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Ações de concessão judicial de medicamentos

31/03/2010 às 00:00
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1. Introdução

As ações para concessão judicial de medicamentos são cada vez mais comuns. Isso se deve, em parte, à deficiência do sistema de saúde proposto pelo Estado, que fornece apenas alguns medicamentos previamente listados, e, à baixa renda da maioria da população, que, com o avanço da medicina, não possui condições financeiras de buscar os melhores tratamentos para as suas doenças.

O presente artigo tem como objetivo descrever os pormenores que acompanham essas ações, que não tratam apenas do direito fundamental à vida ou à saúde, mas dos deveres dos entes políticos. Desse modo, serão abordados os argumentos trazidos à tona no decorrer de uma demanda judicial que tem como objeto a concessão de remédios pela via judicial.


2. Da legitimidade passiva

A competência para zelar pela saúde do cidadão é uma discussão recorrente nos processos de medicamentos. Normalmente, os entes políticos chamados para prestar assistência à saúde e cumprir os ditames previstos na Constituição preferem ignorar a necessidade da vida, para divergirem sobre os custos da provisão.

Para tanto, se torna fundamental determinar a quem compete o custeio dos remédios pleiteados na demanda. A Constituição Federal determina que a saúde e assistência pública, proteção e garantia dos indivíduos portadores de deficiência são de competência comum da União, Estados e Municípios, em função, especificamente da gestão tripartite do Sistema Único de Saúde.

Preconiza o art. 196 da Constituição Federal de 1988 que a saúde é direito de todos e dever do Estado. Já o art. 6º, inserido no rol dos direitos fundamentais, determina que a saúde é um direito social, assim como a moradia, o lazer, a segurança, a previdência social, a proteção à maternidade e à infância, bem como a assistência aos desamparados.

O constituinte originário, na distribuição dos temas dentro do texto constitucional, optou por consagrar os direitos dos cidadãos antes da organização político-administrativa do Estado, afirmando, implicitamente, o grau de zelo para com um, em desfavor do outro.

É certo que os dispositivos constitucionais não determinam claramente a quem compete o fornecimento de medicamentos requeridos judicialmente pela população, o que não afasta a constatação de que há uma responsabilidade solidária entre a União, Estados e Municípios.

De modo geral, pode-se dizer que perante a população a responsabilidade deve ser solidária, devendo aquele que foi chamado em ação judicial fornecer o medicamento, a fim de garantir o acesso universal e igualitário à saúde, nos termos do art. 196, CF.

Posteriormente, caso um seja demandado em virtude da omissão do outro, cabe a este invocar suas portarias e atos normativos com o objetivo de se ressarcirem reciprocamente. O que não pode acontecer, de modo algum, é o cidadão ficar a mercê da burocracia estatal, correndo risco de vida e o judiciário se manter inerte frente ao descumprimento da Constituição.

Diante dessas demandas, o brilhantismo do Egrégio Tribunal Regional Federal da 4ª Região, por intermédio da Exma. Des. Rel. Maria Lucia Luz Leiria, faz transparecer o humanismo da corte frente às divergências produzidas nos processos deste gênero, ao confirmar, pontualmente, a responsabilidade solidária nas causas que versam sobre medicamentos e defender que a "discussão em relação à competência e execução de programas de saúde e distribuição de medicamentos não pode se sobrepor ao direito à saúde" (AG Nº 2009.04.00.038725-6/SC, 3ª Turma, D.E. 10/02/2010).

No mesmo sentido, a decisão da eminente Exma. Des. Rel. Marga Inge Barth Tessler consagra a lucidez do judiciário no que diz respeito à legitimidade dos entes políticos nas ações de medicamentos, vez que a douta magistrada admite a solidariedade da União, Estados e Municípios nas ações de medicamentos:

"(...) Quanto à legitimidade da parte agravante para a demanda - seja para o fornecimento do medicamento, seja para seu custeio -, ela resulta da atribuição de competência comum a todos os entes federados, em matéria de direito à saúde, consagrada no art. 24, inc. II, da Constituição Federal, bem assim da responsabilidade expressada nos termos do art. 198, inc. I, da mesma Carta, que estabelece a gestão tripartite do Sistema Único de Saúde. Nesse sentido, transcrevo os seguintes precedentes:

O funcionamento do Sistema Único de Saúde - SUS é de responsabilidade solidária da União, estados-membros e municípios, de modo que, qualquer dessas entidades têm legitimidade ad causam para figurar no pólo passivo de demanda que objetiva a garantia do acesso à medicação para pessoas desprovidas de recursos financeiros. (STJ, REsp n. 834294/SC, Segunda Turma, Relatora Ministra Eliana Calmon, DJ de 26/09/2006.)

O Sistema Único de Saúde é financiado pela União, Estados-membros, Distrito Federal e Municípios, sendo solidária a responsabilidade dos referidos entes no cumprimento dos serviços públicos de saúde prestados à população. Legitimidade passiva do Município configurada. (STJ, REsp n. 439.833/SP, Primeira Turma, Relatora Ministra Denise Arruda, DJ de 24/04/2006.)

