RESUMO: Neste artigo, faz-se uma análise das expressões afetividade e socioafetividade, a partir de uma perspectiva temporal linear, extraída de julgados realizados pelo Superior Tribunal de Justiça brasileiro entre os anos de 2007 e 2018. Algumas vezes tomadas como sinônimas, as duas expressões não são aplicadas no mesmo sentido, merecendo, portanto, uma nova definição.
Palavras-chave: Afetividade. Socioafetividade. Definição.
ABSTRACT:
Keywords:
Sumário: Introdução – 1 Afetividade: etimologia e definições – 2 A afetividade numa perspectiva jurisprudencial – 2.1 Perspectiva temporal da afetividade segundo julgados do Superior Tribunal de Justiça brasileiro – 2.2 A socioafetividade, o dever de cuidado e os laços afetivos: distinções necessárias – 3 Afetividade e socioafetividade: sinônimos? – Conclusão – Referências.
INTRODUÇÃO
Depois de tantos filhos terem ficado à margem do reconhecimento do vínculo jurídico do parentesco filial, em razão da utilização exclusiva do critério biológico, surgiu a tese da afetividade para apontar uma nova via de formação familiar, juridicamente reconhecida. Em outra ocasião, ao tratar do tema da afetividade, cuidei de analisar a aplicação do princípio da afetividade nos processos de investigação de paternidade/maternidade e seus critérios para inclusão ou exclusão dos vínculos de parentesco[2].
Contudo, o mesmo princípio da afetividade utilizado como critério para atribuição de parentesco não tem sido aplicado da mesma maneira nos casos de responsabilidade civil por abandono afetivo. Tal situação decorre da dificuldade de definição do próprio princípio.
Apesar de se reconhecer que têm funções distintas, o princípio é ainda o mesmo. Em razão dessa circunstância, parece apropriado que, mais de dez anos depois, de realizado um estudo específico sobre o tema, este seja reapresentado agora, numa outra perspectiva: a de verificar qual o sentido que o Superior Tribunal de Justiça vem dando à afetividade, enquanto princípio jurídico do direito de família.
1 AFETIVIDADE: ETIMOLOGIA E DEFINIÇÕES
O Código Civil de 2002 estabelece em seu art. 1.593 que o parentesco é natural, quando resulte da consanguinidade; ou civil, nos casos de outra origem. Vê-se que já não mais restringe o parentesco civil apenas aos casos de adoção, mitigando a tese biologista, justificável até mesmo em razão do instituto da adoção. Embora ainda permaneça arraigada a ideia do biologismo como tese dominante na legislação civil do direito de filiação, como se percebe pelos artigos 1.597, em seus incisos I, II, III e IV; 1.599; 1.600 e 1.602, do Código Civil de 2002, não se pode afirmar a exclusividade de tal tese, pois a par de tais dispositivos biologistas, outros remetem à socioafetividade, como o artigo 1.593; o inciso V do mesmo artigo 1.597 (técnica de reprodução assistida heteróloga), o artigo 1.605 e os artigos 1.618 e seguintes, do mesmo Código, que tratam da adoção.
Talvez fosse proposital essa ambiguidade da norma, uma vez que existe o Projeto de Lei nº 6.960/2002, que pretende a alteração de diversos artigos do Código Civil de 2002, que se filia expressamente à tese biologista, ao dispor que não faz coisa julgada a decisão judicial em ação investigatória que não tenha se utilizado do exame de DNA[3]. Contudo, a jurisprudência e a doutrina vêm se convencendo cada vez mais que o determinismo biológico muitas vezes não representa a melhor forma de atribuição de paternidade na configuração da família moderna.
Assim, a afetividade no direito se relaciona diretamente com a percepção jurídica do ser humano na sua dimensão existencial, do reconhecimento de que alguns aspectos das esferas interna e externa dos indivíduos interessam ao direito, pois impactam de modo indissociável o ser e o agir humano. No caso, por exemplo do estágio de convivência, no processo de adoção, verifica-se que o estabelecimento de vínculos de afinidade, desenvolvidos pelo afeto entre adotante e adotado, é necessário, sob pena de não haver a formalização do parentesco. No Código de 1916 não importavam os sentimentos que pudessem existir entre os membros de uma família ou entre adotantes e adotados.
