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Da nova visão do Supremo Tribunal Federal sobre decisão judicial que acolhe HC para trancar ação penal e a impossibilidade da propositura de ação de improbidade administrativa sobre os mesmos fatos (bis in idem).

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Agenda 04/11/2021 às 13:40

III – TRANCAMENTO DA AÇÃO PENAL E A REPERCUÇÃO NO DIREITO ADMINISTRATIVO SANCIONADOR

O jus puniendi do Estado não é concretizado de forma irresponsável, tendo em vista que a época do processo inquisitório já se encerrou em nossa história e na atualidade vivemos um Estado Democrático de Direito, com amplas garantias constitucionais e processuais, onde prevalece o processo acusatório, como instrumento ético de a busca da verdade real de um determinado fato.

Pois bem, o habeas corpus possui a natureza jurídica de uma ação autônoma de impugnação, cuja pretensão é de liberdade de locomoção que decorre da ilegalidade ou abuso de Poder.

Paulo Rangel[20] define:

“O habeas corpus possui a natureza jurídica de uma ação autônoma de impugnação cuja pretensão é de liberdade e por ser uma ação tem os seus elementos (partes, causa de pedir e pedido) e suas condições para o seu regular exercício (legitimidade, interesse processual, possibilidade jurídica e justa causa), possibilitando a provocação da jurisdição e instrução de um processo.”

Rogério Lauria Tucci,[21] ensina:

“É o habeas Corpus ação pela qual, originada a instauração de um processo do mesmo nome, exteriorizado em procedimento sumaríssimo, e reivindica a liberdade de locomoção.”

A Constituição Federal/88 elenca, no art. 5º, inc. LXVIII, que será concedido habeas corpus sempre que alguém sofrer ou se achar ameaçado de sofrer violência ou coação em sua liberdade de locomoção, por ilegalidade ou abuso de poder.

As hipóteses de cabimento do habeas corpus encontram-se enumerados no art. 648 do CPP.

“Art. 648.  A coação considerar-se-á ilegal:

I - quando não houver justa causa;

II - quando alguém estiver preso por mais tempo do que determina a lei;

III - quando quem ordenar a coação não tiver competência para fazê-lo;

IV - quando houver cessado o motivo que autorizou a coação;

V - quando não for alguém admitido a prestar fiança, nos casos em que a lei a autoriza;

VI - quando o processo for manifestamente nulo;

VII - quando extinta a punibilidade.”

Nos interessa no presente contexto explorar quando o habeas corpus é deferido no curso da Ação Penal proposta e ela não tiver justa causa ou for objeto de ilegalidade ou abuso de poder ou seu reflexo direto no Direito Administrativo Sancionador.

Essa repercussão terá que ser imediata se o fato e a autoria do ilícito penal tiverem sido negados, porque o habeas corpus, como um processo autônomo instaurado, possui objeto delimitado, e, uma vez transitado em julgado a sua decisão, não poderá ser objeto de novo pedido, salvo nova causa de pedir.

Fazendo coisa julgada como toda causa e qualquer decisão de mérito,[22] ela não poderá ser desprezada pelo Direito Administrativo Sancionador se reconhecida a inexistência do fato ou ausência de autoria.

A doutrina e a jurisprudência dominantes ainda não despertaram sobre a necessidade da estabilidade das relações jurídicas e do grande perigo de preconizar sobre a total independência das instâncias quando se trata de apuração do mesmo ilícito do agente público.

Nesse sentido, reforçando a linha de fundamentação constituída na RCL 41.557/MC/SP, e aqui replicada, a professora Helena Lobo da Costa[23], em monografia pela qual recebeu o título de Livre Docente pela Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo, destaca.

Isto porque decisões e penais que reconheçam a inexistência de fato ou ausência de autoria não podem ser simplesmente desconsideradas pelo órgão administrativo (...) O princípio da proporcionalidade configura o fundamento jurídico do direito do ne bis in idem relativo às searas penal e administrativa (...) Para a identificação das hipóteses de aplicação do ne bis in idem examinado, devem-se verificar identidade de sujeitos, de objeto ou fatos e de efeitos jurídicos das sanções (natureza punitiva ou sancionadora). (...) Examinada a possibilidade de aplicação do ne bis in idem entre sanção penal e sanção administrativa no direito brasileiro, verificou-se que não apenas inexiste qualquer óbice para sua adoção, senão também que o princípio da proporcionalidade o impõe, já que a cumulação das vias penal e administrativa viola o subprincípio da necessidade." 

