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Continuando os comentários à Lei da Pandemia (Lei nº 14.010, de 10 de junho de 2020 - RJET).

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O Congresso Nacional derrubou o veto presidencial a alguns artigos da Lei do Regime Jurídico Emergencial e Transitório (RJET) da pandemia do covid-19. Com a entrada em vigor desses dispositivos, passamos a analisá-los, em continuação ao nosso artigo anterior.

Sumário: Introdução. Reuniões em Pessoas Jurídicas de Direito Privado (art. 4º). Revisão e resolução contratual em razão da pandemia (arts. 6º e 7º) e Locação predial urbana (art. 9º). Caso Fortuito e retroatividade (art. 6º).  Imprevisibilidade (art. 7º). Contrato de Locação de Imóveis Urbanos (art. 9º).


1. Introdução

Em texto anterior[1], havíamos comentado, com detalhamento, todos os artigos de interesse para o Direito Civil e para o Direito Processual Civil na “Lei da Pandemia” (Lei nº 14.010, de 10 de junho de 2020), também chamada de Lei do RJET (Regime Jurídico Emergencial e Transitório).

Na ocasião, deixamos de tratar dos artigos que haviam sido vetados pelo Presidente da República para aguardarmos se o Congresso Nacional rejeitaria ou não os respectivos vetos.

E o Congresso Nacional o fez parcialmente[2]. Derrubou o veto presidencial aos arts. 4º, 6º e 7º (caput e §§ 1º e 2º) e ao caput do art. 9º da referida Lei[3].

Com a entrada em vigor desses dispositivos, passamos, neste artigo, a analisá-los, de modo que, em conjunto com o nosso texto anterior, o leitor terá acesso a um comentário detalhado de toda a “Lei da Pandemia”[4][5].


2. Reuniões em Pessoas Jurídicas de Direito Privado (art. 4º)

TEXTO DO DISPOSITIVO

Art. 4º As pessoas jurídicas de direito privado referidas nos incisos I a III do art. 44 do Código Civil deverão observar as restrições à realização de reuniões e assembleias presenciais até 30 de outubro de 2020, durante a vigência desta Lei, observadas as determinações sanitárias das autoridades locais.

NATUREZA DECLARATÓRIA DO DISPOSITIVO

Há leis que não chegam propriamente a inovar o ordenamento jurídico. É o caso das leis que positivam regras que, mesmo sem texto expresso, já eram admitidas pela doutrina e pela jurisprudência. Nesses casos, o legislador, por meio da autoridade do texto legal, consolida a orientação doutrinária e jurisprudencial e, assim, impede divergências. Trata-se de leis com “natureza declaratória”[6].

O dispositivo em pauta engrossa a lista dos exemplos de leis de natureza declaratória. Ele apenas positiva o que a comunidade jurídica majoritariamente já entendia, ou seja, que as determinações locais de restrições de circulação ou de aglomeração presencial de pessoas também coíbem a realização de assembleias e reuniões de pessoas jurídicas.

Portanto, o dispositivo analisado deve ser interpretado no sentido de que, se houver determinação ou norma local restringindo a aglomeração de pessoas, as reuniões e as assembleias de pessoas jurídicas só podem ocorrer em conformidade com essas limitações.

Se, todavia, inexistirem restrições por lei, decreto ou ato administrativo local, emanado da autoridade competente, nada impedirá a realização de conclaves presenciais das pessoas jurídicas.

PESSOAS JURÍDICAS NÃO CITADAS NO ART. 4º DA LEI DA PANDEMIA

Apesar da sua natureza declaratória, o art. 4º da Lei da Pandemia criou um ponto de “estresse hermenêutico” ao deixar de abranger as organizações religiosas e os partidos políticos.

Com efeito, o preceito apenas alude a três tipos de pessoas jurídicas (associações , sociedades e fundações - art. 44, I a III do CC), o que poderia dar ensejo à interpretação de que outros tipos de pessoas jurídicas (partidos políticos e organização religiosa) e entes despersonalizados (ex.: fundos de investimento) estariam autorizados a aglomerar seus membros em reuniões ou em assembleias mesmo se houver norma local proibitiva.

Nada mais enganoso!

A proibição de aglomeração, de acordo com a diretriz da norma local, tem de ser observada por todas as pessoas jurídicas.

Diante disso, indaga-se: por que o legislador não listou todas as pessoas jurídicas no art. 4º da Lei da Pandemia?

A ausência da EIRELI (art. 44, VI, CC) é compreensível, por se tratar de ente unipessoal. Mas e as demais pessoas?

A explicação aparentemente centra-se na confusão que a redação dúbia do dispositivo causou entre os Deputados e os Senadores durante a fase do processo legislativo.