A valorização do afeto se dá exatamente a partir do momento em que se reconhece a decadência de um modelo único e exclusivo de família, rigidamente moldado pela sociedade do fim do século XIX e que durou até meados do século XX. Essa ruptura de paradigma impulsionou a construção de variados arranjos familiares, a que se denominou entidades familiares[4]. Assim, sem o modelo legal do Código Civil de 1916, o que restou foi um amontoado de pessoas que se encontravam ligadas pelo afeto, prescindindo em muitas situações de qualquer outra vinculação jurídica ou formal[5]. Diante disso, pacificou-se o entendimento de que a introdução das noções de afetividade no Direito brasileiro se deu efetivamente no campo das relações familiares, já na metade do século XX, como forma de mitigar a ideia da família patriarcal e da patrimonialização nas relações de família, até mesmo porque tais ideias já se apresentavam em franco declínio, impulsionando os doutrinadores a reconhecerem os novos contornos da formação da família contemporânea.
Diante dessa evolução no contexto histórico e cultural da família, refletida na doutrina e principalmente na jurisprudência brasileiras, ainda hoje se busca a concretização da afetividade como princípio jurídico nas relações familiares. Contudo, algumas dificuldades despontam no cenário jurídico, a começar pelo próprio entendimento do que se pode entender por afetividade.
2 A AFETIVIDADE NA PERSPECTIVA JURISPRUDENCIAL
O Superior Tribunal de Justiça, na sua função constitucional de zelar pela melhor aplicação da lei ordinária e harmonizar a interpretação do ordenamento jurídico, esteve debruçado em várias oportunidades para tratar da afetividade. Desde os primeiros julgados do tribunal até os dias atuais, notou-se que a definição da afetividade poderia variar conforme a função desempenhada pelo princípio em determinados processos judiciais, como se demonstrará.
O que seria, na realidade, uma tarefa de harmonização, restou por trazer algumas confusões de ordem terminológica, que comprometeram, algumas vezes, até mesmo a aplicação do princípio. Essa dificuldade permanece ainda hoje, gerando alguma estranheza em muitas situações práticas.
Percebe-se que ao utilizar a afetividade no campo das relações familiares entre pais e filhos, o tribunal associa a expressão afetividade como sinônimo de vínculo afetivo. Por outro lado, ao tratar do abandono afetivo no campo da responsabilidade civil, a afetividade assume contornos de dever de cuidado.
Nesse sentido, é possível encontrar as expressões “vínculo afetivo”, “vínculo de afetividade”, “socioafetividade”, “princípio da afetividade” e “afetividade”, relacionadas aos processos de inclusão ou exclusão de reconhecimento de paternidade ou maternidade, adoção e guarda de filhos menores de idade.
Nos processos relacionados à indenização por danos materiais ou morais, notadamente nos casos de abandono afetivo, em que são vítimas os menores, encontrou-se as expressões “afetividade” e “dever de cuidado” vinculados como sinônimos.
Com isso, percebe-se que a palavra afetividade pode adotar significados diferentes, não em razão da sua etimologia, mas em razão de sua função. Ora afetividade pode funcionar como princípio jurídico definidor de direitos e deveres, ora como balizador das emoções humanas. Nesse sentido, a afetividade nem sempre tem a mesma função na aplicação do direito; e pode, inclusive, nem ser tomado como princípio jurídico. É preciso ter cuidado com o uso da expressão para que não reste prejudicada a própria aplicação da norma.
2.1 Perspectiva temporal da afetividade segundo julgados do Superior Tribunal de Justiça brasileiro
Para traçar um panorama temporal a partir da seleção de alguns julgados do Superior Tribunal de Justiça brasileiro, foram destacados julgados entre os anos de 2007 e 2016, no intuito de identificar em qual sentido o tribunal aplicou a expressão “afetividade”. Tais julgados foram selecionados através da ferramenta de pesquisa livre no site do Superior Tribunal de Justiça e alguns não foram utilizados aqui por repetirem a mesma matéria e mesmo julgamento, tornando desnecessária a inclusão por tornar a leitura repetitiva, sem acrescentar elementos novos que pudessem interessar ao presente estudo.
