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A possibilidade de alteração do registro civil do transexual operado

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20/01/2011 às 15:23
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Resumo: Atualmente, o transexualismo é visto como uma doença pela Organização Mundial de Saúde, devendo os candidatos à cirurgia de mudança de sexo se submeterem a um tratamento multidisciplinar, durante dois anos, para obter a autorização à realização do procedimento. Mas a cirurgia, por si só, não devolve a dignidade a esses cidadãos. Após este longo tratamento de saúde, começa a batalha judicial pela alteração do registro civil, visando a mudança do nome e do estado sexual. Mas, muitas vezes, o trâmite judicial, repleto de obstáculos e preconceito, representa a consolidação do sofrimento e da exclusão, visto que as decisões, em sua maioria, não permitem a alteração do registro civil e, quando a permitem, determinam a inserção do termo transexual na certidão. Entretanto, como será demonstrado neste trabalho, aos poucos, os entendimentos jurisprudenciais vêm mudando para preservar a integridade psíquica e os direitos da personalidade dos trangenitalizados, julgando procedentes os pedidos de mudança do prenome e do sexo na certidão de nascimento, sem menção a condição de transexual.

Palavras-chave: direito civil, direito da personalidade, alteração do registro civil, transexualismo, redesignação sexual.

Sumário: RESUMO:1 INTRODUÇÃO. 2 BREVES CONSIDERAÇÕES SOBRE O QUE TRANSEXUALISMO E A CIRURGIA DE TRANGENITALIZAÇÃO . 3 DO REGISTRO CIVIL . 4 DO DIREITO À PERSONALIDADE E OS FUNDAMENTOS PARA A ALTERAÇÃO DO REGISTRO CIVIL DO TRANSEXUAL OPERADO . 5 CONCLUSÃO. REFERÊNCIAS . ABSTRACT. NOTAS EXPLICATIVAS.


1 INTRODUÇÃO

Hoje em dia não são raros os casos de pessoas que procuram tratamento médico para realizar a cirurgia de mudança de sexo, também chamada de trangenitalização, extirpação de genitália, cirurgia de adequação de sexo ou redesignação sexual, por sofrerem de um distúrbio chamado de transexualismo [01], segundo o qual o sintomático possui uma identidade sexual diversa ao seu sexo biológico, sofrendo de uma disforia de gênero.

Evidente que em uma sociedade como a nossa, em que os padrões sexuais são pré-estabelecidos, pessoas portadoras de transexualismo são vistas como um ser estranho e imoral, o que torna a vida desses cidadãos muito sofrida e cheia de preconceitos.

Assim, a cirurgia de redesignação do estado sexual é o início de um processo de inclusão social. Fala-se em início, porque não basta a alteração física para cessarem os constrangimentos e preconceitos sofridos por um transexual. Para ter uma vida digna e ter restaurada sua dignidade como pessoa humana, este ainda tem que passar por uma longa batalha judicial para alteração do prenome e do sexo no registro civil, questão muito mais tormentosa e tão sofrida quanto a realização do procedimento de mudança de sexo.

Não restam dúvidas o quão aflitiva é a situação de uma pessoa que já possui sexo externo igual ao seu sexo psicológico, mas a documentação que a individualiza na sociedade a identifica como um membro pertencente ao sexo oposto (é o caso do transexual feminino que possui documentação com nome e sexo biológico masculino), pois mesmo após a operação haverá contrastes entre os sexos morfológico e psíquicos – agora idênticos – e o sexo civil.

Com isso, nota-se que a mudança de sexo externamente, por si só, não dará efetividade necessária aos direitos da personalidade do transexual, porque caso não seja concedida a alteração do registro civil, surgirá nova situação de discordância sexual e exclusão social.

Assim, na batalha judicial que se inicia após a redesignação sexual, a teoria dos direitos da personalidade, ao lado do princípio da dignidade da pessoa humana servem como fundamentos basilares para a possibilidade de alteração da certidão de nascimento.

Os direitos da personalidade não se resumem em direitos materiais ou patrimoniais, mas pelo contrário, são direitos que decorrem da essência do indivíduo como pessoa humana, são absolutos, relativamente indisponíveis, imprescritíveis e extrapatrimoniais [02] e devem ser respeitados em sua todas as situações, preservando o princípio da isonomia substancial, devendo a personalidade do transexual ser protegida e tutelada pelo Poder Judiciário, visto a inexistência de lei que regule a situação jurídica dessa camada social.

