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Pedido de prisão preventiva de Cunha é inconstitucional e arbitrário

Não há interpretação possível que permita a prisão preventiva de um deputado, senão o reconhecimento da imprestabilidade da Constituição.

Art. 53. § 2º da Constituição da República (salvo melhor juízo) diz que desde a expedição do diploma, os membros do Congresso Nacional não poderão ser presos, salvo em flagrante de crime inafiançável. Nesse caso, os autos serão remetidos dentro de 24 horas à casa respectiva, para que, pelo voto da maioria de seus membros, resolva sobre a prisão.

O presente artigo pretende esclarecer alguns pontos a respeito do pedido de (ilegal) prisão preventiva subscrito pelo Procurador Geral da República, em face do Deputado Federal Eduardo Cunha. Lado outro, os fatos descritos no pedido não serão aqui discutidos, apesar de, muito embora olvidada, se presuma a inocência de todos os cidadãos até o trânsito em julgado de sentença penal condenatória. Por mais estranho que possa soar, a imposição da presunção de inocência não se trata de uma escolha dos articulistas, sim, do Regime Democrático de Direito.

No direito penal atual não basta atender ao interesse público, alegadamente existente. É preciso expor. É necessário que o investigado sucumba (no sentido próprio do termo). Após o desastrado pedido de afastamento cautelar promovido pela PGR em dezembro de 2015 e admitido em 05 de maio de 2016 pelo Supremo Tribunal Federal, novo pleito foi formulado contra o Deputado Federal Eduardo Cunha. Desta vez busca-se a prisão (preventiva!) de um parlamentar. Assim inicia o procurador geral da República:

“O Procurador-Geral da República vem à presença de Vossa Excelência, nos autos da AC 4070, tendo em vista a demonstração da insuficiência das medidas cautelares ali deferidas por Esta egrégia Corte, em face de EDUARDO CONSENTINO DA CUNHA, requerer sua PRISÃO PREVENTIVA, ou, alternativamente, as MEDIDAS CAUTELARES a seguir descritas.”

Cumpre tecer um paralelo com o quanto alegado por Sua Excelência, o procurador geral da República em dezembro de 2015, ao se posicionar pelo inconstitucional afastamento:

A medida cautelar requerida – que, por ora, não é a mais grave (prisão preventiva) - tem a finalidade de garantir a efetividade e a eficácia da aplicação das leis, sobretudo a penal, e garantir a ordem pública, devendo, portanto ser este o norte a guiar a interpretação dos dispositivos constitucionais envolvidos. (grifos originais)

Ao tratar o princípio da legalidade como mero adereço, o PGR já sinalizava que “por ora” não representaria pela prisão preventiva. Muito embora o escorço fático despendido seja semelhante, busca neste momento a incabível (Constitucionalmente, ao menos) aplicação da prisão preventiva, em que pese a tal da legalidade (constitucional — art. 53, §2°).

Não se objetiva aqui a defesa pessoal do deputado investigado, não se expõe aqui qualquer tipo de juízo de valor a respeito da pessoa do investigado. Traça-se, tão-somente, de um paralelo entre o abuso observado no pedido inconstitucional de prisão e as trágicas consequências que podem decorrer de tal violação. Os autores deste texto não buscam defender o envolvido. Contudo, não se pode esquecer a lei maior do país. E, em tempos de crise, é onde se verifica, efetivamente, o grau de Democracia que cada nação possui.

O pedido original dava conta da existência de “abuso das prerrogativas parlamentares por parte do deputado”. O fundamento para o afastamento da presidência da Câmara e do cargo de parlamentar seria a dita “vontade sistêmica da Constituição” (interessante: cada vez mais as pessoas se arvoram a interpretar a vontade das leis, dando de ombros para a legalidade estrita). Nesse sentido, esquecendo-se da natureza substitutiva das medidas indicadas no artigo 319 do CPP e reconhecendo a desnecessidade da prisão naquele momento, buscou o PGR o afastamento do Parlamentar das funções de deputado.