Ao final de cada parágrafo, em que consta a síntese do acórdão selecionado, encontra-se um comentário em destaque pelo recurso do itálico, de lavra da autora, como forma de sistematizar os resultados da pesquisa, realizados no item seguinte.
Em 2007, o Superior Tribunal de Justiça, em sede de Recurso Especial[6], decidiu pela confirmação de uma adoção póstuma (concluída após o falecimento do adotante), com base na comprovação do “vínculo de afetividade” e na “preexistência de laço de afeto” entre adotante e adotada. Observa-se, nesse julgado, a associação da afetividade como laço de afeto.
Em 2008, o mesmo tribunal, ao decidir um Conflito de Competência entre o Juizado Criminal e a Justiça Comum, referente à incidência ou não da Lei Maria da Penha, considerou que o sujeito ativo pode ser homem ou mulher, “desde que fique caracterizado o vínculo de relação doméstica, familiar ou de afetividade, além da convivência, com ou sem coabitação”[7]. Neste julgamento, o tribunal considerou afetividade também vínculo afetivo, elemento intrínseco à esfera emocional.
Em 2009, foram vários os julgados do Superior Tribunal de Justiça acerca de temas que tiveram como base a afetividade. Ao decidir sobre a concessão de guarda pelos avós[8], em cumprimento às disposições do Estatuto da Criança e do Adolescente, entendeu-se que o conceito de família deve ser balizado pelo princípio da afetividade, “que fundamenta o direito de família na estabilidade das relações socioafetivas e na comunhão de vida, com primazia sobre as considerações de caráter patrimonial ou biológico”. Aqui o tribunal equiparou a afetividade ao comportamento externo do sujeito a partir de relação afetiva preexistente entre as partes, considerando como jurídica a estabilidade dessas relações externas.
Tratando sobre negatória de paternidade[9], sob alegação de erro por ocasião do Registro Civil, o tribunal entendeu que no caso havia se consolidado já o vínculo socioafetivo e considerou prescindível a comprovação da ausência de parentesco consanguíneo entre pai e filho. Na ementa e no acórdão do julgado, é possível encontrar as expressões “vínculo sócio-afetivo”, “vínculo afetivo” e “vínculo de afetividade” como sinônimas, para referir que o recorrente se portou como se fosse pai do recorrido por vinte e dois anos. Nesse sentido, é clara a associação entre a afetividade e o comportamento do sujeito.
No mesmo ano, analisando pedido de nulidade de registro de nascimento[10], entendeu o tribunal que por se tratar de adoção à brasileira, a nulidade do registro só pode ocorrer se não constituído o vínculo socioafetivo entre adotante e adotado. Igualmente tratou a afetividade como vínculo decorrente de dois elementos: o social (externo) e o afetivo (interno), como expressões do comportamento inequívoco daquele que age como se pai fosse.
Por fim, ao julgar Habeas Corpus em ação de execução de prestações alimentares[11], decidiu o tribunal pela impossibilidade de conversão de ofício de rito ordinário em rito especial, que implicava em agravamento de tratamento ao executado, sob a alegação de que isso poderia arrefecer ainda mais os laços de afetividade entre o alimentante e o alimentado, já bastante comprometidos em razão da intervenção do Poder Judiciário. Ao se referir aos “laços” de afetividade, o tribunal reforça muito mais o aspecto afetivo do que propriamente o aspecto social.
Em 2010, o Superior Tribunal de Justiça julgou dezenas de processos que versavam sobre o princípio da afetividade, como o que decidiu a manutenção adoção de duas crianças por casal homossexual[12], com fundamento na constatação “de fortes vínculos afetivos entre a recorrida e os menores sendo a afetividade o aspecto preponderante a ser sopesado numa situação como a que ora se coloca em julgamento”. Não há dúvida alguma nessa associação entre afetividade e vínculos afetivos.
