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Do césio 137 à real responsabilidade civil por dano ambiental privado

Agenda 30/03/2015 às 10:18

Apesar da Lei prever a responsabilidade civil por dano ambiental privado, só se fala em dano ambiental corporativo. Mas a lei existe e deve ser cumprida. O caso do Césio 137, em Goiânia , é um exemplo de responsabilidade civil por dano ambiental privado.

                          

 Muito se fala de responsabilidade ambiental corporativa. Há vários trabalhos publicados sobre o assunto. No entanto, a responsabilidade ambiental particular (ou privada, em Direito) existe e exige um posicionamento correto de cada cidadão no que diz respeito a ela. Há leis, decretos, normas e até mesmo tópicos constitucionais que a regem.
              Há de se “ensinar” à população o que é ambientalmente correto. Aliás, para isso, uma boa medida seria a inserção de uma matéria sobre Vida Sustentável já no ensino fundamental. Assim criaríamos pessoas comprometidas com o meio ambiente, com o meio que vivem e com os indivíduos que as cercam. Das várias lições a serem aprendidas pelos pequenos, podemos nos referir àquela que trata da responsabilidade em conhecer as consequências de se lidar com os mais diversos tipos de coisas e materiais e ampliarmos os cuidados que priorizam a ética e o respeito à vida. Coisas corriqueiras, tais como óleo usado, pilhas com carga esgotada, descarte de baterias e de material hospitalar, etc.
           Quem não se lembra do acidente com o Césio 137 (137Cs) em Goiânia? Aquele evento marcou uma geração, fez inúmeras vítimas e ainda hoje exige cuidados diários aos sobreviventes.
Resumo de uma atitude irresponsável
           O Instituto Goiano de Radioterapia era uma empresa privada que funcionava na Avenida Paranaíba no centro de Goiânia. Lá ele possuía um aparelho de teleterapia, do tipo Cesapam F-3000, que funcionava desde 1971. Mas em 1985 o Instituto mudou-se e demoliu parte da sede onde funcionava. No entanto, a sala onde estava o aparelho, fabricado em 1950 pela empresa italiana Barazetti & Cia, ficou em ruínas, com o equipamento abandonado, por ser considerado obsoleto e de baixo rendimento. Esse aparelho trazia em seu interior uma capsula de Césio 137, material radioativo que totalizava 0,093 kg e a sua radioatividade era, à época do acidente, de 50,9 Tbq (= 1375 Ci) e foi encontrado em 13 de setembro por catadores de lixo, que o levaram, para venda, a um ferro velho pertencente a Devair Ferreira. Esse senhor resolveu desmontar o aparelho e expôs ao ambiente 19,26g de Cloreto e Césio (CsCl). O pó, semelhante ao sal de cozinha, brilhava no escuro, emitindo uma coloração azulada. Isso encantou o dono do ferro velho que levou o pó para casa e o distribuiu entre familiares, parentes, vizinhos e amigos. Aos que não puderam levar um pouco daquela “maravilha sobrenatural” Devair fez demonstrações de como resplandecia no escuro. Até mesmo uma sobrinha dele ingeriu o Césio 137 com um ovo cozido, esperando que tivesse o mesmo efeito que o sal.
           Imediatamente as pessoas que tiveram contato com a radiação começaram a apresentar sintomas como náusea, vômitos, tontura e diarréia. Mas se restringiram, nos primeiros dias, ao uso remédios tradicionais ou caseiros. Com isso houve demora na detecção da causa da doença, o que só aconteceu quando a esposa do dono do ferro velho levou a capsula à Vigilância Sanitária, onde, dada a irresponsabilidade de uma funcionária, ela ficou abandonada sobre uma cadeira por dois dias, contaminando todos os funcionários do local. A detecção real da contaminação só se deu no dia 29 de setembro. No entanto nesse dia e também nos subsequentes , a cidade estava sediando o GP Internacional de Motovelocidade no Autódromo Internacional Ayrton Senna e o Governador do Estado, Henrique Santillo, não queria que o pânico fosse instalado entre os estrangeiros. Divulgou então que tudo não passava de um vazamento de gás. Com essa atitude irresponsável conseguiu que 112.800 pessoas fossem expostas à radiação do Césio. Delas 129 apresentaram contaminação interna e externa, 49 foram internadas das quais 21 foram para a unidade de tratamento intensivo. Quatro óbitos foram registrados. Esses são os dados oficiais, liberados pelo Governo, que não batem com os dados da Associação das Vítimas do Césio 137 que totaliza até o ano de 2012, quando o acidente completou 25 anos, 104 mortes e cerca 1600 pessoas contaminadas pela radiação.
           As consequencias da irresponsabilidade de um funcionário do instituto de radioterapia, ou de um seus diretores redundou na demolição de todas as casas de 4 ruas próximas ao local da contaminação. Produziu 13.500 toneladas de lixo atômico que foram colocados dentro de 1200 caixas e depois introduzidos em 2900 tambores, os quais, por sua vez, foram acondicionados em 14 contêineres os quais foram lacrados e enterrados no Parque Estadual Telma Ortegal, em covas fundas revestidas de paredes de 1 metro de espessura de concreto e chumbo. Isso fez com que surgisse uma montanha artificial, hoje pertencente ao municipio Abadia de Goiás. Lá deve ficar o lixo atômico, pelo menos por 180 anos. Ou até que algum incauto vá fazer uma escavação no local e abra os invólucros radioativos.
A responsabilidade civil  objetiva por dano ambiental privado
           O particular que deposite resíduos tóxicos em terreno seu ou de outrem , expondo-os a céu aberto, em local onde, (apesar da existência, ou não, de cerca e de placas de sinalização informando a presença de materiais os mais diversos) o acesso de outros particulares seja fácil, consentido e costumeiro, responde objetivamente pelos danos sofridos por pessoa que, por conduta não dolosa, tenha sofrido, ao entrar na propriedade, graves queimaduras ou outros danos decorrentes de contato com os resíduos.
           A responsabilidade civil por danos ambientais, seja por lesão ao meio ambiente propriamente dito (dano ambiental público), seja por ofensa a direitos individuais (dano ambiental privado), é objetiva, fundada na teoria do risco integral, em face do disposto no art. 14, § 1º, da Lei 6.938/1981, que consagra o princípio do poluidor-pagador. A citada Lei é clara ao dizer:
 Art.14 - Sem prejuízo das penalidades definidas pela legislação federal, estadual e municipal, o não cumprimento das medidas necessárias à preservação ou correção dos inconvenientes e danos causados pela degradação da qualidade ambiental sujeitará os transgressores:
I - à multa simples ou diária, nos valores correspondentes, no mínimo, a 10 (dez) e, no máximo, a 1.000 (mil) Obrigações Reajustáveis do Tesouro Nacional - ORTNs, agravada em casos de reincidência específica, conforme dispuser o regulamento, vedada a sua cobrança pela União se já tiver sido aplicada pelo Estado, Distrito Federal, Territórios ou pelos Municípios.
II - à perda ou restrição de incentivos e benefícios fiscais concedidos pelo Poder Público;
III - à perda ou suspensão de participação em linhas de financiamento em estabelecimentos oficiais de crédito;
IV - à suspensão de sua atividade.
§ 1º - Sem obstar a aplicação das penalidades previstas neste artigo, é o poluidor obrigado, independentemente da existência de culpa, a indenizar ou reparar os danos causados ao meio ambiente e a terceiros, afetados por sua atividade. O Ministério Público da União e dos Estados terá legitimidade para propor ação de responsabilidade civil e criminal, por danos causados ao meio ambiente.

