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Judicialização razoável como meio de efetivar o acesso à saúde

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3. Sistema Único de Saúde

3.1. Origem, Normatização Constitucional e Conceito

No capítulo anterior, observou-se que a realização de serviços assistenciais e profiláticos de saúde pelo Estado não foi uma inovação trazida pela ordem constitucional instituída com o texto magno de 1988. Ao revés, existiam no ordenamento jurídico pretérito normas regendo a prestação de tais serviços sanitários. Não obstante isso, tal oferta era limitada, não havendo nas Leis Federativas Máximas anteriores normas que impusessem às pessoas jurídicas estatais a obrigação de oferecer a todo cidadão a assistência médico-hospitalar integral. É justamente disso que tratará este tópico introdutório, abordando brevemente o panorama da saúde pública antes e após o advento da Constituição Federal de 1988. Além disso, declinar-se-ão as normas constitucionais regem o SUS.

Pois bem, a partir da Constituição de 1934, ingressaram no ordenamento jurídico brasileiro normas de proteção aos hipossuficientes, sobremaneira aos membros da classe operária.  Dentre as referidas garantias de caráter fundamental estavam a de assistência médica aos trabalhadores e a concernente à higiene e à medicina do trabalho.

Com fulcro nas garantias supramencionadas, foram criadas instituições (pessoas jurídicas) públicas e privadas com fins assistenciais.

As primeiras, em geral, destinavam-se a atender unicamente aos trabalhadores formais (contribuintes). Entretanto, as mesmas não prestavam tais serviços de forma integral, não conferindo aos seus beneficiados um atendimento de caráter complexo, tais como intervenções cirúrgicas de emergência. Ao revés, limitavam-se a serviços de odontologia, clínica-geral, pediatria, dentre outros de caráter ambulatorial[54]. Ou seja, os serviços de saúde prestados pelas pessoas jurídicas de direito público (e de direito privado criadas pelo Estado) eram pontuais e sem um substrato legislativo sólido, o que inviabilizava o acesso aos mesmos pela via judicial.

Os serviços públicos sanitários, em sua generalidade, estavam ou vinculados à previdência social, ou adstritos de forma desordenada a fundações e autarquias prestadoras de serviços específicos, os quais tinham uma eficácia protetiva limitada. O mesmo se pode afirmar em relação às ações preventivas (combate às endemias, mais especificamente), as quais eram realizadas de forma multifacetada por diversas entidades criadas pela União, pelos Estados e pelos Municípios. Dentre os exemplos podem ser mencionados o Instituto Nacional de Assistência Médica da Previdência Social (INAMPS), a Legião Brasileira de Assistência (LBA), a Superintendência de Campanhas de Saúde Pública (SUCAM), os diversos Institutos de Aposentadorias e Pensões (IAP´s) – exempli gratia, Instituto de Previdência do Estado de Sergipe (IPES), ainda existente – e fundações como a FUNASA (Fundação Nacional de Saúde) e a FSESP (Fundação de Serviços de Saúde Pública).

Além das instituições públicas, havia as pessoas jurídicas de direito privado que prestavam serviços em caráter complementar. Estas atendiam ao público que não participava dos regimes contributivos da previdência social, ou seja, àqueles que ficavam à margem do proletariado – os desempregados e os hoje denominados portadores de necessidades especiais (os “inválidos”). Tais serviços, obviamente eram prestados a título de filantropia. Existiam tanto instituições nacionais quanto estrangeiras. Dentre as nacionais destacavam-se as Santas Casas de Misericórdia e as congregações religiosas, a exemplo dos dominicanos, camilianos, vicentinos, além dos grupos espíritas. Dentre as sociedades estrangeiras podem ser mencionadas as portuguesas, as espanholas e as francesas[55], as quais colaboravam para a assistência aos desamparados pelos serviços estatais.

Assim sendo, para ter acesso aos serviços de saúde, o cidadão não beneficiado pela assistência fornecida pela previdência social o faria ou como pagante, ou como indigente[56]. Tal panorama comprova o absenteísmo estatal na tutela do direito à saúde, certamente o mais importante dos direitos sociais.

