Capa da publicação União homoafetiva, ADPF 132 e ADI 4277: reflexos no casamento civil
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O julgamento da ADPF 132 e da ADI 4277 e seus reflexos na seara do casamento civil

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19/12/2011 às 15:33
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3. Os reflexos da decisão

A discussão sobre as uniões homoafetivas nunca esteve tão em alta como nos últimos tempos, após o julgamento da ADPF 132 e ADI 4277. Como previsto, como efeito da decisão, a celeuma passou da seara da existência ou não de entidade familiar, para a possibilidade – ou não – da conversão da união estável homoafetiva em casamento. Já se dizia que essa possibilidade era inafastável. E tal ideia se concretizou. Mas os avanços não pararam por aí.

3.1. O casamento civil por conversão

Em 28 de junho de 2011, um casal de homossexuais masculino, que vivem juntos há 8 anos, receberão das mãos do Oficial do Cartório de Registro Civil a certidão de casamento civil. No dia 06 de Junho deste ano, Luiz André Rezende Sousa Moresi e José Sergio Sousa Moresi, protocolaram o pedido de conversão da união estável em casamento civil. Foi publicado o edital e cumpridas todas as formalidades legais para a habilitação para o casamento, inexistindo impugnações. O Promotor Público da Cidadania Dr. Luiz Berdinaski se manifestou favoravelmente ao pedido, e no dia 27 de Junho, o Juiz da 2ª Vara da Família da Comarca de Jacareí-SP, Dr. Fernando Henrique Pinto, homologou o pedido.

É mister ressaltar alguns pontos da fundamentação do douto Magistrado. De pronto, o juiz ressaltou a importância da máxima da isonomia, em suas palavras "maior e mais repetido princípio da Constituição da República Federativa do Brasil". Sublinhou também a relevância da dignidade da pessoa humana e o fato de nossa constituição consagrar a liberdade e proibir discriminações em função de raça, cor, credo, sexo – ou quaisquer outros tipos de discriminação.

Discorreu sobre como a ausência de proteção jurídica às uniões homoafetivas – fato público e notório – causou toda sorte de injustiças. Lembrou da ADI 4277, que buscava – como conseguiu – a equiparação das uniões homoafetivas às uniões estáveis, e destacou que entendimentos contrários só poderiam ser oriundos de discriminação e/ou preconceitos religiosos. Mas, em suas palavras, "o Estado Brasileiro, do qual o Judiciário é um dos Poderes, repudia constitucionalmente a discriminação e é laico (...). É bom e necessário que assim seja, pois alguns dogmas ou orientações religiosas muitas vezes se chocam com princípios e garantias da Constituição da República Federativa do Brasil".

O douto magistrado advertiu também para a necessidade de se atentar que a homossexualidade não se trata de uma mera opção. Aliás, assim também o fizeram os Ministros Luiz Fux e Marco Aurélio, no julgamento da ADPF 132 e da ADI 4277. A orientação sexual nunca será um simples gosto ou escolha. Ninguém se encaminha sponte propria, para a homossexualidade (como para a heterossexualidade, obviamente). Trata-se de uma característica do indivíduo, como a cor dos olhos, a estrutura capilar, as aptidões, o caráter, etc.

Recordou ainda o juiz que o casamento perdeu a finalidade procriativa que outrora já teve. Salientou que, se assim não fosse, o casamento entre pessoas heterossexuais inférteis, ou em idade avançada, incapazes de se reproduzir, estariam vedados. E afirmou, sabiamente, que "o motivo maior da união humana é – ou deveria ser – o amor (...) valor e a virtude máxima fundamental".

Por último, antes de finalizar a breve e sensível sentença, sinalizou a aprovação em 17 de Junho deste ano, pelo Conselho de Direitos Humanos da ONU, de uma resolução histórica, cujo intuito é promover a igualdade entre todos os seres humanos, sem diferenciação em virtude de orientação sexual ou identidade de gênero. Dito isto, homologou a conversão da união estável em casamento, onde os nubentes puderam adotar o sobrenome um do outro. É dispensável dizer que a sentença teve efeitos imediatos. Agora, por força dos fatos, do amor e da justiça, Luiz André e José Sérgio podem se chamar de marido... e marido. 82 Esse foi o primeiro casamento civil homoafetivo do Brasil.

