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Transexualidade: a superação do conceito binário de sexo

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O PROCEDIMENTO MÉDICO DA TRANSGENITALIZAÇÃO

Como se relatou nas referências históricas, no qual se fez um breve apanhado sobre a transexualidade, Harold Gillies realizou a primeira cirurgia de transgenitalização em 1917. Neste ano realizou a primeira vaginoplastia de que se tem notícia, permitindo, com isto, a que um transexual originariamente portador da genitália externa masculina tivesse configuração feminina.

A primazia de Gillies na transgenitalização "masculino-para-feminino" se repetiu em 1919, ocasião em que realizou a primeira faloplastia [55] noticiada. O procedimento teria sido aplicado a Laura Dillon, que, a partir de então, pode ter a conformação física aspirada. Uma conformação que lhe permitiu assumir o prenome de Michael.

Na realidade brasileira, para que seja diagnosticado a transexualidade (e via de conseqüência possibilitada a cirurgia de transgenitalização), a equipe multidisciplinar deve verificar determinados pressupostos, enumerados aos longo dos incisos que explicitam o teor do artigo 3º da Resolução 1.652 do Conselho Federal de Medicina:

"I) desconforto com o sexo anatômico natural;

II) desejo expresso de eliminar os genitais, perder as características primárias e secundárias do próprio sexo e ganhar as do sexo oposto;

III) permanência desses distúrbios contínua e consistente por, no mínimo, dois anos;

IV) ausência de outros transtornos mentais."

Do que se assenta nos incisos colacionados se estabelece que não basta apenas a vontade do paciente para que seja autorizado o ato cirúrgico. O desejo de se tornar alguém diferente da inscrição cromossômica deve ser tal que, se negado, pode levar a estados de depressão e propensão para a automutilação.

A cirurgia, deve se destacar, somente poderá ser realizada em hospitais, públicos ou privados, que tenham atividades voltadas para pesquisa. Esta imposição nos parece positiva, já que limita a possibilidade de utilização do procedimento por clínicas de apelo meramente estético ou hospitais sem o devido aparato técnico-científico.

Uma vez observados os requisitos para a realização da cirurgia, regulamentada pelo Conselho Federal de Medicina, passa-se à operação propriamente dita. Neste ponto nos parece producente se trazer para o corpo do texto as lições do professor José Francisco Oliosi da Silveira [56], nas quais se detalha o procedimento cirúrgico por que passa a pessoa transexual no afã de "assumir a identidade" [57] que quer para si.

Para a realização da vaginoplastia segue-se o seguinte procedimento:

"A mudança cirúrgica masculino para feminino é facilmente feita e pode, na maioria dos casos, ser feita em somente um tempo cirúrgico.

O primeiro estágio compreende a amputação do pênis, deixando a glande com seu feixe vásculo-nervoso. A glande necessariamente será preservada e colocada, anatomicamente, no local do clitóris. Dessa maneira, a sensibilidade não sofre alteração alguma, ensejando um resgate do orgasmo mais facilmente.

A uretra é amputada, entretanto, deixando-se um segmento mais longo, de tal sorte que a mucosa fique redundante. Se ocorrer necrose ou infecção em pós-operatório imediato, sempre teremos tecido disponível para novo procedimento. Na eventualidade da uretra profusa, a mesma poderá, em um segundo tempo, ser novamente encurtada.

Uma incisão mediana e longitudinal é efetuada no escroto para a retirada dos testículos e funículo espermático. Todo o escroto, excetuando-se a camada vaginal, será usado para a construção da vagina.

No períneo, entre o ânus e a raiz do escroto, efetua-se uma incisão em cruz ou em "v", abortando-se o espaço imediatamente cranial ao reto e prosseguindo até a próstata. Este espaço virtual é dissecado, e através de dilatadores de Hegar, é criado um pertuito que será a nova vagina. A ablação pilosa escrotal é efetuada com eletrocautério. Nestas condições, o escroto é invertido e sepultado neste novo espaço, com sutura tão cranial quanto possível.

Um molde metálico ou siliconado é revestido com gaze e introduzido no orifício,de tal sorte a manter hemostasia e prevenir eventual colamento da cavidade. No pós-operatório, o paciente, sistematicamente, dilatará a neovagina com artefato siliconado, até sua estabilização." [58]

É de se notar no procedimento narrado a intenção de preservação da zona erógena ao máximo possível, daí a preocupação com a mantença das terminações nervosas. Uma preservação que ocorre por se ter assente que o corpo é fonte de prazer e que o procedimento deve se voltar, na medida do possível, para esta possibilidade. Desta forma, conquanto seja comum se dizer que a vagina cirurgicamente construída seja mero arremedo, as técnicas cirúrgicas têm sido desenvolvidas com a aspiração de concederem aos pacientes mais que uma mera imitação.