Percebeu-se que tal modelo carente de ordenação estratégica gerava uma série de transtornos sociais, pois deixava a grande parcela da população (desempregados, subempregados, indigentes e deficientes físicos) excluída de qualquer amparo, seja na prevenção, seja no tratamento de doenças. Além disso, os parcos serviços oferecidos não possuíam uniformidade em seus objetivos – já que se orientavam por diretrizes desconexas – nem estavam sujeitas a normas emitidas por um órgão comum (ministério da saúde, nos dias atuais).

Com a finalidade de dar maior efetividade ao direito fundamental à saúde, os serviços e ações sanitários passaram a estar vinculados a uma única instituição jurídica, prevista originariamente no art. 198 da Constituição Federal de 1988: o Sistema Único de Saúde – SUS. O caput e os incisos deste artigo estabelecem o conceito e as diretrizes do SUS, assim dispondo:

Art. 198. As ações e serviços públicos de saúde integram uma rede regionalizada e hierarquizada e constituem um sistema único, organizado de acordo com as seguintes diretrizes:

I – descentralização, com direção única em cada esfera de governo;

II – atendimento integral, com prioridade para as atividades preventivas, sem prejuízo dos serviços assistenciais;

III – participação da comunidade. (grifos do autor)

Os três primeiros parágrafos do referido artigo tratam do financiamento do SUS. O § 4º trata do combate às endemias, mais especificamente, dos agentes responsáveis por efetuá-lo e do ingresso deles por meio de processo seletivo público[57].

O art. 199 trata da possibilidade de a iniciativa privada atuar nos serviços de saúde, os quais possuem como regra geral, caráter suplementar ao próprio SUS, prevendo que “a assistência à saúde é livre à iniciativa privada”. Além disso, consoante preleciona o § 1º deste artigo, a participação de instituições privadas nas ações do SUS poderá ser complementar, mediante contrato de direito público ou convênio, devendo, quando assim atuar, estar sujeitas às diretrizes deste. Além disso, terão preferência as entidades filantrópicas e sem finalidade lucrativa. O que é defeso pelo texto magno, pelo que se depreende do § 2º do art. 199, é a destinação de recursos públicos para auxílios ou subvenções a instituições privadas com fins lucrativos. Também é vedada pela CRFB/1988 a participação (direta ou indireta) de empresas ou capitais estrangeiros na assistência à saúde em nosso país, ressalvados os casos previstos na legislação ordinária.

O art. 200 da mesma Lei das Leis elenca as competências gerais do SUS, englobando normas de natureza puramente executiva. No entanto, na parte final do seu caput esclarece-se que o rol descrito nos incisos seguintes é exemplificativo, podendo outras atribuições ser criadas pelo legislador ordinário, o qual o fez posteriormente.

Tais normas, quando do início da vigência da atual Carta Federativa, possuíam aparentemente caráter programático, haja vista que obrigavam o Estado a concretizar direitos prestacionais concernentes à organização e ao procedimento relativo ao acesso à saúde. Todavia, após a promulgação das Leis nº 8.080/90 e 8.142/90, e de outras leis regulamentadores, tais comandos constitucionais obtiveram exeqüibilidade, tornando obrigatórias as providências concretas a cargo do poder executivo dos entes federados, podendo ser objeto de tutela judicial a sua não oferta a quem delas efetivamente necessitassem.

Observa-se, por conseguinte, que com o advento da atual Constituição o direito à saúde, além de ser elevado ao nível de direito social fundamental, é garantido por meio de um sistema de ações e políticas executivas denominado Sistema Único de Saúde. Este pode ser conceituado como uma “instituição jurídica criada pela Constituição Federal de 1988 para organizar as ações e os serviços de saúde no Brasil”[58]. Esta instituição indubitavelmente tem natureza jurídica de direito público e engloba serviços prestados por órgãos e entidades da administração direta e indireta de todos os entes federativos, os quais seguem diretrizes, possuem objetivos e se guiam por princípios comuns, os quais serão objeto de estudo do item que se segue.