Se o efeito motivador da Ação de Improbidade Administrativa ou o Processo Administrativo Disciplinar é o mesmo fato/crime, com fundamento idêntico e sobre o mesmo agente público, não há como defender-se um resultado diferente na esfera sancionadora daquele resultado obtido na esfera criminal.

Em outra oportunidade deixamos consignado:[24]

“Ora, inexistindo prova suficiente para condenação criminal, sendo de consequência o denunciado absolvido, observando-se que no processo criminal, o rigor jurídico é extremamente elevado, inclusive mais do que existente em uma comissão disciplinar e tratando-se do mesmo ilícito objeto da investigação, em tese, praticado pelo servidor público, resulta como lógico e óbvio que a prova deve ser insuficiente também na esfera disciplinar, para fins de condenação e consequente imposição de sanção administrativa disciplinar.”

Assim sendo, se o fato não existiu ou a autoria foi negada pela jurisdição penal, através de uma sentença de mérito, tais situações não poderão subsistir no âmbito do exercício da jurisdição do Direito Administrativo Sancionador.[25]

Então, trancada a ação penal, os seus efeitos se projetam perante o ordenamento jurídico, e não poderão ser ignorados pelo Direito Administrativo Sancionador por ser uma consequência lógica do título judicial.

Isso porque, o princípio do non bis in idem é um dogma constitucional inerente a dignidade humana e possui como finalidade evitar-se a duplicidade de punição e de processos contra o indivíduo, não é admissível que o próprio Estado, através de sua jurisdição (judicial ou administrativa), admita decisões díspares e conflitantes sobre o mesmo fato ilícito.[26]

Ora, se no juízo penal houver absolvição por concessão de habeas corpus por falta de justa causa com consequente extinção do processo (art. 651 do CPP), o reflexo no Direito Administrativo Sancionador terá que ser imediato, influenciando a ação de Improbidade Administrativa correspondente, bem como o processo administrativo disciplinar, sob pena de existirem decisões do poder persecutório estatal conflitantes, com descrédito para os atos do Estado.

A segurança jurídica, a independência mitigada das instâncias e harmonia entre os poderes estatais deve ser suficiente para não pairar sobre o agente público a espada de Dâmocles sobre sua cabeça.

Provada determinada situação jurídica perante o órgão do Poder Judiciário, os efeitos dessa decisão que tranca a ação penal não poderão ficar sob o manto do silêncio e não repercutir sob as instâncias respectivas.

Em sendo assim, quando se retira o elemento subjetivo de determinada conduta antijurídica do agente público, não há como rejeitar tal fato perante o ordenamento jurídico do Direito Administrativo Sancionador.

Em sendo assim, afastado o dolo ou negado determinado fato jurídico criminoso, tal reconhecimento judicial, em sede de habeas corpus ou após a tramitação da ação penal, deve projetar-se, para verificação de possível conduta ímproba, em face da unidade do direito.[27]

A duração indefinida ou ilimitada de investigações ou do processo judicial sobre o mesmo fato em diversas instâncias do direito afasta não apenas e de forma direta a ideia de proteção judicial efetiva, como compromete de modo decisivo a proteção da dignidade da pessoa humana.[28]

Como o ordenamento brasileiro não define prazos específicos para a realização do processo, da investigação criminal ou administrativa, a solução de litígios em um menor tempo além de trazer a devida credibilidade para a persecução estatal, evita o excesso de desgaste do ser humano.

Definida a conduta ou o fato jurídico investigado pela instância penal, deve tal carga declaratória ser adotada para o mesmo lícito do Direito Administrativo Sancionador para evitar-se conflitos de decisões sobre o mesmo fato investigado, independentemente da esfera jurídica.

Portanto, se o fundamento do fato (crime e infração administrativa) é idêntico e já tiver a definição penal sobre o mesmo, não pode haver duplicidade de processo por grave violação ao ne bis in idem[29], devendo a ação de Improbidade Administrativa ser extinta com o julgamento do mérito, se definida a conduta no juízo criminal (afastado o dolo ou a culpa) e a negativa do fato.

