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Transexualidade: a superação do conceito binário de sexo

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REFLEXOS JURÍDICOS DA TRANSEXUALIDADE NO ORDENAMENTO BRASILEIRO

Embora o tema transexualidade possa refletir em muitas direções, parece-nos claro que é em matéria de Direito Civil que os reflexos são mais controvertidos. Em matéria penal houve grandes discussões, vide o caso do doutor Farina na década de 1970, mas hoje, em vista da superação social da norma que associava a cirurgia de transgenitalização à lesão corporal, sobretudo após 1997 e a regulamentação do procedimento pelo Conselho Federal de Medicina, subsistem discussões acaloradas apenas [81] no âmbito civil.

Como se disse, é no âmbito do Direito Civil (visto sob o enfoque constitucional dos Direitos Fundamentais) que o tema apresenta traços mais marcantes e as maiores complexidades, fato que decorre da preocupação desta matéria com o que o homem tem de mais próprio: sua Personalidade – onde se inscreve a identificação [82] –, sua Dignidade e sua Relação com a Família.

A questão da Dignidade se mostra essencial, pois a partir desta o homem não mais pode ser pensado sem a matriz que o caracteriza, particulariza e distingue na escala animal: racionalidade e autonomia. Por isto mesmo, nenhuma leitura que se faça do Ser Humano pode se dar fora desta referência.

No que concerne aos Direitos da Personalidade os reflexos da transgenitalização se projetam de modo muito especial na identificação, qual seja, nome e sexo. Fica claro, então, que não se pode pensar em vaginoplastia ou faloplastia sem a correspondente [83] mudança de nome e de sexo, ou, como querem alguns, "adequação de nome e de sexo" [84].

Nome e sexo são essenciais para se compreender a dinâmica dos reflexos civis da cirurgia sob exame. Desta forma, a fim de se ter melhor entendimento sobre o tema, faz-se necessário que nos atenhamos sobre o regime jurídico do nome e sua aspiração de individualização.

O nome, surgido no afã de afirmar a individualidade, é aposto a partir do gênero e da consideração genética deste. Trata-se, portanto, de aposição realizada a partir da realidade da genitália externa [85] do recém-nascido. Um modo de identificação que durante muito tempo se mostrou suficiente, mas que perde seu caráter absoluto de imutável [86] ante a nova dinâmica social.

Entre as primeiras civilizações de que se tem notícia a identificação se dava por um só nome, equivalente ao prenome nos dias atuais. Esta prática foi superada com o adensamento populacional que impôs a adoção de nomes complementares, permitindo uma identificação efetiva e minorando o problema da homonímia.

Os hebreus – conforme o Novo Testamento – foram responsáveis pela agregação de nomes ao prenome, a princípio denotando a origem da pessoa. Disto decorre, por exemplo, Jesus Nazareno, já que nascido na cidade de Nazaré. No mesmo sentido os gregos acresceram ao prenome o nome do pai e o da gens. Um acréscimo que visava, sempre, a permitir que o nome trouxesse em si os reflexos da pessoa. Para que fosse o depositário da imagem pública, transportando as impressões da coletividade sobre o seu portador.

Os romanos, associando ao prenome circunstâncias pessoais, procederam a acréscimos. Publius Cornelius Scipio Africanus [87], por exemplo, denotava o indivíduo de prenome Publius, nascido na Cornelia, da família dos Scipio e notabilizado por feitos em batalhas na África. Os sobrenomes [88], como se percebe, era indicativos de naturalidade, família e um "feito especial" [89], caso houvesse.

Na quadra atual nome e sexo devem se voltar para a real identificação como pressuposto de realização dos Direitos ligados à realização da Personalidade. Esta correlação – que durante muito tempo se limitou ao aspecto biológico – deve se associar a uma visão ampliativa, a partir da qual sexo deixa de ser a mera manifestação cromossômica para ser a configuração antropológica da orientação sexual.

