3 AÇÕES AFIRMATIVAS
3.1 Conceito
Ações afirmativas são medidas que visam à inclusão social (no sentido mais amplo possível) através da criação de oportunidades diferenciadas em benefício de grupos historicamente prejudicados por práticas discriminatórias.
Sob a ótica do Direito Internacional público, as ações afirmativas podem ser consideradas meios de satisfação de compromissos firmados pelo Brasil em tratados internacionais de direitos humanos. Sob a ótica do Direito Constitucional, são ferramentas a serem utilizadas para o alcance dos objetivos fundamentais desta república federativa e para o real exercício dos direitos e garantias fundamentais. Deslocando, contudo, o enfoque para o Direito Civil – ramo mais próximo à realidade cotidiana dos cidadãos – as ações afirmativas garantem a efetividade dos direitos da personalidade. (RIBEIRO, 2011, p. 171)
Sales Augusto dos Santos descreve ação afirmativa como uma “política específica para determinados grupos sociais que foram e/ou ainda são discriminados em função de algumas características reais ou imaginárias” (SANTOS apud RIBEIRO, 2011, p. 169). Os grupos sociais aos quais Sales se refere são aqueles que se encontram em situação de inferioridade sócio-econômica, política ou cultural em relação a outro grupo; são as minorias. Uma minoria pode ser “étnica, linguística, religiosa, de gênero, idade, condição física ou psíquica” (MINORIA, 2012).
Sem excluir a gravidade de atuais práticas discriminatórias, a causa da exclusão social da minoria a ser beneficiada pela medida deve ser um preconceito arraigado, sedimentado na sociedade pelo decurso do tempo e não um fenômeno de surgimento instantâneo, ou seja, a medida destina-se a corrigir uma injustiça social historicamente acumulada decorrente de discriminação[11]. Vale dizer que as ações afirmativas visam reparar o dano causado por um preconceito que de tão entranhado no inconsciente de quem o pratica a “atitude preconceituosa se torna de difícil percepção, considerando-se que a sociedade a vê como corriqueira” (RIBEIRO, 2011, p. 176).
Portanto, “o que se pode identificar como alvo da ação afirmativa é todo e qualquer cidadão que foi vítima de repressão social, que teve suas oportunidades de ascensão, de educação, de autossuficiência historicamente tolhidos” (TAVARES, 2007, p. 544).
É nesta linha de raciocínio que pode se afirmar que, em se tratando de ações afirmativas, quando se referem às minorias, não querem dizer “inferioridade de número”, mas grupo humano ou social que esteja “em situação de subordinação sócio-econômica, política ou cultural, em relação a outro grupo, que é majoritário ou dominante em uma dada sociedade” (MINORIA, 2012). Tenha-se como exemplo o que ocorre na África do Sul, onde o grupo alcançado pelas ações são os negros, que em número são maioria.
Portanto, o que as políticas visam, em síntese, é:
“eliminar os ‘lingering effects’, i. e., os efeitos persistentes (psicológicos, culturais e comportamentais) da discriminação do passado, que tendem a se perpetuar”, os quais “se revelam na chamada ‘discriminação estrutural’, espelhada nas abismais desigualdades sociais entre grupos dominantes e grupos marginalizados” (GOMES apud TAVARES, 2007, p. 544-545)
Quanto ao objetivo das ações afirmativas, Joaquim B. Barbosa Gomes explica com bastante clareza:
elas visam a combater não somente as manifestações flagrantes de discriminação, mas também a discriminação de fundo cultural, estrutural, enraizada na sociedade. (…) têm como meta, também, o engendramento de transformações culturais relevantes, inculcando nos atores sociais a utilidade e a necessidade da observância do pluralismo e da diversidade nas mais diversas esferas do convívio humano. (GOMES apud FIORAVANTE, MASSONI, 2005, p. 467)
No mesmo sentido encontra-se como finalidade das ações afirmativas no material desenvolvido pelo Grupo de Trabalho Interministerial para a Valorização da População Negra no Brasil:
eliminar desigualdades historicamente acumuladas, garantindo a igualdade de oportunidades e tratamento, bem como compensar perdas provocadas pela discriminação e marginalização, decorrentes de motivos raciais, étnicos, religiosos, de gênero e outros. (SANTOS apud MOEHLACKE, 2002, p. 201)
É evidente o prestigio ao princípio da igualdade no bojo das ações afirmativas. Não fala-se aqui em igualdade formal, mas na material. Este princípio, como já mencionado, materialmente traduz-se na famosa máxima aristotélica: tratamento igual aos iguais e desigual aos desiguais, na medida dessa desigualdade. Em outras palavras, temos que as condições pessoais devem ser sopesadas, de maneira a proporcionar não um tratamento idêntico a todas as pessoas como se não existissem peculiaridades, mas um tratamento substancialmente igualitário, reduzindo, assim, efetivamente a desigualdade. Nas palavras de Renata Malta Vilas-Bôas (2003, p. 58), com as ações afirmativas “busca-se criar situações desigualadoras para que no final possamos falar em igualdade de oportunidade”.
