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Judicialização razoável como meio de efetivar o acesso à saúde

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Deve-se expungir tanto os argumentos radicais que pregam a mitigação absoluta da tutela jurisdicional da saúde, quanto os que defendem a “judicialização excessiva”, que tende a totalizar a microjustiça e amesquinhar a macrojustiça.

Toda riqueza futura depende do trabalho atual e, mais do que os bens terrenos, ele vos levará à gloriosa elevação. É então que, entendendo a lei do amor que une todos os seres, encontrareis os suaves prazeres da alma, que são o início das alegrias celestes. (Allan Kardec)


RESUMO

O presente trabalho aborda a tutela jurisdicional da saúde, os excessos dela decorrentes e a utilização de parâmetros razoáveis para a atuação do Poder Judiciário na solução das lides sanitárias. Inicia-se com a exposição preliminar do Direito à Saúde (Direito Sanitário), discorrendo-se sobre a sua inserção no âmbito dos Direitos Fundamentais e a sua evolução no ordenamento jurídico pátrio, estabelecendo-se ao fim a sua síntese conceitual. Em seguida, explicita a origem, as regras, os princípios informativos e a estrutura funcional do Sistema Único de Saúde, bem como discute os problemas que o afligem e que refletem na dificuldade de acesso aos serviços sanitários. Feito isso, elenca os instrumentos processuais de tutela individual e coletiva do direito à saúde e declina as críticas apresentadas pela doutrina à sua judicialização. Evidencia também o confronto entre a macrojustiça e a microjustiça e, como possível atenuação para o problema, traz a lume os princípios da proporcionalidade e da razoabilidade, aplicados ao Direito Processual na promoção do direito à saúde. Uma vez comentados e contextualizados tais princípios, extrai e discute alguns parâmetros estabelecidos pela doutrina com a finalidade de auxiliar o magistrado no momento de ponderar os princípios do Mínimo Existencial e da Reserva do Possível e solucionar a lide sanitária posta sob sua apreciação de maneira a provocar o menor prejuízo possível tanto ao interesse público quanto ao paciente litigante.

Palavras-chave: Direito à Saúde. Judicialização. Reserva do Possível. Mínimo Existencial. Microjustiça. Macrojustiça. Razoabilidade. Proporcionalidade.


1. INTRODUÇÃO

O tema a ser discutido neste trabalho deriva de uma polêmica que surgiu após a Constituição Federal de 1988 e que tomou dimensões vultosas na primeira década do milênio que se inicia. Trata-se, a priori, de uma espécie da categoria temática denominada “controle judicial dos direitos a prestações” ou “judicialização dos direitos sociais”. O termo “judicialização” é um neologismo empregado para traduzir a efetivação em concreto dos direitos sociais através da tutela jurisdicional. Em outras palavras, quando os demais “poderes” estatais são omissos, lenientes, ou, de qualquer maneira, falhos em garantir os direitos elencados no texto constitucional – os quais geram obrigações positivas – o cidadão prejudicado socorre-se do Poder Judiciário para força-los a cumprir os seus deveres. É forçoso perceber que o fenômeno do controle judicial das políticas públicas prestacionais deveria ser uma exceção. Mas não é, ao contrário, tem se tornado prática reiterada demandar judicialmente os entes públicos para exigir a prestação de serviços ou o acesso a algum direito social obstado pela própria inação estatal ou pela falta de normas que o regulamente. Tais exigências resultam nos milhares de processos que assoberbam a Justiça Comum. A esta crescente multiplicação processual a doutrina batizou de “judicialização”. Malgrado não esteja tombado na maioria dos dicionários, o termo em comento já vem sendo utilizado em diversos artigos e obras especializadas, não constituindo o seu uso um atentado ao nível culto-formal de linguagem utilizado nos trabalhos acadêmicos.

O fenômeno da judicialização atinge todo o grupo dos direitos sociais. Todavia, afeta com mais intensidade os direitos e garantias atinentes à saúde. Tramitam nos juízos estaduais e nas varas federais milhares de demandas nas quais se pleiteia a entrega de medicamentos e a realização de exames ou de intervenções cirúrgicas. Além disso, centenas de decisões e sentenças são prolatadas condenando o Estado a fornecer medicamentos caros, a arcar com tratamentos no exterior, dentre outras disposições abusivas que comprometem o orçamento dos entes federativos. É o que a doutrina denominou de “judicialização excessiva”.

As opiniões tanto no seio dos tribunais quanto no âmago da doutrina se dividem. Ora se afirma que a “judicialização” não é excessiva e que os direitos fundamentais não podem sofrer qualquer forma de mitigação. Ora se afirma que a saúde não é direito absoluto e que a sua garantia desenfreada através dos pleitos jurisdicionais é um perigo à paz social. O que fazer? As mais variadas soluções são encontradas na doutrina, mas nenhuma delas pode ser considerada como paradigma universal para o fim dos embates principiológicos que permeiam o tema.

Este trabalho não ousará ter a pretensão de resolver o problema. Apenas propõe acrescentar mais uma sugestão ao aplicador do Direito no momento de solucionar um conflito que envolver a saúde.

Para atingir tal propósito, esclarecimentos se fazem necessários. Assim sendo, não se pode falar em “judicialização da saúde” sem abordar o próprio direito à saúde, também chamado de direito sanitário. É o que será feito no decorrer do primeiro capítulo.