Como não há mais dúvida de que o nome civil da pessoa natural é integrante da personalidade, sendo elemento externo com o qual se individualiza e se reconhece a pessoa na sociedade [90], resta evidenciado que este não pode expor seu titular a situações vexatórias, fato que parece ocorrer na transexualidade quando o direito não reconhece a realidade e impõe ao transexual a mantença de nome que nada tem a ver com o exercício de sua Dignidade. Neste caso nem se tem como falar de reflexos da cirurgia de transgenitalização, já que a prerrogativa de dizer o direito lhe é exclusiva. Por isto, quando o direito abstrai a realidade, nada pode ser feito em outras esferas.

Vê-se que quando o direito ignora a demanda apenas ele próprio pode voltar a considerá-la. Em matéria de transexualidade, então, por se tratar de tema tutelado em sede de jurisdição voluntária, o próprio direito, às vezes no mesmo órgão judicante, pode voltar ao assunto, como ocorreu no caso "Roberta Close", antes referenciado.

Em relação à mudança de nome as discussões têm caminhado em sentido mais uníssono. Discussão mais acalorada ocorre em relação ao sexo, sobretudo pelas preocupações dogmáticas acerca do casamento. Visto isto é de se dizer mais uma vez: qual o conceito consagrado pela Constituição? Quando a Carta Republicana diz em seu artigo 226 que homem e mulher podem contrair matrimônio, de que conceito está se valendo?

O questionamento é feito mais uma vez por se considerar que a adoção de uma tese ou outra importará em conseqüências distintas, em especial para o ramo especializado do Direito Civil que é o Direito de Família.

Partindo-se do postulado que o sexo legal (aferido na observância da genitália do recém-nascido) é o que melhor se ajusta ao estágio vivenciado pelos Direitos da Personalidade, é de se dizer – como, aliás, fazem muitos julgados – que homem é o Ser Humano que tem na cromatina sexual o cromossomo y e mulher o que possui o cromossomo x [91]. Por outro lado, a se fazer uma leitura antropológica ou psicológica do assunto – reclamada na visão psicossocial, por exemplo – a definição cromossômica se mostrará absolutamente limitada.

As maiores conseqüências no âmbito do Direito Civil em relação à transexualidade se dão quando o julgado acolhe a pretensão de mudança de nome e de sexo. Diz-se se isto porque a pretensão acolhida produz seus efeitos no mundo real quando é levada à averbação no Registro Civil de Pessoas Naturais, momento a partir do qual a pessoa (re)nasce para a sociedade. Um novo registro que lhe permitirá retirar novos documentos e dar seguimento à vida com a conformação física e jurídica que aspirou.

Já se disse em muitas passagens do texto que é o direito quem tem o poder de se dizer. Tendo-se isto por assente, é possível se afirmar que a mulher e o homem reconhecidos pelo direito são diferentes da mulher e do homem configurados pela natureza? A mulher e o homem frutos da faloplastia e da vaginoplastia são verdadeiramente mulher e homem ou são transexuais?

Em nossa Constituição só existem dois espaços de categorização: homem e mulher. Homem e mulher que são iguais em direitos e obrigações. Sendo assim, pertencendo-se à espécie humana, cremos que a pessoa será, necessariamente, homem ou mulher. Não haveria, na leitura constitucional, lugar para um terceiro gênero.

Como não há lugar para a criação de um terceiro gênero, que a nós soaria preconceituoso e sem qualquer fundamento, temos por assente que a mulher e o homem advindos da cirurgia de transgenitalização serão mulher e homem verdadeiros, não podendo sofrer restrições em suas aspirações.

Quando apontamos que o texto constitucional não abre espaços para a criação de terceiros gêneros estamos a sustentar a efetividade prática ao sexo psicossocial, a partir da qual seria sustentável, inclusive, a defesa do casamento do transexual feminino – por decisão judicial chamado mulher – com um homem e vice-versa.

Muitos julgados negam a possibilidade de mudança de sexo justamente porque esta poderia se transmudar em casamento. Esta negação não nos parece sustentável. Pensamos ser razoável, sim, a averbação da mudança, pois neste caso a situação seria trazida à baila em uma eventual habilitação para casamento, fato que permitiria aos nubentes – caso ainda não tivessem ciência, o que nos parece pouco provável – saber da realidade um do outro.