Pode-se dizer que estas políticas, além de intimamente ligadas ao princípio da igualdade, se apoiam na dignidade da pessoa humana (que é fundamento da República Federativa do Brasil) e contribuem para a consecução dos objetivos fundamentais estampados na Constituição Federal brasileira.
Veja como Joaquim Barbosa apresenta o instituto, citando, inclusive, o princípio da igualdade material:
Consistem em políticas públicas (e também privadas) voltadas à concretização do princípio constitucional da igualdade material e à neutralização dos efeitos da discriminação racial, de gênero, de idade, de origem nacional e de compleição física. (GOMES apud CARREIRA, 2005, p. 50)
Ainda nos ensinamentos do ilustre, tem-se que as ações podem ser “impostas ou sugeridas pelo Estado, por seus entes vinculados ou até mesmo por entidades puramente privadas” (GOMES apud FIORAVANTE, MASSONI, 2005, p. 467). Conclui-se, portanto, que as ações afirmativas podem ser implementadas tanto pelo Estado como pelo particular; podem ter cunho obrigatório (coercitivas) ou facultativo (voluntárias).
Essas medidas devem ser temporárias, sendo que, quando satisfatoriamente atingirem seus objetivos, devem ser extintas. Ou seja, ainda que necessárias, são paliativas, de modo que se fossem criadas para se perpetuarem e a causa da criação tivesse fim, a situação se inverteria “e a discriminação passaria de positiva a negativa. Não seria, pois, razoável criar uma ação afirmativa sem termo final” (RIBEIRO, 2011, p. 175). É este o motivo de ser inadequada a previsão de medidas deste cunho no texto constitucional.
O principal instrumento das ações afirmativas, por ser o mais conhecido, é o sistema de cotas, que consiste em “estabelecer um determinado número ou percentual a ser ocupado em área específica por grupo(s) definido(s), o que pode ocorrer de maneira proporcional ou não, e de forma mais ou menos flexível” (MOEHLECKE, 2002, p. 199). Mas o instituto não se reduz à este sistema.
Existem também o sistema de taxas ou metas, que seriam basicamente “um parâmetro estabelecido para a mensuração de progressos obtidos em relação aos objetivos propostos, e os cronogramas, como etapas a serem observadas em um planejamento a médio prazo” (MOEHLECKE, 2002, p. 199), programas de incentivo, outrossim, podem sem considerados ações afirmativas.
Posto isto, percebe-se que são consideradas ações afirmativas as medidas de “conteúdo <redistributivo>, <positivo>, <promocional>, de <renivelamento> e <restauração>” (GOMES apud TAVARES, 2007, p. 545).
Como já dito, as ações afirmativas “compõe um grupo de institutos cujo objetivo precípuo é, grosso modo, compensar por meio de políticas públicas ou privadas, os séculos de discriminação a determinadas raças ou segmentos” (TAVARES, 2007, p. 534).