3.2. Objetivos, Princípios Regentes e Diretrizes

Neste item serão expostos os princípios, os objetivos e as diretrizes que informam o SUS. A priori, serão analisados os previstos no texto constitucional. Em seguida, serão declinados os declarados nas leis orgânicas sanitárias, principalmente nas Leis nº 8.080/90 e nº 8.142/90. Antes de tais inferências, considera-se de bom alvitre refletir acerca da definição de princípio e da sua proximidade semântica com a expressão diretriz, bem como discorrer sobre a sua função no ordenamento jurídico.

Pois bem, princípio significa começo, origem, causa primeira de algo. No âmbito da ciência jurídica, a expressão em estudo possui significados diversos. Dentre eles, destacam-se o normativo e o hermenêutico. No que tange ao primeiro, os princípios são encarados como normas pertencentes ao ordenamento jurídico positivo, funcionando como elementos de coesão entre as demais regras, possuindo nível hierárquico superior ao daquelas que meramente ordenam, proíbem ou permitem condutas. Neste aspecto, são reputados como fontes materiais do Direito, sendo denominados pela doutrina de princípios gerais[59]-[60]. Todavia, são consideradas fontes primárias, haja vista orientarem todo o sistema normativo. Epistemologicamente, é possível também conferir aos princípios um significado hermenêutico. Neste diapasão, pode-se afirmar que os mesmos servem de instrumento ao operador do Direito na aplicação das normas jurídicas, seja na solução de antinomias, seja na colmatação de eventuais lacunas (servindo de exemplo o dogma da completude[61]), seja na solução de aparentes antinomias de segundo grau[62].

As palavras princípio e diretriz, malgrado possuam divergência etimológica, na medida em que a primeira expressão deve ser interpretada como o “conjunto de proposições que alicerçam ou embasam um sistema e lhe conferem legitimidade”[63], e a última como a maneira pela qual se organiza o mesmo, devem ser utilizadas de modo a complementar-se conceitualmente.

Seguindo essa linha de raciocínio, a Constituição estabelece princípios que norteiam tanto a administração pública como um todo (art. 37, caput), quanto o SUS em especial (art. 198, caput). Além disso, estabelece diretrizes (art. 198, I a III), as quais, em geral, complementam os princípios e garantem a sua exequibilidade. O mesmo faz a Lei 8.080/90 (Lei Orgânica da Saúde), em seu art. 7º, o qual constitui o capítulo intitulado “Dos Princípios e Diretrizes”.

Para fins didáticos, serão explanados juntamente com os princípios regentes, os objetivos do SUS. Em seguida, serão declinadas as diretrizes do sistema.

Pois bem, como visto acima os princípios são os alicerces do sistema normativo e as diretrizes indicam a maneira de alocá-los. No entanto, ambos norteiam-se por objetivos. Estes são finalidades, metas que devem ser atingidas ou, ao menos, servir de paradigma para todas as ações concretas fundadas naqueles. A Constituição da República elenca no art. 196 os objetivos fundamentais do SUS, quais sejam: a redução do risco de doenças e de outros agravos à saúde, e o acesso universal e igualitário às ações e aos serviços para a sua promoção, proteção e recuperação. O primeiro objetivo fundamental direciona-se às ações de natureza profilática, haja vista que estabelece a meta de proteger a coletividade (e cada indivíduo particularmente) do risco da enfermidade e qualquer outra ameaça ao estado de bem-estar físico e mental. Já o segundo dirige-se tanto às ações preventivas quanto às assistenciais, haja vista que estabelece como finalidade precípua de toda e qualquer ação concreta a universalidade e a igualdade de acesso aos que dela necessitarem. A Lei Orgânica da Saúde (Lei nº 8.080/90 - LOS) estabelece em detalhes os objetivos institucionais do SUS, assim dispondo:

Art. 5º São objetivos do Sistema Único de Saúde (SUS):

I - a identificação e divulgação dos fatores condicionantes e determinantes da saúde;

II - a formulação de política de saúde destinada a promover, nos campos econômico e social, a observância do disposto no § 1º do art. 2º desta lei;

III - a assistência às pessoas por intermédio de ações de promoção, proteção e recuperação da saúde, com a realização integrada das ações assistenciais e das atividades preventivas.