Procurei, em outras oportunidades, sustentar, levando em conta a Política Nacional de Medicamentos e Assistência Farmacêutica, nem sempre serem os três entes responsáveis pelo fornecimento de medicação. Para tanto, ative-me à distinção legal existente entre os classificados como Básicos, Estratégicos e Excepcionais, bem como para as hipóteses em que a assistência à saúde é tratada de modo especial, não enquadrada em qualquer dos três casos antes referidos, como, por exemplo, o funcionamento da assistência oncológica. Ocorre que a jurisprudência não tem feito tal distinção, de modo que, com a ressalva do ponto de vista pessoal, adiro ao entendimento no sentido de que União Federal, Estados e Municípios são legítimos, indistintamente, para as ações em que postulados medicamentos. Afasto, pois, a preliminar.(...)" (AG. Nº 2009.04.00.032268-7/SC, 4ª Turma, D.E. 15/09/09).

Portanto, há legitimidade passiva dos entes políticos (União, Estados e Municípios) nas ações de medicamentos, uma vez que reside sobre eles a responsabilidade solidária. Ademais, as discussões acerca do ente pagador não devem poluir o processo, muito menos dificultar o acesso do cidadão ao tratamento que lhe salve a vida.


3. Do direito à vida e à saúde

O direito à vida, previsto no art. 5º da Constituição Federal de 1988, dentro do Título dos Direitos e Garantias Fundamentais e no Capítulo dos Direitos e Deveres Individuais e Coletivos, nas palavras de André Ramos Tavares, "é o mais básico de todos os direitos, no sentido de que surge como verdadeiro pré-requisito da existência dos demais direitos consagrados constitucionalmente. É, por isto, o direito humano mais sagrado" [01].

Nas palavras do autor, o direito à vida assume duas acepções: o direito de permanecer existente e o direito a um adequado nível de vida. Primeiramente deve-se assegurar a todos os indivíduos a possibilidade de permanecer vivo e ter sua vida interrompida apenas por causas naturais, o que se faz com a segurança pública e o respeito por parte do Estado, à vida de seus cidadãos. Também é preciso assegurar um nível mínimo de vida, compatível com da dignidade da pessoa humana. Aqui se inclui o direto à saúde.

O direito à saúde, previsto no art. 6º e associado ao art. 196, ambos da Constituição Federal de 1988, determinam que a saúde é direito de todos e dever do Estado, o que implica no oferecimento de medicina preventiva e curativa.

Para José Afonso da Silva, o direito à saúde passa por duas vertentes: uma de natureza negativa, de exigir que o Estado (ou terceiros) não pratique algum ato prejudicial à saúde; outra, de natureza positiva, que é o direito às medidas e prestações visando a prevenção das doenças ou o seu tratamento.

Pela leitura do art. 198, II da Constituição, percebe-se que o legislador, ao conferir à saúde atendimento integral, buscou abranger todas as necessidades dos cidadãos no que diz respeito ao seu bem estar. Não limitou tratamento, nem a atividade estatal, consagrou a garantia da forma mais ampla possível, sem exclusões de doenças ou patologias, muito menos citou dificuldades técnicas ou financeiras do Poder Público. De modo que, constitucionalmente, os entes políticos não podem escapar da prestação ao direito à saúde dos cidadãos.

Quanto ao pedido judicial de medicamentos há que se ater que, em vista da abertura constitucional, "cada um tem o direito a um tratamento condigno de acordo com o estado atual da ciência médica, independentemente de sua situação econômica, sob pena de não ter muito valor sua consignação em normas constitucionais" [02].

Ainda, o Poder Público, qualquer que seja a esfera institucional de sua atuação, não pode se mostrar indiferente aos problemas de saúde da população, sob pena de incidir, ainda que por censurável omissão, em grave comportamento inconstitucional:

"E M E N T A: PACIENTES COM ESQUIZOFRENIA PARANÓIDE E DOENÇA MANÍACO-DEPRESSIVA CRÔNICA, COM EPISÓDIOS DE TENTATIVA DE SUICÍDIO - PESSOAS DESTITUÍDAS DE RECURSOS FINANCEIROS - DIREITO À VIDA E À SAÚDE - NECESSIDADE IMPERIOSA DE SE PRESERVAR, POR RAZÕES DE CARÁTER ÉTICO-JURÍDICO, A INTEGRIDADE DESSE DIREITO ESSENCIAL - FORNECIMENTO GRATUITO DE MEDICAMENTOS INDISPENSÁVEIS EM FAVOR DE PESSOAS CARENTES - DEVER CONSTITUCIONAL DO ESTADO (CF, ARTS. 5º, "CAPUT", E 196) - PRECEDENTES (STF) - ABUSO DO DIREITO DE RECORRER - IMPOSIÇÃO DE MULTA - RECURSO DE AGRAVO IMPROVIDO. O DIREITO À SAÚDE REPRESENTA CONSEQÜÊNCIA CONSTITUCIONAL INDISSOCIÁVEL DO DIREITO À VIDA. - O direito público subjetivo à saúde representa prerrogativa jurídica indisponível assegurada à generalidade das pessoas pela própria Constituição da República (art. 196). Traduz bem jurídico constitucionalmente tutelado, por cuja integridade deve velar, de maneira responsável, o Poder Público, a quem incumbe formular - e implementar - políticas sociais e econômicas idôneas que visem a garantir, aos cidadãos, o acesso universal e igualitário à assistência farmacêutica e médico-hospitalar. - O direito à saúde - além de qualificar-se como direito fundamental que assiste a todas as pessoas - representa conseqüência constitucional indissociável do direito à vida. O Poder Público, qualquer que seja a esfera institucional de sua atuação no plano da organização federativa brasileira, não pode mostrar-se indiferente ao problema da saúde da população, sob pena de incidir, ainda que por censurável omissão, em grave comportamento inconstitucional. A INTERPRETAÇÃO DA NORMA PROGRAMÁTICA NÃO PODE TRANSFORMÁ-LA EM PROMESSA CONSTITUCIONAL INCONSEQÜENTE. - O caráter programático da regra inscrita no art. 196 da Carta Política - que tem por destinatários todos os entes políticos que compõem, no plano institucional, a organização federativa do Estado brasileiro - não pode converter-se em promessa constitucional inconseqüente, sob pena de o Poder Público, fraudando justas expectativas nele depositadas pela coletividade, substituir, de maneira ilegítima, o cumprimento de seu impostergável dever, por um gesto irresponsável de infidelidade governamental ao que determina a própria Lei Fundamental do Estado. (...)" (STF, RE 393175 AgR / RS, Min. Celso de Mello, Segunda Turma, DJ 12/12/2006)

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4. Orçamento X Concessão

Outra alegação comum nesse tipo de processo diz respeito à ausência de previsão orçamentária para a aquisição de medicamentos de alto custo via ação judicial. Todavia, há que se frisar que a Constituição em momento algum limita o direito à saúde à falta de verba orçamentária. De modo contrário, credita a essa garantia a mais ampla e absoluta guarda.

Como cita Tavares, as ações e serviços públicos de saúde subsumem-se ao princípio do atendimento integral, que se refere ao próprio serviço, devendo abranger todas as necessidades do ser humano relacionadas à saúde. Todos têm direito à saúde, que deve ser prestada de maneira completa, sem exclusões de doenças ou patologias, ou dificuldades técnicas ou financeiras do Poder Público.

Ainda, seguindo as orientações do Exmo. Juiz Federal Substituto da 4ª Região Dr. Oscar Valente Cardoso, pode-se determinar que a União tem condições de satisfazer a concessão de medicamentos por via judicial, através da desvinculação das receitas da União (DRU). "A DRU foi criada pela EC nº 27/2001, que incluiu o art. 76 ao ADCT, desvinculando de órgão, fundo ou despesa, 20% da arrecadação de impostos e contribuições sociais da União, para o período de 2000/2003. A EC nº 42/2003 alterou a redação do citado dispositivo, prorrogando a desvinculação para o interstício de 2003/2007, manteve o percentual de 20% da arrecadação de impostos e contribuições sociais e acrescentou as contribuições de intervenção no domínio econômico. Portanto, considerando que, desde o ano 2000, 20% das contribuições sociais da União estão desvinculadas de suas finalidades (desvirtuando-as, portanto), nada impede que sejam redirecionadas a políticas sociais, efetivando o direito à saúde a quem dele necessita com urgência." [03]

Dessa forma, a alegação de insuficiência orçamentária não deve prosperar, pois o direito à saúde não deve ser limitado pelo Estado, uma vez que diretamente ligado ao direito à vida.


5. Conclusão

O Poder Público determina por meio de listagem os medicamentos que são disponibilizados para a população, mas o avanço da medicina e a introdução de novos remédios no mercado desatualizam naturalmente esse sistema. Em vista dessa deficiência estatal, a população fica desprovida de proteção à saúde, buscando na via judicial a solução desse impasse.

O judiciário, por meio das ações de concessão de medicamentos, vem concedendo a disponibilização dos remédios pleiteados, ficando constatada a legitimidade passiva dos entes políticos – União, Estados e Municípios – , bem como a ampla proteção constitucional ao direito à saúde.


Notas

  1. TAVARES, André Ramos. Curso de Direito Constitucional. 6ª ed., São Paulo: Saraiva, 2008, p. 527.
  2. SILVA, José Afonso da. Curso de Direito Constitucional Positivo. 26ª ed., São Paulo: Malheiros, 2006, p. 308-309.
  3. CARDOSO, Oscar Valente. Concessão judicial de medicamentos. Revista Visão Jurídica, nº 37.
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Sobre a autora
Camila Daros Cardoso

Advogada. Pós-graduada em Direito Processual Civil e Comércio Internacional e pós-graduanda em Direito Previdenciário

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

CARDOSO, Camila Daros. Ações de concessão judicial de medicamentos. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 15, n. 2464, 31 mar. 2010. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/14609. Acesso em: 26 abr. 2024.

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