Sobre a natureza delas, de acordo com Joaquim Barbosa Gomes:
Inicialmente, as ações afirmativas se definiam como um mero ‘encorajamento’ por parte do Estado a que as pessoas com poder decisório nas áreas pública e privada levassem em consideração, nas suas decisões relativas a temas sensíveis como o acesso à educação e ao mercado de trabalho, fatores até então tidos como formalmente irrelevantes pela grande maioria dos responsáveis políticos e empresariais, quais sejam a raça, a cor, o sexo e a origem nacional das pessoas. Tal encorajamento tinha por meta, tanto quanto possível, ver concretizado o ideal de que tanto as escolas quanto as empresas refletissem em sua composição a representação de cada grupo na sociedade ou no respectivo mercado de trabalho. (GOMES apud TAVARES, 2007, p. 543-544)
Contudo, posteriormente, as ações começaram a ser entendidas como verdadeiras concessões de preferências, de benefícios com objetivo certo de incrementar oportunidades. A busca por oportunidades iguais, na sociedade norte-americana – onde surgiram as affirmative actions –, passou a ser vista como um direito fundamental, cuja negação seria imoral. Ocorreu, então:
Um processo de alteração conceitual do instituto, que passou a ser associado à ideia, mais ousada, de realização da igualdade de oportunidades através da imposição de cotas rígidas de acesso de representantes das minorias a determinados setores do mercado de trabalho e a instituições educacionais. (GOMES apud TAVARES, 2007, p. 544)
Com efeito, as ações afirmativas são políticas, medidas, verdadeiras atitudes práticas “com vista à promoção da inclusão social, jurídica e econômica de indivíduos ou grupos sociais/étnicos tradicionalmente discriminados por uma sociedade” (GALUPPO apud PISCITELLI, 2009, p. 65), uma vez que para a eficaz inclusão social e o eficaz combate à discriminação leis meramente proibitivas não bastam.
3.2 Justificação das ações afirmativas
Errônea e constantemente as ações afirmativas têm sido apontadas como violadoras do princípio republicano da igualdade de todos perante a lei, como construtora de uma interferência maléfica do Estado nas relações sociais e, ainda, de uma sociedade racializada, com consequentes conflitos sociais. “Políticas de ação afirmativa são baseadas no princípio da discriminação positiva, que funciona como uma violação tópica, limitada, do principio da igualdade universal” (FERES JUNIOR, 2012, p. 5).
Para a promoção do bem geral, do interesse comum ou do interesse nacional, quase a totalidade das políticas do Estado de Bem-Estar Social operam da mesma forma: distribuição de recursos que pertencem igualmente a todos (recursos públicos) de maneira desigual. Operar um tipo de discriminação não é base para argumentar que a ação afirmativa é inconstitucional, procedendo assim, “igualando discriminação positiva e negativa, seremos obrigados a declarar como inconstitucionais também as políticas do BNDES, o bolsa família, e demais ações estatais que operam estritamente por meio da discriminação positiva” (FERES JUNIOR, 2012, p. 6).
É crucial reconhecer a distinção entre discriminação positiva – a que tem por objetivo a promoção daqueles que se encontram em estado de marginalização social –, e a discriminação negativa – a que traz malefícios aos que são discriminados.
Não é concebível que nos aferremos a um sistema moral incapaz de distinguir, por exemplo, a ação de confinar um grupo de pessoas em campos de concentração e exterminá‐las coletivamente em câmaras de gás, da ação de dar maiores oportunidades de educação para um grupo ao qual essas oportunidades foram historicamente negadas. Essas são medidas radicalmente opostas.
Se não fizermos tal distinção, seremos obrigados a reconhecer como justo somente o estado mínimo do liberalismo clássico, que é brutalmente cego às desigualdades sociais e frontalmente contrário ao espírito de nossa Constituição Federal. (FERES JUNIOR, 2012, p. 6).
Em relação à racialização e conflito social, de acordo com estudos de João Feres Junior, em nosso país, este é o argumento mais frequentemente utilizado contra as ações afirmativas[12], não há sinais que isto ocorreu como consequência de alguma ação afirmativa.
Se tomarmos uma perspectiva histórica comparada, veremos que ações afirmativas étnicoraciais foram adotadas por países logo após processos de refundação democrática. Esse foi o caso da Índia, ao se libertar do imperialismo inglês, dos EUA, com o Movimento dos Direitos Civis na década de 1960, da África do Sul, com o final do Apartheid, e esse é o caso do nosso Brasil democrático, surgido da luta contra a ditadura militar, e que tem como marco a Carta de 1988. O espírito de reforma social consagrado na nova Constituição continua a inspirar a luta por direitos e pela realização do sonho democrático da igualdade. As políticas públicas são um instrumento poderoso por meio do qual o Estado responde a esses anseios da sociedade. Elas lidam com o material humano, imperfeito e inexato como ele é, e por isso requerem responsabilidade, mas também coragem e ousadia para a experimentação. (FERES JUNIOR, 2012, p. 7)
Ações afirmativas, em todos os contextos sociais e políticos em que foram implantadas, baseiam-se em três justificações básicas: reparação; justiça social; e diversidade. Estas justificações não são mutuamente excludentes, mas, na maioria das vezes, se completam. No Brasil não é diferente.