De nada adianta abordar o surgimento do direito à saúde, a sua evolução dentro dos direitos fundamentais e o seu conceito se não for analisado, com bastante cautela, o Sistema Único de Saúde (SUS). A compreensão das diretrizes e princípios que o regem, bem como da sua estrutura funcional é de suma importância para o conhecimento das causas do controle judicial – excessivo – do referido direito. Disso tratará o segundo capítulo.

Também não é de bom alvitre entrar no mérito do tema sem declinar os instrumentos processuais utilizados para a promoção do acesso à saúde através da invocação da tutela jurisdicional. Uma vez esclarecidas as dúvidas preliminares que cercam a temática em estudo, deve-se expor os motivos de a doutrina afirmar que a “judicialização” da saúde é excessiva. Devem ser explicitados também os conflitos principiológicos que polemizam a questão e, uma vez demonstrada a complexidade e a dificuldade de solução para o problema, será proposta uma “solução” alternativa. Esta, conforme se verá, terá lastro na razoabilidade e na proporcionalidade, e se expressará em parâmetros de atuação para o magistrado. Eis a “judicialização” razoável, como meio de tornar efetivo o acesso à saúde.


2. DO DIREITO SANITÁRIO

2.1. Direito à Saúde no Âmbito dos Direitos Fundamentais

Não se concebe a existência do homem, enquanto ser dotado de vitalidade, sem que estejam presentes os meios que contribuem para a sua manutenção. Em outros termos, é despicienda a vida sem a sanidade que lhe deve ser inerente. Para alcançar esta constatação, as sociedades percorreram um longo caminho de retrocessos e avanços que resultaram no que modernamente se concebe por Direitos Fundamentais, conhecidos, na órbita do jus gentium, por Direitos Humanos.

A raiz dos direitos naturais encontra-se no ideal de justiça, o qual não é uma novidade moderna. Ao revés, remonta à Babilônia, mais precisamente ao Código de Hamurabi, elaborado durante o governo do rei Hamurabi, em aproximadamente 1700 a. C., quando prescrevia, dentre as suas quase 282 leis e cerca de 3600 linhas[1], na Lei de Talião, que para cada ato ilícito praticado corresponderia punição da mesma natureza, com a mesma intensidade, para o seu autor. A expressão ‘’olho por olho, dente por dente’’, prevista na lei de nº 196[2], sintetiza o espírito da lex talionis. Pode parecer simplória tal ilação, mas, refletindo acerca da aplicabilidade das normas contidas no vetusto código, nota-se que naquela época já havia a preocupação com a defesa de bens jurídicos primordiais como a vida, a integridade física, a liberdade, a igualdade formal e a propriedade.

Reputa-se igualmente como fonte dos direitos do homem a noção de democracia. Esta, assim como o ideal de justiça, proporciona ao leitor uma viagem ao passado. Com mais exatidão, ao período arcaico[3] das civilizações da Grécia Antiga, no qual foram construídas cidades-estado, a exemplo de Atenas[4]. Malgrado a democracia existente nesse período histórico tenha se caracterizado pelo predomínio da classe sócio-econômica oligárquica (eupátridas – representados pelo partido Pediano) e, em menor expressão, da classe dos comerciantes (georgóis – representados pelo partido Paraliano), percebia-se que naquele tempo os detentores da cidadania[5] (excluídos os estrangeiros, as mulheres e escravos) exerciam o poder político diretamente, nas reuniões da Eclésia (assembléia popular composta por seis mil membros de todas as classes sociais atenienses), e indiretamente, deliberando acerca das diretrizes normativas propostas pela Bulé (corporação legislativa).

Não obstante os direitos naturais tenham origem remota nas civilizações situadas entre os rios Tigre e Eufrates, e nas do ocidente antigo, verifica a historiografia que foi na Baixa Idade Média européia e na Idade Moderna que se construíram os alicerces do que hoje a doutrina constitucionalista chama de Direitos Fundamentais de Primeira Dimensão. O primeiro documento normativo a tratar das liberdades públicas foi a Magna Carta inglesa, de 1215, a qual, conforme Albert Noblet, citado por José Afonso da Silva[6],

longe de ser a Carta das liberdades nacionais, é, sobretudo, uma carta feudal, feita para proteger os interesses dos barões e dos direitos dos homens livres. Ora, os homens livres, nesse tempo, ainda eram tão poucos que podiam contar-se, e nada de novo se fazia a favor dos que não eram livres.

Além da Magna Carta, a doutrina enumera outros textos normativos oriundos do Common Law. O primeiro é a Petition of Rights, de 1628, que consiste num ‘’documento dirigido ao monarca, em que os membros do Parlamento de então, pediram o reconhecimento de diversos direitos e liberdades para os súditos de sua majestade’’[7]. Nota-se que apesar de esta petição exigir a observância dos direitos e liberdades já reconhecidos pela Magna Carta, os seus mandamentos ainda não eram respeitados pelas autoridades monárquicas. Em 1679, um importante passo rumo à contensão do arbítrio absolutista foi dado com a promulgação do Habeas Corpus Act, o qual suprimia a prerrogativa das autoridades de efetuar prisões arbitrárias.

A mais importante das cartas inglesas, porém, foi a Declaração de Direitos (Bill of Rights), de 1688 ‘’que decorreu da Revolução de 1688, pela qual se firmara a supremacia do Parlamento (...). Daí surge, para a Inglaterra, a monarquia constitucional, submetida à soberania popular (...)’’[8].