Visto o procedimento da vaginoplastia, passa-se para a análise da faloplastia, com o qual se busca dar ao transexual que se identifica como sendo homem uma conformação física próxima do corpo masculino. Um procedimento que, segundo a mesma fonte doutrinária, dar-se-ia da seguinte forma:

"O paciente é levado a uma cirurgia de laparotomia, com anestesia geral e bloqueio pelidural, para a retirada do ovário, útero e anexos.

Após a sua total recuperação, em um período de tempo não menor a 30 dias, o paciente é submetido ao segundo tempo cirúrgico. Consiste na retirada da vagina, usando-se a parede anterior para a reconstrução da uretra. A mucosa vaginal tubularizada se adapta excepcionalmente bem, como uretra. A parede posterior da vagina é exteriorizada para fazer parte do escroto. Na hipótese de uma exagerada atrofia da mucosa vaginal o escroto é reconstituído com retalho do músculo Gracilis, tirado da face medial da coxa. O pênis é construído com enxerto de CHANG. O tecido é retirado do antebraço, juntamente com uma artéria radial, duplamente tubularizada, respectivamente para a uretra distal e para acolher futuramente a prótese peniana. Este procedimento, especificamente, requer técnica microcirúrgica. Para a construção do falo também pode ser usado retalho do abdome. Esta técnica não requer microcirurgia, entretanto o aspecto cosmético perde em qualidade para o enxerto de CHANG. O uso do retalho do músculo Gracilis, rotado da face interna da coxa, é reservado para a situação onde o paciente não dispõe de tecido adequado do abdome ou não deseja ficar com cicatriz ampla no antebraço.

O terceiro tempo cirúrgico somente é levado a efeito quando há uma cicatrização perfeita nos tempos anteriores. Demanda aproximada de três meses. Então, através de uma pequena incisão na base do neopênis, é introduzido um tubo siliconado, cujo eixo é composto de uma liga de prata maleável. Esta estrutura denominada prótese é fixada no osso do púbis, através de um procedimento estético denominado Dracon. A fixação estabiliza o artefato evitando a extrução futura. A prótese peniana possui rigidez suficiente para o coito e pode, confortavelmente, ser dobrada para baixo, quando não há interesse em atividade sexual.

No mesmo tempo cirúrgico, são introduzidos um novo escroto, duas estruturas ovóides, com 20 centímetros cúbicos, com silicone gel no seu interior, simulando testículos.

O paciente, nestas condições, está autorizado à atividade sexual, somente 90 dias após o implante das próteses peniana e testicular. Após aproximadamente um ano, a sensibilidade se estabelece em pelo menos 2/3 do falo." [59]

Os procedimentos cirúrgicos trazidos à colação, conquanto partam de uma perspectiva médica, são importantes. Assim, ainda que o Projeto de Lei n. 6.655-B de 2006 não condicione a mudança de nome e de sexo à feitura da cirurgia, é de se ter que o procedimento não perde sua importância, haja vista a apreensão de muitos julgadores a aspectos citogenéticos, ainda recorrente em muitos julgados [60].


ASPECTOS JURISPRUDENCIAS SOBRE O TEMA

Nada obstante o silêncio legislativo brasileiro sobre o assunto, nosso Judiciário vem se manifestado sobre o tema. É certo que há lacunas, mas, como é sabido, estas não são argumentos que legitimam eventual omissão do julgador, que tem a seu dispor mecanismos de integração.

Nosso Judiciário, no mais rumoroso caso de que se tem notícia, aduziu, "na primeira demanda proposta" [61], entendimento contrário à mudança de nome e de sexo de Luís Roberto Gambine Moreira, que aspirava a se chamar Roberta Gambine Moreira. Na primeira instância a juíza Conceição Aparecida Mousnier (à época titular da 8ª Vara de Família da Comarca da Capital e hoje desembargadora no Tribunal de Justiça) esposou entendimento no sentido da mudança pretendida. Em Apelação Cível, contudo, a 8ª Câmara Cível pugnou [62], em julgamento ocorrido em 10 de maio de 1994, pela manutenção do nome e do sexo constantes do registro de nascimento.

O caso "Roberta Close", como ficou conhecido, tornou-se público ao ser objeto de diversas matérias. A cirurgia de transgenitalização ocorreu na Inglaterra em 1989. Após o procedimento cirúrgico foi proposta a demanda visando à mudança de nome e de sexo, conforme se comentou no parágrafo anterior.