           Notem que a Lei é anterior ao acidente com o Césio 137. No entanto, o ônus de atendimento aos pacientes, demolição e recuperação da área contaminada coube os Governos Federal e Estadual, ao IBAMA, CNEN e CEMAM. O verdadeiro causador do dano, a ser indicado pela Justiça, ficou livre de qualquer responsabilidade, não cumprindo assim o que reza o princípio do poluidor-pagador.
 “A responsabilidade objetiva fundamenta-se na noção de risco social, que está implícito em determinadas atividades, como a indústria, os meios de transporte de massa, as fontes de energia. Assim, a responsabilidade objetiva, calcada na teoria do risco, é uma imputação atribuída por lei a determinadas pessoas para ressarcirem os danos provocados por atividades exercidas no seu interesse e sob seu controle, sem que se proceda a qualquer indagação sobre o elemento subjetivo da conduta do agente ou de seus prepostos, bastando a relação de causalidade entre o dano sofrido pela vítima e a situação de risco criada pelo agente. Imputa-se objetivamente a obrigação de indenizar a quem conhece e domina a fonte de origem do risco, devendo, em face do interesse social, responder pelas consequências lesivas da sua atividade independente de culpa”, ressalta o relator do REsp 1.373.788-SP, Ministro Paulo de Tarso Sanseverino, em julgamento de 6 de maio do último ano.
  Nesse sentido, a teoria do risco como cláusula geral de responsabilidade civil restou consagrada no enunciado normativo do parágrafo único do art. 927 do Código Civil, que assim dispôs:
 Art.927- “Haverá obrigação de reparar o dano, independentemente de culpa, nos casos especificados em lei, ou quando a atividade normalmente desenvolvida pelo autor do dano implicar, por sua natureza, risco para os direitos de outrem”.
 A teoria do risco integral constitui uma modalidade extremada da teoria do risco em que o nexo causal é fortalecido de modo a não ser rompido pelo implemento das causas que normalmente o abalariam (culpa da vítima; fato de terceiro, força maior). Essa modalidade é excepcional, sendo fundamento para hipóteses legais em que o risco ensejado pela atividade econômica também é extremado, como ocorre com o dano nuclear (art. 21, XXIII, “c”, da CF e Lei 6.453/1977):
 Art. 21. Compete à União:
 ...
 XXIII - explorar os serviços e instalações nucleares de qualquer natureza e exercer monopólio estatal sobre a pesquisa, a lavra, o enriquecimento e reprocessamento, a industrialização e o comércio de minérios nucleares e seus derivados, atendidos os seguintes princípios e condições:
 ...
 c) sob regime de permissão, são autorizadas a produção, comercialização e utilização de radioisótopos de meia-vida igual ou inferior a duas horas; (Redação dada pela Emenda Constitucional nº 49, de 2006)
 Já a Lei 6453/1977 dispõe sobre a responsabilidade civil por danos nucleares e a responsabilidade criminal por atos relacionados com atividades nucleares e dá outras providências. Em seu art. 5º ela diz:
 Art. 5º - Quando responsáveis mais de um operador, respondem eles solidariamente, se impossível apurar-se a parte dos danos atribuíveis a cada um, observados o disposto nos artigos 9º a 13.
 