Os movimentos revolucionários que abalaram a metrópole inglesa refletiram nas suas 13 colônias situadas no continente americano, concretizando-se nos documentos legislativos promulgados na Declaração de Direitos do Bom Povo de Virgínia, de 12.01.1776, na Declaração de Independência, de 04.07.1776 e na Constituição da Filadélfia (de 17.09.1787), após as suas 10 primeiras emendas, aprovadas em 1791[9].

Em que pese tenham as declarações de direitos, positivadas nos documentos normativos supradescritos, oriundos do sistema common Law, curial importância para a consolidação dos Direitos Subjetivos Públicos, ou Direitos Fundamentais de 1ª Dimensão, as mesmas tinham caráter concreto, limitado aos povos daquelas respectivas nações[10]. Diferente dessas, a Declaração de Direitos do Homem e do Cidadão, originada na Assembléia Constituinte francesa, em 1789 (na primeira fase da Revolução Francesa), tinha caráter abstrato, posto que visava à proteção dos direitos fundamentais do ser humano.

Os Direitos Fundamentais de Primeira Dimensão dizem respeito às liberdades públicas e aos direitos políticos. Materializam-se no rol numerus apertus de direitos concernentes à liberdade de ir e vir, de expressão, de crença, de informação e de imprensa, à proteção da vida privada e da intimidade, da imagem e da honra (subjetiva e objetiva), ao devido processo legal, ao juiz natural, ao contraditório e à ampla defesa, o direito ao sufrágio, à livre organização partidária, dentre outros apontados pela doutrina civilista.

 Consolidadas as liberdades formais nos séculos XVIII e XIX, iniciou-se a era dos Estados Liberais burgueses, nos quais ao poder público cabia a manutenção da ordem e da liberdade, tendo atribuições meramente negativas, de caráter absenteísta. Como bem afirma José Afonso da Silva:

O indivíduo era uma abstração. O homem era considerado sem levar em conta a sua inserção em grupos, família ou vida econômica. Surgia, assim, o cidadão como um ente desvinculado da realidade da vida. Estabelecia-se igualdade abstrata entre os homens, visto que deles se despojavam as circunstâncias que marcam suas diferenças no plano social e vital. Por isso, o Estado teria que abster-se. Apenas deveria vigiar, ser simplesmente gendarme.[11]

Em face da ausência do Estado no controle das relações sociais, assolava a miséria, a exploração do trabalho feminino e infantil, havendo jornadas de até 16 horas, não havendo direito a descanso, proteção contra a insalubridade e a periculosidade, sem contar com a ínfima remuneração que era oferecida à massa proletária. Tudo isso fez surgir teorias que pugnavam por um Estado mais presente, dotado de obrigações positivas. As primeiras obras a abordar tal necessidade foram as dos socialistas utópicos, cujos nomes mais expressivos foram Saint-Simon, Fourier, Louis Banc e Owen. Em seguida, vieram os socialistas científicos Karl Marx e Friedrich Engels, em sua obra prima Manifesto do Partido Comunista, além de títulos como O Capital e A Ideologia Alemã.

Politicamente, ocorreram importantes eventos na Europa que fizeram surgir o que na primeira metade do século XX denominou-se de Welfare state. O pioneiro foi a Revolução de 1848, em Paris, em cuja constituição (que teve breve existência) foi reconhecido o direito do trabalho. Todavia, os divisores de água ocorreram na primeira metade do século XX. O primeiro deles foi a Revolução Mexicana de 1917, a qual,por primeiro, sistematizara o conjunto dos direitos sociais do homem, restrita, no entanto, ao critério de participação estatal na ordem econômica e social, sem romper, assim, em definitivo, com o regime capitalista[12].

Em 1919, houve a promulgação da Constituição de Weimar, a qual reconheceu em seu livro intitulado Direitos e Deveres Fundamentais dos Alemães os direitos sociais.

A mais importante de todas foi a Revolução Bolchevique, de outubro de 1917, a qual rompeu em definitivo com a ordem capitalista, instaurando um regime político no qual eram evidenciados os direitos sociais e econômicos. Tão importante quanto a Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão foi a Declaração dos Direitos do Povo Trabalhador e Explorado, aprovada em 1918, durante o governo de Vladimir Ilyitch Ulianov (Lenin), a qual não se limitara a reconhecer direitos econômicos e sociais, dentro do regime capitalista, mas a realizar uma nova concepção de sociedade e do Estado, e também, uma nova idéia de direito, que buscasse libertar o homem, de uma vez por todas, de qualquer forma de opressão.

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A partir de então, passaram a integrar os textos das constituições que sucederam os Direitos Fundamentais de Segunda Dimensão, também chamados de Direitos Sociais e Econômicos. São exemplos: os direitos concernentes à relação do trabalho, à organização sindical, à previdência social, à moradia, à educação, ao lazer, ao desporto, à proteção à maternidade e à infância e o direito sanitário. Estes geram obrigações positivas aos poderes públicos, devendo estes intervir para evitar a exploração da mão-de-obra e as iniqüidades dela decorrentes. Tais direitos possuem três características essenciais: o fato de serem considerados como um rol exemplificativo (numerus apertus); o fato de gerarem obrigações onerosas para o erário, ou seja, sua implementação progressiva deve respeitar os limites orçamentários (reserva do possível, da qual trataremos amiúde)[13]; e, por fim, a irrenunciabilidade (também característica geral dos direitos fundamentais, conforme se verá ao fim deste tópico), que é atribuída com mais propriedade aos direitos decorrentes da relação de trabalho, mas que não deixa de caracterizar os demais direitos sociais.

