artigo 7º, que proíbe a detenção arbitrária, prevendo procedimentos a bem do devido processo legal.

Considera-se que as famílias dos desaparecidos têm o direito fundamental, assentado no principio da dignidade da pessoa humana, principio constitucional impositivo, de saber o paradeiro de seus entes queridos e, se for o caso, onde foram sepultados.

O Estado Brasileiro deve realizar todos os esforços no sentido de determinar o paradeiro das vítimas desaparecidas e, se for o caso, identificar e entregar os restos mortais a seus familiares, como já ficou definido em decisão da Corte Internacional mencionada.


Notas

1 NÉRY JÚNIOR, Nelson. Princípios Fundamentais – Teoria Geral dos Recursos, 4ª edição, pág. 379.

2 MAGALHÃES NORONHA. E. Direito Penal, volume III, 10ª edição, pág. 92.

3 HUNGRIA, Nelson. Comentários ao Código Penal, volume VIII, pág. 73.

4 MAGALHÃES NORONHA. E. Obra citada, pág. 93.

5 MAGALHÃES NORONHA, E. Obra citada.

6 FABBRINI MIRABETE. Júlio. Manual de Direito Penal, volume II, 25ª edição, pág. 396.

7 MAGALHÃES NORONHA. E. Obra citada, pág. 94.

8 BRUNO, Aníbal. Direito Penal, tomo II, parte geral, 1967, pág. 224.

9 BRUNO, Aníbal. Obra citada.

10 FABBRINI MIRABETE, Júlio. Manual de Direito Penal, 1992, volume I, pág. 130.

11 CANÇADO TRINDADE, Antônio Augusto. Tratado de Direito Internacional dos Direitos Humanos, Porto Alegre, Sérgio Antônio Fabris Editor, 1997, volume I, pág. 434.

12 RTJ 70/333 – RTJ 100/1.030 – RT 554/434.

13 BUERGENTHAL, Thomas. The Inter-American System for the Protection of Human Rights, in Theodor Meron(ed), Human Rights in International Law – Legal and policy issues, Oxford, Claredon Press, 1984, pág. 442.

Sobre o autor
Rogério Tadeu Romano

Procurador Regional da República aposentado. Professor de Processo Penal e Direito Penal. Advogado.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

ROMANO, Rogério Tadeu. Os desaparecidos políticos e os crimes permanentes diante de decisão do Supremo Tribunal Federal . Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 19, n. 4111, 3 out. 2014. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/32484. Acesso em: 27 dez. 2024.

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