Entretanto, a omissão do Poder Legislativo e sua dificuldade em acompanhar a evolução social, principalmente, no que tange a questões relativas a opção sexual, vem gerando, ao longo do tempo, as mais diversas decisões judiciais, causando insegurança jurídica aos portadores do referido transtorno, havendo sentenças e acórdãos de toda sorte: desde a impossibilidade de alteração do registro; como pela possibilidade de alteração apenas do prenome, mantendo o sexo; alteração de ambos com a descrição de transexual ao lado do sexo; e as que determinam a alteração do registro civil sem qualquer menção do estado de transexual.

Com este trabalho, pretende-se demonstrar a necessidade de se arraigar o entendimento em relação a possibilidade de alteração do registro de nascimento do transexual, regularizando todas as situações de forma unânime, preservando assim, a isonomia substancial e o princípio da dignidade da pessoa humana dos transexuais.


2 BREVES CONSIDERAÇÕES SOBRE O QUE É O TRANSEXUALISMO E A CIRURGIA DE TRANGENITALIZAÇÀO

Para se conceituar transexualismo, tem-se que conhecer os três aspectos que determinam a caracterização sexual de uma pessoa: o biológico, revelado pelos cromossomos e características genitais de cada um; o psicossexual, que corresponde ao sentimento interno de cada um em relação ao gênero sexual que pertence; psicossocial, que se revela na exteriorização do sexo para a sociedade. [03]

Partindo desses três aspectos, tem-se que a transexualidade pode ser conceituada como a inadequação psíquica entre o sexo biológico e o sexo psicológico, é um transtorno sexual, do qual decorre uma desarmonia entre o aspecto biológico e os aspectos psicossexual e psicossocial. O transexual é um individuo que se identifica como pertencente ao sexo oposto. Para ele é como se tivesse nascido no corpo errado, possui uma auto-imagem invertida. Em outras palavras, o transexualismo é um desvio psicológico permanente de identidade sexual, com rejeição do seu gênero e com tendências de automutilação. [04]

Tal comportamento, hoje, é conhecido como disforia de gênero ou transtorno de identidade sexual, considerado como doença pela Organização Mundial de Saúde, cujo CID é n° 10-F64.0 e tem como único tratamento a cirurgia de redesignação sexual. Não existem tratamentos psicológicos ou psiquiátricos que curem um transexual, porque na verdade ele não deseja ser "curado". Busca a cirurgia de trangenitalização para adequar sua aparência física ao seu sexo psicológico, a qual possui um fim terapêutico, diversamente do que muitos pensam.

Mas para que essa cirurgia seja realizada o transexual tem que passar por um tratamento médico, por no mínimo dois anos, acompanhado por uma equipe multidisciplinar (urologista, psiquiatra, cirurgião plástico, nutricionista, entre outros especialistas), ser maior de idade [05] e fornecer autorização por escrito, clara e consciente de que deseja realizar o procedimento de trangenitalização.

Mas o que é a trangenitalização? É uma cirurgia para alterar o sexo biológico externamente, já que a carga cromossomial não poderá ser, jamais, alterada. Pode ser feita do homem para a mulher, é a chamada vaginoplastia [06], como da mulher para o homem, conhecida como faloneoplastia [07], sendo esta última bem menos comum.

Inicialmente, houve uma grande polêmica em torno da possibilidade ou não da realização da cirurgia de trangenitalização, uma vez que o art. 13 do CC/02, ao tratar dos direitos da personalidade afirma que: "salvo por exigência médica, é defeso o ato de disposição do próprio corpo, quando importar em diminuição permanente da integridade física ou contrária aos bons costumes."

O referido dispositivo legal tem como objetivo proteger a integridade física do seu humano, no que tange a utilização do corpo pela própria pessoa – diferente do que ocorre nos crimes de lesão corporal, no qual a integridade física é protegida em relação a terceiros – restando saber se a pessoa pode dispor de parte de seu corpo e até que ponto isso é possível. Assim, muito se falou sobre as cirurgias de alteração do estado sexual como violadoras dos direitos da personalidade, os quais possuem como uma de suas características a indisponibilidade [08].

Diante disso, antigamente, alguns doutrinadores e a jurisprudência entendiam que tal procedimento cirúrgico não poderia ser realizado por ser uma violação permanente do próprio corpo. Logo, os cirurgiões plásticos que os realizavam sem autorização judicial poderiam ser indiciados pelo crime de lesão corporal gravíssima, por deformidade permanente, nos termos do art. 129, § 2°, IV do CP.

