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Ministros legislam a própria moral.

Agenda 24/08/2020 às 17:20

A dualidade das figuras paterna e materna é um direito fundamental da criança, devendo ser observado, na falta da família, pelo Estado.

Quanto ao mérito, não há óbice para que pessoas do mesmo sexo possam figurar, juridica­mente, como cônjuges ou companheiros. Aliás, é até aconselhável que o façam, para fins da regulação de efeitos pessoais e patrimoniais incidentes entre os indivíduos. Afinal, é evidente que o instituto "casamento civil", outrora reflexo do "casamento religioso", dele se separou há muito tempo.

Porém, os fins não justificam os meios. Significa dizer, não é porque a causa é relevante, que poderá ser garantida de qualquer forma. Existe regulamentação constitucional e inexiste legislação infraconstitucional sobre o tema, o qual pressupõe inovação da ordem jurídica. Portanto, a admissão de união estável entre pessoas do mesmo sexo somente poderia ter sido realizada através de lei, a qual, inclusive, como uma de suas finalidades, regularia todos os aspectos relevantes.

A Constituição estabelece 3 (três) modelos familiares: a derivada do casamento, da união estável e da relação de parentesco. Tanto a Constituição (artigo 226, §3º, CF/88) quanto a legislação infraconstitucional (artigo 1.723 CC) estabelecem, de forma literal, a ambivalência de sexos (homem e mulher) como requisito de formação da união estável. Tratando-se de requisito para a união estável (instituto mais amplo), mais ainda o é para o casamento (instituto mais específico).

“Art. 226. A família, base da sociedade, tem especial proteção do Estado. Para efeito da proteção do Estado, é reconhecida a união estável entre o homem e a mulher como entidade familiar, devendo a lei facilitar sua conversão em casamento” (destacado, Constituição Federal de 1988).

“Art. 1.723. É reconhecida como entidade familiar a união estável entre o homem e a mulher, configurada na convivência pública, contínua e duradoura e estabelecida com o objetivo de constituição de família” (destacado, Código Civil de 2002).

Ocorre que os integrantes do Supremo Tribunal Federal (STF), em 2011, consideraram admissível a união estável entre pessoas do mesmo sexo, através da técnica "interpretação conforme à Constituição" (ADI 4277 STF). Com arrimo na referida decisão, o Superior Tribunal de Justiça (STJ) considerou admissível a conversão da união estável em casamento (REsp 1.183.378 STJ). Posteriormente, o Conselho Nacional de Justiça (CNJ) considerou possível o casamento direto em cartório (Res. 175/13 CNJ). Nessa ambiência, já há decisão pelo cabimento da Lei 11.340/06 (Lei Maria da Penha) a tais relações (REsp 827.962 STJ) e, irresponsavelmente, também foi admitida a adoção de crianças por pessoas do mesmo sexo (REsp 1.281.093 STJ).

Pois bem.

A admissão da referida situação jurídica é in­cons­titucional porque não poderia ter sido realizada pelo Poder Judiciário. Há quem diga que, ao invés de proferir decisão judicial, os ministros proferiram decisão eminentemente política. Mas, além disso, a decisão dos integrantes do Pretório Excelso em 2011 é inconstitucional porque desrespeitou o artigo 226, §3º, da Constituição Federal de 1988, na medida em que aplicou, de forma inadequada, a técnica jurídica da “interpretação conforme a Constituição”.

A "interpretação conforme à Constituição" é uma técnica decisória usada nos processos de controle de constitucionalidade. Ela incide sobre uma norma que apresenta mais de uma interpretação possível. O órgão constitucional identificará a interpretação conforme à Constituição e inadmitirá todas as demais. Ela possui dois limites: 1º) a norma deve ser polissêmica (apresentar mais de uma interpretação); e, 2º) o STF não deve, subvertendo a vontade do legislador, criar uma norma. Esses limites decorrem da lógica jurídica e foram reconhecidos pela própria jurisprudência do STF.

A decisão em questão desrespeitou os dois clássicos limites referidos.

O artigo 1.723 CC não é polissêmico, isto é, não admite mais de uma interpretação. Basta a interpretação literal para que se chegue ao conteúdo da norma: a união estável é formada por homem e mulher. Não há dúvida na interpretação para que seja eleita uma "interpretação conforme à Constituição". A técnica poderia ser usada se, por exemplo, a norma determinasse que "a união estável é formada por pessoas". Neste caso, haveria duas interpretações possíveis: a de que "pessoas" seria "homem e mulher", e a de que "pessoas" seria "indivíduos de qualquer sexo". Mas, no caso em questão, não há dúvida de interpretação: a união estável é formada por homem e mulher.

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Para ilustrar:

“(...) essa técnica só é utilizável quando a norma impugnada admite, dentre as várias interpretações possíveis, uma que a compatibilize com a Carta Magna, e não quando o sentido da norma é unívoco” (destacado, MCADI 1344 STF).

Outrossim, mesmo que a norma fosse polissêmica, não há, no caso, dúvida sobre a vontade constitucional. Não há dúvida sobre a vontade do legislador constitucional emitida em 1988, na medida em que o infraconstitucional, em 2002, repetiu a norma quase ipsis litteris.