O Direito à Saúde insere-se no rol desses direitos, na medida em que exige ações de cunho positivo (intervencionista) dos três poderes. No âmbito do poder legislativo há a obrigatoriedade da elaboração e aprovação de leis que estejam voltadas à proteção da integridade física e psíquica dos cidadãos. No que concerne à atuação do poder executivo, deve esta pautar-se pela execução de políticas públicas, pelo fornecimento de medicamentos, e, sobremodo, pela aplicação e regulamentação das leis elaboradas pelas corporações legislativas. Já a atuação do poder judiciário deve consistir na tutela jurisdicional do cidadão, ou do grupo de pessoas, que se sentir lesado, de alguma forma, em seu direito à saúde (seja em virtude da omissão dos demais poderes, seja pelos danos causados pelos serviços prestados pelos órgãos e entidades vinculadas ao poder executivo[14]).

No século XX, face às transformações ocorridas após o término da 2ª guerra mundial e, sobremodo, posteriormente ao término da disputa armamentista entre a União Soviética e os Estados Unidos surgiu a necessidade de tutelar direitos que ultrapassavam as necessidades do homem individualmente (seja tal tutela atinente à liberdade formal, seja concernente aos direitos e garantias de cunho protecionista). Desta feita, para adequar-se às novas necessidades de um mundo caracterizado pela interligação entre as comunidades e os povos, tornando internacionais problemas que antes ficavam restritos ao âmbito local, surgiu uma nova classe de direitos: os Direitos Fundamentais de 3ª Dimensão. Estes dizem respeito à proteção do homem enquanto ser inserido em uma coletividade, não apenas em um grupo restrito, mas sim como parte integrante de uma massa populacional de interesses indivisíveis. São exemplos mais comuns os direitos do consumidor e o direito ao meio ambiente saudável.

Na medida em que o direito à saúde corresponde deste a necessidade de atendimento médico até a obrigação dos entes estatais de desenvolver políticas de proteção contra doenças, através de campanhas de conscientização acerca dos fatores que ameaçam a vida saudável, não em nível individual, mas coletivo em sentido amplo (difuso), pode-se inferir que se trata, também, de direito fundamental de 3ª dimensão.

O Direito Sanitário vai além. Imiscui-se nas novéis ciências biotecnológicas, seja através das leis que regulamentam a engenharia genética, seja pelas pesquisas que são desenvolvidas pelas universidades e centros especializados de estudo, seja, por fim, pela tutela jurisdicional dos biodireitos.  Posto isso, conclui-se que o direito à saúde adentra na novíssima 4ª dimensão dos direitos fundamentais[15].

Feitas as declinações acima, resta induvidoso que o direito à saúde, enquanto norma positivada no texto das constituições atualmente em vigor, inclusive na nossa (conforme se exporá no próximo item), é considerado um direito humano fundamental. Por conseguinte, é dotado das seguintes características: historicidade, inalienabilidade, irrenunciabilidade, imprescritibilidade, universalidade e limitabilidade[16].

A historicidade decorre do fato de os direitos fundamentais decorrerem da própria evolução da sociedade, não derivando da natureza humana ou de um atributo divino. Como afirma José Afonso da Silva, ‘’sua historicidade rechaça toda fundamentação baseada no direito natural, na essência do homem ou na natureza das coisas’’[17]. O direito à saúde, como direito fundamental de 2ª dimensão, surgiu no contexto das mudanças geopolíticas que originaram os direitos sociais e econômicos, sendo fruto das alterações sociológicas.

A inalienabilidade corresponde à indisponibilidade. Ou seja, ao fato de todo direito fundamental possuir caráter extra-patrimonial. Assim sendo, as normas de direito sanitário não podem jamais constituir objeto de transferência patrimonial.

A irrenunciabilidade atine ao fato de que não é possível ao ser humano renunciar a qualquer direito fundamental. Pode haver o não exercício do mesmo pelo seu titular, porém nunca a renúncia ao mesmo. Um exemplo relacionado ao direito à saúde pode ser apontado no art. 13, caput, do Código Civil. Neste dispositivo, veda-se a disposição do próprio corpo quando importar diminuição permanente da integridade física ou contrariar os bons costumes, ressalvando-se o caso de exigência médica.

A imprescritibilidade significa que a exigibilidade de tais direitos não se extingue com o decorrer dos prazos estabelecidos na legislação para os direitos disponíveis. O direito de exigir do ente estatal a realização de um procedimento cirúrgico necessário à sobrevivência do paciente, por exemplo, não se extingue com o decorrer do tempo. Tal atributo não pertence a todos os direitos fundamentais, a exemplo da prescrição para a reparação aos direitos laborais violados[18].

A universalidade decorre do fato de serem destinados a todos os seres humanos, sem qualquer discriminação desarrazoada. Em outras palavras, são direitos oponíveis erga omnes, dos quais são titulares todos os indivíduos, independentemente da classe social, do sexo, da origem, da cor da pele ou de qualquer outro caractere discriminatório. O direito à saúde, sendo também a garantia de uma vida saudável, deve ser disponibilizado a todos os que dele necessitam, independentemente de terem recursos para se utilizarem dos serviços fornecidos supletivamente pela iniciativa privada.

Já a limitabilidade é decorrente da própria relatividade inerente a esses direitos. Ou seja, não absolutos, pois encontram seus limites nas demais garantias e direitos assegurados no ordenamento jurídico positivo. Tais limitações são de ordem financeira, consubstanciadas na reserva do possível, conforme se declinará mais adiante.