Porém, com o passar do tempo esse entendimento foi mudando, o Conselho Nacional de Justiça ao realizar a I Jornada de Direito Civil determinou em seu Enunciado n° 6 que a exigência médica de que trata o art. 13 do CC/02 refere-se não só ao bem estar físico, mas também ao bem estar psíquico, abrindo uma porta para possibilidade de realização da trangenitalização sem autorização judicial. Em seguida, a medicina facilitou o entendimento da possibilidade de realização da cirurgia de mudança de sexo como tratamento médico, ao classificar mundialmente o transexualismo como doença, conforme dito anteriormente.

Aliado a isso, o Conselho Federal de Medicina editou em 1997 a Resolução n° 1.482/97 e, posteriormente, a Resolução 1.652/02, a qual revogou aquela, regulamentando e regularizando a redesignação do estado sexual, considerando seu fim terapêutico e dispensando a autorização judicial para sua realização.

Atualmente, a possibilidade de realização da cirurgia de mudança de sexo encontra-se ainda mais concreta com a edição da Portaria n° 1.707/08 do Ministério da Saúde que permite a trangenitalização pelo Sistema Único de Saúde, o SUS. E, no Rio de Janeiro, o Hospital Universitário Pedro Ernesto é pioneiro no procedimento, estando apto a promover a cirurgia de redesignação sexual.

De fato, havendo desvio psicológico permanente de identidade sexual, com rejeição do fenótipo, há de se reconhecer, como fez o órgão de classe médica, os benefícios da modificação do estado sexual, que exerce função terapêutica e respeita a dignidade humana.

Em outras palavras, o transexual tem direito constitucional à integridade física e psíquica e, por conta disso, poderá submeter-se à cirurgia de adequação sem autorização judicial. Pensar de forma diversa seria negar o direito à felicidade, condenando-o à conviver com uma eterna desconformidade entre sua estrutura psicológica e seu estado físico, violando assim, sua dignidade como ser humano.

Mas, em que pese a possibilidade de solucionar a rejeição pessoal do próprio corpo com a trangenitalização, os problemas dos transexuais começam, justamente, após a cirurgia, na batalha judicial para alteração do nome e do sexo no registro civil.

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3 DO REGISTRO CIVIL

No Brasil, o registro civil teve início por volta de 1875, tornando-se obrigatório em 1888 [09], com a edição da primeira lei de registros públicos. Atualmente, a Lei n° 6.015/73 é a norma que regula o registro civil no Brasil, o qual recebe o nome de Registro Civil de Pessoas Naturais.

De acordo com a Lei de Registro Públicos (LRP), sua finalidade é dar autenticidade, segurança e eficácia aos atos jurídicos, conforme determina o art. 1° do referido conjunto normativo. Há de se ressaltar ainda a oponibilidade contra todos dos atos registrados, tendo assim, o registro civil natureza de publicidade e notoriedade dos atos registrados. Deste modo, são exemplos de registro civil a certidão de nascimento, casamento, divórcio, o atestado de óbito etc. Além desses, outros institutos também são passíveis de registro civil, como a interdição, a adoção a perda do pátrio poder, os pactos nupciais etc.

Nas palavras do Mestre Sílvio de Salvo Venosa [10]:

o registro civil da pessoa natural (...), apresenta utilidade para o próprio interessado em ter como provar sua existência, seu estado civil, bem como um interesse do Estado em saber quantos somos e qual a situação jurídica em que vivemos. O registro civil também interessa a terceiros que vêem ali o estado de solteiro, casado, separado, etc. de quem contrata, para acautelar possíveis direitos. No registro civil encontram-se marcados os fatos mais importantes da vida do indivíduo: nascimento, casamento e suas alterações e morte.

De acordo com o art. 1° do CC "toda pessoa é capaz de direito e deveres na ordem civil", mas ao usar o termo pessoa, o nosso Código Civil se refere à pessoa física ou jurídica devidamente registrada, não existindo para o mundo jurídico aquele que nasce com vida e não tem seu registro civil (em que pese possuir personalidade). Com isso, tem-se que o registro é o momento em que a pessoa adquire capacidade de direito para a prática de atos da vida civil.

Assim, o registro gera presunção relativa do estado da pessoa, vez que ele é dotado de oponibilidade erga omnes ante as situações jurídicas e perante as pessoas da sociedade. Entretanto, nem sempre retrata a realidade fática, por isso existem as ações de estado, para que o cidadão possa retificar seu estado contra eventuais atentados aos direitos deles decorrentes. Diante disso, estas ações possuem natureza constitutiva, já que visam modificar ou extinguir um estado ou reconhecer uma outra situação pré-existente, guarnecendo o cidadão de segurança jurídica.