A reparação tem fulcro numa profunda injustiça cometida no passado e, portanto, “medidas reparatórias devem ser tomadas para dirimir essa injustiça. Ou seja, esse argumento requer uma interpretação do passado histórico de nosso país.” (FERES JUNIOR, 2012, p. 2).
No caso do Brasil, a injustiça contra os negros foi a escravidão, “mas não só, pois a perpetuação da exclusão dos negros dos postos de maior prestígio e afluência em nossa sociedade do Brasil após o fim daquele regime odioso também se encaixa na categoria de injustiça histórica” (FERES JUNIOR, 2012, p. 2).
A reparação que advém da escravidão aponta para um tipo de beneficiários, quais sejam: os afrodescendentes, ou seja, aqueles que descendem dos africanos trazidos para o Brasil na qualidade de escravos. Portanto, o mais adequado para a promoção da igualdade de oportunidades é a adoção de medidas que tenham como critério diferenciador esta descendência.
“Políticas de igualdade de oportunidades, como a ação afirmativa, são as mais adequadas para combater a injustiça social que marginaliza grupos por meio do preconceito racial” (FERES JUNIOR, 2012, p. 4). O argumento da justiça social prescinde de interpretação histórica da nação, basta a constatação de que em nossa sociedade grupos específicos de pessoas são constantemente marginalizados e têm difícil acesso ás posições de maior prestígio e concorrência.
Sabemos que em nossa sociedade, como em outras, grupos são marginalizados devido a preconceitos culturais, de gênero e também raciais. É claro que a “descoberta” recente da biologia molecular de que raça não é um conceito cientificamente consistente não diminui em nada os efeitos sociais do racismo e do preconceito racial: a cultura também não está inscrita em nossos genes, no entanto o ódio à diferença cultural tem consequências graves onde quer que ele se instaure: vide a guerra genocida na Bósnia, por exemplo. Em suma, a questão que aqui tratamos é social e não da ordem da genética. (FERES JUNIOR, 2012, p. 3-4)
Dados produzidos por sociólogos e economistas nos últimos trinta anos evidenciam que no Brasil existe preconceito racial, e não somente o de classe social, e que isto gera uma significativa marginalização. Os estudos mostram que:
1. Para o mesmo nível de renda, ou seja mesma origem social, brancos têm probabilidade de ascensão bem maior que pretos e pardos;
a. Nelson do Valle: “Brancos são muito mais eficientes em converter experiência e escolaridade em retornos monetários, enquanto que os não-brancos sofrem desvantagens crescentes ao tentarem subir a escada social”.
b. Sergei Soares: “A mobilidade social do negro, ou seja, sua ascensão relativa ao conjunto da sociedade, mantém‐se em patamares residuais. Não houve alteração do quadro de oportunidades no mercado de trabalho, principal fonte de renda e de mobilidade social ascendente”.
c. Carlos Hasenbalg: As probabilidades de fugir às limitações ligadas a uma posição social baixa são consideravelmente menores para os não‐brancos que para os brancos de mesma origem social. Em comparação com os brancos, os não brancos sofrem uma desvantagem competitiva em todas as fases do processo de transmissão de status.
2. A razão entre a renda de brancos e não‐brancos (pretos e pardos) permaneceu inalterada e próxima a 2 (o dobro) por todo o século XX, só vindo a decrescer um pouco a partir a primeira década do século XXI.
a. Se não houvesse discriminação racial, pretos e pardos tenderiam a igualar o perfil sócio‐econômico dos brancos com o passar das gerações.
Portanto, políticas de ação afirmativa de viés étnico/racial têm por fim combater a injustiça produzida pela discriminação racial. Do ponto de vista prático, as categorias mais adequadas para se identificar beneficiários são preto e pardo, pois todos os dados que temos colhido em nossa sociedade sobre desigualdade racial utilizam essas categorias (IBGE). (FERES JUNIOR, 2012, p. 4-5)
Segundo o argumento da diversidade, “todos os seguimentos sociais devem estar representados nas instituições de prestígio, afluência e poder em uma sociedade verdadeiramente democrática” (FERES JUNIOR, 2012, p. 5). Este argumento, de origem estadunidense, não é muito comum no Brasil e tem duas explicações possíveis. Uma é em tudo similar à da justiça social: a exclusão constante de um grupo social das posições de prestígio, afluência e poder em si já constitui uma injustiça.