Pois bem.

Após pouco mais de um mês da inconstitucional decisão, o Procurador Geral da República sinaliza a ilegitimidade de Ato Normativo da Mesa da Câmara dos Deputados, que modulou os efeitos da decisão judicial proferida pelo Supremo Tribunal Federal. E modulou por quê? Pois se tratou, como apontado pelo próprio ministro relator Teori Zavascki, de medida excepcional, específica, pontual. A Câmara precisava decidir o tratamento que seria dispensado ao deputado temporariamente (frise-se) afastado. Ocorre que, segundo o PGR:

“... o ato normativo da Mesa da Câmara dos Deputados, sob o pretexto de dar cumprimento à r. Decisão do STF, fez, na verdade, indevida limitação da decisão judicial, promovendo o esvaziamento dos efeitos cautelares pretendidos com a medida. E o fez em grande medida, como se demonstrara adiante, em virtude da decisiva influência do requerido na direção dos trabalhos da casa.”

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Atente-se a seguinte oração, caro leitor: “indevida limitação da decisão judicial, promovendo o esvaziamento dos efeitos cautelares pretendidos com a medida.” Vive-se verdadeiro fetiche pela judicialização da política. O Poder Judiciário ganha, diariamente, um perigoso protagonismo, que embora atualmente seja comemorado por muitos, amanhã certamente se voltará contra os mesmos que hoje acreditam cegamente na sublimidade de tal poder.

Como invocar o argumento da “indevida limitação da decisão judicial” quando se corrompeu o Texto Constitucional ao se pleitear a prisão preventiva de um deputado federal diplomado? O artigo 53, §2° é cristalino ao dispor que: “desde a expedição do diploma, os membros do Congresso Nacional não poderão ser presos, salvo em flagrante de crime inafiançável. Nesse caso, os autos serão remetidos dentro de vinte e quatro horas à Casa respectiva, para que, pelo voto da maioria de seus membros, resolva sobre a prisão.”

Mais um sinal do desequilíbrio dos poderes constituídos: a Constituição (texto maior) é constantemente solapada, sob o pálio da necessidade e razoabilidade. De que adianta haver regras jurídicas, Constitucionalmente previstas, se elas podem ser interpretadas à la carte em situações ditas excepcionais?

Assevera o manifestamente ilegal pedido de prisão que “a medida não surtiu os efeitos desejados”. Felizmente ou não a Lei Maior da República (cotidianamente ultrajada) previu de maneira expressa, direta e categórica a impossibilidade de prisão preventiva de parlamentares. No trágico episódio do então senador Delcídio do Amaral, ao menos se tentou, ainda que erroneamente, justificar-se que haveria situação de flagrante delito (não se nega que organização ou associação sejam crimes permanentes, o problema, naquele caso concreto, era demonstrar a evidencia de que havia flagrante e permanência até aquele instante). Afirme-se: não havia. Era o mesmo caso, em tese, aqui debatido: situação que permitiria, ad argumentandum tantum, prisão preventiva, não fosse a “tal” da legalidade... Lá, tratou-se de enfrentar a situação por meio de interpretação equivocada. Aqui, com as devidas e necessárias licenças, o pudor não mais existiu, e escancarou-se o desprestígio da legalidade, um dos pilares da República. Não pensem os leitores que tais pedidos, tais situações são positivas para o país. Não são. Porque se hoje a regra da vedação de prisão preventiva de parlamentar é rechaçada, amanhã outras regras caras aos cidadãos, ao povo serão vilipendiadas: sempre em busca do interesse público...