Vale ressaltar que os objetivos do SUS não se destinam unicamente aos agentes estatais e aos seus colaboradores, mas sim a toda a sociedade. Assim sendo, infere-se da intelecção do caput e do § 2º do art. 2º da LOS que o dever de zelar pela saúde não cabe unicamente ao Estado, mas também às pessoas, à família e à sociedade. Isso significa que

embora o Estado seja obrigado a tomar todas as medidas necessárias para a proteção do direito à saúde da população, as pessoas também possuem responsabilidade sobre sua própria saúde e sobre a saúde do seu ambiente de vida, de sua família, de seus colegas de trabalho, enfim, todos têm a obrigação de adotar atitudes que protejam e promovam a saúde individual e coletiva, como a higiene, a alimentação equilibrada, a realização de exercícios, etc.[64].

No que concerne aos princípios regentes do Sistema Único de Saúde, a Lei Maior, no art. 196 e no caput do art. 198, estabelece aqueles considerados fundamentais, que servem de parâmetro de atuação tanto para o legislador infraconstitucional, quanto para os órgãos executivos. Desta feita, consideram-se princípios constitucionais do SUS a universalidade e igualdade de acesso, e a regionalização.

A oferta dos serviços de saúde deve ter como alvo todos aqueles que venham a deles necessitar. Obviamente, a demanda por eles nunca será absoluta, ou seja, é remota a possibilidade de todos os indivíduos necessitarem a mesmo tempo dos serviços prestados pelo sistema público, significando então que pelo princípio da universalidade a administração pública deve realizar estudos epidemiológicos situacionais e apresentar propostas que concretamente solucionem ou atenuem os problemas existentes em cada parcela da comunidade, a fim de que todos possam ter acesso aos serviços do SUS quando deles necessitarem. Assim sendo, é imprescindível que as ações e políticas sociais sanitárias sejam precedidas de aprofundados estudos e cuidadosos planejamentos. Estes são uma obrigação de todo gestor da coisa pública. Por consequência, quando os membros do Ministério Público “acompanham o funcionamento do sistema de saúde, fica fácil identificar as falhas para exigir a correção de rumos, antes de a população ser obrigada a exigir, na Justiça, os seus direitos individuais sobre o acesso aos serviços de saúde[65]”. O princípio ora em comento está previsto no art. 196, da CRFB/88 e no art. 7º, I, da Lei 8.080/90.

Inobstante o acesso aos serviços de saúde esteja disponível a todos os que necessitem, deve tal disponibilidade ocorrer de forma igualitária. Em face disto, o princípio da igualdade de acesso significa que diante da superioridade da demanda em relação à oferta de serviços públicos sanitários, devem ter prioridade os que mais necessitem, ou seja, “o que deve determinar o tipo e a prioridade para o atendimento é a necessidade das pessoas, por demanda própria ou identificadas pelo sistema de saúde e o grau de complexidade ou agravo[66]”, e nunca a condição econômica do paciente, ou quaisquer outros critérios segregacionistas desarrazoados (cor da pele, origem, religião, etc.). Faz-se mister asseverar que mesmo sendo coibido qualquer tratamento discriminatório que não se paute pelo critério da intensidade da doença ou do agravo, são cada vez mais frequentes os relatos de discrepância no tratamento dos usuários do SUS e daqueles que pagam planos de saúde. Tal fato é oportunamente lembrado por Conceição Aparecida Pereira Trindade e Jorge Trindade, quando afirmam que

são frequentes as histórias de “separação de ambientes” de espera/recepção para usuários “pagantes”, “não pagantes (SUS)” e dos seguros privados. A utilização de equipamentos “novos” para os pagantes e os “velhos” para os usuários do SUS. A fila de espera para o usuário do SUS e a agenda diária para os pagantes. Existem situações que, por si mesmas agravam o quadro de saúde dos usuários. Não se pode esquecer que os usuários em situação de fragilidade de sua saúde estão em condição desfavorável para o enfrentamento de adversidade. A interferência do Ministério Público, no sentido de não minimizar as condições de acolhimento ao usuário, em detrimento da oferta de serviço, terá uma função de alto valor humanístico para o sistema de saúde.