Ao julgar a possibilidade de uma mãe, que havia deixado de conviver com seu filho há dois anos, receber indenização, em razão de homicídio culposo do qual fora vitimada a criança[13], o tribunal considerou que as relações afetivas preexistentes ao tempo da cessação do convívio entre mãe e filho não poderiam ser apagadas. Nesse acordão, não há referência ao princípio da afetividade, mas tão somente às relações afetivas, presumidas mais sólidas quanto mais próximo o vínculo de parentesco.
Em sede de ação de anulação de registro de nascimento[14] promovido por irmã em face de outra, sob alegação de falsidade ideológica cometida pela mãe, já falecida, ao dar como sua filha criança que não tinha com ela vínculo biológico. Contudo, estava demonstrado nos autos que a mãe assim fizera de livre e espontânea vontade, no desejo indiscutível de ser reconhecida mãe da criança, no que foi confirmado pelo tribunal, que privilegiou a “verdade socialmente construída com base no afeto”, capaz de gerar efetivo vínculo familiar. Restou identificado, inequivocamente, a presença do vínculo socioafetivo da filiação.
Por outro lado, ao tratar de lide que versava sobre a possibilidade de uniões plurais[15], assim entendidas aquelas em que um sujeito mantém simultaneamente duas ou mais uniões afetivas (casamento, união estável, concubinato – a depender do enquadramento dado), o tribunal considerou preponderante a análise do conjunto de princípios que norteiam o direito de família contemporâneo e não um princípio em detrimento do outro, valendo destacar:
Deve o juiz, ao analisar as lides de família que apresentam paralelismo afetivo, de acordo com as peculiaridades multifacetadas apresentadas em cada caso, decidir com base na dignidade da pessoa humana, na solidariedade, na afetividade, na busca da felicidade, na liberdade, na igualdade, bem assim, com redobrada atenção ao primado da monogamia, com os pés fincados no princípio da eticidade.
Em 2011, em sede de Recurso Especial sobre indenização[16] aos pais por morte do filho já casado e também com filhos, entendeu o Superior Tribunal de Justiça que a saída de casa do filho não enfraquece os laços afetivos entre pais e filhos, cuja diminuição de afetividade deve ser cabalmente demonstrada por aqueles que pretendem reduzir o quantum indenizatório a ser pago pela perda da vida desse filho. Com isso, nota-se que é possível ponderar valores indenizatórios com base na diminuição da afetividade e, nesse sentido, afetividade não se liga à ideia de convivência, mas de afeto. Não seria razoável entender que a convivência na mesma casa seria suficiente, por si só, para enfraquecer os vínculos afetivos.
Em 2012, por ocasião do julgamento de recurso especial em ação de reparação por dano moral decorrente de abandono afetivo[17], o Superior Tribunal de Justiça lastreou a concessão da indenização no dever de cuidar que se encontra imperativamente imposto no artigo 227, da Constituição Federal de 1988. Nesse sentido, o que se entende por abandono afetivo é o descumprimento do dever de cuidado, visto este como valor jurídico objetivo (embora advirta o mesmo acórdão que o “cuidado como valor jurídico objetivo está incorporado no ordenamento jurídico brasileiro não com essa expressão, mas com locuções e termos que manifestam suas diversas desinências, como se observa do art. 227 da CF/88”). O dever de cuidado inclui, na ótica desse julgado, um conteúdo mínimo necessário de afetividade, que contribuiria para a formação psicológica adequada da criança e sua inserção social. Fica bem claro, nesse acórdão, que a afetividade se vincula muito mais ao aspecto ético do cuidado do que propriamente ao elemento afetivo (emocional), inclusive com reforço das expressões “dever de criação, educação e companhia – de cuidado”, extraído literalmente do texto.
Em 2013, ao decidir sobre a manutenção de criança em família ampliada[18], o Superior Tribunal de Justiça confirmou que o princípio do melhor interesse do menor se realiza, na medida da existência de afinidade e afetividade entre a criança e aqueles que se encontram no exercício fático de sua guarda.
Em sede de recurso especial proposto na ação declaratória de inexistência de parentesco promovida por um irmão em face de sua irmã[19], o tribunal tratou da socioafetividade como fundamento de validade do parentesco já constituído, utilizando-se da expressão “paternidade socioafetiva”. Nesse sentido, reconheceu a base do parentesco calcado no elemento externo (social) e no elemento interno (afeto).