O direito à saúde insere-se, portanto, no rol de direitos a prestações, denominação dada por Robert Alexy[19], na sua Teoria dos Direitos Fundamentais. O professor alemão os conceitua como:

Todo direito a uma ação positiva, ou seja, a uma ação do Estado, é um direito a uma prestação. Nesse sentido, o conceito de direito a prestações é exatamente o oposto do conceito de direito de defesa, no qual se incluem todos os direitos a uma ação negativa, ou seja, a uma abstenção estatal.

Afirma ainda o referido autor que a expressão “direito a prestações” geralmente está associada à noção de um “direito a algo que o titular do direito poderia obter de outras pessoas privadas se dispusessem de meios financeiros suficientes e se houvesse no mercado uma oferta também suficiente[20]”. Além de prestações fáticas (e. g., atendimento médico gratuito), os direitos sociais abrangem igualmente as prestações normativas, ou seja, a criação de normas de cunho material e procedimental, as quais Alexy denomina de “normas organizacionais e procedimentais”.

Para fins didáticos, ele divide os direitos prestacionais em três grupos[21]: (1) direitos a proteção, (2) direitos a organização e procedimento, e (3) direitos a prestações em sentido estrito.

Os primeiros consistem nos “direitos do titular de direitos fundamentais em face do Estado a que este o proteja contra intervenções de terceiros[22]”, melhor explicitando, são “direitos constitucionais a que o Estado configure e aplique a ordem jurídica de uma determinada maneira no que diz respeito à relação dos sujeitos de direito de mesma hierarquia entre si[23]”. A saúde é citada como exemplo pelo autor, haja vista que impõe aos entes estatais a obrigação de realizar ações positivas com o fito de satisfazer as necessidades daqueles acometidos por enfermidades ou males crônicos, ou seja, a aplicar as normas existentes no ordenamento jurídico para proteger de forma isonômica os integrantes da relação jurídica existente entre o Estado prestador e o cidadão credor. Mais a frente, quando forem abordados os parâmetros de atuação do poder judiciário na tutela individual do direito à saúde, será explicitada mais detidamente a questão da “justiciabilidade” dos direitos prestacionais, tanto em sentido amplo quanto em sentido estrito.

No que tange aos direitos relacionados à organização e ao procedimento, explica Alexy que, a priori, existe certa dificuldade em estabelecer um elo entre os conceitos neles abarcados (organização e procedimento). Todavia, conforme elucida, a distinção entre eles não segue critérios técnicos, o que leva o estudioso à conclusão no sentido de que não é necessário tratá-los de forma distinta. Assim sendo, infere o professor da Universidade de Kiel que tais direitos

Podem ser tanto direitos à criação de determinadas normas procedimentais quanto a direitos a uma determinada ‘interpretação e aplicação concreta’ de normas procedimentais. (...). O direito a proteção jurídica efetiva (...) tem como destinatários os tribunais. De outra parte, os direitos a procedimentos que têm como objeto a criação de normas procedimentais, por serem direitos ao estabelecimento de normas, têm como destinatário o legislador.[24]

Por fim, os direitos a prestação em sentido estrito dizem respeito àqueles “do indivíduo em face do Estado”, ou seja, “a algo que se dispusesse de meios financeiros suficientes e se houvesse uma oferta suficiente no mercado, poderia também obter de particulares[25]”. Prossegue o autor, ao referir-se a tais direitos, afirmando que

É necessário diferenciar entre direitos a prestações previstos de forma expressa, (...), e direitos a prestação atribuídos por meio de interpretação. (...). A diferença entre os direitos a prestações expressamente garantidos e aqueles atribuídos por meio de interpretação é, sem dúvida, importante. Já no que diz respeito a seu conteúdo, sua estrutura e seus problemas, há uma ampla coincidência entre ambas as categorias. Isso justifica designar todos os direitos a prestações em sentido estrito como ‘direitos fundamentais sociais’ e, no interior da classe dos direitos fundamentais sociais, diferenciar entre aqueles expressamente garantidos e aqueles atribuídos por meio de interpretação.[26]

Os serviços de saúde, uma vez expressamente garantidos em nível normativo, geram a exigibilidade de sua concretização. Ou seja, uma vez presentes as normas regulamentadoras das ações e serviços sanitários, tem o Estado o dever de garanti-los a quem deles necessitar, podendo o cidadão lesado exigir o cumprimento da obrigação estatal em juízo. Amiúde, quando tratarmos da judicialização excessiva, retomaremos esta discussão.

2.2. Evolução no Direito Constitucional Brasileiro

Reiterando o que fora afirmado alhures, o direito à saúde surgiu no contexto histórico da crise do Estado Liberal, no qual eram garantidas apenas as liberdades formais, ou seja, os poderes públicos agiam apenas como mantenedores da ordem. Os direitos e garantias positivados nas constituições promulgadas – ou derrogadas – no século XIX visavam primordialmente a proteger o cidadão contra os abusos possivelmente praticados pelos agentes estatais.

No entanto, o indivíduo era visto como um ser isolado, habitante de uma bolha ideal, alheio à família, ao trabalho e às demais necessidades que pudessem concretizar as liberdades das quais formalmente ele era detentor. Tal visão, conforme os diversos acontecimentos históricos ocorridos no primeiro século da chamada Idade Contemporânea (que se iniciou com a Revolução Francesa), alterou-se na medida em que as constituições posteriores consagravam, ainda que de forma branda e tímida, direitos de cunho prestacional.