Outro princípio constitucional do SUS que merece a atenção deste estudo é o da regionalização. Seu alicerce normativo decorre do caput do art. 198 da Constituição Federal e do art. 8º da Lei Orgânica da Saúde. Para compreendê-lo é primordial que se reflita acerca do instituto publicista denominado descentralização. Para Hely Lopes Meirelles, descentralizar, “em sentido jurídico-administrativo, é atribuir a outrem poderes da Administração[67]”. Com mais precisão afirma Maria Sylvia Zanella di Pietro, considerando que a “descentralização é a distribuição de competências de uma para outra pessoa, física ou jurídica[68]”, e esta não se confunde com a desconcentração, consistente na “distribuição de competência dentro da mesma pessoa jurídica”. Dentre as modalidades enumeradas pela doutrinadora citada, a regionalização dos serviços sanitários enquadra-se na modalidade de descentralização política, que ocorre “quando o ente descentralizado exerce atribuições próprias que não decorrem do ente central”, sendo que cada um dos entes descentralizados “detém competência legislativa própria que não decorre da União nem a ela se subordina”. Ou seja, a descentralização política pela qual se pauta a organização do SUS respeita a autonomia dos entes federados, fazendo valer o princípio federativo[69]. A sua realização deve aperfeiçoar-se para que os entes federativos exerçam a autonomia que lhes é conferida pela Constituição de maneira integrada e coordenada entre si.

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A regionalização materializa-se nos diferentes níveis de competência existentes no Estado Federal. Assim sendo, no âmbito da União existe a incumbência da elaboração de normas gerais (art. 24, XII, CRFB/1988), bem como a de exercer a gestão nacional do SUS (art. 23, II, CRFB/1988), através do Ministério da Saúde. No âmbito dos Estados-membros ocorre a gestão regional da saúde, através das Secretarias de Estado da Saúde. E, em nível local, ocorre a atuação do município. Vale ressaltar que a regionalização não retira a unicidade do SUS, ou seja, a atuação dos vários entes que compõem o sistema devem estar vinculados à administração direta de cada esfera de governo.

Como esclarecido na introdução deste item, os princípios estabelecem o conteúdo básico de todo sistema (ou microssistema) normativo e as diretrizes determinam a maneira de concretizá-los. Assim sendo, os incisos do art. 198 elencam as diretrizes elementares do SUS, quais sejam: a descentralização, com direção única em cada esfera de governo; o atendimento integral (ou integralidade) com prioridade para as atividades preventivas, sem prejuízo dos serviços assistenciais; a participação da comunidade; e além destas, o parágrafo 2º do mesmo dispositivo prevê o financiamento permanente, com vinculação de recursos orçamentários.

A primeira diretriz constitucional diz respeito à finalidade a que se destina o princípio da regionalização. Assim sendo, as considerações feitas acima se aplicam à diretriz em estudo, devendo-se salientar a importância do disposto no art. 7º, IX, “a”, da LOS, dispondo que as ações e serviços de saúde deverão ter ênfase na atuação dos municípios.

O foco na municipalização relaciona-se umbilicalmente com a diretriz da participação da comunidade. Esta “impõe aos agentes públicos a criação de mecanismos de participação da comunidade na formulação, na gestão e na execução das ações e dos serviços públicos de saúde, incluindo aí a normatização[70]”. Para tanto, foram criadas pela Lei 8.142/90 as Conferências e os Conselhos de Saúde.