Não-obstante a decisão desfavorável à parte autora na jurisdição fluminense, o pedido foi repisado no mesmo órgão jurisdicional em 2001, conforme relata Tereza Rodrigues Vieira em seu Direito a adequação do nome e sexo de "Roberta Close" [63]. Uma possibilidade que se abriu por se tratar de um processo de jurisdição voluntária, onde não se fala de Coisa Julgada Material [64].

O processo de 2001 foi julgado em 04 de março de 2005 pela juíza da 9ª Vara de Família da Comarca do Rio de Janeiro, Leise Rodrigues Espírito Santo, podendo se destacar sobre a Coisa Julgada que:

"não-obstante a coisa julgada versar sobre questão de ordem pública já superada, se faz mister registrar que o pedido formulado é referente ao estado de pessoa, e que a ação manejada admite revisão quando presentes os requisitos legais autorizadores da modificação jurídica pretendida, por se encontrar inserida no âmbito da jurisdição voluntária. (...) Não há como afirmar que a coisa julgada foi atingida, primeiramente, como já foi dito, ela sequer foi formada, ademais, a evolução da medicina e precisão dos técnicos da perícia, deixam claro que a presente ação tem novo fundamento" [65].

A sentença em comento nos parece muito feliz porque assevera que o direito deve sempre buscar a verdade. Não apenas a verdade biológica (como querem alguns), mas sim a verdade que está inscrita na intimidade das pessoas, notadamente suas racionalidade e autonomia. Uma verdade que não deve ser buscado apenas no corpo do direito e sua pretensão de completude. Esta busca deve contemplar, sem qualquer dúvida, a interseção do direito com outras disciplinas. Este é um meio de a matéria se fazer autopoiética, no exato sentir do que propugnou a magistrada em exame:

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"em face da unanimidade dos pareceres e laudos médicos, resta inequívoco que a parte requerente não possui tão somente perfil psicológico feminino, mas também possui caracteres biológicos próprios de uma mulher, sendo, portanto, indiscutível seu direito de pleitear a alteração de nome civil e sexo." [66](destacou-se)

A sentença sob exame é importante porque considera os efeitos que dela própria pode advir. Por isto é precisa ao afirmar que a adequação do prenome e do sexo não prejudicará terceiros, justamente porque, à margem do registro, deverá constar que a modificação se deu por determinação judicial. Verbis:

"julgo procedente o pedido, pelo que determino, a expedição de mandado de averbação da retificação do nome e do sexo no registro de nascimento de Luis Roberto Gambine Moreira, que deverá figurar agora em diante como sendo ROBERTA GAMBINE MOREIRA, do sexo feminino, mantendo-se os demais dados, constantes quanto à naturalidade data de nascimento e filiação. Determino ao fim de resguardar possíveis interesses de terceiros que conste à margem do registro a anotação quanto ao fato de a alteração de nome e de Estado, deu-se por força de sentença" [67]. (destacou-se)

A decisão em comento seguiu o parecer do promotor Marcelo Carvalho Mota, que opinara pela procedência do pedido:

"os pareceres e laudos médicos constantes dos autos são conclusivos no sentido de que a requerente não possui apenas perfil psicológico feminino, como também caracteres biológicos próprios de uma mulher.(...) Ademais, se faz necessário também, eliminar as situações de constrangimento, com intensa dor moral, por que passa a requerente, ao ter que exibir no meio social identidade que não é a sua realidade, mas decorrente de assento de cartório desconforme a sua realidade - hoje diagnosticada como verdadeira pela perícia recente" [68]. (destacou-se)

A decisão de Leise Rodrigues Espírito Santo é importante porque se pauta, sempre, por princípios que estão na base constitutiva da República Brasileira, merecendo destaque a Dignidade da Pessoa Humana. Nesta linha discorre sobre as dimensões positiva e negativa do princípio, assentando que de nada adianta ter direitos se não se pode exercê-los efetivamente. No mesmo seguimento aponta que "o Estado-Juiz deve entender que o homem é o objetivo da existência do direito, assim como da ciência médica" [69], não fazendo qualquer sentido a negação da realidade psicofísica.

Ainda em relação à decisão em comento, destaca-se a referência ao artigo 2º da Declaração Universal do Genoma Humano e dos Direitos Humanos, que foi aprovada em 11 de novembro de 1997:

"todos têm o direito ao respeito por sua dignidade e seus direitos humanos, independentemente de suas características genéticas. Essa dignidade faz com que seja imperativo não reduzir os indivíduos a suas características genéticas e respeitar sua singularidade e diversidade". (destacou-se)

A citada Declaração é fundamental, pois vai na direção exata do que se quer com a presente dissertação. Dizer que o homem é realidade biológica, mas que não se reduz a isto. Dizer que a marca do Ser Humano é sua racionalidade, a partir da qual se sedimentam a Dignidade da Pessoa Humana e os Direitos da Personalidade.