No dia seguinte, um casal de mulheres que viviam juntas há 12 anos e já tinham contrato de união estável também se casaram no Distrito Federal. No mês seguinte, em Julho deste ano, a comarca de São Bernardo do Campo também deferiu o pedido de conversão de união estável em matrimônio, tendo sido esta a segunda conversão da Comarca. Em Santa Catarina uma juíza casou-se com uma servidora municipal. Menos de um mês depois, o juiz Clicério Bezerra e Silva, da primeira Vara de Família e Registro Civil do Recife converteu em casamento a união estável de um promotor de justiça e um técnico do judiciário do Estado de Pernambuco. 83 Estes são os primeiros casos de muitos que ainda virão...

3.2. O casamento civil direto

Não obstante não seja um efeito jurídico do julgamento do STF, o casamento civil homoafetivo direto é uma consequência factual, tendo em vista as fundamentações das decisões que o autorizaram. Antes de adentrar nas decisões e nos casos existentes, vale, mais uma vez, relembrar o porquê de o casamento homoafetivo já ser possível, antes mesmo da decisão do STF em nosso ordenamento. Senão vejamos:

O Código Civil brasileiro não possui uma definição de casamento como sendo a união entre homem e mulher. A Constituição Federal tampouco traz uma definição de casamento ou explicita que a diversidade de sexos é requisito para a existência do mesmo. Limita-se a determinar que os direitos e deveres referentes à sociedade conjugal são exercidos igualmente pelo homem e pela mulher. 84 O Código Civil leva à conclusão, a priori, de que o casamento é instituto exclusivamente reservado a pares heterossexuais, em virtude da locução "homem e mulher" presente em diversos dispositivos, como os arts. 1.514, 1.517, caput, e 1.565 do referido Diploma. Trata-se, no entanto, de mera presunção.

O esteio da doutrina e jurisprudência, que entende "inexistir" o casamento civil entre pessoas do mesmo sexo, reside, primordialmente, na leitura do art. 1514. do CC. 85 Entende-se que, em virtude de ausência de referência expressa ao casamento entre pessoas do mesmo sexo, a diversidade de sexos constitui uma "condição de existência" no casamento civil. 86 Note-se, entretanto, que mesmo os defensores da "teoria da inexistência" confirmam que não se encontra, no ordenamento brasileiro, texto legal que consagre esse juízo 87, o que deveria levar ao apartamento automático desse entendimento por patente falta de fundamento normativo que o legitime. 88

A teoria do casamento inexistente, no Brasil, terminou por ser arquitetada em virtude da omissão legislativa e da recusa em se conceder validade ao casamento homossexual, não obstante a inexistência de proibição para tal ato na lei, ou de um dispositivo legislativo que indique a inexistência do matrimônio, como era o caso de Portugal. Ou seja, em território brasileiro trata-se de uma construção meramente doutrinária, sem respaldo legal. 89

Ultrapassada a "teoria da inexistência" 90, contrariamente ao casamento homossexual, argumenta-se ainda que um par do mesmo sexo apenas poderia contrair matrimônio se a legislação fosse expressa nesse sentido, o que não ocorre em virtude da expressão "o homem e a mulher", presente no Diploma Civil brasileiro. Diante de tal fato, vislumbra-se, portanto, uma vedação implícita, em virtude, novamente, da redação do art. 1.514. do CC, entendimento que contraria o disposto no art. 5º, II da Carta Magna brasileira. 91

A doutrina favorável ao reconhecimento do casamento civil entre pessoas do mesmo sexo, no Brasil, fundamenta-se na lógica de que a expressão "o homem e a mulher" não possuiria o condão de impedir o casamento entre um par do mesmo sexo. Afirma-se que os impedimentos matrimoniais são as proibições expressamente elencadas pelo CC, no art. 1.521, ou em outros dispositivos esparsos que determinam a anulabilidade ou nulidade do casamento civil. Assevera-se que a referência a homem e mulher indica apenas a regulamentação do fato heteroafetivo, sem que isso se traduza em proibição do fato homoafetivo para a mesma finalidade, que deveria ser regulado por meio da analogia ou interpretação extensiva. 92