A segunda é baseada na ideia de que a diversidade contribui para a qualidade das próprias instituições que a promovem: o ensino universitário e a experiência universitária seriam enriquecidos pela inclusão de pessoas com diferentes histórias de vida, que até então estavam ausentes desse espaço. Basta constatar se os negros estão ausentes do espaço universitário em nosso país para que se tomem medidas para a promoção da diversidade. (FERES JUNIOR, 2012, p. 5)
Posto o conceito e a justificação, segue um breve histórico sobre a origem das ações afirmativas.
3.3 Contexto histórico que deu origem às ações afirmativas
O termo “ações afirmativas” tem origem norte-americana. É a tradução da expressão affirmative action, que, para grande parte dos doutrinadores, foi utilizada pela primeira vez em uma ordem executiva federal expedida pelo presidente John F. Kennedy (Executive Order nº 10.925), nos Estados Unidos, em março de 1961.
A referida ordem tinha cunho trabalhista: visava reprimir e fiscalizar a discriminação no mercado de trabalho, criando, para isso, um órgão (President's Comittee on Equal Employment Opportunity) e foi expedida, porque, nos anos 60, os Estados Unidos da América passavam por um período de constantes movimentos em prol da democracia e dos direitos civis, que clamavam igualdade de oportunidades.
De acordo com essa “Executive Order”, nos contratos celebrados com o governo federal, “o contratante não discriminará nenhum funcionário ou candidato a emprego devido à raça, credo, cor ou nacionalidade. O contratante adotará ação afirmativa para assegurar que os candidatos sejam empregados, como também tratados durante o emprego, sem consideração a sua raça, seu credo, sua nacionalidade. Essa ação incluirá, sem limitação, o seguinte: emprego; promoção; rebaixamento ou transferência; recrutamento ou anúncio de recrutamento, dispensa ou término; índice de pagamento ou outras formas de remuneração; e seleção para treinamento, inclusive aprendizado. (MENEZES apud MOREIRA, 2008)
Não obstante o grande avanço na busca de igualdade e a origem do termo que esta ordem trouxe, não foi essa a primeira medida nesse sentido a ser criada.
Os Estados Unidos são apontados como pátria de origem das ações afirmativas. Vislumbra-se que as primeiras referências ao combate da discriminação e reparação de injustiças foram previstas em 5 de julho de 1935, na Lei das Relações de Trabalho Nacionais (The 1935 National Labor Relations Act)[13].
Pouco tempo depois, durante a segunda guerra mundial, os norte-americanos passavam por um grande desconforto interno, pois combatia o regime anti-semitista do nazi-facismo alemão e italiano, e, a contrario sensu, no plano interno havia admissão do forte preconceito racial. Somando-se a essa situação, os grupos mais discriminados (mulheres e negros) passaram a ocupar os postos de trabalhos dos homens brancos que iam para a guerra, “diante desse quadro, vários movimentos e lideranças negras articularam-se por meio de várias manifestações sucessivas, para que as desigualdades a que eram submetidos fossem extirpadas” (MELO, 2003). Pressionado, o presidente Franklin Delano Roosevelt assinou a Executive Order 8.806, de 25 de junho de 1941, que proibia a discriminação racial na contratação de funcionários pelo governo federal e por empresas bélicas que com o Estado mantivessem contratos. Esta foi a primeira vez que o governo federal norte-americano fez uso de uma ação visando igualdade de condições.
Em 1944, a Suprema Corte julgou o caso Korematsu v. United States, “que versava sobre a condenação de um descendente de japonês que havia violado uma ordem militar limitadora da liberdade de locomoção da raça em regiões da costa do pacífico” (MACIEL, 2010). A Corte, embora tenha declarado a constitucionalidade da medida, ressalvou que não era a favor de discriminações, mas que a posição se dava pelas circunstâncias em que a restrição foi imposta.
O repúdio à discriminação continuou evoluindo: em 1952, discussões acerca de acabar com a segregação racial nas instituições de ensino superior (caso Brown v. Board of Education of Topeka); em 1954 foi revista a doutrina dos separados mas iguais, concluindo-se que esta “não tem lugar” na educação pública.