Vale lembrar que o mesmo Diploma — Constituição — que prevê a proibição de prisão preventiva de Parlamentar assegura a inviolabilidade do domicílio de todo e qualquer cidadão. De forma clara: o leitor se sentiria à vontade ao saber que a qualquer hora do dia (ou da noite) seu domicílio poderá ser violado por autoridades estatais? Ora, se uma regra cara ao sistema é hoje ultrajada, o que garante que, amanhã, o cidadão comum não será surpreendido com tais ações? Como sustentar, a partir de tais violações, que não teremos o sigilo telefônico ultrajado sem ordem judicial? Sim, porque ao transigir com a legalidade abre-se flanco para uma série de arbitrariedades... a legalidade, enquanto manifestação de garantia, não admite interpretações utilitaristas, eficientistas, voluntaristas.

Aliás, os professores de direito penal temos de reaprender a (de)ensinar a legalidade: agora, o princípio, lido e formatado, é de que: não há crime sem lei anterior que o defina, não há pena sem prévia cominação legal, salvo se o fato for grave e excepcional.

Esse sentimento de angústia, de indefinição, incerteza é fruto do desrespeito à legalidade. Esta não deveria ser um adorno, algo decorativo. Em verdade todos deveriam zelar pelo seu cumprimento, pois é o verdadeiro e mais importante alicerce das democracias modernas. A escolha da interpretação compreensiva, razoável, conveniente ao caso provavelmente se revelará correta, pois que atende aos objetivos imediatos. Contudo, a médio e longo prazo é erva daninha capaz de instaurar a desordem, o caos, a rebelião social e jurídica da República.

O pedido de prisão preventiva, assinado pelo PGR, traduz nítido exemplo de retroalimentação da imprensa. Explica-se: no tópico segundo da fundamentação do encarceramento provisório de Eduardo Cunha, o parqueta firma que o deputado federal estaria mantendo comportamento ilícito. Para tanto, junta uma série de reportagens, dentre os quais do Jornal Nacional, do Estado de S.Paulo etc.

Em que consistiria, portanto, esta retroalimentação? Vazamentos injustificados são publicados em periódicos. Estes mesmos periódicos são,posteriormente, utilizados como peças de justificação da prisão. Controle da cadeia de custódia não há. Notícias, reportagens, quiçá factóides são lançados para corroborar a (impossível) tese da prisão de um Parlamentar, ao arrepio da Constituição da República.

Com todo o respeito aos órgãos de imprensa, por mais hábeis e capazes os jornalistas, investigadores eles não são. Os jornais, por mais bem intencionados e legítimos, não possuem fé pública. De mais a mais, há limites à liberdade de imprensa, que como qualquer outro direito fundamental, não é absoluto. Não se pode admitir, em um Estado Democrático de Direito, tamanha inversão de papéis. Se antes as denúncias eram transplantadas para os noticiários, hoje os noticiários servem de respaldo para os requerimentos ministeriais... Situação tosca, grosseira...

Nota-se, uma vez mais, a adoção do que se denomina direito penal de emergência. Por outro lado, não se tem o cuidado de criarem-se normas inconstitucionais. A emergência alcança, fundamentalmente, outro patamar. Prefere-se rasgar e vilipendiar a legalidade, como se esta fosse passível de ajustes e arranjos aleatórios.

Ora, o pedido de prisão (imprestável, se adotarmos a Constituição de 1988) não poderia se fundamentar em factóides. O pedido de prisão não pode se fundamentar em algo tão abstrato: possível existência de influência do parlamentar. Mas o ponto central, ao fim e ao cabo, é a tal da legalidade, que mais uma vez foi contrariada. A legalidade é (ou deveria ser) norma de interpretação máxima do sistema jurídico, pois confere ao sistema a necessária segurança jurídica. Não pode a legalidade (mormente por se tratar de dispositivo da Constituição) ser desprezada, uma vez que as regras do jogo democrático somente adquirirão força e legitimidade com o cumprimento constante de tais normas.