À diretriz da descentralização vincula-se a também a da intersetorialidade, consoante se depreende da leitura do art. 7º, X, da LOS. Explicando-se melhor,

O direito de todos à Saúde deve ser organizado por meio de políticas econômicas que visem à redução do risco de doença e de outros agravos à saúde. (...). Estas ações são planejadas e executadas pelo conjunto de órgãos do governo, com a colaboração do setor saúde, mas com recursos específicos e são consideradas ações intersetoriais de saúde.

A diretriz da integralidade está vinculada aos princípios da universalidade e igualdade de acesso aos serviços de saúde, na medida em que

Significa que o cidadão tem o direito de ser atendido e assistido sempre que necessitar, em qualquer situação de risco ou agravo (doença), utilizando ou não insumos, medicamentos, equipamentos, entre outros. Ou seja, o que define o atendimento deve ser a necessidade das pessoas[71].

Conforme preleciona o texto constitucional, a prioridade deve se dar nas ações preventivas, não devendo, porém, descurar o gestor público das ações assistenciais. Assim sendo, à integralidade liga-se o princípio da resolubilidade, previsto no art. 7º, inciso XII, da LOS, o qual aponta que

o sistema de saúde (...) seja organizado de tal maneira que suas equipes de trabalho, bem assim os seus usuários, sejam capazes de identificar a sua utilidade prática e a sua missão institucional no sistema, e que, se acaso uma determinada unidade da rede não tiver condições de solucionar uma dada situação, ela saiba exatamente onde resolver e seja capaz de entrar em contacto, encaminhar, viabilizar o acesso do usuário, ter resposta satisfatória por parte do usuário e tê-lo de volta reencaminhado ao território de referência com seu problema solucionado.[72]

Outra diretriz com sede constitucional diz respeito ao financiamento permanente e à vinculação de recursos orçamentários. Tal diretriz está prevista no § 2º do art. 198 e deriva da regra geral de destinação orçamentária dos recursos da seguridade social, prevista no art. 195, todos da Constituição Federal. O § 3º do art. 198 determina que a alteração dos valores dos percentuais previstos no parágrafo anterior, bem como os critérios de rateio de recursos e as normas de fiscalização, avaliação e controle das despesas com saúde nas diversas esferas de governo. Tais normas são regulamentadas pelos artigos 31 a 38, da Lei 8.080/90. O objeto desta diretriz é justamente evitar a suposta carência de recursos para o setor da saúde e retirar qualquer possibilidade de justificá-la e saná-la com a criação ou majoração de tributos, a exemplo da já extinta CPMF.

A Lei Orgânica da Saúde (Lei nº 8.080/90), em seu art. 7º, detalha os princípios e diretrizes constitucionais e, estabelece outros que lhes são auxiliares, pelos quais devem se basear as ações e programas do SUS, assim dispondo:

Art. 7º As ações e serviços públicos de saúde e os serviços privados contratados ou conveniados que integram o Sistema Único de Saúde (SUS), são desenvolvidos de acordo com as diretrizes previstas no art. 198 da Constituição Federal, obedecendo ainda aos seguintes princípios:

I - universalidade de acesso aos serviços de saúde em todos os níveis de assistência;

II - integralidade de assistência, entendida como conjunto articulado e contínuo das ações e serviços preventivos e curativos, individuais e coletivos, exigidos para cada caso em todos os níveis de complexidade do sistema;

III - preservação da autonomia das pessoas na defesa de sua integridade física e moral;

IV - igualdade da assistência à saúde, sem preconceitos ou privilégios de qualquer espécie;

V - direito à informação, às pessoas assistidas, sobre sua saúde;

VI - divulgação de informações quanto ao potencial dos serviços de saúde e a sua utilização pelo usuário;

VII - utilização da epidemiologia para o estabelecimento de prioridades, a alocação de recursos e a orientação programática;

VIII - participação da comunidade;

IX - descentralização político-administrativa, com direção única em cada esfera de governo:

a) ênfase na descentralização dos serviços para os municípios;

b) regionalização e hierarquização da rede de serviços de saúde;

X - integração em nível executivo das ações de saúde, meio ambiente e saneamento básico;

XI - conjugação dos recursos financeiros, tecnológicos, materiais e humanos da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios na prestação de serviços de assistência à saúde da população;

XII - capacidade de resolução dos serviços em todos os níveis de assistência; e

XIII - organização dos serviços públicos de modo a evitar duplicidade de meios para fins idênticos.

