Quando, na mesma pessoa ou no mesmo corpo de magistratura, o poder legislativo está reunido no poder executivo, não existe liberdade; porque se pode temer que o mesmo monarca ou o mesmo senado crie leis tirânicas para executá-las tiranicamente.
Tampouco existe liberdade se o poder de julgar não for separado do poder de legislativo e do executivo. Se estivesse unido ao poder legislativo, o poder sobre a vida e a liberdade dos cidadãos seria arbitrário, pois o juiz seria legislador. Se estivesse unido ao poder executivo, o juiz poderia ter a força de um opressor.
Barão de Montesquieu[1]
RESUMO: Neste texto será feita uma breve análise acerca do ativismo judicial e do princípio da estrita legalidade na dinâmica jurisprudencial do Supremo Tribunal Federal brasileiro, sob as luzes da soberania popular e da separação dos Poderes. O ativismo judicial será compreendido como a possibilidade de o Judiciário preencher as lacunas jurídicas ocorridas em face de injustificadas omissões normativas inconstitucionais. O ativismo judicial somente é válido para a satisfação de direitos constitucionalmente consagrados, mas que estejam com seu exercício inviabilizado ante a injustificada omissão dos Poderes Legislativo ou Executivo. Analisaremos os limites e as possibilidades dessa prática ativista, especialmente o princípio da estrita legalidade, que vem a ser a exigência constitucional da indispensável intervenção do Legislador para regular normativamente certas matérias. Colheremos algumas decisões do STF, e verificaremos se essas decisões revelam uma postura ativista ou arbitrária.
PALAVRAS-CHAVE: Direito Constitucional. Soberania popular. Separação dos Poderes. Princípio da estrita legalidade. Supremo Tribunal Federal. Ativismo Judicial.
SUMÁRIO: 1 Introdução. 2 Ativismo Judicial. 3 A estrita legalidade. 4 Algumas decisões ativistas. 5 Considerações finais. 6 Referências
1 INTRODUÇÃO
O presente texto tem como objeto central o ativismo judicial. Como objetos periféricos os princípios constitucionais da estrita legalidade, da separação dos Poderes e da soberania popular. A finalidade do texto consiste em verificar os limites jurídicos e as possibilidades constitucionais do poder criativo e normativo do Supremo Tribunal Federal. A justificativa deste trabalho descansa no fato de que o equilíbrio político arquitetado no texto da Constituição exige de cada um dos Poderes da União (Legislativo, Executivo e Judiciário) o fiel e milimétrico cumprimento de suas missões institucionais.
As nossas hipóteses são as seguintes: a) o ativismo judicial somente é possível naquelas situações de injustificadas omissões normativas inconstitucionais, nas quais a Constituição confere o direito, mas o exercício desse direito constitucionalmente criado esteja inviabilizado pela inaceitável omissão normativa ou governamental do legislador ou do administrador; e b) não cabe ativismo judicial nas hipóteses nas quais se exigem a criação de lei formal pelo Poder Legislativo, como ocorre, por exemplo, na criação de tipos penais ou tributários, em nome do princípio da estrita legalidade normativa.
Isso significa, em linha de princípio, que somente seria cabível a intervenção normativa judicial para evitar a lesão ou a ameaça ao que seja direito (art. 5º, XXXV, CF)[2]. Ou seja, não cabe ao Poder Judiciário intervir para viabilizar “interesses” ou “desejos” ou “necessidades” que não estejam amparados pelo ordenamento jurídico, mormente pelo texto da Constituição. Todavia, se acaso a Constituição tiver concedido o direito, mas o seu exercício estiver sendo inviabilizado pela injustificada omissão inconstitucional, aí se torna possível a intervenção judicial. Vê-se, portanto, que os instrumentos constitucionais processuais de provocação ativista do Poder Judiciário seriam o mandado de injunção (art. 5º, LXXI, CF)[3], a ação direta de inconstitucionalidade por omissão (art. 103, § 2º, CF)[4] e a arguição de descumprimento de preceito fundamental (art. 102, § 1º, CF)[5].
Mas em que matérias o Poder Judiciário pode substituir o legislador? Como tem sido a prática interventiva do STF? O Tribunal tem avançado além dos limites e possibilidades constitucionais? O Tribunal tem agido com ativismo ou arbítrio normativo? O Tribunal tem sido coerente nas suas soluções ativistas? Essas e outras questões serão a seguir analisadas.
Na construção deste texto analisaremos algumas decisões do STF que podem ser compreendidas como manifestação ativista da Corte, e a partir das hipóteses acima elencadas verificaremos se houve ativismo ou arbítrio judicial.