Um dos (censuráveis) fundamentos ventilados nos pedidos (de dezembro e o atual) consiste na “inafastabilidade da jurisdição (artigo 5°, XXXV, da CF)”. Trata-se aqui de, concessa vênia, distorcer o direito fundamental antes aludido, a fim de justificar o injustificável. Direitos fundamentais são elencados, são escolhidos para proteção do povo, do cidadão. Dessa forma, indevida a utilização de um direito fundamental para tolher, para excluir garantia das mais caras ao Estado de Direito. A jurisdição não deveria ser provocada para deliberar sobre pedidos juridicamente impossíveis.

Em dezembro, a razão de ser da ilegitimidade do pedido de prisão foi a imposição de medida alternativa, quando não são vislumbrados os elementos autorizadores da prisão preventiva. Hoje, a falta de razão do pedido de prisão se baseia “apenas” na Constituição (não como ela é escrita, mas como se quer que ela seja lida, — seria pela “vontade superior”), é dizer, na Legalidade. Conceitos abstratos, genéricos, desprovidos de densidade normativa, por exemplo, “vontade sistêmica da Constituição” servem para tudo, inclusive, para abusos e distorções. Reitere-se: qualquer um do povo poderá ser o próximo a ter garantias caras e fundamentais afastadas.

Não se duvida da boa vontade, da boa fé e até mesmo da boa intenção do procurador geral da República. Não se trata disso. Contudo, futuramente, tal expediente (violação da Constituição) pode ser utilizado para outros fins escusos, trágicos, totalitários. O “problema” do Direito não é tanto o fato, sim as consequências para as gerações vindouras. Aqui, não se cuida nem de discurso pro reo, mas de discurso da defesa do Estado de Direito, pois se as normas pudessem ser desobedecidas quando do surgimento de problemas práticos, a segurança jurídica restaria para sempre perdida.

Novamente, destaque-se: não se trata de defesa do deputado. Os articulistas preferem não emitir opinião pessoal a respeito da pessoa envolvida. Contudo, a lei, a Constituição vale para todos os cidadãos, gostemos deles ou não. A menos que se inaugure, expressamente, um Direito Constitucional do Inimigo. Haveria, na posição voluntarista, dois Direitos Constitucionais: um para os cidadãos de bem, outro para os inimigos.

Não há interpretação possível que permita a prisão preventiva de um deputado, senão o reconhecimento da imprestabilidade da Constituição. Por outro lado, o Ministério Público, por mais importância que possua, não encontra respaldo para, em busca da defesa da ordem jurídica, distorcer a própria ordem. Talvez falte a visão (democrática, republicana) de que as mudanças no Direito são paulatinas, e não se faz revolução com operações. Premente mais tecnicismo, mais equilíbrio e, sobretudo, mais respeito aos desígnios da Constituição da República Federativa do Brasil, desastrosa ou milagrosamente, única soberana da nação, válida para todos, amigos, inimigos, afetos, desafetos...

Sobre os autores
Gamil Föppel El Hireche

Doutor em Direito Penal Econômico pela UFPE. Mestre em Direito pela UFBA. Professor adjunto de Direito Penal da Universidade Federal da Bahia. Membro das comissões de juristas responsáveis pela elaboração dos anteprojetos de reforma do Código Penal e da Lei de Execuções Penais. Agraciado com o Diploma do Mérito Legislativo, outorgada pela Câmara dos Deputados. Autor de obras jurídicas. Professor de Cursos de pós-graduação na Bahia, São Paulo, Pernambuco, Rio de Janeiro, Espírito Santo, Sergipe e Pará. Advogado criminalista.

Pedro Ravel Freitas Santos

Advogado Criminalista. Pós-Graduando em Ciências Criminais (Faculdade Baiana de Direito). Graduação em Direito (Universidade Federal da Bahia. 2015.1). Técnico Administrativo Ministério Público da Bahia (2012-2015).

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

HIRECHE, Gamil Föppel El; SANTOS, Pedro Ravel Freitas. Pedido de prisão preventiva de Cunha é inconstitucional e arbitrário. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 21, n. 4769, 22 jul. 2016. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/50038. Acesso em: 22 nov. 2024.

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