Muitos parlamentares estavam a entender que o dispositivo se endereçava não apenas aos conclaves dos membros da pessoa jurídica, mas também a eventuais encontros de não membros, tudo porque o preceito aludia não apenas a “assembleias”, mas também a “reuniões”.

Isso levou os parlamentares a excluírem as organizações religiosas e os partidos políticos do texto inicialmente proposto.

O motivo da exclusão é o de que o dispositivo poderia dar a entender que os templos religiosos (igrejas, mesquitas, terreiros etc.) não poderiam realizar “reuniões” com seus fiéis e que os partidos políticos não poderiam realizar protestos eventualmente necessários[7]. Os parlamentares temiam que o preceito ferisse o exercício da liberdade religiosa e política.

Sob essa ótica, vemo-nos compelidos a concordar que o dispositivo em pauta merecia ser vetado, pois, além de desnecessário (por conta de sua natureza declaratória), consagrou uma redação capaz de criar confusão.

Seja como for, esclareça-se que, quando o dispositivo menciona o verbete “reuniões”, na verdade, ele se refere a conclaves de membros da própria pessoa jurídica para a deliberação de questões estritamente relacionadas ao seu funcionamento, tudo com respeito ao quorum de votação previsto na lei ou no ato constitutivo (ex.: deliberar sobre venda de imóveis), e não aos “serviços” prestados ao público (ex.: cerimônias religiosas feitas com os fiéis).

De qualquer forma, independentemente da existência ou não do dispositivo, todas as pessoas jurídicas, inclusive partidos e organizações religiosas, devem, por certo, observar, em respeito ao resguardo da saúde pública, as normas locais restritivas referentes a aglomerações no exercício da sua atividade perante terceiros.

SITUAÇÃO APÓS 30 DE OUTUBRO

Outra tentação a que está exposto o leitor ao ler o dúbio texto do art. 4º da Lei da Pandemia é a de entender que, como o referido dispositivo limitou a observância das normas locais de restrição de aglomeração de pessoa até 30 de outubro de 2020, as pessoas jurídicas teriam salvo-conduto para desrespeitar as normas locais após essa data.

Ledo engano!

A observância das leis locais pelas pessoas jurídicas existe independentemente do art. 4º da Lei da Pandemia, que, como já dito, tem natureza declaratória.

30 DE OUTUBRO ou 31 DE DEZEMBRO?

O caput do art. 7º da Lei nº 14.030/2020[8] guarda aparente antinomia com o art. 4º da Lei da Pandemia. Aquele fixa 31 de dezembro de 2020 como marco final para as restrições à realização de reuniões e de assembleias presenciais, ao passo que este último elege a data de 30 de outubro de 2020.

O art. 4º da Lei da Pandemia entrou em vigor posteriormente ao caput do art. 7º da Lei nº 14.030/2020, de maneira que este último preceito poderia ser tido por revogado.

Logo, prevalece o prazo de 30 de outubro de 2020 como marco final.

Isso, porém, não resultará em nenhuma consequência prática, pois, conforme já realçado, as pessoas jurídicas têm de respeitar as normas locais que estabelecem restrição de aglomeração de pessoas independentemente de qualquer lei federal.

Fique claro que não houve revogação do parágrafo único do art. 7º da Lei nº Lei nº 14.030/2020, que prorroga, por sete meses, os prazos de assembleias e de mandatos de dirigentes de associações, fundações e de sociedades (que não sejam limitadas, anônimas ou cooperativas[9]), além de ratificar a autorização de virtualização das assembleias na forma do art. 5º da Lei da Pandemia.

COMO REALIZAR AS ASSEMBLEIAS E AS REUNIÕES?

Havendo restrições locais à realização de conclaves presenciais, as pessoas jurídicas deverão se valer da via digital.

Não importa se há autorização no contrato social ou no estatuto social, pois, ao menos até 30 de outubro de 2020, as reuniões e as assembleias virtuais de pessoas jurídicas estão autorizadas pelo art. 5º da Lei da Pandemia (que tivemos a oportunidade de comentar minuciosamente em nosso artigo anterior[10], ao qual reportamos o amigo leitor).

Nos casos de cooperativas, sociedades anônimas e sociedades limitadas, a autorização de assembleias virtuais não foi submetida a nenhum prazo final e ocorrerá na forma de ato infralegal a ser editado, tudo conforme os seguintes dispositivos acrescidos pela Lei nº 14.030/2020:

  1. o novo art. 43-A da Lei do Cooperativismo (Lei nº 5.764/1971);
  2. o novel parágrafo único do art. 121 e os §§ 2º e 2º-A do art. 124 da Lei de Sociedade Anônima (Lei nº 6.404/1976); e
  3. o novo art. 1.080-A do Código Civil.