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IV – DA COISA JULGADA

Como já consignado, não resta dúvida que o reflexo da decisão penal no âmbito do Direito Administrativo Sancionador é uma consequência da subordinação dos atos administrativos ao resultado produzido na via judicial, quando os fatos jurídicos forem os mesmos e previstos como ilícitos penais.

A responsabilidade do cargo ou da função do agente público pode ser oriunda de uma violação de normas estabelecidas tanto no Direito Administrativo Sancionador quanto no Direito Penal. Essa violação de deveres e obrigações funcionais configura a infração que, como visto, pode gerar múltiplas incidências (civil, administrativo e penal).

A infração funcional é formal, decorrente de uma ação ou de uma omissão ocasionada em razão da função exercida.

Se tratando de um ilícito previsto como crime, a ordem jurídica une o Direito Administrativo Sancionador ao Direito Penal para que uma mesma ilicitude, com reflexos nas duas instâncias, seja decidida pelo Poder Judiciário, a fim de estabelecer a devida segurança jurídica e a paz social.

Essa solução decorre do caráter subsidiário do Direito Penal que, de acordo com a unidade da ordem jurídica (unidade de ilícitos criminosos e administrativos), submete-se a um único Regime Jurídico Constitucional.

Segundo esse entendimento, um simples ato administrativo pode funcionar como causa de exclusão da ilicitude criminal, bem como a declaração de inexistência ou da falta de prova da prática de um ilícito penal possuem o efeito de retirar a tipicidade de uma infração explicitada na Lei nº 8.429/92. Isso porque o mesmo fato considerado como ilícito no âmbito penal também se desdobra para o Direito Administrativo Sancionador.

A harmonização do direito é uma obrigação quando se trata de um idêntico fato investigado, mesmo que ele reflita em duas esferas distintas do direito. Essa imbricação visa privilegiar o princípio da igualdade como valor da justiça, pois não é jurídico, crível e nem moral, que o agente público seja absolvido na instância penal e condenado no âmbito do direito administrativo exatamente por igual fato ilícito.

O princípio da unidade do ilícito foi concebido pelo Direito Administrativo Sancionador com a finalidade de proteger a capacidade funcional da Administração Pública, “            o qual impõe a consideração global das diferentes violações de deveres cometidos por um agente administrativo, atenta até a continuidade da relação”[30], aplicando-se, via de consequência, essa orientação quando houver reflexo para outra esfera do direito, quando o ilícito investigado for o mesmo.

Admitir o isolamento de uma infração prevista como ilícito pelo ordenamento jurídico, em decorrência do fato das instâncias serem independentes, viola o subprincípio constitucional da segurança jurídica.

Por essa razão é que o legislador infraconstitucional estabeleceu a ligação estreita do Direito Penal ao Direito Administrativo, quando é afastado a autoria ou negado o fato ilícito investigado (art. 126 da Lei nº 8.112/90).

Independentemente da capitulação da sentença penal, negado o fato ou afastada a autoria, mesmo que a conclusão seja por falta de provas, existe a repercussão imediata do julgado penal.

Por essa razão, o trancamento da ação penal, através do habeas corpus possui contato imediato com o Direito Administrativo Sancionador.

Absolvido criminalmente o agente público, há a declaração de inexistência formal de um determinado ilícito, que se projeta na esfera do Direito Administrativo Sancionador.

Essa nova fase do Direito Administrativo Sancionador afasta a ultrapassada visão de que a independência total das instâncias possui a força de não deixar penetrar uma na outra, com as necessárias influências visando uma solução justa para uma situação já decidida pelo Poder Judiciário.

Isso porque, o jus puniendi estatal se manifesta através de vários órgãos (instâncias), limitados pelo Direito Constitucional.