Contudo, o transexual ao nascer é classificado no registro civil como pertencente a determinado gênero sexual – o sexo biológico -, que é o sexo civil, o qual vai imputar ao indivíduo uma condição jurídica própria daquele gênero sexual, já que o direito civil impõe regras de convivência, muitas vezes, com base no gênero sexual da pessoa, como no caso do matrimônio, do estabelecimento de uma união estável, adoção de crianças etc.

Entretanto, como já afirmado anteriormente, no caso dos portadores desta patologia – transexualismo – a verificação do status sexual não pode ser feita por mera avaliação biológica, devendo conjugar aspectos psíquicos, biológicos e comportamentais para, com maior segurança, verificar a que gênero sexual aquele cidadão ou cidadã pertence.

Pior ainda é a situação do transexual operado que, após sanar a incoerência entre seu sexo biológico com seu sexo psicológico, nesse segundo momento de sua vida, carrega uma outra inadequação, ou seja, a situação fática de operado incoerente com sua situação jurídico formal, o que gera barreiras para realização plena de sua identidade sexual.

Esta última integra a identidade pessoal, a qual compreende o nome, a identidade física e a imagem, sendo estes componentes protegidos pela norma civil, dentro dos direitos da personalidade. Assim, conclui-se que a identidade sexual integra os direitos da personalidade, o qual possui amparo no princípio constitucional da dignidade da pessoa humana, previsto no art. 1°, III da CRFB/88 [11].

Diante do afirmado, em que pese, supostamente, a Lei de Registros Públicos estabelecer certas dificuldades para se alterar o nome do transexual operado, em seu art. 55 e parágrafo único, bem como no art. 58 do mesmo conjunto normativo, deve-se conferir uma interpretação civil-constitucional aos referidos dispositivos, bem como à Lei de Registros Públicos como um todo, respeitando a dignidade da pessoa humana, princípio basilar da República Federativa do Brasil, utilizando-a como mola mestre na ponderação interesses, entre a inclusão social e um cidadão e uma suposta segurança jurídica dos demais membros da sociedade, a qual tem por base o preconceito.

Assim, deve-se conferir ao transexual operado o direito de exercer sua identidade sexual em sua plenitude, garantindo a ele segurança jurídica e inclusão social, o que não é possível sem a alteração de seu registro de nascimento. Em outras palavras, apenas com a procedência da ação de redesignação sexual será permitida a alteração do sexo biológico, bem como do nome de batismo do transexual, gerando um novo registro civil sem a menção da condição de transexual, com efeitos contra todos, o que permitirá a este cidadão que exerça integralmente, sem qualquer violação seus direitos da personalidade, entre eles, o direito de ser feliz.


4 DO DIREITO À PERSONALIDADE E OS FUNDAMENTOS PARA A ALTERAÇÃO DO REGISTRO CIVIL DO TRANSEXUAL OPERADO

Como mencionado acima, a lei de registros públicos (Lei 6.015/73), em seu art. 58 estabelece a imutabilidade do nome, admitindo a retificação do mesmo, apenas na hipótese de erro gráfico evidente, em razão de nomes exóticos ou ridículos, que causem constrangimento à pessoa, no primeiro ano após a pessoa completar a maioridade civil e ainda para incluir apelidos públicos notórios. Quanto ao registro do sexo, uma vez realizado por ocasião do nascimento, somente poderá ocorrer modificação mediante sentença judicial (construção jurisprudencial criada no caso de hermafroditismo).

O fato é que ainda não existe normatização para tal hipótese, não existe lei que regule a situação dos transexuais. Tramita no Congresso Nacional, desde 1995 o Projeto de Lei 70-B do Deputado Federal José Coimbra, para alterar o art. 58 da Lei 6.015/73, para permitir a alteração do prenome e do sexo do transexual, mas até agora nada. Com Isso, diante da impossibilidade do juiz se eximir de julgar devido a ausência de lei, nos termos do art. 126 do Código de Processo Civil e art. 4° da Lei de Introdução ao Código Civil, ao longo do tempo construiu-se um entendimento jurisprudencial a respeito do tema, como se mostrará a seguir.