 Do pós-guerra até os dias atuais notou-se a progressiva elevação dos direitos sociais ao nível de direitos fundamentais prima facie (ou seja, de nível principiológico) e vinculantes[27], ou seja, capazes de gerar obrigação ao Estado e, por conseguinte, a possibilidade do cidadão de exigir a sua prestação diretamente (pelos órgãos ou entidades vinculadas ao poder executivo), ou a devida regulamentação das normas ditas programáticas por parte do poder legislativo.

O direito positivo brasileiro consagrou o direito à saúde de forma progressiva. É o que se observa quando se analisa os textos das constituições que vigoraram em nosso país.

A Constituição de 1824, primeira a vigorar após a conquista da independência política, consagrou a ideologia do Estado Liberal absenteísta, declarando em seu Título 8º, intitulado ‘’ Das Disposições Geraes, e Garantias dos Direitos Civis, e Politicos dos Cidadãos Brazileiros’’, os Direitos Fundamentais de 1ª Dimensão. Visava-se com tais direitos proteger, ao menos sob o ponto de vista formal, o indivíduo abstratamente considerado contra o arbítrio estatal. A práxis revelou, porém, que tais normas visavam a fortalecer os interesses (liberdades) das classes detentoras do poder político-econômico, deixando em total desamparo aqueles que não possuíam meios de acesso aos mesmos. Vale ainda lembrar que o nosso Estado Nacional surgiu em meio à economia escravocrata, na qual os escravos (oriundos das colônias africanas), que correspondiam a significativa parcela da população, não eram considerados sujeitos de direito, não disfrutando sequer das liberdades negativas já positivadas no texto da constituição monárquica.

Com o fim do império escravagista, após a insurreição política que resultou na queda do regime monárquico e na instauração da república oligárquica, alterou-se novamente a ordem constitucional, sendo promulgada em 24.02.1891. A primeira constituição republicana também não inovou no que tange à oferta de direitos fundamentais, limitando-se a consagrar as liberdades formais em seu ‘’Título V’’.

Um considerável avanço ocorreu na Constituição de 1934, a qual seguiu a esteira da Constituição do México de 1917 e da Constituição de Weimar, de 1919. Pela primeira vez em nossa história constitucional foram declarados, ainda que timidamente, os direitos de cunho social, no “Título IV”, denominado “Da ordem Econômica e Social”. Nos artigos 115 a 145 foram declarados alguns direitos concernentes à relação de trabalho (a exemplo da limitação da jornada de trabalho[28], do salário mínimo[29], das férias[30], dentre outros) e à segurança e medicina do trabalho, a exemplo do disposto no art. 121,§ 1º, alínea f[31].

Na Constituição de 1937, outorgada sob a égide do Estado Novo, os direitos sociais foram reconhecidos, porém a sua tutela sofria limitações. Exemplo disto era a vinculação dos sindicatos a órgãos estatais e a proibição absoluta do direito de greve. No que tange à saúde, esta foi garantida de forma reflexa, quando no art. 137, alíneas “k” a “n”[32], foram elencados alguns preceitos que informavam a segurança higiênico-sanitária da relação trabalhista e no inciso XXVII do art. 16, quando tratou da competência privativa da União de editar normas de defesa e proteção à saúde, em especial das crianças. Também no art. 18, quando elencou as competências legislativas dos estados-membros, em suas alíneas “c[33]” e “e[34]”.

A Constituição de 1946, que teve sua vigência durante o período histórico da “República Populista”, promoveu um maior fortalecimento dos direitos prestacionais, prevendo-os nos artigos 145 a 175. Todavia, limitava-se a garantir a saúde e a segurança higiênica do trabalhador, conforme se depreende da leitura do art. 157, inciso XIV[35]. Além de prever a medicina e a segurança das relações de trabalho, a constituição do pós-guerra mencionou a saúde nas competências da União – de estabelecer planos nacionais de educação e saúde[36] e de legislar sobre normas gerais de defesa e proteção da saúde[37] – dos Estados – legislando supletivamente[38].

De forma não muito diferente dispuseram a Constituição de 1967 e a Emenda Constitucional nº 01, de 1969, sendo a primeira formalmente promulgada e a última reconhecidamente outorgada durante o Regime Militar (1964 – 1988). Na redação original da Constituição de 1967 consta a previsão da higiene e da segurança do trabalho[39], bem como da assistência hospitalar, sanitária e médica preventiva[40]. A nova redação oriunda da E. C. nº 01/1969 não divergiu da anterior, elencando a garantia abstrata à segurança no trabalho e à assistência sanitária, hospitalar e médica preventiva no art. 165, incisos X e XV.

O que se observou nas constituições que sucederam a Constituição de 1934 foi uma relativa estagnação, haja vista que os Direitos Fundamentais de 2ª Dimensão ficavam adstritos aos direitos concernentes à relação de trabalho, à medicina e à segurança laborais e às normas regentes de cunho previdenciário. Não houve nesses textos magnos o reconhecimento da saúde como um direito primordial do ser humano, o que somente ocorreu com a Constituição de 1988.

Foi com a atual Lex Maxima que houve a preocupação do Estado em garantir, regulamentar e obrigar os entes públicos a executar políticas que visem a concretizar o Direito Sanitário. Para tanto, reconheceu a saúde como direito social, em seu artigo 6º, elevando-a ao nível normativo hierárquico supremo de cláusula pétrea, no art. 60, § 4º[41]. Não apenas realizou tal declaração como elencou na “Seção II” (constante do Título VIII, Capítulo II, arts. 196 a 200) os princípios informativos e as normas instituidoras do Sistema Único de Saúde, estabelecendo diretrizes para o legislador ordinário e para os órgãos e pessoas jurídicas de Direito Público.