3. Revisão e resolução contratual em razão da pandemia (arts. 6º e 7º) e Locação predial urbana (art. 9º)

3.1. Caso Fortuito e retroatividade (art. 6º)

TEXTO DO DISPOSITIVO

Art. 6º As consequências decorrentes da pandemia do coronavírus (Covid-19) nas execuções dos contratos, incluídas as previstas no art. 393 do Código Civil, não terão efeitos jurídicos retroativos.

ALCANCE DA NORMA

O dispositivo possui natureza declaratória, porque positiva o que a doutrina e a jurisprudência majoritária já entendiam, tudo com o objetivo de garantir segurança jurídica e prevenir divergências.

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O preceito deixa claro que os transtornos causados pela pandemia nos contratos, ainda que possam ser caracterizados como caso fortuito ou força maior, não podem ser invocados para atingir situações jurídicas anteriores à própria pandemia.

Em outras palavras, os transtornos da pandemia não poderiam justificar problemas ocorridos anteriormente, durante a execução contratual.

Por exemplo, num contrato de locação, se o inquilino deixou de pagar o aluguel de novembro de 2019, ele não poderá, em hipótese alguma, invocar a pandemia que só atingiu o Brasil a partir de fevereiro de 2020 como um evento fortuito ou de força maior. Assim, não haveria como ele exculpar-se em relação àquela prestação inadimplida ou isentar-se de continuar suportando os encargos moratórios respectivos.

Por fim, é recomendável lembrar não se poder afirmar que a pandemia repercutiu, necessariamente, em toda e qualquer relação contratual.

A pandemia gerou, sem dúvida, várias repercussões negativas (e ainda poderá acarretar outras), como: desvalorização monetária, restrição de circulação de pessoas, fechamento de estabelecimentos, desabastecimento de determinados produtos etc.

Esses vários desdobramentos, por serem oriundos de uma circunstância absolutamente inesperada, surpreenderam os sujeitos de várias relações contratuais.

Podemos citar exemplos baseados em casos concretos: (1) muitas lojas ficaram proibidas de funcionar por medidas de isolamento e de quarentena, e, assim, ficaram sem chance de obter faturamento para pagar o aluguel; (2) vários profissionais autônomos ficaram sem cliente algum durante o período de isolamento e de quarentena e, assim, ficaram sem dinheiro para pagar aluguel; (3) empresários que haviam se comprometido a pagar uma dívida não conseguiram honrar seu compromisso por haverem sido surpreendidos pela crise econômica causada pela pandemia etc.

Esse cenário excepcional gerou, para usar as palavras do art. 6º da Lei do RJET, várias “consequências decorrentes da pandemia do Coronavírus (Covid-19) na execução dos contratos”.

Dentre esses cenários possíveis, destacamos:

  1. a impossibilidade absoluta (fortuita) do cumprimento da obrigação, conduzindo à resolução contratual;
  2. desequilíbrio da base contratual, com onerosidade para uma das partes, conduzindo à resolução ou à revisão contratual (aplicação da teoria da imprevisão – art. 317 e arts. 478 a 480, CC - ou a aplicação da teoria da onerosidade excessiva – art. 6º, V, do CDC)[11]
  3. a exceção de inseguridade (art. 477 do CC).

Quanto à primeira consequência, a depender do tipo de contrato[12], justifica-se  a dissolução contratual, sem imputação de responsabilidade civil[13] (art. 393, caput, do CC). É o caso do contrato firmado com agência de turismo, cujo objeto era a venda de pacote de lua-de-mel em abril ou maio de 2020, em plena “janela pandêmica”.

No tocante às segunda e terceira consequências, não sendo o caso de resolução, a pandemia é fato superveniente que pode ocasionar a revisão do contrato, dado o impacto na sua base econômica objetiva.

À luz do art. 6º da Lei da Pandemia, essas supracitadas consequências jurídicas decorrentes da pandemia não devem ser aplicadas com “efeitos jurídicos retroativos”. Aliás, mesmo sem esse dispositivo, tal deveria ter sido observado, porque o preceito apenas positiva a doutrina e a jurisprudência anterior.

A propósito, há vários artigos doutrinários publicados por respeitados doutrinadores esclarecendo essas consequências jurídicas. Citamos, ilustrativamente, alguns deles em nota de rodapé[14].

3.2. Imprevisibilidade (art. 7º)

TEXTO DO DISPOSITIVO

Art. 7º Não se consideram fatos imprevisíveis, para os fins exclusivos dos arts. 317, 478, 479 e 480 do Código Civil, o aumento da inflação, a variação cambial, a desvalorização ou substituição do padrão monetário.