Sobre a necessidade de coordenação dos conjuntos normativos do jus puniendi do Estado, visando incidir a mesma realidade jurídica com o objetivo de se evitar situações injustas e lesivas a direitos e a garantias individuais, Francisco Javiar Villalba[31] aduna:

“Para la protección de dichos intereses el Estado se reserva la capacidade de crear y ejecutar sanciones, en aquellos supuestos en que una conducta dañe o incumpla las prescripciones derivadas de las normas jurídicas. Es el donominado ius puniendi estatal, que se manifesta a través de diversos órganos y dentro del marco jurídico delimitado por el orden constitucional, de ahí necesidad de coordenación ‘para que todos los conjuntos normativos que incidan en una misma realidad se edifiquen sobre un global y claro conocimiento de la misma y tiendan hacia metas idénticas o armónicas’, así como de determinación de los condicionamientos que inciden en dicha capacidad. De esta forma se evitarán situaciones injustas o lesivas de los derechos individuales, como puede ser la imposición de una sanción desproporcionada en función del daño cometido, situación proyectada en lo princípio tradicionalmente denominado ne bis in idem” 

Ainda, em defesa da unidade fundamental do Direito, quando é debatido o direito sancionatório, Enrique R. Aftalión,[32] sustenta também posição de supremacia do Direito Penal:

“(...) la tesis que sostengo - de la unidade fundamental de todo el Derecho Represivo: delitos y falta, leyes penales nacionales y disposiciones locales-encuentra um sólido fundamento en esa continua recurrencia a las normas de la Parte General del Código Penal, recurrencia que es un dato de nuestra experiencia jurídica de nuestro Derecho tal como es vivido y aplicado por las jueces.”

No direito brasileiro também não há diferença ontológica, e sim dogmática, visto que o art. 1º da Lei de Introdução ao Código Penal considera crime a infração penal a que a lei comina pena de reclusão ou de detenção, depreendendo-se que a sua regulação se faz pela lei penal, ao passo que a infração disciplinar que não esteja classificada como tal é regulada pelas normas do Direito Administrativo Sancionador. Sendo que a plena autonomia do Direito Administrativo Sancionador se estabelece quando o ilícito é puramente disciplinar, sem se desdobrar em ilícito criminal.

Constituindo-se em subespécies do ius puniendi estatal, os princípios do Direito Penal se aplicam ao direito administrativo, “con ciertos matizes o modulaciones”.[33]

Referendando o que foi dito, Fábio Medina Osório[34] aduz:

“Não há diferenças substanciais que separem o ilícito penal do ilícito administrativo, mas apenas critério dogmático. Assim o é também, no direito brasileiro, em que vinga o critério dogmático da sansão carcerária prevista no ar. 1º, da Lei de Introdução ao Código Penal, cujo comando estabelece claramente a linha que separa ilícitos penais e administrativos.”

Assim, o jus puniendi do Estado deve ser compatibilizado com os preceitos fundamentais que são instituídos para tutelar o direito da liberdade da coletividade, ou em outras palavras, havendo declaração judicial de inocência, através de sentença, de um agente público, que foi processado por ter praticado – em tese – determinado ilícito penal, que também serve de suporte para a instauração de Processo Administrativo Disciplinar ou para a propositura de Ação de Improbidade Administrativa, ela deve refletir como consequência legal do que foi decidido no âmbito penal.

Como se manter a presença do dolo em uma conduta funcional do agente público, se ela foi retirada pelo título penal?

O respeito e observância ao texto constitucional é que dão validade aos atos estatais, constituindo-se em dever para as normas legislativas infraconstitucionais.

Havendo coisa julgada penal, o efeito é o mesmo no processo civil, não podendo ser mais modificada a decisão.

Em sendo assim, a decisão que decide tanto a ação penal originária quanto a do Habeas Corpus que tranca a demanda produz regras para preservar a coisa julgada em nome da segurança jurídica.

Sobre a coisa julgada penal, Paulo Rangel afirma:[35]

“O caso julgado penal tem efeito, única e exclusivamente negativo: não se poderá novamente conhecer daquele mesmo fato da vida julgado e imputado ao mesmo indivíduo.”

Giovanni Leone ensina:[36]

“Coisa julgada significa decisão imutável e irrevogável. Significa imutabilidade da ordem que nasce a sentença.”

A coisa julgada penal possui o efeito erga omnes[37] em relação a todas e, em se tratando de jus puniendi estatal, não há como se dissociar os seus efeitos do Direito Administrativo Sancionador.