O presidente Lyndon Johnson também teve grande importância no combate às desigualdades. Johnson era vice do presidente Kennedy e assumiu o cargo quando este fora assassinado. Foi o responsável pela criação de programas que exaltaram os direitos civis, o sistema de saúde pública, assistência à educação e a guerra contra a pobreza. Assinou a Ordem Executiva 11.246, em 24 de setembro de 1965, que, além de proibir a discriminação, orientava os órgãos governamentais a somente contratarem empresas que fizessem uso das ações afirmativas na gestão de seus empregados. Com essa política governamental houve “a sedimentação do conceito da ação afirmativa” (MACIEL, 2010).
Lyndon, em julho de 1965 num discurso na Howard University, defendendo a igualdade de oportunidades e direitos civis, fez uma interessante analogia que demonstra a necessidade das ações afirmativas: “Você não pega uma pessoa que durante anos foi impedida por estar presa e a liberta, trazendo-a para o começo da linha de uma corrida e então diz: ‘você está livre para competir com todos os outros’ e, ainda acredita que você foi completamente justo.” (GOMES apud MOREIRA, 2008)
Considerando o contexto histórico do qual surgiram as ações afirmativas, poder-se-ia concluir que o objetivo das medidas seria beneficiar determinada minoria social, sendo os negros nos Estados Unidos da América.
As ações afirmativas não se limitaram aos Estados Unidos, é possível observá-las em diversos países, que independentemente da expressão utilizada para a elas se referirem valem-se da sua ideologia. A Constituição da Índia de 1949 faz referência à cotas em postos nos serviços públicos em benefício de classes de cidadãos desfavorecidos e de castas ou tribos que na opinião do Estado não estejam devidamente representadas no funcionalismo público. A África do Sul, onde ocorreu um dos maiores exemplos da segregação racial, aplicou diversas ações afirmativas em favor dos grupos vítimas do regime discriminatório. Na Europa Ocidental referem-se às ações como “ação ou discriminação positiva”. Argentina, Austrália, Brasil, Canadá, Cuba, Malásia e Nigéria também são exemplos de países que se valeram-se e/ou valem-se das ações afirmativas objetivando a inclusão social.
3.4 Princípios próprios das ações afirmativas
Pode-se definir princípios, basicamente, como mandamentos padrões e fundamentais de um sistema, presentes explicita ou implicitamente no ordenamento. Celso Antonio Bandeira de Mello conceitua princípio jurídico da seguinte forma:
Princípio é, por definição, mandamento nuclear de um sistema, verdadeiro alicerce dele, disposição fundamental que se irradia sobre diferentes normas, compondo-lhes o espírito e servindo de critério para a sua exata compreensão e inteligência, exatamente por definir a lógica e a racionalidade do sistema normativo, no que lhe confere a tônica e lhe dá sentido harmônico. É o conhecimento dos princípios que preside a intelecção das diferentes partes componentes do todo unitário que há por nome sistema jurídico positivo. (MELLO apud RIBEIRO, 2011, p. 175)
Existem princípios jurídicos próprios das ações afirmativas, que visam orientar a elaboração, a aplicação e a hermenêutica das mesmas. Contudo, obviamente, estes princípios devem ser combinados com os demais princípios de direito aplicáveis.
3.4.1 Princípio da Bipartição
“Este é um princípio de aplicação eventual, de acordo com a necessidade e possibilidade no caso concreto. Trata-se de um corolário do princípio da temporariedade em conjunto ao princípio da vedação ao retrocesso” (RIBEIRO, 2011, p. 175)[14].
Por este princípio, deve-se analisar se o comando da ação afirmativa tem a capacidade de apenas compensar, enquanto viger a medida, os tutelados pelos efeitos da discriminação sofrida ou se, além desta compensação, impedirá o retorno da situação discriminatória quando do termo final da medida.
Estará perfeita a ação afirmativa e não haverá retrocesso na hipótese de o comando normativo ter o caráter dúplice de compensar os discriminados e combater a discriminação. Porém, se a medida apenas compensar os discriminados, sem a capacidade de combater a discriminação, outro comando será necessário para satisfazer este outro objetivo das ações afirmativas.