O nome, enquanto fator determinante de identificação, ou seja, o modo como o indivíduo se apresente em sociedade e como vinculação de alguém a um determinado grupo familiar, assume fundamental importância individual e social. O aspecto público do nome tem origem no fato de que o Estado tem interesse em que os indivíduos sejam, inquestionavelmente, individualizados na sociedade, o aspecto individual refere-se ao direito personalíssimo ao nome. Assim, não se pode negar que juntamente com o nome, a identidade sexual encerra fatores de ordem eminentemente pessoais, na qualidade de direito personalíssimo, constituindo um atributo da personalidade.

O exercício dos direitos da personalidade visam à concretização do princípio da dignidade da pessoa humana, previsto no art. 1°, III da CRFB/88, o qual é inerente, indissociável de todo e qualquer ser humano, relacionando-se intrinsecamente com a autonomia, razão e autodeterminação do indivíduo.

Entretanto, apesar do princípio da dignidade da pessoa humana não poder ser dissociado da legislação ordinária, sua tutela só se dá por via constitucional, ou seja, aplicando-o como cláusula geral na interpretação das leis. Pietro Perligiere [12], um doutrinador italiano que é seguidor do direito civil constitucional, sobre esse tema afirma que: "legislar por clausulas gerais significa deixar ao juiz, ao intérprete, uma maior possibilidade de adaptar a norma positivada às situações de fato."

No caso do direito brasileiro, essa possibilidade de adaptação pelas clausulas gerais ocorre também através do art. 4° e art. 5° da Lei de Introdução ao Código Civil, a qual determina que, quando a lei for omissa, o juiz decidirá de acordo com a analogia, devendo na aplicação das normas atender ao fim social e ao bem comum, possibilitando assim a adaptação do direito à realidade social, através da incorporação dos valores constitucionais à legislação ordinária, para alcançar o bem comum, o desenvolvimento da personalidade na sua forma plena, o que irá garantir a dignidade da pessoa humana.

Corroborando com o acima mencionado, Gustavo Tepedino [13] afirma que os legisladores utilizam-se de cláusulas gerais, visto a incapacidade que possuem em alcançar a evolução social, devido à velocidade com que o mundo tecnológico evolui e os conceitos sociais se alteram – o que era moderno ontem é ultrapassado hoje. E, a base jurídica da tutela da identidade da pessoa humana no ordenamento jurídico brasileiro é a própria Constituição, que estabelece cláusulas gerais destinadas a abranger os mais variados institutos jurídicos.

Assim, a Constituição de 05 de outubro de 1988, no que tange às cláusulas gerias, em seu art. 1°, III constitui como fundamento da República Federativa do Brasil a dignidade da pessoa humana. Já o seu art. 3°, IV, determina ser objetivo fundamental do Brasil a promoção do bem de todos, sem preconceito de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de descriminação. Ainda na carta maior, o art. 5°, que trata dos direitos fundamentais individuais e coletivos, em seu inciso X, estabelece como invioláveis o direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança, à intimidade, à honra e à imagem das pessoas. Ademais, a constituição nacional ainda assegura como direito fundamental social o direito à saúde, atribuindo este encargo ao Estado no seu art. 196.

Fora todas as cláusulas gerais constitucionais aqui citadas, há as previstas em tratados internacionais, como a Declaração dos Direitos Humanos da ONU de 1948 do qual o Brasil é signatário, que afirma em seu art. 1° que "todos os seres humanos nascem livres e iguais em dignidade e direito, dotados de razão e consciência e devem agir uns para com os outros em espírito de fraternidade".

Portanto, fechar os olhos para a peculiar situação vivenciada pelos transexuais, que é reconhecida pela medicina como uma doença, implica em grave violação ao princípio da dignidade da pessoa humana.

Não se pode esquecer que a finalidade da alteração do registro civil nos casos de cirurgia de redesignação sexual tem como escopo compatibilizar socialmente a situação do transexual, ou seja, o sexo biológico com o psicológico, uma vez que as situações constrangedoras pelas quais o transexual passa, o impede de ter uma vida que se aproxime do que se pode considerar como normal – pois, no caso de improcedência do pedido, a cirurgia por si só não tem o condão de inserir essa pessoa como cidadã na sociedade, dando efetividade ao regular exercício dos direitos da personalidade pelo transexual, uma vez que sem a alteração do registro ainda haverá diferença entre o sexo morfológico e o jurídico.