Para ilustrar:

“O princípio da interpretação conforme à constituição (verfassungskonforme auslegung) é princípio que se situa no âmbito do controle de constitucionalidade, e não apenas simples regra de interpretação. A aplicação desse princípio sofre, porém, restrições, uma vez que, ao declarar a inconstitucionalidade de uma lei em tese, o STF – em sua função de corte constitucional – atua como legislador negativo, mas não tem o poder de agir como legislador positivo, para criar norma jurídica diversa da instituída pelo Poder Legislativo. Por isso, se a única interpretação possível para compatibilizar a norma com a Constituição contrariar o sentido inequívoco que o Poder Legislativo lhe pretendeu dar, não se pode aplicar o princípio da interpretação conforme à constituição, que implicaria, em verdade, criação de norma jurídica, o que é privativo do legislador positivo” (destacado, RP 1417 STF).

Logo, em verdade, o STF criou norma. A maior prova é que a nomenclatura constitucional "união estável" foi sugerida pela Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB), que não sugeriria o nome de um instituto jurídico que desrespeitasse as bases da Instituição que representa.

Não é sem motivo que o sistema constitucional estabelece que as inovações ao ordenamento jurídico devem ocorrer por meio de lei (5º, XXXV, CF). Através do processo constitucional, todos os detalhes da situação jurídica devem ser enfrentados para que, ao final, se tenha uma norma qualificada a atender os verdadeiros intentos do titular do poder constituinte.

Porém, não foi o que ocorreu. Sendo a origem inconstitucional, uma sucessão de erros está sujeita a ocorrer, como de fato se desencadeou. Ao criar uma situação inconstitucional, o STF de 2011 deu azo a diversas irresponsabilidades e anomalias jurídicas. Uma delas é a possibilidade de adoção por pessoas do mesmo sexo.

Com arrimo no “Frankenstein” legislativo do STF, uma tendência jurisprudencial emergiu, no mais das vezes através de juízes que “saíram do armário” politicamente. Uma vez endossada pelo órgão responsável por cuidar da Constituição em última análise, essa “jurisprudência Woodstock” não encontrou limites.

Diante da sanha reformadora dessa parcela jurisprudencial, a figura mais interessada foi esquecida pelos executores do direito: a criança. Os juízes “paladinos da justiça”, sob o discurso de proteger os “fracos e oprimidos”, relegaram as crianças ao antigo status de “objeto de direito”, não mais as tratando como “sujeitos de direitos”.

Por óbvio, embora esquecido por essa parcela jurisprudencial, a viabilidade do instituto da adoção deve ser analisada preponderantemente sob a ótica da criança, e não sob a ótica dos adotantes. Não foi o que aconteceu. A sanha reformadora passou por cima de tudo e de todos – Constituição e crianças – sem ponderar os mínimos aspectos técnicos.

Sem considerar a inconstitucionalidade da admissão da união estável por pessoas do mesmo sexo em razão do erro de julgamento do STF, não é difícil concluir que, por si só, a adoção de crianças por pessoas do mesmo sexo é inconstitucional e ilegal. Isso porque a criança possui o direito de permanecer no seio de sua família e, na falta, possui o direito de integrar uma família com a figura paterna e materna.

Ao estabelecer que a família é composta por homem e mulher e que é dever dela assegurar à criança os direitos básicos formadores da dignidade (artigo 227 da Constituição/88), a Constituição consagra o direito à dualidade das figuras paterna e materna.

Esse direito é garantido com mais detalhes na legislação infraconstitucional. O Estatuto da Criança e do Adolescente, de 1990, estabeleceu 3 (três) tipos de família: 1) natural (pai e mãe); 2) ampliada (parentes próximos); e, 3) substituta (guarda, tutela ou adoção). Diante dessa classificação, a norma estabeleceu que a família natural ou ampliada é regra e a família substituta é exceção.

“Art. 19. É direito da criança e do adolescente ser criado e educado no seio de sua família e, excepcionalmente, em família substituta, assegurada a convivência familiar e comunitária, em ambiente que garanta seu desenvolvimento integral” (destacado, Estatuto da Criança e do Adolescente de 1990).

Portanto, a família natural é direito da criança. E a família natural, como o próprio nome sugere, é composta por pai e mãe. Ora, se a própria adoção é excepcional, nada justifica adicionar uma outra excepcionalidade – união de pessoas do mesmo sexo – a uma situação que já é excepcional. A exceção vincula-se à regra, de modo que a primeira só possui essa natureza enquanto estiver atrelada, exatamente como o é, à segunda. Nada legitima uma soma de situações excepcionais reguladas por normas distintas, senão o “hiperativismo” judicial perpetrado pelos integrantes da Suprema Corte brasileira de 2011.

Afinal, tanto a figura paterna, quanto a figura materna, são igualmente importantes para a formação da personalidade do indivíduo. E cabe à sociedade, na falta da família, garantir esse direito à criança. A plenitude dos direitos fundamentais da criança serão efetivados somente se essa garantia for atendida.

Portanto, o controle de constitucionalidade urge ser usado como instrumento assegu­rador dos direitos fundamentais da criança, e não para sobrepujar a política ao direito. E o direito à dualidade das figuras paterna e materna é um direito fundamental da criança, devendo ser observado pela família e pelo Estado.


REFERÊNCIAS

Sobre o autor
Matheus Lima Pedroso

Advogado especialista em Direito Público e em Tutela Coletiva

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

PEDROSO, Matheus Lima. Ministros legislam a própria moral.: Pelo direito das crianças à dualidade das figuras paterna e materna. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 25, n. 6263, 24 ago. 2020. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/84733. Acesso em: 23 nov. 2024.

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