Em outras palavras, pelo princípio da bipartição, eventual ação afirmativa deve conter dois comandos normativos: um que vise compensar os efeitos decorrentes da discriminação sofridos pelo grupo social beneficiado – com isso restaurar ou instaurar a igualdade material; e outro que se destine ao efetivo combate da discriminação em questão – para que, finda a vigência da medida, não haja retorno à situação discriminatória anterior. Caso não possua estes dois poderes, a ação afirmativa deve ser complementada.
3.4.2 Princípio do Dano Atual
Os preconceitos não são fenômenos de surgimento instantâneo, mas “construções históricas que têm origem em determinada circunstância ou evento pretérito, sedimentado pelo decurso do tempo no inconsciente dos indivíduos ao longo das gerações” (RIBEIRO, 2011, p. 176). A prática de atitudes preconceituosas, muitas vezes, é fruto de comportamentos e raciocínios mecânicos, aprendidos com o tempo, em casa, na família ou no convívio social, e tão-somente reproduzidos.
Dessa forma, os grupos sociais atualmente discriminados, provavelmente, sofreram num passado histórico preconceito mais forte ou, eventualmente, outras formas de violência, como, por exemplo, os negros e seu lamentável passado de escravidão.
É de grande importância destacar que, embora as situações de preconceito, desvantagem, ou de subjugação vividas hoje tenham origens históricas, não é, nem deve ser, objetivo das ações afirmativas compensar os danos sofridos no passado. Valendo-se, novamente, do exemplo dos negros e a escravidão: não haveria compensação suficiente por todo os açoites e grilhões que antigamente faziam parte do cotidiano dos negros no Brasil; por outro lado, seria injusto que o restante da sociedade sofresse punição por uma compensação excessiva originada de um acúmulo de injustiça no decorrer da história. Com isso, quer-se dizer que se todo o sofrimento e exclusão sofridos no passado acarretaram, hoje em dia, pelo preconceito e discriminação, menos oportunidades, este (a falta de oportunidades) é o dano a ser reparado.
Na esteira de raciocínio, o dano atual sofrido por aqueles indivíduos beneficiários das ações afirmativas deve ser o único considerado, deve ser a fronteira de atuação e o limite dos efeitos de tais ações. Os danos do passado, sofridos no curso da história, embora necessários à compreensão da discriminação de hoje, não hão de ser objeto das ações afirmativas, pois estas não têm natureza indenizatória, mas proporcionadora de justiça social. (RIBEIRO, 2011, p. 177)
3.4.3 Princípio da equivalência do dano e da reparação
A compensação oferecida pelas ações afirmativas deve seguir a natureza do dano atual causado pela discriminação. Se assim não for, a compensação adentrará em outros aspectos das vidas dos indivíduos da sociedade que não possuem relação com o problema a ser tratado pela ação afirmativa, dessa forma, ao invés de afastar a injustiça, a causaria.
Com efeito, a ação afirmativa deve ser adstrita ao ramo da vida em que os grupos sociais a serem beneficiados sofrem os efeitos da discriminação. Dessa forma, se a discriminação sofrida derrama seus efeitos sobre o acesso ao trabalho, à educação ou à saúde, eventuais ações afirmativas devem atuar respectivamente nas áreas de trabalho, de educação ou de saúde. Como exemplo, não seria desejável compensar grupos discriminados no acesso à educação com isenção tributária, sob o risco de se promoverem injustiças. (RIBEIRO, 2011, p. 177)
3.4.4 Princípio da Temporariedade
Em termos práticos, as ações afirmativas beneficiam determinado grupo da sociedade que sofre discriminação negativa, discriminando positivamente todos os membros desta mesma sociedade.
Ainda que necessárias para a correção de distorções em relação à igualdade dentro de uma sociedade, as ações afirmativas são atenuantes e não a cura. Isto, porque as conjunturas discriminatórias enfrentadas não são permanentes e considerar as ações como soluções definitivas significaria consentir que são.