Nas palavras de Nelson Rosenvald [14], citando Maria Helena Diniz, tem-se que:

(...) é preciso, inicialmente, dizer que homem e mulher pertencem a raça humana. Ninguém é superior. Sexo é uma contingência. Discriminar um homem é tão abominável como odiar um negro, um judeu, um palestino, um alemão ou um homossexual. As opções de cada pessoa, principalmente no campo sexual, hão de ser respeitadas...O direito a identidade pessoal é um dos direitos fundamentais da pessoa humana (...) é o direito que tem todo sujeito de ser ele mesmo.

Inicialmente, mesmo diante de tais argumentos muitos julgados, inclusive aqui no Rio de Janeiro, negavam o pedido de alteração do registro civil, principalmente em relação à alteração do sexo. Os argumentos eram:

1.a impossibilidade de procriação pelo fato do transexual ser portador de cromossomos diversos do sexo que aparenta, havendo uma incompatibilidade biológica;

2.uma possível violação ao direito de terceiro;

3.preconceito.

Como se faz evidente, tais argumentos não puderam prosperar, pois no que tange à alegação de que o transexual não pode reproduzir, porque biologicamente não possui os cromossomos do sexo que aparenta, para negar o pedido de alteração do registro civil, isto é um verdadeiro absurdo, porque assim toda mulher que sofre de problema de fertilidade, não seria também mulher!? Devendo também sofrer algum tipo de preconceito!? Ademais, o sexo, a relação sexual em si, não tem como fim maior à procriação, como a religião e os juristas mais conservadores e preconceituosos afirmam em seus julgados. O sexo é prazer, é intimidade e o casamento tem como objetivo a convivência, a comunhão de uma vida entre duas pessoas. Se não fosse assim, não seria permitido o casamento entre pessoas idosas que não podem mais procriar. Logo, a incapacidade para procriar não impede a alteração do registro, até porque, nem sequer a infertilidade é motivo para anulação de um casamento.

Em relação à violação a direitos de terceiros e o preconceito, tem-se aí um verdadeiro absurdo, diante dos sofrimentos passados pelo transexual, o que viola o disposto na Constituição Federal, com já dito.

Posteriormente, combatendo esses argumentos e demonstrando a aplicação das cláusulas gerais constitucionais mencionadas no caso concreto, alguns julgados, principalmente do Rio Grande do Sul (que é um tribunal de vanguarda e julga com base na equidade, priorizando o que é justo ao caso concreto) e de São Paulo [15] passaram a permitir a alteração do registro civil do transexual, no que tange ao prenome e sexo [16], inclusive sem menção da qualidade de transexual [17].

Atualmente, diante da tendência mundial em alterar o registro adequando-se o sexo jurídico ao psicológico [18], a jurisprudência majoritária [19], inclusive no Superior Tribunal de Justiça [20], já entendeu como possível a alteração do registro civil do transexual em relação ao prenome, sexo e sem qualquer menção na certidão ao estado de transexual.

Tais julgamentos têm com fundamento que a autorização para a modificação do designativo do sexo dos transexuais, devem ser examinadas sob o crivo do direito à saúde e à luz do princípio da dignidade humana, autêntico arquétipo primordial, uma das bases principiológicas mais sólidas nas quais se assenta o Estado Democrático de Direito, como amplamente informado.

Para isso, os Tribunais vêm conferindo uma interpretação constitucional aos art. 55, 57 e 58 combinado com o art. 109, § 4°, todos da Lei 6.015/ 73 [21], afirmando que a situação de imutabilidade do registro público dos transexuais os expõem ao ridículo [22], sendo assim possível tal alterações (prenome e sexo), com base nos artigos acima mencionados, tendo como cláusulas gerais de interpretação os art. 1°, III. art. 3°, IV e art. 4°, II [23] da CRFB/88.

Entender como impossível tal pedido é postergar o direito à identidade dessas pessoas e é subtrair do indivíduo a prerrogativa de adequar o registro do sexo à sua nova condição física, impedindo sua integração na sociedade. Não pode mais o julgador se deter a um positivismo exacerbado, pois é o mesmo que violar o direito do cidadão a uma vida digna, o que não pode mais ser tolerado em nosso país.

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Sobre a autora
Flávia Justus

Advogada, professora de processo civil, especialista em processo civil pelo Instituto A Vez do Mestre e especialista em direito civi e processo civil pela Universidade Estácio de Sá

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

JUSTUS, Flávia. A possibilidade de alteração do registro civil do transexual operado. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 16, n. 2759, 20 jan. 2011. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/18310. Acesso em: 24 nov. 2024.

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