3.3. Composição e Organização

Uma vez expostos o surgimento, o conceito, os princípios e as diretrizes que regem o Sistema Único de Saúde (SUS), passar-se-á neste momento às declinações acerca dos entes, órgãos e agentes que o compõem, bem como a maneira como ele é gerido.

A Lei Orgânica da Saúde (L. 8.080/90) trata da organização, da direção e da gestão do SUS, no Capítulo III, do seu Título II, artigos 8º a 14. No capítulo IV deste mesmo título são elencadas as atribuições dos entes federativos no âmbito do SUS, conforme serão expostos infra.

Consoante dispõe o art. 8º da mesma Lei Orgânica, os serviços sanitários serão organizados de forma regionalizada e hierarquizada, em níveis crescentes de complexidade. Assim sendo, o art. 9º da mesma lei, seguindo a diretriz constitucional da direção única em cada esfera de governo, atribui o ônus de gestão da seguinte maneira: no âmbito da União, ao Ministério da Saúde; no âmbito dos Estados-membros e do Distrito Federal, às Secretarias de Saúde, ou órgão similar; nos municípios, às Secretarias Municipais de Saúde ou órgão equivalente.

Orientando-se pela diretriz da descentralização administrativa com ênfase na atuação dos municípios (municipalização), o caput do art. 10 da referida lei dispõe sobre a possibilidade de os municípios estabelecerem consórcios com a finalidade de desenvolver as ações e os serviços de saúde que lhes correspondam, sendo a eles aplicada a diretriz da direção única. Além disso, cada município poderá organizar-se em distritos, a fim de integrar e articular os meios voltados para a cobertura total das ações sanitárias.

Com o fito de articular as políticas sociais e programas executivos de interesse para a saúde cuja execução envolva áreas não abrangidas pelo Sistema Único de Saúde, foi determinada a criação de Comissões Intersetoriais, as quais se encontram subordinadas ao Conselho Nacional de Saúde[73], e integradas pelos Ministérios e órgãos competentes, assim como por entidades representativas da sociedade civil. O art. 13 da LOS expõe o rol numerus apertus de atribuições das referidas comissões[74].

No art. 14 da LOS prevê-se também a criação das Comissões Permanentes, às quais cabe a tarefa de integrar os serviços de saúde e as instituições de ensino profissional e superior. A cada uma delas cabe, segundo o parágrafo único do artigo em comento, propor prioridades, métodos e estratégias para a formação e educação continuada dos recursos humanos do SUS, na esfera de governo correspondente, bem como em relação à pesquisa e à cooperação técnica entre essas instituições.

Nos artigos 15 a 19, que compõem o Capítulo IV, do Título II, da Lei Orgânica da Saúde são elencadas as atribuições e as competências sanitárias dos entes federativos. No art. 15, que corresponde à Seção I, encontram-se as atribuições comuns à União, aos Estados, ao Distrito Federal e aos Municípios. Estas, conforme se depreende da leitura dos incisos do referido artigo, servem como mecanismo legislativo de integração das atribuições específicas declinadas logo em seguida.