A declaração definitiva de inexistência de um fato ou de uma autoria ilícita é capaz de gerar efeitos (art. 935, do CC e art. 126, da Lei nº 8.112/90) para o direito sancionador estatal, pois torna imutável e indiscutível o que já fora decidido.

O novo Código de Processo Civil estabelece em seu art. 502:

“Art. 502. Denomina-se coisa julgada material a autoridade que torna imutável e indiscutível a decisão de mérito não mais sujeita a recurso.”

A alteração do novo CPC retirou a palavra “sentença” para introduzir a “decisão” de mérito, ampliou o seu espectro para admitir os seguintes atos judiciais:

- decisão interlocutória;

- sentença;

- decisão monocrática do relator;

- acórdão.

Essa alteração do Código de Processo Civil retirou o dogma que somente era possível de ser coberta pela coisa julgada a sentença, apesar de que era pacífico no Código anterior que também o acórdão e decisão final do relator eram abrangidos pela coisa julgada.

Mas, o que interessa para nós no presente estudo, é que as decisões proferidas nos habeas corpus se inserem no presente contexto e projetam-se no Direito Administrativo Sancionador para fins garantir a segurança jurídica sobre o fato jurídico julgado, e agora pacificado.

A Ação de Improbidade Administrativa sofrerá os efeitos da coisa julgada penal, como decidido no presente precedente:[38]

“APELAÇÃO CÍVEL. DIREITO PÚBLICO NÃO ESPECIFICADO. AÇÃO CIVIL PÚBLICA, IMPROBIDADE ADMINISTRATIVA. TRÂNSITO EM JULGADO DE SENTENÇA PENAL DE ANSOLVIÇÃO POR NEGATIVA DE AUTORIA. EXTINÇÃO DA AÇÃO CÍVEL EM RAZÃO DA COISA JULGADA.

1. No caso dos autos, não há controvérsia sobre a concluso da sentença penal, nem os seus efeitos sobre a esfera cível.

2. Pretende o recorrente o reconhecimento de que a conduta imputada ao réu na presente ação civil pública é diversa da conduta descrita na ação penal, de modo a possibilitar o julgamento nesta esfera jurisdicional.

3. Na espécie, não é possível dar interpretação defendida pela recorrente, de que a acusação é distinta, na medida em que ambas as ações, a cível e a penal, partes dos mesmos fatos, da ação praticada pelo Réu (a retirada da arma do local e a posterior entrega à autoridade policial), sobre a qual recai sentença penal absolutória por negativa de autoria e cuja conclusão foi confirmada pela apelação crime.

4. Manutenção da sentença de extinção da ação civil pública em razão da coisa julgada.”

A negativa de autoria ou a inexistência d o fato criminoso definidor na instância criminal deve repercutir integralmente na Ação de Improbidade Administrativa,[39] em respeito ao instituto da coisa julgada.

Hipótese interessante foi a julgada pela 1ª Turma do Superior Tribunal de Justiça – STJ no REsp 1634627/RS,[40] onde o dolo foi retirado de determinado agente público, para fins de enriquecimento ilícito (art. 9º, da Lei nº 8.429/92), em face do demandado ter sido absolvido na seara penal em virtude de sua inimputabilidade.

Retirado o elemento do tipo para a subsunção da conduta do imputado no tipo definido pelo enriquecimento ilícito, o ressarcimento ao erário foi indeferido, em face da incidência do título penal.

Em outro firme precedente, a 1ª Turma do Superior Tribunal de Justiça – STJ, no AgInt no AREsp 1098135/MA[41] ancorando-se nas conclusões do excelso Supremo Tribunal Federal – STF que há reflexos da ação criminal na ação de Improbidade Administrativa, averba:

“I. DIREITO SANCIONADOR. AGRAVO INTERNO EM ARESP. AÇÃO CIVIL PÚBLICA DE IMPROBIDADE ADMINISTRATIVA. INICIAL DA AÇÃO FOI REJEITADA NO TRIBUNAL DE ORIGEM. PRETENSÃO DO MPF DE REFORMA DO ACÓRDÃO DO TRF DA1a. REGIÃO QUE FEZ PERCURTIR DECRETO DE REJEIÇÃO DE DENÚNCIA PENAL NA AÇÃO DE IMPROBIDADE. PROCLAMAÇÃO DE QUE A LIDE CRIMINAL FOI REJEITADA SOB A EXCLUSÃO DE CONDUTA DELITUOSA QUANTO AOS MESMOS FATOS APONTADOS NA ACP. A INVERSÃO DE TAL CONCLUSÃO DESAFIA A REANÁLISE DE PROVAS. APLICAÇÃO DA SÚMULA 7-STF. II. ENUNCIADO SUMULAR 18-STF: PELA FALTA RESIDUAL, NÃO COMPREENDIDA NA ABSOLVIÇÃO PELO JUÍZO CRIMINAL, É ADMISSÍVEL A PUNIÇÃO ADMINISTRATIVA DO SERVIDOR PÚBLICO. INOCORRÊNCIA DE RESÍDUO SANCIONÁVEL, PORQUE A DECISÃO DO STF, NESTE CASO, ABRANGEU A TOTALIDADE DA IMPUTAÇÃO. ACÓRDÃO EM PLENA CONVERGÊNCIA COM JULGADOS DESTE TRIBUNAL SUPERIOR. III. AGRAVO INTERNO DO DOUTO ÓRGÃO ACUSADOR DESPROVIDO.

1.   Cinge-se a controvérsia em exercer controle de legalidade acerca do acórdão que rejeita petição inicial de ação de improbidade em relação à parte ora agravada, à constatação de que há decisão de bloqueio, oriunda de denúncia penal rejeitada, pelo Supremo Tribunal Federal, abrangente dos mesmos fatos, e com trânsito em julgado. Não se trata de afirmar que a Corte Suprema absolveu a recorrida da imputação de ato ímprobo - é óbvio que o STF não examinou tal matéria - mas de assegurar que, na ausência de resíduopunível, a absolvição criminal repercute beneficamente na esfera administrativa sancionadora (Súmula 18-STF).

2.   Sobre o tema, esta Corte Superior tem a diretriz de que são independentes as esferas cível, penal e administrativa, somente sendo admitida a vinculação do julgado em caso de estar provada a inexistência do fato ou de o réu não ter concorrido para a infração penal (art. 386, I e IV do CPP) (REsp. 1.344.199/PR, Rel. Min. OG FERNANDES, DJe 1o.8.2017; AgRg no AREsp. 644.371/CE, Rel. Min. REYNALDO SOARES DA FONSECA, DJe 1.8.2017). Esses respeitáveis entendimentos judiciais não têm, no entanto, aplicabilidade ao caso vertente.

3.   Ressalva de entendimento do Ministro Relator, quanto a este ponto, de que, ainda nas hipóteses de absolvição por ausência de provas de que o réu concorreu para o fato, é comunicável o desfecho do julgamento frente às ações cíveis, como as de improbidade. Se o órgão de acusação penal não consegue estabelecer o liame pertinente à autoria do ato punível, mediante prova suficiente, não se poderá atribuir a imputada conduta alguma e, por conseguinte, não se lhe deverá impor qualquer restrição de direito, que tenha a sua origem nos mesmos fatos que constituíram o objeto da lide criminal.

4.   Com efeito, na espécie, trata-se de ação de improbidade ajuizada pelo MPF contra então Governadora do Estado do Maranhão e outros 40 réus, alegando, segundo transcreve o acórdão, irregularidades na aplicação de recursos advindos do Fundo de Investimento da Amazônia-FINAM, administrado pela antiga Superintendência de Desenvolvimento do Nordeste-SUDAM, no chamado projeto USIMAR, cujo objetivo é a fundição de metais ferrosos e não ferrosos, fabricação e usinagem de componentes automotivos, prospecção, transformação e beneficiamento de minério, importação e exportação de produtos fabricados pela empresa USIMAR, tudo com anuência dos integrantes do Conselho Deliberativo da SUDAM-CONDEL, que participaram da reunião plenária em que aprovado o projeto.