Em 20 de Julho deste ano, a juíza Adriana Nolasco da Silva, da 1ª Vara de Cajamar - SP autorizou a habilitação de Wesley da Silva Oliveira e Fernando Júnior Isidoro Oliveira para o casamento civil. Trata-se da primeira autorização para casamento civil homoafetivo direto no Brasil. 93

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O parecer do Ministério Público 94 – favorável ao pedido – fez menção à decisão do STF, relembrando o seu efeito vinculante e eficácia erga omnes. Ressaltou ainda que, "os fundamentos de tal julgamento, ainda que sem o dito efeito vinculante, certamente são aplicáveis ao instituto de direito civil denominado casamento (...) o que apenas não foi declarado no mencionado precedente histórico com STF, provavelmente porque não era objeto dos pedidos das ações em análise". Em linhas gerais, a decisão da juíza de Cajamar afirmou que o STF "acabou por referendar a inconstitucionalidade de qualquer discriminação em razão da orientação sexual, para fins de se reconhecer uma entidade familiar, fim último da união estável". Asseverou ainda que, a outro giro o parágrafo 3º do art. 226. da CF ao estabelecer que a lei facilitará a conversão da união estável em casamento "acaba por obrigar ao Estado a não impor como empecilho à celebração do casamento do mesmo sexo, uma vez reconhecida a existência da união estável". Em resumo: se pode haver conversão, por que não poderia haver casamento direto?

Tal autorização já ocorreu em mais duas comarcas, sendo uma delas a de Jacareí - SP 95, onde a celebração do casamento será em 29 de Setembro do ano corrente.


Considerações finais

À primeira vista a decisão de 05 de Maio de 2011 do STF sobre as uniões homoafetivas parecia tratar tão-somente da união estável. Doce engano. Os efeitos transcenderam essa seara. Automaticamente, por força do seu efeito vinculante e eficácia erga omnes, fez com que várias portas, de diversos institutos jurídicos fossem abertas aos homossexuais, nomeadamente a adoção conjunta (que já vinha sendo garantida por via jurisprudencial) e o casamento civil por conversão.

Vale dizer e repetir que o STF não julgou, não versou, não se manifestou sobre o casamento civil. Essa abertura se deu como um efeito natural da equiparação das uniões homoafetivas com as uniões estáveis: a conversão da união estável em casamento. Não se trata de nenhuma fórmula mágica ou ginástica hermenêutica. É uma solução muito simples, oriunda da legislação positiva brasileira. E deve ser vista como um plus, mais uma possibilidade de os casais – todos eles – exercerem a sua liberdade e autonomia na hora de formatarem a sua entidade familiar. Como já se defendia, e como a jurisprudência, vem se formatando nesse sentido, o casamento civil direto é possível, se o casal assim o desejar.

Agora os homossexuais podem se vincularem por união estável, converterem sua união estável em casamento ou casarem-se diretamente. Um leque de opções de constituição de vida em comum que, finalmente, é garantido a todos os indivíduos deste país.

Enquanto o Legislativo cochila, dorme e se finge de morto, sonegando direitos civis de uma parcela considerável dos cidadãos e tenta negar o inegável, o Judiciário vem cumprindo com o seu papel e fazendo valer os princípios constitucionais da igualdade e liberdade, insculpidos em nossa Carta Magna, respeitando a dignidade de todos os seres humanos deste país.


Referências

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DIAS, Maria Berenice. Manual de Direito das Famílias. 4. ed. rev., atual. e ampl. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2007.

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MONTEIRO, Washington de Barros. Curso de direito civil, vol.II: direito de família. 37. ed. São Paulo: Saraiva, 2004.

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Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

CHAVES, Marianna. O julgamento da ADPF 132 e da ADI 4277 e seus reflexos na seara do casamento civil. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 16, n. 3092, 19 dez. 2011. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/20672. Acesso em: 4 out. 2024.

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