§ 1° As regras sobre revisão contratual previstas na Lei nº 8.078, de 11 de setembro de 1990 (Código de Defesa do Consumidor) e na Lei nº 8.245, de 18 de outubro de 1991, não se sujeitam ao disposto no caput deste artigo.

§ 2° Para os fins desta Lei, as normas de proteção ao consumidor não se aplicam às relações contratuais subordinadas ao Código Civil, incluindo aquelas estabelecidas exclusivamente entre empresas ou empresários.

ALCANCE DA NORMA

O preceito positiva a doutrina e a jurisprudência já pacificadas acerca da inviabilidade de considerar oscilações cambiais e monetárias como fatos imprevisíveis autorizadores da resolução ou revisão contratual.

De fato, os arts. 317, 478, 479 e 480 do CC consagram a teoria da imprevisão, à luz da qual é cabível a revisão ou a resolução de um contrato se estiverem presentes os seguintes requisitos: (1) fato superveniente, imprevisível e extraordinário; (2) prestação manifestamente onerosa; e (3) extrema vantagem para a outra parte.

O art. 7º apenas faz um oportuno esclarecimento acerca do alcance do requisito do “fato imprevisível”, excluindo daí as oscilações monetárias ou cambiais. Ele tem, portanto, a natureza de uma norma interpretativa.

À semelhança do que já foi dito quanto ao art. 6º, o art. 7º - apesar de não ser aplicável a contratos anteriores em virtude da vedação à retroatividade mínima diante de ato jurídico perfeito - tem a importante finalidade de servir de guia interpretativo de modo a evitar insegurança jurídica.

A derrubada do veto a esse dispositivo foi muito oportuna por deixar aos juristas um vetor uniformizador na aplicação do Direito.

Em verdade, o art. 7º é mera positivação da jurisprudência anterior. A intenção do legislador não foi inovar nem mudar a jurisprudência. Isso é reforçado por uma interpretação histórica, pois o parecer da Senadora Simone Tebet, durante o processo legislativo da Lei do RJET no Senado, foi expresso nesse sentido ao justificar o texto do art. 7º com estas palavras, in verbis[15]:

O art.7º não inovou quanto à jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça e das cortes brasileiras desde a década de 1930, após o surgimento dos primeiros casos de revisão contratual em virtude da quebra da Bolsa de 1929. São acórdãos como este: “o REsp 87226/DF, rel. Min. Costa Leite, 3.ª T., j. 21.05.1996, DJ 05.08.1996: “Civil. Teoria da imprevisão. A escalada inflacionaria não é um fator imprevisível, tanto mais quando avençada pelas partes a incidência de correção monetária. Precedentes. Recurso não conhecido”.”

Invoco a autoridade do ministro Antonio Carlos Ferreira, do Superior Tribunal de Justiça, em seu artigo “Revisão judicial de contratos: diálogo entre a doutrina e a jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça”, publicado na Revista de Direito Civil Contemporâneo, vol. 1, p. 27 – 39, out – dez, 2014:

“Ocorre que o Código de Defesa do Consumidor e o Código Civil adotam marcos teóricos diferentes para justificar uma eventual intervenção judicial para a revisão ou resolução dos contratos. Essa diferenciação de fundamentos não é um expediente de puro interesse acadêmico. Ela conserva grande utilidade prática e impede a inadequada aplicação dos dispositivos de ambos os códigos, além de restringir os efeitos da insegurança jurídica, tão danosa à economia dos contratos. Esse tema presta-se, de modo especialmente fecundo, ao diálogo entre a doutrina e a jurisprudência, o que se tem demonstrado tão necessário quanto rarefeito nos dias atuais.

(...) Parece ser mais adequado definir a imprevisão pelo que ela não é, admitindo-a como um filtro para se restringir as possibilidades de o juiz intervir no contrato. Trata-se de entendimento doutrinário e que se baseia em pesquisa jurisprudencial, que revelou a existência de um grupo de fenômenos macroeconômicos que os tribunais, ao longo do século XX, definiram como previsíveis, como a inflação, a mudança de moeda e o aumento da taxa de juros.”

Mais do que prestigiar a doutrina e a jurisprudência, o art.7º transmite duas mensagens à sociedade e ao mercado: caso ocorram os fenômenos nele descritos, que hoje não estão presentes na Economia, mas poderão ocorrer, como se deu em 1999 na crise cambial daquele ano, as partes iguais e paritárias não poderão alegar que esses fatos eram imprevisíveis. A outra mensagem é a de que, para consumidores e locatários, partes vulneráveis, não será exigido esse requisito, o que protege como maior eficiência esse segmento da sociedade. É nessa mesma linha que o ministro Dias Toffoli já defendeu no texto “Revisão contratual e boa-fé: confronto inevitável?”, publicado em Temas atuais e polêmicos na Justiça Federal. Salvador: JusPODIVM, 2018, p. 189-203.