           Para maior esclarecimento os arts. 9º ao 13º da Lei 6453/77 tratam dos limites financeiros das indenizações, bem como do rateio entre os responsáveis. O 13º especificamente exige que o operador da instalação nuclear mantenha seguro ou outra garantia financeira que cubra a sua responsabilidade pelas indenizações por danos nucleares.
           É o que devia ter acontecido em Goiânia. Na impossibilidade de se indicar uma única pessoa como responsável pelo abandono do aparelho de radioterapia (diretor, encarregado, subordinado, governador, funcionária da vigilância sanitária,etc.), deveriam ter sido indiciados todos os envolvidos e obrigados ao pagamento do dano causado. Em outras palavras, o dano devia ter sido rateado entre todos os “descuidados” que abandonaram o aparelho na antiga sede e também com o governador Henrique Santillo, que protelou a divulgação da verdadeira causa da contaminação, para não perder o faturamento da competição de motovelocidade. Nesse caso o governador poderia até mesmo ser indiciado por improbidade administrativa, conforme o disposto na Lei 8429/92 estabelece três espécies de atos de improbidade:
-os que importam enriquecimento ilícito (art. 9º);
-os que causam lesão ao patrimônio público (art. 10); e
-os que atentam contra os princípios da Administração Pública (art.11).