5.   Sustenta o autor da ação que teriam sido constatadas supostas irregularidades na aplicação dos recursos públicos, tais como a inexistência de aporte financeiro por parte da empresa USIMAR, no valor de R$ 102.520.300,00, que deveria ter sido integralizado através do fornecimento de máquinas e equipamentos que seriam adquiridos pela pessoa jurídica que é sócia majoritária e controladora do projeto, bem como emissão de notas fiscais fraudulentas pelos prestadores de serviços em favor da USIMAR, com a finalidade de liberar os recursos, celeridade demasiada na aprovação do projeto e interferência de agentes públicos na sua aprovação.

6.   No caso dos autos, o Tribunal Regional da 1a. Região, com Base na moldura fático-probatória que se represou no caderno processual -gize-se, impermeáveis a modificações em sede de recorribilidade extraordinária - Súmula 7 do STJ - dessumiu que há notícia nos autos de que a Suprema Corte confirmou decisão que rejeitou denúncia penal quanto a idênticos fatos que estavam sendo apurados na ação civil pública. Não há, portanto, neste caso, resíduo sancionável na via administrativa (Súmula 18-STF), porque a decisão da Suprema Corte esgotou a apreciação da ilicitude.

7.   A Corte Regional valeu-se da conclusão do excelso STF de que os atos objetivamente vinculados à acusada (participação em reunião do CONDEL e transferência de terreno em que se localizaria o empreendimento) constituem atos de administração superior que, em certa medida, fazem parte da rotina de qualquer Governador de Estado. Tais atos, se por um lado poderiam (em tese) permitir discussões quanto à sua adequação à disciplina legal-administrativa, por si sós não permitem vislumbrar indícios da prática dos crimes descritos na denúncia e atribuídos à ex-Governadora do Estado do Maranhão (fls. 157). Trata-se, como se vê, de clara e manifesta negação de autoria dos alegados ilícitos.

8.   Segundo o aresto regional, fosse correta a abordagem adotada pelo órgão acusador, no que toca especificamente à recorrida, que é o que interessa no caso, restaria inviabilizado o exercício dos cargos de direção máxima no âmbito de qualquer Poder da República. De fato, na linha da acusação, sempre que houvesse um crime no âmbito da Administração Pública, não seria difícil estabelecer o indício incriminador de um governador ou mesmo do Presidente da República, tendo em vista a posição de supremacia hierárquica e tais autoridades em relação a todos os servidores (fls. 158).

9.   A Corte Regional, ancorando-se nas conclusões do excelso STF, registrou que há reflexos da ação criminal na ação de improbidade porque o STF não se restringiu a afirmar que o fato descrito não se constituía em crime. De fato, apenas essa constatação não afetaria o processamento da ação originária porque um fato pode não ser considerado crime e ser ímprobo. Entretanto, o Ministro Gilmar Mendes concluiu que a ora agravante agiu como administradora e que não participou de qualquer ilícito. O afastamento do caráter ilícito da conduta na esfera criminal tem prevalência também no cível. Restou demonstrado que não houve ato de corrupção. Não houve má-fé (fls. 156/159). Essas conclusões do TRF1 não podem ser alteradas no STJ, ex ope da vedação da Súmula 7-STJ, cujo enunciado é invocado por intensa assiduidade.

10.  Portanto, há cabal constatação no acórdão regional de que não houve rejeição por simples ausência de provas, mas sim que não houve fato ilícito algum quanto à conduta praticada pela então Governadora de Estado. Como disse o eminente Relator, Ministro GILMAR MENDES, na decisão que serviu de base ao acórdão do TRF1, não há qualquer demonstração de que exista algum nexo entre a conduta da acusada e um específico ato criminoso.

11.  Como alertou o ilustre Magistrado do STF, em outra passagem de sua referida decisão, cabe asseverar, por oportuno, que a admissão de processos criminais sem qualquer indício de autoria representa inaceitável ofensa ao princípio da dignidade humana. Não é difícil perceber os danos que a mera existência de uma ação penal impõe a um indivíduo. Daí a necessidade de rigor e prudência por parte daqueles que têm o poder de iniciativa nas ações penais, que não devem ser calcadas em conjecturas. Lembre-se, sobretudo, do significado especial que a ordem constitucional conferiu ao princípio da dignidade humana (art. 1º, III). Na sua acepção originária, este princípio proíbe a utilização ou transformação do ser humano em objeto de degradação por meio de processos e ações estatais.