Ademais, o art. 7º não poderia ser aplicado para contratos anteriores em razão da vedação à retroatividade (ainda que mínima) diante de atos jurídicos perfeitos.  Ele, no entanto, por ser a positivação de doutrina e jurisprudência majoritárias anteriores, pode servir de guia interpretativo.

Outro ponto ainda deve ser destacado.

O art. 7º corretamente ressalva os contratos consumeristas. De fato, a teoria da imprevisão consagrada nos arts. 317, 478, 479 e 480 do CC não se aplica aos contratos de consumo, pois, para esses, o art. 6º, inciso V, do CDC adotou a teoria do rompimento da base objetiva do contrato, à luz da qual a resolução ou a revisão do contrato consumerista se satisfaz com estes dois requisitos: (1) fato superveniente; e (2) prestação manifestamente onerosa ao consumidor. Em relação de consumo, não há necessidade de o fato ser imprevisível, portanto. Nessa linha, também se utiliza a expressão, no Direito do Consumidor, “teoria da onerosidade excessiva”. Desse modo, inflação ou variação cambial podem, em contratos de consumo, ensejar a revisão ou a resolução contratual se acarretarem onerosidade excessiva ao consumidor.

Por fim, o art. 7º não abrange hipóteses de hiperinflação ou de hiperdesvalorização cambial, assim entendidos aqueles casos que fogem demasiadamente da previsibilidade esperada do homem comum. O art. 7º da Lei do RJET apenas exclui do campo semântico da imprevisibilidade a inflação e a desvalorização cambial, e não a hiperinflação nem a hiperdesvalorização cambial. Essas hipóteses caracterizam-se como fatos imprevisíveis para efeito de aplicação da teoria da imprevisão prevista no Código Civil. Por exemplo, ninguém espera que, por força da pandemia, haja inflação a ponto de uma prestação mensal de R$ 1.000,00 sujeita a índice de correção monetária seja, “da noite para o dia”, catapultada para a cifra de um milhão de reais. Nesses casos, não há uma inflação, e sim uma hiperinflação, a qual poderá ser considerada fato imprevisível para efeito de revisão ou resolução contratuais com fulcro na Teoria da Imprevisão (arts. 317 e 478 do CC).

SITUAÇÃO DA LOCAÇÃO PREDIAL URBANA

Cabe fazer uma advertência em contratos de locação predial urbana regida pela Lei do Inquilinato (Lei nº 8.245/91), pois o § 1º do art. 7º da Lei do RJET ressalva esses tipos de contratos. Há certa imprecisão redacional nesse dispositivo, o que pode ser corrigida pela via da interpretação.

É que a Lei nº 8.245/91, que trata das locações de imóveis urbanos, não contém regras específicas para revisão contratual por fatos supervenientes e imprevisíveis que tornem manifestamente desproporcional a prestação. No regime jurídico específico das locações de imóveis urbanos, a revisão contratual se funda no próprio CC (arts. 317, 478, 479 e 478 do CC).

Além da atualização monetária anual do aluguel (que sequer pode ser considerada como uma revisão contratual por ser, na verdade, cumprimento de cláusula contratual), a única revisão contratual tratada na Lei do Inquilinato com alguma conexão com o tema em pauta não diz respeito a fatos imprevisíveis, e sim a um fato absolutamente previsível: a oscilação positiva ou negativa do valor de mercado do aluguel ao longo do tempo.

A Lei do Inquilinato prevê o direito de o locador ou o inquilino, após três anos, por meio de uma ação revisional, pleitear o alinhamento do valor pactuado do aluguel ao atual valor de mercado (arts. 19, 54-A, § 1º, 68 e seguintes da Lei do Inquilinato). Esse direito à revisão não depende de a variação do valor de mercado do aluguel haver decorrido de um fato imprevisível ou não, de modo que o caput do art. 7º da Lei do RJET (que trata apenas da definição de fato imprevisível) é irrelevante para esse efeito.

Daí se segue que há certa imprecisão redacional no § 1º do art. 7º da Lei do RJET ao fazer alusão a supostas “regras sobre revisão contratual previstas (...) na Lei nº 8.245, de 18 de outubro de 1991”.

Essa imprecisão, porém, não obscurece o real sentido do preceito, que é o de estabelecer que, em contratos de locação, para os quais é aplicável a teoria da imprevisão prevista no CC, a desvalorização da moeda por inflação, variação cambial ou substituição da moeda (como decorrência da Covid-19) pode ser considerada um fato imprevisível e, portanto, pode ensejar a revisão ou a resolução do contrato de locação.