2 ATIVISMO JUDICIAL
O magistério doutrinário brasileiro tem produzido uma farta quantidade de textos acadêmicos sobre esse tema e há diversas e diferentes compreensões sobre esse fenômeno constitucional intitulado de ativismo judicial.[6]
Convém, no entanto, demarcar os sentidos dos termos. Qual será o sentido do termo “ativismo judicial” para este artigo? Para nós o ativismo judicial significa a atribuição constitucional que possui o Poder Judiciário de viabilizar o exercício de direitos constitucionalmente assegurados, mas que estejam sendo inviabilizados por injustificadas omissões inconstitucionais normativas ou governamentais do Poder Legislativo ou do Poder Executivo. Ou seja, para nós, o ativismo judicial somente deve surgir diante da injustificada omissão normativa inconstitucional. A Constituição concede o direito, mas a inaceitável inércia inconstitucional do legislador ou do administrador inviabiliza o gozo do direito constitucionalmente concedido.
Adotaremos o clássico magistério doutrinário de José Afonso da Silva[7] – que equivocadamente julgávamos superado[8] - acerca da eficácia e aplicabilidade das normas constitucionais: a) normas de eficácia plena; b) normas de eficácia contida; e c) normas de eficácia limitada ou reduzida:
Na primeira categoria incluem-se todas as normas que, desde a entrada em vigor da constituição, produzem todos os seus efeitos essenciais (ou têm a possibilidade de produzi-los), todos os objetivos visados pelo legislador constituinte, porque este criou, desde logo, uma normatividade para isso suficiente, incidindo direta e imediatamente sobre a matéria que lhes constitui objeto. O segundo grupo também se constitui de normas que incidem imediatamente e produzem (ou podem produzir) todos os efeitos queridos, mas preveem meios ou conceitos que permitam manter sua eficácia contida em certos limites, dadas as circunstâncias. Ao contrário, as normas do terceiro grupo são todas as que não produzem, com a simples entrada em vigor, todos os seus efeitos essenciais, porque o legislador constituinte, por qualquer motivo, não estabeleceu, sobre a matéria, uma normatividade para isso bastante, deixando essa tarefa ao legislador ordinário ou a outro órgão do Estado.
Nessa perspectiva, da leitura dos preceitos constitucionais o intérprete (aplicador) atribuirá o adequado sentido quanto à eficácia da norma: plena ou contida ou limitada. Será o leitor do texto normativo da Constituição, especialmente o Supremo Tribunal Federal, quem irá estabelecer que tipo de preceito normativo regula a eventual controvérsia ou conflito jurídico.
É de ver, sem maiores dificuldades, que nas hipóteses de preceitos normativos constitucionais de eficácia plena ou de eficácia contida não há necessidade de ativismo judicial, pois o exercício do direito constitucionalmente assegurado é possível. Não há omissão normativa inconstitucional a obstaculizar o gozo e fruição de direito constitucionalmente disponibilizado. A intervenção judicial, de modo ativista, somente se faz necessária nas hipóteses de preceitos normativos constitucionais de eficácia limitada ou reduzida.
Essa nossa compreensão de ativismo judicial é distinta da formulada por Elival da Silva Ramos[9]:
Por ativismo judicial, deve-se entender o exercício da função jurisdicional para além dos limites impostos pelo próprio ordenamento que incumbe, institucionalmente, ao Poder Judiciário fazer atuar, resolvendo litígios de feições subjetivas (conflitos de interesses) e controvérsias jurídicas de natureza objetiva (conflitos normativos). Essa ultrapassagem das linhas demarcatórias da função jurisdicional se faz em detrimento, particularmente, da função legislativa, não envolvendo o exercício desabrido da legiferação (ou de outras funções não jurisdicionais) e sim a descaracterização da função típica do Poder Judiciário, com incursão insidiosa sobre o núcleo essencial de funções constitucionalmente atribuídas a outros Poderes.
Esse conceito formulado por Elival da Silva Ramos também diverge da ideia tradicional do que seja ativismo judicial exposta por Christopher Wolfe[10] cujas raízes estão assentadas nas decisões da Suprema Corte dos Estados Unidos à época do “New Deal” proposto pelo Presidente Franklin Delano Roosevelt para combater a grave crise econômica e social que afligiu os Estados Unidos a partir do ano de 1929. Essas decisões judiciais chanceladoras das opções políticas governamentais visando o equilíbrio social e econômico sinalizaram uma virada na hermenêutica jurídico-constitucional da Suprema Corte. É o início do denominado ativismo judicial.
Nas décadas subsequentes, a Suprema Corte americana ampliou o espectro de suas decisões e passou julgar questões de direitos civis, mormente as que envolviam direitos processuais de proteção contra o poder de investigar e de punir do Estado, sobre assuntos relativos as minorias raciais ou de gênero, que são conhecidas como “ações afirmativas”.[11] Nessa perspectiva, podemos dizer que o “ativismo judicial”, na experiência norte-americana, consistiu em um conjunto de práticas e de decisões judiciais da Suprema Corte na consolidação dos direitos fundamentais, especialmente dos grupos minoritários, seja no aspecto quantitativo (negros), seja no aspecto qualitativo (mulheres). Qualitativo no sentido de ausência de força política capaz de impor a sua agenda de interesses. Nesse prisma, a Suprema Corte exerceria, via “ativismo judicial”, um poder normativo e político contramajoritário.