Em 2014, por ocasião do julgamento de recurso em ação de indenização por dano moral pela perda ilícita de irmão[20], o tribunal entendeu que, na relação entre irmãos, o sentimento mútuo de amor e afeto presumem no vínculo familiar a existência do laço afetivo, que justifica a concessão da reparação em pecúnia como compensação pela perda precoce do parente. Nesse caso, desnecessária a prova da existência de vínculo afetivo, pois é decorrência natural dos estreitos laços de afeto. Aqui, o tribunal tratou o vínculo afetivo como externalização do elemento emocional (afeto).
No mesmo ano, ao decidir sobre a concessão de guarda da avó materna brasileira em disputa judicial com avós paternos de criança de dupla nacionalidade[21], o tribunal reafirmou a supremacia do vínculo de afetividade, social e familiar, como vetores de conformação com o princípio do melhor interesse do menor. No caso, a expressão afetividade foi tomada como vínculo afetivo, já que houve a associação expressa e distinta da palavra social e familiar; aquela tomada como elemento externo de convívio e esta como vínculo jurídico de parentesco.
Ainda em 2014, julgando um recurso especial em ação negatória de paternidade[22], o mesmo tribunal entendeu que a ausência de vício de consentimento no ato registral impossibilita a anulação do mesmo, apesar de não ter sido constituído vínculo de afetividade em período considerável de cinquenta anos e ter havido prova genética de exclusão de parentesco biológico. O vínculo de afetividade é tratado como socioafetividade, já que se refere implicitamente aos elementos interno (afeto) e externo (social).
Em 2015, reconhecendo a possibilidade jurídica do pedido de parentesco socioafetivo em relação materno-filial[23], o tribunal utilizou-se da expressão socioafetividade como fundamento da filiação, afirmando a existência do direito em consonância com o ordenamento jurídico pátrio. O tratamento dado à expressão socioafetividade é inequívoca, pois representa a junção dos elementos interno (afeto) e externo (social).
Em 2016, o Superior Tribunal de Justiça, ao decidir sobre nulidade de registro de nascimento fundamentado em vício de consentimento[24], analisou a afetividade sob o aspecto da relação de afeto que pode gerar deveres. Afirmou que a “filiação socioafetiva pressupõe a vontade e a voluntariedade do apontado pai de ser assim juridicamente considerado” e que nos autos não ficou demonstrada a existência de vínculo de afetividade entre a filha e o suposto pai. Ao final, usa a expressão “afetividade paterno-filial” como sinônimo de socioafetividade, embora trate apenas no acórdão de afetividade e relação afetiva.
Em 2017, por ocasião do julgamento de um recurso referente à guarda de menor solicitada pela avó, que mantinha em convivência afetiva uma neta desde tenra idade, e que falecera aquela no curso do processo, o Superior Tribunal de Justiça deu provimento à concessão da guarda póstuma, em razão do princípio do melhor interesse do menor. Nas razões do julgado, o entendimento prevalecente foi de que a finalidade meramente previdenciária não se sobrepõe ao reconhecimento provado da realização da afetividade, através dos anos de cuidado e de afeto entre avó e neta. Nesse caso, o tribunal entendeu a afetividade como afeto e cuidado, de modo que esse cuidado para ser efetivado, depende em grande medida da realização econômica previdenciária, cuja pensão deveria ser garantida ao desenvolvimento da menor[25].
Por fim, no ano de 2018, utilizando-se do princípio da afetividade, a Corte superior brasileira reconheceu o direito de visita em relação a animal de estimação, tomando a afetividade como afeto, como bem se observa do julgado de lavra do Ministro Relator Luís Felipe Salomão: “na hipótese, o Tribunal de origem reconheceu que a cadela fora adquirida na constância da união estável e que estaria demonstrada a relação de afeto entre o recorrente e o animal de estimação, reconhecendo o seu direito de visitas ao animal, o que deve ser mantido” (STJ, REsp 1713167, 2018). Foi também uma inovação a utilização do princípio da afetividade como fundamento do direito de visita do dono em relação ao animal de estimação, adquirido na constância de um relacionamento afetivo desfeito, no caso uma união estável. E o animal não foi tratado como um bem jurídico, mas com a deferência de um ser senciente, dotado de sensibilidade.