Em outras palavras, o § 1º do art. 7º apenas quis excepcionar a interpretação legal prevista no seu caput para os contratos de locação e de consumo.

Portanto, se o aluguel se tornar muito oneroso para o inquilino em razão de uma inflação extraordinária causada pela Covid-19, é cabível a resolução ou revisão contratual com base na teoria da imprevisão do Código Civil.

Realmente, é digno de elogios o § 1º do art. 7º da Lei do RJET, pois, à semelhança do que sucede com os consumidores, o inquilino também é, em geral, parte vulnerável no contrato de locação e, por isso, deve ser protegido de correções monetárias que tornem o aluguel manifestamente desproporcional.

Por fim, entendemos que a regra acima também pode beneficiar o locador. Se eventualmente o valor do aluguel se tornar insignificante diante de uma desvalorização monetária ou cambial, ele também poderá pleitear a resolução ou a revisão contratual. Em tal caso, o juiz deve preferir a revisão do contrato à sua resolução, diante do princípio da conservação do negócio jurídico.

BREVE REFLEXÃO QUANTO AO §2º DO ART. 7º

Em nossa visão, trata-se de norma desconectada da própria natureza emergencial e transitória da “Lei da Pandemia”.

 A norma não inova, na medida em que salienta a aplicação do Código Civil para relações civis e empresariais.

3.3. Contrato de Locação de Imóveis Urbanos (art. 9º)

TEXTO DO DISPOSITIVO

Art. 9º Não se concederá liminar para desocupação de imóvel urbano nas ações de despejo, a que se refere o art. 59, § 1º, incisos I, II, V, VII, VIII e IX, da Lei nº 8.245, de 18 de outubro de 1991, até 30 de outubro de 2020.

Parágrafo único. O disposto no caput deste artigo aplica-se apenas às ações ajuizadas a partir de 20 de março de 2020. (VETADO)

DO ALCANCE LIMITADO DO ART. 9º

O art. 9º não proíbe o despejo liminar de um modo geral, senão em certas hipóteses.

Em razão das medidas adotadas para conter a propagação da pandemia no Brasil, passou a haver dificuldade operacional na locação de imóveis, pois os proprietários (ou seus corretores) passaram a evitar contatos presenciais com interessados por conta do risco de contaminação viral. Permitir o despejo nesse período poderia levar o inquilino a ficar sem um lugar para morar, pois seria difícil conseguir outro imóvel para alugar nesse período.

Ademais, admitir o despejo, sem restrição, acabaria por prejudicar as medidas de isolamento social determinadas pelos governos locais nesse período de pandemia.

Acresça-se a isso que a crise financeira causada pelo coronavírus atingiu também muitos inquilinos, subtraindo-lhes a capacidade de honrar o valor dos aluguéis.

Essa dura realidade acometeu vários países no mundo.

Nesse contexto, a Alemanha foi bem intervencionista e proibiu o despejo por inadimplemento de aluguéis entre abril e junho de 2020, visto que o inquilino ganhou o direito de adiar o pagamento dessas parcelas até dois anos depois do fim desse prazo, ou seja, até 30 de junho de 2022[16].

A Argentina seguiu caminho similar, vedando o despejo e assegurando o direito ao parcelamento, em seis parcelas mensais iguais, de aluguéis vencidos entre 29 de março e 30 de setembro, desde que se tratasse de locações socialmente sensíveis, a exemplo daquelas que representam a única moradia do inquilino[17].

Alguns Estados norte-americanos, como o de Nova Iorque[18] e o da Flórida[19], também vedaram o despejo.

Na Inglaterra, também se restringiu o despejo, suspendendo, por 90 dias, a tramitação dos processos de despejo[20].

Não se trata de uma solução simples, pois também há um grande número de locadores que necessita da renda do seu único imóvel locado para sobreviver.

Talvez por isso, o art. 9º da Lei do RJET preferiu ser mais contido, proibindo a tutela liminar em situação específica: o despejo concedido no início da ação sem citação prévia da outra parte (inaudita altera pars) e com caução de três aluguéis, em algumas hipóteses listadas no § 1º do art. 59 da Lei de Inquilinato.