Em vez de eliminar a discriminação, esta acabaria sendo mantida por acomodação, bastando a edição de uma ação afirmativa para compensar seus efeitos. Pior seria, ainda, se a ação afirmativa perpetuasse, e a causa que ensejou sua edição tivesse fim: a situação se inverteria, e a discriminação passaria de positiva a negativa. Não seria, pois, razoável criar uma ação afirmativa sem termo final. (RIBEIRO, 2011, p. 175)
Não se pode perder de vista que a vida de uma sociedade sob o vigor de uma ação afirmativa deve ter caráter excepcional, portanto, é prudente que seja previsto, para toda ação afirmativa a ser editada, um termo final ou um prazo para a avaliação dos resultados de fato alcançados em relação aos objetivos originalmente traçados com a finalidade de verificar a possibilidade de encerrar ou manter a vigência da medida. Com esta lição, o resultado é a temporariedade das ações.
3.5 Classificação das ações afirmativas
Ribeiro, partindo da premissa de que as ações afirmativas devem necessariamente ser normas jurídicas[15], as classificou de acordo com a teoria geral da norma e, outrossim, atribuiu classificações particulares em função da própria especificidade do tema. Segue, sobre a classificação aludida, uma breve exposição.
3.5.1 Formais e materiais
São formais as ações afirmativas que visam afastar do ordenamento jurídico qualquer dispositivo que possua discriminação.
É a partir desse raciocínio que se pode classificar ação afirmativa formal como aquela que visa a combater uma conjuntura discriminatória formal, sendo esta qualquer forma de discriminação que se dê em função de uma norma, uma regulamentação ou qualquer comando rígido com o caráter de regra, tenha este origem pública ou privada. (RIBEIRO, 2011, p. 173)
Por consequência lógica, as ações afirmativas materiais são aquelas que se prestam a eliminar formas de discriminação materiais, ou seja, “aquelas que se baseiam em comportamentos sociais, coletivos ou individuais, não amparados por qualquer regra aceita pela sociedade, mas simplesmente praticados por preconceito, ideologia, convicção ou, ainda, pela repetição, consciente ou não, de comportamentos históricos” (RIBEIRO, 2011, p. 173).
3.5.2 Legais e infralegais
Como já destacado, não é adequada a inclusão de ações afirmativas em espécie na Constituição, justamente em virtude do caráter temporário das medidas. Não quer dizer que a Constituição não possa dispor sobre tais ações, a exemplo da CF brasileira, esta induz a permissão do poder público se valer delas (art. 3º, da CF/88[16]).
Excluindo-se o nível constitucional, as ações afirmativas consequentemente podem ser editadas em nível legal, obedecendo-se aos critérios e ao processo legislativo referentes à espécie normativa em questão; ou, ainda, em normas de nível infralegal, na forma de regulamentações, portarias, instruções normativas e outros. (RIBEIRO, 2011, p. 173-174)
3.5.3 De alcance nacional, regional e local
“O alcance de uma ação afirmativa deve estar ligado à discriminação sofrida. Os caminhos de ambos, ações afirmativas e discriminação, devem ser paralelos, com o objetivo único de anular os efeitos discriminatórios sofridos pelo grupo social beneficiado” (RIBEIRO, 2011, p. 174).
Com a afirmação acima pode se concluir, portanto, que a norma[17] que instituir a ação afirmativa não deve exceder ou faltar na sua abrangência, pois desta forma estará, respectivamente, concedendo privilégios indevidos ou sendo ineficaz. Com isso percebe-se a importância do trabalho de estudo e pesquisa necessário não apenas para justificar a implementação, mas também para delimitar o alcance e limites das ações.
Deve-se respeitar, para a edição de uma norma que estabelece uma ação afirmativa – como em qualquer outra norma, a competência legislativa de cada ente federativo estabelecida na CF. Em suma, o critério estabelecido é o de interesse: nacional; regional; ou local.
Respeitando, assim, o princípio da predominância do interesse, a especificidade do instituto em estudo reside na tradução de termo interesse. No que tange às ações afirmativas, interesse equivale a danos causados pela discriminação. Dessa forma, deve-se considerar não somente se determinado fenômeno discriminatório existe ou não, mas também a intensidade desse fenômeno e a extensão dos danos dele oriundos. (RIBEIRO, 2011, p. 174)
Para exemplificar, considere que no Brasil, com a grande diversidade cultural e social que possui, exista um estado da federação que apresente manifestações discriminatórias não encontradas em outros; ou, ainda que mais de um estado apresente a mesma forma de discriminação, esta pode ser de intensidades e consequências distintas; justificando-se, assim, que a necessidade de se tomar uma ação afirmativa e o alcance desta pode variar de territorialmente (regional ou local) ou ser de âmbito nacional.