Pensamos ser importante a averbação porque esta obstaria futura alegação de "erro essencial quanto à pessoa" [92] do outro cônjuge baseada na identidade [93] ou honra. Assim, admitido o matrimônio nos casos de transexualidade, desde que conhecida pelo outro parceiro antes da união, não se poderia falar em anulabilidade do ato. Com isto um ato, historicamente chamado de inexistente, poderá ser plenamente válido. Uma validade que se sustém ao se garantir efetividade jurídica ao sexo psicossocial.

À idéia proposta anteriormente é provável seguir vozes dizendo que da união não poderá nascer filhos. Este argumento, conquanto verdadeiro, não é absoluto. É falho porque nem todos os casais "geneticamente heterossexuais" [94] também o podem. Ademais, como já se assentou em outros momentos, o argumento meramente genético possui falhas elementares, vide as possibilidades das síndromes cromossômicas.

Do que se expôs, mostra-se producente se trazer à colação o entendimento do magistrado paulista Ênio Santarelli Zuliani. Um entendimento que nos parece totalmente em dia com a teoria dos acerca dos Direitos Fundamentais, Direitos da Personalidade e com a Dignidade da Pessoa Humana. Embora muitos possam ver em sua fala um local de vanguarda, vemos na construção feita por ele apenas sintonia com a realidade fática e com o espírito constitucional. Uma sintonia que pode contribuir de forma efetiva para a implementação dos valores inscritos na Constituição. Verbis:

"como a função política do Juiz é de buscar soluções satisfatórias para o usuário da jurisdição – sem prejuízo do grupo em que vive –, a sua resposta deve chegar o mais próximo permitido da fruição dos direitos básicos do cidadão (art. 5º, X, da CR), eliminando proposições discriminatórias, como a de manter, contra as evidências admitidas até por crianças inocentes, erro na conceituação do sexo predominante do transexual" [95].

Como restou assentado, deve a resposta do Estado-Juiz chegar mais próximo possível de onde permita a fruição dos direitos básicos pelo cidadão. Retomando a indagação acerca do sexo legal e psicossocial, qual deles se aproxima mais desta fruição? Responder a esse questionamento não é objetivo fácil, mas parece-nos válida a interrogação.

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Dando seguimento a seu voto, assevera ainda que: "a medicina poderá aliviar o peso da dubiedade, com técnicas cirúrgicas. O Estado confia que o sistema legal é apto a fornecer a saída honrosa e deve assumir uma posição que valoriza a conquista da felicidade". Outra questão exsurge: a felicidade é encontrada na mantença de dogmas ou no reconhecimento das diferenças? Trata-se de outro questionamento de difícil resposta, mas que se justifica à luz da Constituição aberta e compromissária que o Estado Brasileiro promulgou, primaziando, logo seu artigo 1º, pela valorização da Cidadania e a Dignidade da Pessoa Humana.


APONTAMENTOS FINAIS

Entre os direitos associados aos Direitos da Personalidade, destacam-se os que se ligam à cidadania, mais reclamados nas situações de transexualidade. Esta consideração é aposta em razão da preocupação dogmático-religiosa de manutenção do conceito binário de sexo. Uma manutenção que pode, inclusive, importar na criação de um gênero que o sistema constitucional não alberga.

O conceito binário de sexo ainda tem por base, predominantemente, a referência biológica. Assim, conquanto possam ser sustentadas outras possibilidades de identificação sexual, é recorrente o discurso biológico de aferição de cromátide (através da análise citogénetica) quando a demanda envolvendo transexualidade chega ao Poder Judiciário.

Nas hipóteses em que se fala de análise citogénetica o caminho percorrido é o de negação da possibilidade de mudança de sexo. Nestes casos, em nome da verdade biológica, nega-se toda a realidade vivenciada pelo transexual, chamando-a de artificial ou de arremedo. Nestes casos o Ser Humano resta limitado ao aspecto animal, esquecendo-se que é a racionalidade que o caracteriza.