12.  E arremata o jus constitucionalista que o Estado está vinculado ao dever de respeito e proteção do indivíduo contra exposição a ofensas ou humilhações. A propósito, em comentário ao art. 1o. da Constituição alemã, afirma Günther Düríg que a submissão do ser humano a um processo judicial indefinido e sua degradação como objeto do processo estatal atenta contra o princípio da proteção judicial efetiva (...) e fere o princípio da dignidade humana (...). Negar proteção judicial nas hipóteses em que é devida e, no presente caso, inexorável (pois não há qualquer elemento nos autos que ofereça fundamento para submeter a requerida a uma ação penal), implica em ferir a uma só tempo o princípio da proteção efetiva (art. 5º., XXV) e o princípio da dignidade humana (art. 1º., III).

13.  A solução conferida pela Corte Regional não se aparta, portanto, das conclusões a que este Tribunal Superior possui em relação ao tema, motivo pelo qual o aresto merece ser preservado. Não se deve submeter pessoa alguma aos vexames de uma ação sancionadora, a não ser quando a sua justa causa, não seja apenas simplesmente afirmada, mas seja devidamente demonstrada pela acusação e pelo juízo que aprecia a respectiva imputação.

14.  Agravo Interno do Órgão Acusador desprovido.”

Ora, se a coisa julgada imutabiliza o fato delituoso praticado ou não pelo agente, que foi objeto de apreciação no processo penal ou como consequência de julgado em habeas corpus, impedindo que haja nova acusação sobre o mesmo fato, não resta dúvida que o mesmo ilícito penal que é investigado na instância administrativa subjetivamente, fica prejudicado após o exaurimento da via judicial. Não se admite, pela coisa julgada, que se adote decisão diferente da que é estabelecida no título judicial.

Assim, a absolvição criminal deve abarcar o objeto do processo em sua totalidade.[42]

“La Cosa juzgada abarca tal objeto procesal em su totalidade. (...) La cosa juzgada abarca el hecho bajo todos los puntos de vista jurídicos.”

Dessa forma, a coisa julgada sobre os fatos e fundamentos vinculados no provimento judicial que afastou a responsabilidade penal do acusado, a teor do art. 5º, XXXVI, da CRFB/88, retira o resíduo da Improbidade Administrativa, se os fatos e os elementos probatórios forem os mesmos já decididos.

A intercomunicação das instâncias é uma consequência lógica da segurança jurídica, pois, mesmo elas sendo independentes, a responsabilidade penal e administrativa do agente público quanto à autoria da conduta não é objetiva, e sim subjetiva. Sem a prova de sua responsabilidade criminal onde o agente público foi denunciado não poderá ter outro desfecho senão a absolvição; fato esse que reflete na jurisdição administrativa sancionadora, quando o ilícito penal for o mesmo, pois somente se pune a conduta com certeza. Sendo que a presunção de certeza é elidida pelo julgado penal, no âmbito administrativo sancionador.

Sobre o autor
Mauro Roberto Gomes de Mattos

Advogado no Rio de Janeiro. Vice- Presidente do Instituto Ibero Americano de Direito Público – IADP. Membro da Sociedade Latino- Americana de Direito do Trabalho e Seguridade Social. Membro do IFA – Internacional Fiscal Association. Conselheiro efetivo da Sociedade Latino-Americana de Direito do Trabalho e Seguridade Social. Autor dos livros "O contrato administrativo" (2ª ed., Ed. América Jurídica), "O limite da improbidade administrativa: o direito dos administrados dentro da Lei nº 8.429/92" (5ª ed., Ed. América Jurídica) e "Tratado de Direito Administrativo Disciplinar" (2ª ed.), dentre outros.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

MATTOS, Mauro Roberto Gomes. Da nova visão do Supremo Tribunal Federal sobre decisão judicial que acolhe HC para trancar ação penal e a impossibilidade da propositura de ação de improbidade administrativa sobre os mesmos fatos (bis in idem).: Mitigação da independência das instâncias penal e administrativa. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 26, n. 6700, 4 nov. 2021. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/89917. Acesso em: 21 nov. 2024.

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