No mesmo ano de 2018, em decisão que reconheceu a possibilidade da adoção póstuma em razão da demonstração de inequívoca relação de socioafetividade entre o falecido e os adotandos, o tribunal usou a expressão filiação socioafetiva como parâmetro para o reconhecimento da posse de estado de filiação. Assim, tomou o princípio da afetividade como socioafetividade, referindo o tratamento público e contínuo da condição de filhos legítimos, com ostentação do sobrenome paterno e inconteste aprovação social[26].
2.2 A socioafetividade, o dever de cuidado e os laços afetivos: distinções necessárias
Após apontados os julgados do Superior Tribunal de Justiça, que foram extraídos da base de dados disponíveis na rede mundial de computadores, faz-se mister traçar algumas breves considerações sobre o tratamento dado à afetividade ali.
Inicialmente, cumpre destacar que há uma imprecisão terminológica no uso das expressões “afetividade”, “socioafetividade”, “vínculo de afetividade”, “laços de afetividade” e “relações afetivas” no contexto em que aparecem nos julgados destacados.
Como se pode verificar, o tribunal usa a expressão afetividade como gênero, que comporta espécies; e confunde o conceito com as funções que o princípio jurídico tende a desempenhar na aplicação do direito.
Parece que aqui se apresentam três situações distintas: a socioafetividade, enquanto princípio jurídico, apto a funcionar normativamente com imposição de deveres e constituição de direitos; o dever de cuidado, que decorre do poder parental – ou, visto de forma mais ampliada, como a ética do cuidado inerente ao dever de preservação da dignidade da pessoa humana; e os laços afetivos, que decorrem do elemento anímico do ser vivente, ínsito ao campo das emoções.
Assim, a socioafetividade seria a conjugação necessária do elemento social e do elemento emocional, destinados à produção de efeitos jurídicos. Nesse sentido, pela análise do comportamento de alguém que toma para si filho biológico ou não, tratando-o afetiva e socialmente como se espera de um pai ou uma mãe – mesmo que idealmente imaginado, pode ser identificado um vínculo que vai se consolidando à medida que o tempo passa. Aqui, portanto, para o reconhecimento de parentesco socioafetivo[27] exige-se o comportamento social (conduta de pai ou mãe, nos deveres legais de cuidado e ostentação pública); a continuidade dessa conduta em determinado período de tempo (a ser aferido em cada caso concreto) e a relação afetiva (o vínculo de afeto, que é desenvolvido a partir de mecanismos da psique humana, podendo ser mantidos ou interrompidos ao longo do tempo).
O problema da relação afetiva é justamente o da possibilidade de interrupção, que tende a promover o desinteresse do sujeito pelo objeto afetado e a comprometer o dever de cuidado. Por isso mesmo, não se pode dar ao afeto exclusivamente contornos jurídicos[28]. Com isso, tende-se a isolar o elemento emocional, privilegiando o elemento social dele decorrente, que deve ser aferido de modo objetivo, como por exemplo, ao investigar se o suposto pai participava da vida do filho na escola, nos ambientes de lazer, nos cuidados com sua saúde e educação, para fins de reconhecimento de paternidade socioafetiva.
O dever de cuidado, por outro lado, não se relaciona diretamente com a questão emocional; decorre de uma imposição normativa, ora decorrente de uma lei, como a do artigo 1.634, inciso I, do Código Civil de 2002, com redação dada pela Lei nº 13.058/2014, quando impõe aos pais o dever de dirigir a criação e educação dos filhos. O artigo 1.634 em comento não trata das questões afetivas, embora regulamente o exercício do poder familiar pelos pais. Trata, isso sim, dos deveres que os pais devem ter em relação aos seus filhos, como medida protetiva da criança e do adolescente, submetido à representação ou assistência dos pais.