Esse caráter de atuação contramajoritária da Suprema Corte tem sido objeto das preocupações de John Hart Ely[12]:
É claro que os tribunais criam o direito o tempo todo, e ao fazê-lo podem ter a intenção de inspirar-se nas fontes habituais dos adeptos do não interpretacionismo – os “princípios fundamentais” da sociedade ou qualquer outra coisa -; mas, fora do âmbito da jurisdição constitucional, eles se limitam a preencher as lacunas que o Poder Legislativo deixou nas leis que aprovou ou, então, a tomar conta de uma área que o Poder Legislativo, de caso pensado, entregou ao Judiciário para que a desenvolvesse. Há, evidentemente, uma diferença crítica: em contextos não constitucionais, as decisões judiciais estão sujeitas à anulação ou à alteração pela lei ordinária. A Corte está substituindo o Poder Legislativo, e, se isso foi feito de uma maneira que o Poder Legislativo não aprova, ela pode ser prontamente corrigida. Quando uma Corte invalida um ato dos poderes políticos com base na Constituição, no entanto, ela está rejeitando a decisão dos poderes políticos, e em geral o faz de maneira que não esteja sujeita à “correção” pelo processo legislativo ordinário. Assim, eis a função central, que é ao mesmo tempo o problema central, do controle judicial de constitucionalidade: um órgão que não foi eleito, ou que não é dotado de nenhum grau significativo de responsabilidade política, diz aos representantes eleitos pelo povo que eles não podem governar como desejam. Isso pode ser desejável ou não, dependendo dos princípios em que tal controle se baseia. Seria interessante saber se existe uma alternativa melhor, mas a corrente mais comum do não interpretacionismo, que faz apelo a noções que não podem ser encontradas nem na Constituição nem, obviamente, nas decisões dos poderes políticos, parece particularmente vulnerável à pecha de incompatibilidade com a teoria democrática.
Esse drama suscitado por John Hart Ely deve ser adaptado para a realidade político-constitucional brasileira, pois há expressas determinações constitucionais acerca da possibilidade de o Poder Judiciário, e o Supremo Tribunal Federal em particular, declarar a inconstitucionalidade das leis ou de atos normativos (Art. 97[13]; Art. 102, I, “a”[14]; Art. 102, § 2º[15]; e Art. 103, § 3º[16]).
Isso significa que a Constituição brasileira autorizou explícita e inequivocamente o Poder Judiciário a decretar a incompatibilidade de leis ou atos normativos com o texto constitucional. Não é uma construção jurisprudencial, mas uma prescrição constitucional. Nas situações de normalidade institucional, a decisão definitiva na solução dos conflitos normativos constitucionais compete ao Supremo Tribunal Federal. Nas situações de anormalidade institucional, a solução dos conflitos não resolvidos pelos Poderes instituídos (Legislativo, Executivo e Judiciário) será das Forças Armadas (art. 142[17]).
Esse modelo de solução dos conflitos é decorrência do princípio constitucional da separação dos Poderes (art. 2º[18]). Na engenharia constitucional, a separação dos Poderes consiste em poderoso instrumento que visa a evitar o eventual cometimento de abusos institucionais, mediante a estratégia de “freios e contrapesos” e que também visa aumentar a eficiência da atuação estatal no desempenho das suas atividades precípuas e indeclináveis: a criação do Direito, a sua respectiva execução ou aplicação, bem como o julgamento acerca dos conflitos normativos jurídicos. No exercício dessas missões institucionais, os aludidos Poderes da União devem exercer as suas atribuições de acordo com os preceitos normativos válidos.
A fonte política de legitimidade normativa dos Poderes da União é o povo (Art. 1º, parágrafo único[19]). E os legítimos – porque eleitos – representantes do povo são os chefes dos Poderes Executivos (Presidente da República, Governadores de Estados e Prefeitos Municipais) e os parlamentares das “Casas Legislativas” (Senadores, Deputados Federais, Deputados Estaduais e Vereadores Municipais). Os magistrados brasileiros, membros do Poder Judiciário, não são eleitos pelo povo e sua fonte de legitimidade decorre da Constituição e das Leis, pois ou são aprovados em concurso público ou são escolhidos pelos próprios Tribunais ou pelo respectivo Chefe do Poder Executivo.
Em face desse caráter eletivo dos legisladores e da pluralidade dos membros que compõem os parlamentos, Jeremy Waldron[20] defende a dignidade da legislação, no sentido de que uma assembleia popular, composta de representantes eleitos pelo povo, pode ser uma fonte respeitável de direito, mesmo que os parlamentares não tenham a mesma erudição ou intelectualidade dos magistrados. A lei, fruto das deliberações e votações dos parlamentares eleitos pelo povo, tem alto grau de dignidade normativa e de respeitabilidade política.
Daí porque compete ao legislador – o representante eleito pelo povo – a tarefa de produzir leis, de captar as necessidades ou interesses ou desejos dos representados. As “antenas” dos representantes eleitos pelo povo devem estar sintonizadas com os valores do próprio povo. Excepcionalmente, nas hipóteses de injustificadas omissões inconstitucionais do legislador que impedem o exercício de direitos constitucionais assegurados, deve ocorrer a intervenção judicial substitutiva da atuação normativa do legislador.