Mais adiante, serão abordados de forma mais detalhada a criação do Sistema Único de Saúde, seus princípios básicos e a sua estrutura. No entanto, antes de tecer tais comentários, considera-se de extrema importância consolidar o conceito e a autonomia didática do Direito Sanitário.

2.3. Conceito de Direito Sanitário

Nos tópicos pretéritos, o Direito à Saúde (ou Direito Sanitário) foi analisado sob o ponto de vista da sua inserção no âmbito dos Direitos Fundamentais. Para tanto, considerou-se importante tecer as considerações elucidativas necessárias para tornar mais nítida a noção da saúde como um direito essencial à dignidade humana, tendo a sua tutela primária no texto constitucional. Em seguida, foi abordada a evolução deste direito no ordenamento jurídico pátrio, elencando-se desde a completa omissão por parte do legislador constituinte de 1824 até a sua elevação ao nível de cláusula pétrea conferida pela Constituição Federal de 1988.

Pois bem, consolidadas as noções elementares, passar-se-á neste momento à conceituação do Direito à Saúde. Em primeiro plano, serão exibidos e comentados os conceitos genéricos dados pelas normas de direito internacional e pelas vigentes em nosso ordenamento jurídico. Em seguida, declinar-se-ão os conceitos formulados pela doutrina publicista. E, por fim, será feita uma síntese conceitual a ser utilizada como paradigma para as considerações feitas posteriormente neste trabalho.

No que tange às normas internacionais, as quais existem usualmente sob a forma de tratados e convenções[42], infere-se a priori que, dispondo sobre direitos humanos, uma vez aprovadas pelas Casas do Congresso Nacional, com o quórum mínimo de três quintos, elas integrarão o ordenamento jurídico pátrio com o status de norma constitucional[43]. Assim sendo, encontra-se nos Pactos dos Direitos Civis e Políticos e dos Direitos Sociais, Culturais e Econômicos, de 1966[44], no art. 12, item 1, o conceito amplo de Direito à Saúde, considerado “direito de toda pessoa de desfrutar o mais elevado nível de saúde física e mental”. O art. 12, item 2, do mesmo documento, especifica as garantias dele decorrentes, quais sejam

(...) a) a diminuição da mortinalidade e da mortalidade infantil, bem como o desenvolvimento das crianças; b) a melhoria de todos os aspectos de higiene do trabalho e do meio ambiente; c) a prevenção e o tratamento das doenças epidêmicas, endêmicas, profissionais e outras, bem como a luta contra essas doenças; d) a criação de condições que assegurem a todos a assistência médica e serviços médicos em caso de enfermidades[45].

Conceito amplo também pode ser extraído do preâmbulo da Constituição da Organização Mundial da Saúde, segundo o qual “saúde é o estado de completo bem-estar físico, mental e social, e não somente a ausência de doenças ou enfermidades[46]”.

Pode-se inferir que os conceitos fornecidos pelos documentos internacionais alhures mencionados são de caráter excessivamente amplo e abstrato, os quais são tidos como ideais, haja vista a sua impossibilidade de concretização no plano fático. Todavia, em que pese não possam ser integralmente materializados, tais conceitos devem servir de paradigma para as ações dos entes e agentes públicos, e, por conseguinte, para os demais setores da sociedade.

Menos genérico e mais voltado para a sua execução prática é o conceito existente no art. 196 da nossa Constituição Republicana de 1988. Segundo este dispositivo.

A saúde é direito de todos e dever do Estado, garantido mediante políticas sociais e econômicas que visem à redução do risco de doença e de outros agravos e ao acesso universal e igualitário às ações e serviços para sua promoção, proteção e recuperação.

Nota-se que a Lex Fundamentallis estabelece o Direito à Saúde sob duas perspectivas: objetiva, quando estabelece que ele deverá ser garantido mediante a execução de políticas sociais e econômicas pelas pessoas jurídicas de direito público competentes – ou seja, direcionando-se ao Estado; e subjetiva, quando estabelece que o acesso ás ações e serviços sanitários deve ser universal e igualitário – direcionando-se às pessoas.

Pormenorizando a definição dada pela Lex Legum, a Lei nº 8.080/90, nas suas disposições gerais, preceitua que “a saúde é um direito fundamental do ser humano, devendo o Estado promover as condições indispensáveis ao seu pleno exercício[47]”. Em seguida, tece maiores detalhes conceituais quando elenca os deveres do Estado, das pessoas, das empresas e da sociedade, nos seguintes termos:

Art. 2º. (...)

§ 1º. O dever do Estado de garantir a saúde consiste na formulação e execução de políticas econômicas e sociais que visem à redução de riscos de doenças e de outros agravos e no estabelecimento de condições que assegurem acesso universal e igualitário às ações e aos serviços para a sua promoção, proteção e recuperação.

§ 2º. O dever do Estado não exclui o das pessoas, da família, das empresas e da sociedade.

Art. 3º. A saúde tem como fatores determinantes e condicionantes, entre outros, a alimentação, a moradia, o saneamento básico, o meio ambiente, o trabalho, a renda, a educação, o transporte, o lazer e o acesso aos bens e serviços essenciais; os níveis de saúde da população expressam a organização social e econômica do País.