No artigo 227, da Constituição Federal de 1988, dentre os direitos assegurados à criança, ao adolescente e ao jovem num conjunto de regras impostos à família, à sociedade e ao Estado, encontram-se o respeito, a dignidade e a convivência familiar e comunitária. Também aqui não se encontra referência expressa à afetividade, mas ao dever de cuidado.
A lei se esmerou em distinguir os elementos interno (afetivo) e externo (social), para afirmar o que parece óbvio: enquanto ciência social aplicada, o Direito não pode – e nem tem como – instrumentalizar medidas coercitivas contra atos ou omissões que decorrem das emoções humanas. Todas as vezes que isso foi tentado, o caminho seguido resultou numa objetivação do subjetivo, como na responsabilidade civil objetiva; na boa-fé objetiva; na definição de dano moral; na própria definição de culpa e dolo, para fins de aplicação de pena, só para exemplificar algumas situações.
O fenômeno jurídico é fenômeno social, não há como perscrutar o íntimo do indivíduo para atribuir consequências jurídicas. O contrato, enquanto exercício da autonomia privada, necessita da externalização da vontade do agente negocial; isso pode se dar por manifestações tácitas, presumidas ou expressas de vontade, mas em todas elas se faz necessário o conhecimento da vontade.
Assim mesmo, quando se propõe o direito a dar contornos jurídicos às situações que decorrem das emoções humanas, é preciso separar o elemento anímico do elemento dinâmico. O afeto, enquanto sentimento humano, não é elemento jurídico, nem pode ser. Apenas a externalização dele e sua afetação ao outro pode importar para o direito. E mesmo nessas situações, há que se distinguir a origem e os resultados das ações dela decorrentes. A origem não é jurídica; apenas os resultados serão.
Os laços afetivos são expressões do elemento emocional humano; decorrem do sentimento que alguém nutre por outrem e não precisa necessariamente ser bilateralmente estabelecido para se confirmar enquanto sentimento. Para o direito, há necessidade dessa relação bilateral, pois somente a partir dela se pode estabelecer um comportamento objetivamente apreciável, sob a ótica jurídica.
Ao final, é possível sistematizar as três situações acima tratadas, a partir das quais decorrem inúmeras outras situações, em duas expressões: afetividade (consequência das relações afetivas) e socioafetividade (princípio jurídico, de cunho normativo).
3 AFETIVIDADE E SOCIOAFETIVIDADE: SINÔNIMOS?
As expressões “afetividade” e “socioafetividade” vem sendo tratadas como expressões sinônimas, tanto na literatura jurídica, como na jurisprudência, gerando alguma espécie na aplicação do que se construiu como princípio jurídico do direito de família contemporâneo nacional. A questão é que nem sempre a afetividade coincide com a socioafetividade, seja no seu conceito, nos seus requisitos ou na sua função.
Com isso, tende a se perpetuar uma situação incômoda nos julgamentos de lides que versam sobre temas delicados e extremamente doloridos, como as que cuidam de relações paterno ou materno-filiais, na atribuição ou não do dever de indenizar pela omissão do dever de cuidado e nas difíceis situações de incluir ou excluir vínculos jurídicos de parentesco.
A partir de estudos anteriores já realizados[29], o que se entendia pelo princípio da afetividade pode ser melhor denominado como socioafetividade (na intenção de não confundir com a afetividade) uma vez que a função desse princípio é a de fundamentar a existência de parentesco jurídico entre pessoas que não guardam entre si vínculos biológicos próprios da linha desejada. Ou seja, quando um padrasto ou uma madrasta requerem o reconhecimento da paternidade ou maternidade socioafetivas, ou qualquer outra pessoa que tenha a posse da criança ou do adolescente, mesmo sem parentesco por afinidade (como no caso do padrasto ou da madrasta) pretendem o reconhecimento do vínculo familiar, pelo exercício fático dos direitos e deveres próprios da posse de estado.
O filósofo Bento de Espinosa, em sua obra Ética, fez referência a duas expressões: affectio e affectus, para tratar de coisas diferentes[30]. Nesse sentido, alguns autores, como Gilles Deleuze, entendem que o uso de expressões diversas não podem se referir, para um filósofo, a mesma coisa[31]. A definição espinosana de afetividade coincide com a capacidade de afetar e ser afetado (affectio), incluindo a ideia de sentimentos (affectus), cuja afetação faz perdurar na memória e no corpo os efeitos gerados por essa interação[32].