Parece producente se considerar que mesmo o discurso biológico, ajustado ao discurso científico reclamado por muitos julgadores, tem suas limitações, notadamente nos casos de síndromes cromossômicas, em que pode haver, inclusive, a ausência da cromatina sexual, como ocorre na Síndrome de Turner. Este peculiaridade da natureza, que inclusive é mais comum que a ocorrência da transexualidade, denota bem a falibilidade do discurso citogenético como meio único de aferição de sexo.

Embora seja comum a utilização do discurso biológico (e nestes casos recorrente a negação de mudanças), é de se sustentar a existência de diversos julgados superando o conceito da biologia para oferecer ao transexual uma resposta que lhe permita fruir de forma efetiva direitos que à sua condição Digna se associam. Nestas ocasiões ocorre o deferimento da mudança de nome e de sexo, havendo divergência, apenas, em relação à necessidade ou não da averbação da condição à margem do registro.

A limitação da discussão ao viés biológico, recorrente nos julgados do Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro ao longo do ano de 2007, quando já há alguns anos o mesmo tribunal apresentou outros argumentos, faz sobrelevar as proposições de Bourdieu sobre a função do direito, que é se manter. Embora a Teoria Sistêmica tenha defensores ardorosos, não se pode ignorar que a assimilação da irritação não é tão pacífica. Fosse assim, uma vez irritado o sistema e ocorrendo assimilação, não poderiam se detectar tais idas e vindas, mais bem compreendidas na tese do jogo de poder.

A cirurgia de transgenitalização é um fato. Fato também é que no sistema jurídico só há lugar para homem e mulher. Entendemos, por isto mesmo, que a pessoa submetida à vaginoplastia ou faloplastia é homem ou mulher, exatamente como quer sua racionalidade exercida de modo autônomo ao se submeter à intervenção cirúrgica.

Transexual, deste modo, é condição do homem e da mulher, e não categoria própria. Uma condição que não retira da pessoa nenhuma prerrogativa de fruição dos direitos e garantias fundamentais. Em verdade é uma condição que diz com a intimidade da pessoa e que só pode ser trazida à baila em uma eventual habilitação para o casamento.

Esta sustentação tem por base a necessidade de preservação do próprio sistema, haja vista que o desconhecimento desta particularidade poderia ser reclamada a posteriori. Assim, no afã de se evitar reclamações sobre erro essencial, por exemplo, pensamos ser produtiva a averbação da condição transexual à margem do registro de nascimento, fato que não se repetiria em qualquer outro documento.

As hipóteses envolvendo a transexualidade precisam ser entendidas no contexto de consideração que homens e mulheres pertencem à mesma raça: a humana. Ninguém é superior a ninguém, sendo o sexo biológico uma contingência que não autoriza qualquer tipo de discriminação. Sendo contingencial, não subsistem argumentos para que seja meio de se negar a identidade pessoal, que é garantia da Pessoa Humana.

A identidade pessoal, operacionalizada a partir do Registro Civil, é o modo de ser e de estar da pessoa em sociedade, na qual se impregnam qualidades e defeitos, realizações e aspirações externadas, bagagem cultural e ideológica. É, enfim, o Direito que todos os indivíduos têm de se assumirem verdadeiramente. A identidade sexual, a seu turno, é um dos aspectos da identidade pessoal, formada na estreita vinculação com a pluralidade de direitos associados ao desenvolvimento da personalidade.

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Sobre o autor
Alessandro Marques de Siqueira

Mestrando em Direito Constitucional pela UNESA. Professor da Escola de Administração Judiciária do Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro. Professor convidado da Pós-Graduação na Universidade Cândido Mendes em parceria com a Escola Superior de Advocacia da OAB/RJ na cidade de Petrópolis. Associado ao CONPEDI - Conselho Nacional de Pesquisa e Pós-Graduação em Direito. Bacharel em Direito pela Universidade Católica de Petrópolis.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

SIQUEIRA, Alessandro Marques. Transexualidade: a superação do conceito binário de sexo. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 15, n. 2644, 27 set. 2010. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/17495. Acesso em: 19 abr. 2024.

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