Parágrafo único. Dizem respeito também à saúde as ações que, por força do disposto no artigo anterior, se destinam a garantir às pessoas e à coletividade condições de bem-estar físico, mental e social.

Encontra-se na doutrina uma infinidade de conceitos. Basicamente, pode-se dividir o Direito Sanitário em duas vertentes[48]: a primeira, tida como direito à saúde, ou seja, o direito subjetivo do indivíduo de exigir do Estado a realização de programas e ações que o protejam contra quaisquer males que possam ou venham atingir a sua integridade física e/ou mental; a segunda, propriamente denominada sob a alcunha Direito Sanitário, é encarada como direito da saúde pública, melhor dizendo, como

um conjunto de normas jurídicas que têm por objeto a promoção, prevenção e recuperação da saúde de todos os indivíduos que compõem o povo de determinado Estado, compreendendo, portanto, ambos os ramos tradicionais em  que se convencionou dividir o direito: o público e o privado[49].

Analisando o texto constitucional, Fábio Zambitte Ibrahim conclui que “a saúde é direito de todos e dever do Estado (art. 196 da CRFB/88), ou seja, independentemente de contribuição, qualquer pessoa tem o direito de obter o atendimento na rede pública de saúde[50]”. Salienta o autor que “mesmo a pessoa que, comprovadamente, possua meios para patrocinar seu próprio atendimento médico terá a rede pública como opção válida”, assim sendo, não pode Administração Pública se negar a atender uma pessoa, em virtude de a mesma possuir recursos financeiros suficientes para dispensá-lo.

Júlio César de Sá Rocha, citado por André Ramos Tavares, observa que

a conceituação da saúde deve ser entendida como algo presente: a concretização da sadia qualidade de vida. Uma vida com dignidade. Algo a ser continuamente afirmado diante da profunda miséria por que atravessa a maioria da nossa população. Consequentemente a discussão e a compreensão da saúde passa pela afirmação da cidadania plena e pela aplicabilidade dos dispositivos garantidores dos direitos sociais da Constituição Federal.[51]

Perlustrando os conceitos declinados acima, pode-se estabelecer uma síntese conceitual, utilizando como base a classificação feita por Robert Alexy dos direitos prestacionais. Desta feita, o Direito Sanitário (aqui designado também como Direito à Saúde em sentido amplo) consiste no direito fundamental do indivíduo à proteção da sua vida e da sua integridade física e mental, bem como o da coletividade à manutenção de um meio ambiente saudável, através da elaboração de normas que regulam o sistema de ações (a cargo, prioristicamente, do Poder Legislativo) e programas de execução obrigatória pelo Poder Executivo (e as pessoas jurídicas colaboradoras), os quais, se não realizados de forma universal e igualitária, poderão ser objeto de tutela jurisdicional.

O direito de acesso à saúde deve ser encarado sob as três perspectivas dos direitos prestacionais. Em outras palavras, engloba a proteção, a organização e o procedimento, bem como a prestação em sentido estrito. É direito protecionista em decorrência da sua finalidade precípua de pôr a vida (com a dignidade que lhe deve ser inerente) e a integridade física de todo cidadão a salvo de quaisquer males provocados por agentes físicos, químicos, biológicos e, em muitos casos, por eventos antrópicos. É organizacional e procedimental na medida em que todas as políticas de promoção do acesso à saúde têm como substrato de validade a Constituição, a lei e a norma infra-legal (decreto, resolução, portaria, et coetera). Além disso, tais ações orientam-se por metas, as quais são atingidas seguindo etapas, o que resulta em procedimentos operacionais. Ademais, as ações sanitárias são direitos prestacionais stricto sensu, já que devem ser oferecidas a todos, independentemente da riqueza pessoal do beneficiado.

Antes de finalizar este tópico, considera-se de curial importância tecer breves comentários acerca da ciência jurídica sanitária. Pois bem, o Direito Sanitário categoricamente enquadra-se no Direito Público, pois tutela interesses preponderantemente públicos (vida, integridade física e psíquica, bem-estar coletivo), regulando relações jurídicas pautadas pela subordinação do interesse estatal (promoção do acesso universal e igualitário à situação de completo bem-estar físico e mental de todos os indivíduos abstratamente) a qualquer interesse patrimonial privado e pelo primado da justiça distributiva[52]. Embora possua similitudes com o Direito Administrativo, por ter como princípios norteadores a supremacia e a indisponibilidade do interesse público, e com o Direito Previdenciário, em virtude de ter sido incluído, na ordem constitucional pretérita, na tutela do bem-estar dos contribuintes, trata-se de ciência autônoma, haja vista possuir princípios e leis próprias, as quais emanam de agentes e instituições que lhe são peculiares. Tal autonomia fica evidente quando no texto da atual Constituição Federal a saúde é tratada em seção distinta, inserida no capítulo que dispõe sobre a seguridade social (gênero do qual a saúde é espécie[53]). Ademais, o Direito Sanitário está incluído em algumas grades curriculares de cursos de pós-graduação e especialização stricto sensu, consistindo numa obsolescência acadêmica ministrar pormenorizadamente os seus institutos no bojo da ementa de disciplinas como Direito Previdenciário e Direito Constitucional.

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Sobre o autor
Augusto Vieira Santos de Brito

Técnico Judiciário em Aracaju (SE).

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

BRITO, Augusto Vieira Santos. Judicialização razoável como meio de efetivar o acesso à saúde. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 17, n. 3173, 9 mar. 2012. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/21258. Acesso em: 16 nov. 2024.

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