Em Levy-Brühl, os sentimentos são tratados como fenômenos apreendidos por uma realidade moral, que deve ser estudada de forma objetiva[33]. Desse modo, a percepção dos sentimentos compõe a construção cognitiva do homem, podendo ser apreendida metodologicamente.
A socioafetividade é princípio jurídico[34], cuja função se relaciona exclusivamente aos processos de parentesco (inclusão ou exclusão de vínculos jurídicos familiares) e de conjugalidade, como nos casos de uniões estáveis, uniões homoafetivas ou uniões plurais.
Já a afetividade, usada isoladamente, deve significar relações afetivas e, como tal, só interessam ao direito no seu aspecto dinâmico, qual seja, enquanto resultado de condutas ou comportamentos em relação ao outro. Nesse aspecto, a afetividade pode assumir o contorno de dever de cuidado, uma vez que na interação entre pessoas que têm afeto recíproco, cuidar é decorrência natural. O que pode variar de uma pessoa para outra é o modo de cuidar, pois este já se relaciona culturalmente com o meio em que a pessoa está inserida.
É possível perceber, então, que a afetividade é expressão funcional aplicada aos processos de responsabilidade civil (indenização por dano material ou moral em decorrência do abandono afetivo; e nos casos de perda de parentes, posto que afetividade pode ser tomada também como relação afetiva simples, ou seja, pela perda ou ausência do parente e a afetação que essa perda acarreta) e nos casos de guarda, tutela ou curatela.
Nesse sentido, afetividade não seria um princípio jurídico, mas um valor jurídico, que pode ser relacionado ao dever de cuidado (dever legal) ou direito de convívio (que justifica a indenização nos casos de perda de parentes decorrente de ato ilícito).
CONCLUSÃO
À guisa de conclusão, pode-se afirmar que a socioafetividade é o princípio jurídico, de função normativa, que deve ser aplicado nos casos de inclusão ou exclusão de parentesco jurídico, a partir da identificação de três elementos essenciais: a relação afetiva (elemento emocional interno) e a conduta (elemento social externo) entre o filho e o suposto pai ou a suposta mãe, desenvolvidos em lapso temporal que estabilize o vínculo ali construído. Assim, mesmo que depois estejam rompidos qualquer dos elementos no futuro, como o afeto ou a conduta, o vínculo construído no tempo não pode mais ser desfeito, mantendo a segurança jurídica necessária ao direito do filho em manter o status familiae adquirido.
Quanto à afetividade, esta não exige a continuidade no tempo, mas tão somente à existência das relações afetivas que se desdobram para além do elemento interno do indivíduo, afetando outras pessoas e criando situações jurídicas próprias, como as que decorrem do cuidado – ou da ausência dele. Seria, portanto, mais apropriadamente entendido como valor jurídico e não como um princípio normativo de direito.
Com isso, guardar-se-ia a expressão socioafetividade apenas quando referida ao princípio jurídico e afetividade enquanto valor jurídico, mas não como princípio.
Nesse diapasão, a utilização pelo tribunal da expressão “vínculo de afetividade” ou “laço de afetividade” no sentido próprio de socioafetividade, parece equivocada e perigosa, pois tende a confundir sua funcionalização, comprometendo outros julgados, que terminam prejudicados pela imprecisão terminológica. A ciência jurídica necessita de termos técnicos que estejam corretamente empregados, para manter segurança jurídica. Tal distinção encontra consonância também na evolução da obra do Professor Paulo Lobo, que orienta a cisão entre afeto e afetividade, tomando esta como socioafetividade.
Se um dia houve confusão entre os termos, fruto da incipiência de conhecimento apropriado há dez anos atrás, não se justifica continuar nessa imprecisão, especialmente em razão do amadurecimento da doutrina jurídica nacional nas questões afetas ao direito de família e pela necessidade de aprimoramento constante dos instrumentos da ciência jurídica aplicadas pelo Poder Judiciário.
REFERÊNCIAS
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