O caso "Roberta Close", em razão da notória exposição na mídia, tornou-se emblemático. É de se dizer, contudo, que há muitas demandas reclamando os mesmo direitos. Algumas alcançando êxito. Outra nem tanto.

Roberta Close, como se assentou anteriormente, só conseguiu proceder à efetiva mudança de nome e de sexo no plano jurídico em 2005. Antes disto, contudo, o próprio Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro já tinha se manifestado em sentido favorável, precisamente na Apelação Cível n. 2001.001.16591, cujo relato coube ao desembargador Ronald Valladares.

A apelação em comento foi julgada pela 16ª Câmara Cível em 25 de março de 2003. Nesta foi acolhida a pretensão de mudança de nome e de sexo, determinando que no registro civil constasse sexo feminino e, à margem deste, a averbação [70] de que mudança ocorrera por ordem judicial. Trouxe, ainda, outros apontamentos importantes, sobretudo que não deveriam ser feitas referências à condição de transexual nos documentos de identificação, vez que qualquer alusão importaria em supressão do direito à intimidade.

O voto vencedor de Ronald Valladares, pelo caráter paradigmático na justiça fluminense, deve ser colacionado. Diz-se isto porque traz consigo inconteste referência a valores afeitos à Dignidade da Pessoa Humana e os Direitos da Personalidade. Apontou, inclusive, que a modificação serviria para o encontro da efetiva identificação civil, pressuposto para a harmonia pessoal e para o pleno desenvolvimento da capacidade cognitivo-comportamental:

"passando, a pessoa portadora de transexualismo, por cirurgia de mudança de sexo, que importa na transmutação de suas características sexuais, há de ficar acolhida a pretensão de retificação do registro civil, para adequá-lo à realidade existente. A constituição morfológica do indivíduo e toda a sua aparência sendo de mulher, alterado que foi, cirurgicamente, o seu sexo, razoável que se retifique o dado de seu assento, para 'feminino', no registro civil o sexo da pessoa, já com o seu prenome mandado alterar para a forma feminina, no caso concreto considerado, que é irreversível, deve ficar adequado, no apontamento respectivo, evitando-se, para o interessado, constrangimentos individuais e perplexidade no meio social. As retificações no registro civil são processadas e julgadas perante o Juiz de Direito da Circunscrição competente, que goze da garantia da vitaliciedade, e mediante processo judicial regular. A decisão monocrática recorrida não contém nulidade insanável. Preliminares rejeitadas. Recurso, quanto ao mérito, provido, para ficar modificado, parcialmente, o julgado de 1º grau". [71](destacou-se)

Em sentido semelhante ao decidido pela 16ª Câmara Civil do Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro em 2003, decidiu a 5ª Quinta Câmara da Seção de Direito Privado de São Paulo em 2005 na Apelação Cível 165.157.4/5-00 [72], cujo relato coube ao desembargador Boris Kauffmann.

No processo em exame o autor visava à alteração do assento de nascimento em relação a nome e sexo. Apresentava como fundamento ser transexual que se submetera à cirurgia de adequação do sexo físico ao psicológico, a partir do que entendia ser a utilização do prenome masculino constrangedora. Consignou que, sendo de fato uma mulher, não via razões para a mantença da situação registral. Ademais apresentou argumentos sobre a falibilidade do princípio da definitividade do prenome.

Instada a se manifestar, a Procuradoria-Geral de Justiça, em parecer da procuradora Leila Mara Ramacciotti Vasconcellos, consignou entendimento no sentido de se prover o recurso na íntegra, alterando o nome e o sexo no assento de nascimento do autor, no que foi acolhido na íntegra.

A decisão do Tribunal Paulista demonstra nova possibilidade de entendimento sobre o tema naquele estado. Uma possibilidade completamente divergente do que se decidiu no ano de 1991 na Apelação 148.078 [73], na qual se assentou que apenas nas hipóteses de intersexualidade se poderia admitir a alteração do que consta no registro civil, argumento de notória marca biológica [74].

Tanto na corte paulista como na carioca parece ter havido um avanço rumo ao reconhecimento da realidade transexual. Este reconhecimento, contudo, não se faz linear, o que se diz a partir da análise da jurisprudência recente destes tribunais, ainda claudicante.