 No caso de Goiânia, o governador está incurso nos arts. 10 e 11, que explicitam:
Seção II
Dos Atos de Improbidade Administrativa que Causam Prejuízo ao Erário
        Art. 10. Constitui ato de improbidade administrativa que causa lesão ao erário qualquer ação ou omissão, dolosa ou culposa, que enseje perda patrimonial, desvio, apropriação, malbaratamento ou dilapidação dos bens ou haveres das entidades referidas no art. 1º desta lei, e notadamente:
...
Seção III
Dos Atos de Improbidade Administrativa que Atentam Contra os Princípios da Administração Pública
        Art. 11. Constitui ato de improbidade administrativa que atenta contra os princípios da administração pública qualquer ação ou omissão que viole os deveres de honestidade, imparcialidade, legalidade, e lealdade às instituições, e notadamente:
        I - praticar ato visando fim proibido em lei ou regulamento ou diverso daquele previsto, na regra de competência;
        II - retardar ou deixar de praticar, indevidamente, ato de ofício;

           Ao retardar o anúncio da contaminação por césio, o governador causou lesão ao erário, pois sua ação ensejou gastos enormes do dinheiro público no atendimento dos alcançados pela radiação. Portanto estaria incurso no art.10. E no art. 11, estaria enquadrado porque sua omissão violou os deveres de honestidade, imparcialidade, legalidade e lealdade às instituições, conforme explicitado nos incisos I e II.
            O mesmo ocorre com o dano ambiental (art. 225, caput e § 3º, da CF e art. 14, § 1º, da Lei 6.938/1981), em face da crescente preocupação com o meio ambiente. Em igual sentido, extrai-se da doutrina que, na responsabilidade civil pelo dano ambiental, não são aceitas as excludentes de fato de terceiro, de culpa da vítima, de caso fortuito ou de força maior. Nesse contexto, a colocação de placas no local indicando a presença de material orgânico não é suficiente para excluir a responsabilidade civil, conforme preconiza o Ministro Paulo de Tarso Sanseverino no REsp 1.373.788-SP, já citado acima.
 A Constituição Federal, em seu art.225, caput e § 3º dispõe que:
CAPÍTULO VI
DO MEIO AMBIENTE
 Art. 225. Todos têm direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado, bem de uso comum do povo e essencial à sadia qualidade de vida, impondo-se ao Poder Público e à coletividade o dever de defendê-lo e preservá- lo para as presentes e futuras gerações.
 ...
 § 3º - As condutas e atividades consideradas lesivas ao meio ambiente sujeitarão os infratores, pessoas físicas ou jurídicas, a sanções penais e administrativas, independentemente da obrigação de reparar os danos causados.

            Por sua vez a Lei 6938/1981 dispõe sobre a Política Nacional do Meio Ambiente, seus fins e mecanismos de formulação e aplicação, e como já expusemos acima, impõe penas àqueles que causarem degradação ambiental, ou não preservarem o meio ambiente corretamente.
            Tudo isso se dá em face da crescente preocupação com o meio ambiente. Nesse mesmo sentido, extrai-se da doutrina que na responsabilidade civil pelo dano ambiental, não são aceitas as excludentes de fato de terceiro, de culpa da vítima, de caso fortuito ou de força maior. Nesse contexto, a colocação de placas no local indicando a presença de material orgânico, perigoso ou de qualquer outro tipo não é suficiente para excluir a responsabilidade civil. Ou seja, hoje temos que ser mais cuidadosos com o descarte de materiais que possam causar danos a outrem. A lei está aí e é para ser cumprida, de forma a evitar que pilhas e baterias sejam descartadas em lixo comum, que lâmpadas fluorescentes sejam jogadas em terrenos baldios, que lixo hospitalar perfurante e contaminante seja abandonado em terrenos longínquos em caixas e sacos que apenas alertam quanto ao perigo de contaminação e que mais desastres como o do Césio 137 voltem a ocorrer. Até hoje, como simples cidadãos não demos muita atenção ao assunto. Mas agora, diante as crises hídrica e energética que estamos passando, talvez possamos refletir um pouco mais sobre o assunto e mudarmos nossa atitude frente à preservação do meio ambiente. E assim colaborarmos para termos um mundo melhor, sempre nos lembrando de que respondemos civil e criminalmente por qualquer dano ambiental privado que possamos provocar, tendo inclusive que pagarmos por ele.

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Sobre o autor
Guilherme Simões Credidio

Engenheiro Ambiental (POLI-USP) e MBA Economia de Empresas (FEA-USP)

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