As situações do § 1º do art. 59 da Lei do Inquilinato que não mais autorizam a liminar, até 30 de outubro de 2020, nos termos do dispositivo ora analisado, são as seguintes:

  1. por inadimplemento de aluguéis, desde que haja uma destas situações: 
    1.a) o locador não dispor de nenhuma garantia, como uma fiança (art. 59, § 1º, IX, Lei do Inquilinato) ou 
    1.b) acordo escrito com duas testemunhas, no qual tenha sido ajustado o prazo mínimo de seis meses para desocupação, contado da assinatura do instrumento (art. 59, § 1º, I);
  2. por extinção do contrato de trabalho do inquilino, nos casos de locação profissional, ou seja, de locação vinculada ao emprego do inquilino (59, § 1º, II);
  3. por haver sublocatário no imóvel após a extinção do contrato de locação (art. 59, § 1º, V,);
  4. pelo término do prazo notificatório previsto no parágrafo único do art. 40, sem apresentação de nova garantia apta a manter a segurança inaugural do contrato (art.59, VII);
  5. pelo fim do prazo do contrato de locação comercial, com ação proposta nos trinta dias seguintes ao fim desse prazo ou de notificação resilitória (art. 59, VIII).

Como se vê, trata-se de hipóteses não tão frequentes.

A maior parte das ações de despejo decorrem de inadimplemento de aluguéis em contratos de locação com garantias (fiança, por exemplo), hipóteses essas que já não admitiam a tutela provisória inaudita altera pars do art. 59, § 1º, da Lei do Inquilinato. O que fez o legislador foi proibir a tutela provisória também para as locações sem garantia, nas hipóteses pouco usuais listadas acima.

É OU NÃO CABÍVEL PROIBIR DESPEJO EM OUTRAS HIPÓTESES?

Em que pese o art.  9º da Lei do RJET se limitar a alguns casos específicos de liminar de despejo, indaga-se: o juiz pode ou não proibir outros despejos (como o decorrente de um cumprimento provisório de sentença) com base no ordenamento jurídico atual, valendo-se, por exemplo, de princípios como o da dignidade da pessoa humana?

O tema comporta reflexão e, certamente, discussões.

Entendemos que, em geral, como o art. 9º da Lei do RJET se restringe a proibir a tutela provisória inaudita altera pars em apenas algumas hipóteses do art. 59, § 1º, da Lei de Inquilinato, o juiz deve abster-se de alargar, com base em princípios, a vedação de despejo.

Afinal, o Judiciário precisa atentar para a opção construída pelo Legislativo, sob pena de incorrer em indevido ativismo judicial. O legislador, na sua competência constitucional dentro do arranjo democrático brasileiro, deu concreção aos valores constitucionais, de modo que não é adequado que o juiz se afaste dessa opção legislativa por mera preferência pessoal.

De fato, pelo que se extrai do processo legislativo, o legislador preferiu ser contido em matéria de despejo, porque, embora o inquilino esteja em situação sensível nesse período excepcional da pandemia, também muitos locadores estão combalidos financeiramente, especialmente aqueles que dependem do aluguel como sua única fonte de sobrevivência. O legislador buscou equilibrar, na balança da Justiça, os infortúnios das duas partes.

Mas o Direito não é uma ciência exata.

Em situações justificadas e excepcionais, como aquela em que o inquilino esteja submetido a um delicado tratamento de saúde, o juiz poderia cogitar admitir, fundamentadamente, uma interpretação mais "elástica" da norma legal.

Caberá ao juiz a tarefa árdua de “manusear cristais” ao enfrentar os vários casos concretos que deverão aportar no Judiciário.

DIREITO AO PARCELAMENTO OU À MORATÓRIA

O legislador expressamente não quis estabelecer nenhum direito ao parcelamento ou à moratória de aluguéis durante o período da pandemia. E isso pode ser constatado ao se observar o próprio processo legislativo da Lei do RJET.

Quando nasceu o Projeto de Lei do RJET (Projeto de Lei nº 1.179, de 2020, do Senador Anastasia), havia previsão expressa do direito do inquilino de suspender o pagamento dos alugueis devidos entre março e outubro de 2020 e de parcelá-lo em cinco vezes[21].

O Plenário do Senado, porém, por meio do parecer da Senadora Simone Tebet, excluiu esse dispositivo sob o argumento de que não conviria conceder uma moratória ampla e irrestrita a todos os inquilinos, especialmente porque o ordenamento jurídico já dispõe de ferramentas para, a depender do caso concreto, permitir que o juiz revise o contrato e até prorrogue o pagamento de aluguéis. Veja este excerto do parecer da Senadora Tebet[22]:

A proposição poderia ter adotado o caminho da moratória geral dos contratos, dilatando prazos e restringindo direitos dos credores. Esse caminho não foi adotado porque o Direito brasileiro, tanto no Código Civil quanto no Código de Defesa do Consumidor, já possui mecanismos muito eficientes para permitir a revisão judicial dos contratos. O projeto orienta-se para impedir que haja uma ampla judicialização por uso indevido da pandemia como uma cláusula geral de liberação dos deveres das partes. Medidas protetivas no âmbito de contratos de serviços regulados (transportes, telecomunicações, gás, energia elétrica e água) podem e devem ser adotadas, mas é fundamental que as agências reguladoras liderem esse processo, dada a existência de inúmeras implicações no equilíbrio econômico-financeiro de tais ajustes.