As divergências jurisprudências são muitas. Assim, conquanto os votos dos desembargadores Ronald Valladares e Boris Kauffmann sejam verdadeiros paradigmas para os tribunais de Rio de Janeiro e São Paulo, estes ainda proferem decisões completamente divergentes.

Exemplo da divergência recente do Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro são as Apelações Cíveis ns. 2007.001.24198 e 2007.001.14071, votadas nos meses de agosto e setembro de 2007 e cujo relato coube aos desembargadores Mônica Costa Di Piero [75] e Gilberto Dutra Moreira [76].

As decisões referidas foram trazidas em notas por não apresentarem argumentos novos em relação ao que já se discutiu. Ressaltam, em verdade, o discurso da "análise citogenética" e rechaçam a possibilidade de identificação sexual a partir do viés psicológico. Aludem, inclusive, a uma suposta vedação do Código Civil quanto a mudança, que, segundo os relatos, autorizariam o casamento entre pessoas do mesmo sexo, fato proibido pelo artigo 1.604 do Codex.

É de se entender, pelas razões já esposadas ao longo do texto, que as decisões em comento não contribuem em nada para o regime da Dignidade da Pessoa Humana e dos Direitos da Personalidade, já que reduzem o Ser Humano à sua existência biológica. Insistem no fato de que ter a aparência não implica em mudança cromossômica, fato que é absolutamente verdadeiro, mas que, em hipótese alguma, leva em consideração o lócus especial do Homem na escala dos seres. Partem de uma análise citogénetica e findam a discussão nesta mesma análise.

A análise citogénetica, conhecida do grande público por ocasião das Olimpíadas de Atlanta, quando se questionou da condição de mulher da Judoca Edinanci Fernandes da Silva, não considera o Homem no que o difere: racionalidade e autonomia. Reduz a espécie humana a uma realidade biológica. Uma redução que, de tão pequena, não consegue dar conta das síndromes genéticas, especialmente Turner, já que neste caso não há o cromossomo que define caracteres sexuais. Assim, a se entender a sexualidade humana a partir da análise citogénetica, "o portador da Síndrome de Turner não é nada".

Enquanto se entender a transexualidade como nas últimas decisões que se colacionou, será possível se dizer que o Ser Humano não é nada mais que um animal. Assentar que a "diferença encontrada nos cromossomos sexuais é a chave para a determinação do sexo" é muito pouco se se considerar a multiplicidade do humano. De igual modo soa tacanho se chamar a cirurgia de transgenitalização de mera mutilação. Dizer isto no afã de se negar o reconhecimento de "direitos específicos das mulheres" é dizer que homens e mulheres não são iguais perante a lei. Implicaria dizer, parece-nos, que a Constituição da República Federativa do Brasil vê o homem tão-somente em sua perspectiva biológica, fato que não nos parece poder subsistir, tendo em vista o regime da Dignidade que deve ser o vetor do ordenamento jurídico.

Assim como no Tribunal do Rio de Janeiro, há também no Tribunal de São Paulo decisões que significam retrocesso em relação a decisões paradigmas da corte. Neste caso merece destaque a Apelação n. 452.036-4/00 [77], proveniente da comarca de São José do Rio Preto. Uma decisão que retrocede até mesmo em relação ao que se decidiu no primeiro grau de jurisdição, significando, por isto mesmo, uma negação de realidade.

Embora retrocessos possam ser percebidos pelo tecido da jurisprudência brasileira, cabe ressaltar que há também muitas decisões que atendem ao chamado do Ser Humano a partir da Dignidade da Pessoa Humana e dos Direitos da Personalidade, como pensamos dever ser. Exemplos disto são as decisões nas Apelações Cíveis ns. 2006.001.61108, 2005.001.17926 e 2005.001.01910, relatadas pelos desembargadores Vera Maria Soares Van Hombeeck [78], Nascimento Povoas Vaz [79] e Luís Felipe Salomão [80]. Decisões que, infelizmente, dividem espaço com medidas que limitam o Ser Humano.

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Sobre o autor
Alessandro Marques de Siqueira

Mestrando em Direito Constitucional pela UNESA. Professor da Escola de Administração Judiciária do Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro. Professor convidado da Pós-Graduação na Universidade Cândido Mendes em parceria com a Escola Superior de Advocacia da OAB/RJ na cidade de Petrópolis. Associado ao CONPEDI - Conselho Nacional de Pesquisa e Pós-Graduação em Direito. Bacharel em Direito pela Universidade Católica de Petrópolis.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

SIQUEIRA, Alessandro Marques. Transexualidade: a superação do conceito binário de sexo. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 15, n. 2644, 27 set. 2010. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/17495. Acesso em: 18 abr. 2024.

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