(...)

O art. 10 merece ser suprimido por prever uma presunção absoluta de que os inquilinos não terão condição de pagar os aluguéis e por desconsiderar que há casos de locadores que sobrevivem apenas dessas rendas. O ideal é deixar para as negociações privadas esse assunto, com a lembrança de que o ordenamento jurídico já dispõe de ferramentas para autorizar, a depender do caso concreto, a revisão contratual, a exemplo dos arts. 317 e 478 do Código Civil, ou de dispositivos específicos da Lei do Inquilinato.

Ainda que assim não fosse, caso a Lei do RJET houvesse previsto uma moratória geral ou um direito ao parcelamento, haveria forte obstáculo jurídico a que essa disposição legal fosse aplicada a contratos de locações celebrados anteriormente à entrada em vigor da lei emergencial. É que aí haveria uma norma de Direito Material, que, como se sabe, não pode atingir nem mesmo efeitos futuros de ato jurídico perfeito pretérito: é vedada a retroatividade mínima diante desse óbice constitucional[23].

Portanto, a possibilidade ou não de se conceder uma moratória ou um parcelamento de aluguéis ao inquilino deverá ser analisada em cada caso concreto pelo juiz, valendo-se das ferramentas já disponíveis no ordenamento jurídico, como a teoria da imprevisão, a quebra da base objetiva do contrato, a frustração do fim do contrato etc.

E, nesse contexto, uma solução bem ponderável foi aventada pelos professores Flávio Tartuce, José Fernando Simão e Maurício Bunazar, os quais, por meio de uma sugestão de redação ao projeto de lei que gerou a Lei do RJET[24], cogitaram a possibilidade de aplicar, por analogia, em favor do inquilino, o direito previsto no art. 916 do Código de Processo Civil (CPC).

Esse dispositivo garante ao executado o direito a, após o pagamento de uma “entrada” de 30%, parcelar o restante em seis parcelas com correção monetária e juros de 1% a.m.

Entendemos que, a depender do caso concreto, os juízes poderiam aplicar essa solução do art. 916 do CPC como uma forma de revisão contratual a fim de garantir ao inquilino que foi atingido pelos transtornos econômicos causados pela pandemia um alívio razoável para honrar a sua dívida.

MANUTENÇÃO AO VETO DO PARÁGRAFO ÚNICO

Observe, nosso estimado leitor, que o parlamento brasileiro, a despeito de haver derrubado o veto ao caput do art. 9º ora estudado, manteve o do seu parágrafo único.

De acordo com o texto normativo do parágrafo vetado, o disposto no caput do art. 9º seria aplicado apenas às ações de despejo ajuizadas a partir de 20 de março de 2020.

Com a manutenção do veto, as hipóteses de vedação à tutela provisória na ação de despejo, previstas no caput do art. 9º ora estudado, deverão ser observadas mesmo em face de demandas propostas antes de 20 de março de 2020.

Imprimiu-se, com isso, por via oblíqua, maior alcance temporal à norma constante no art. 9º da Lei do RJET.

Todavia, caso a tutela provisória já haja sido apreciada - o que é provável, mormente tendo em vista demandas anteriores a 20 de março -, não se pode pretender aplicar retroativamente a nova regra limitativa do art. 9º da Lei do RJET.

Sobre os autores
Pablo Stolze Gagliano

Juiz de Direito. Mestre em Direito Civil pela PUC-SP. Membro da Academia Brasileira de Direito Civil, do Instituto Brasileiro de Direito Contratual e da Academia de Letras Jurídicas da Bahia. Professor da Universidade Federal da Bahia. Co-autor do Manual de Direito Civil e do Novo Curso de Direito Civil (Ed. Saraiva).

Carlos Eduardo Elias de Oliveira

Consultor Legislativo do Senado Federal em Direito Civil, Advogado, ex-Advogado da União e ex-assessor de ministro STJ. Professor de Direito Civil, Notarial e de Registros Públicos na Universidade de Brasília – UnB. Membro da Academia Brasileira de Direito Civil, do Instituto Brasileiro de Direito Contratual, do Instituto Brasileiro de Direito Imobiliário e do Instituto Brasileiro de Estudos de Responsabilidade Civil.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

GAGLIANO, Pablo Stolze; OLIVEIRA, Carlos Eduardo Elias. Continuando os comentários à Lei da Pandemia (Lei nº 14.010, de 10 de junho de 2020 - RJET).: Análise dos novos artigos. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 25, n. 6279, 9 set. 2020. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/85303. Acesso em: 24 nov. 2024.

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