No art. 16 são enumeradas as competências da direção nacional do SUS (exercida pelo Ministério da Saúde), que, possuindo caráter geral, traduzem as competências legislativas e materiais da União no âmbito da saúde. Algumas delas dizem respeito à atuação direta do Ministério da Saúde (por seus órgãos subalternos[75] e pessoas jurídicas a ele vinculadas), a exemplo das previstas nos incisos I, II, III, IV, V, VIII, IX, X, XII, XIV e XVI do artigo em comento. Outras, declaradas nos incisos VI, VII, XI, XIII, XV, XVII, XVIII e XIX, além do parágrafo único, todos do artigo sub óculo, evidenciam o caráter integrador da direção nacional com os serviços prestados pelas direções estaduais e municipais. Vale ressaltar que a vigilância epidemiológica de que trata o parágrafo único deste artigo, a cargo da União, deverá ocorrer somente quando a ameaça à saúde coletiva ultrapassar os limites de competência das direções estaduais.

O art. 17 enumera as competências da direção estadual do SUS. Interessa asseverar que algumas delas dizem respeito à ação integrada do Estado com os municípios existentes em seu território, conforme demonstram os incisos I, III e XIII, enquanto outras correspondem à atuação direta das Secretarias de Estado da Saúde, o que fica patente nos demais incisos do artigo em estudo. Vale ressaltar que algumas destas competências concernem à atuação do Estado-membro em caráter suplementar, quando se tornam insuficientes os serviços prestados pelos municípios.

O art. 18 contempla as competências da direção municipal do SUS, exercida pelas respectivas Secretarias Municipais de Saúde. Seguindo a diretriz da descentralização com ênfase na municipalização dos serviços sanitários, a execução direta daqueles de natureza assistencial e profilática, bem como a fiscalização imediata dos serviços privados de saúde será feita pela direção municipal. Em face da importância tanto didática quanto política dos dispositivos em análise, faz-se mister a sua exposição ipsi litteris:

Art. 18. À direção municipal do Sistema de Saúde (SUS) compete:

I - planejar, organizar, controlar e avaliar as ações e os serviços de saúde e gerir e executar os serviços públicos de saúde;

II - participar do planejamento, programação e organização da rede regionalizada e hierarquizada do Sistema Único de Saúde (SUS), em articulação com sua direção estadual;

III - participar da execução, controle e avaliação das ações referentes às condições e aos ambientes de trabalho;

IV - executar serviços:

a) de vigilância epidemiológica;

b) vigilância sanitária;

c) de alimentação e nutrição;

d) de saneamento básico; e

e) de saúde do trabalhador;

V - dar execução, no âmbito municipal, à política de insumos e equipamentos para a saúde;

VI - colaborar na fiscalização das agressões ao meio ambiente que tenham repercussão sobre a saúde humana e atuar, junto aos órgãos municipais, estaduais e federais competentes, para controlá-las;

VII - formar consórcios administrativos intermunicipais;

VIII - gerir laboratórios públicos de saúde e hemocentros;

IX - colaborar com a União e os Estados na execução da vigilância sanitária de portos, aeroportos e fronteiras;

X - observado o disposto no art. 26 desta Lei, celebrar contratos e convênios com entidades prestadoras de serviços privados de saúde, bem como controlar e avaliar sua execução;

XI - controlar e fiscalizar os procedimentos dos serviços privados de saúde;

XII - normatizar complementarmente as ações e serviços públicos de saúde no seu âmbito de atuação.

No que tange à direção do SUS no Distrito Federal, dispõe o art. 19 da lei 8.080/90 que esta terá as atribuições conferidas às direções municipal e estadual. Tais atribuições cumulativas são uma decorrência natural do disposto no art. 32, § 1º da Constituição Federal.

A Lei 8.142/90, regulamentando a diretriz constitucional da participação da comunidade (prevista no art.198, III, da CRFB/88), além de dispor sobre as transferências intergovernamentais de recursos financeiros na área da saúde, prevê a criação, em cada esfera de governo, de dois órgãos colegiados: a Conferência de Saúde; e o Conselho de Saúde.

 A primeira reunir-se-á a cada quatro anos, tendo em sua composição a representação dos vários segmentos sociais, à qual incumbe a avaliação da situação da saúde e a proposição das diretrizes para a formulação da política de saúde nos níveis correspondentes, convocada pelo Poder Executivo, ou, de forma extraordinária, por ela mesma ou pelo Conselho de Saúde[76].

Os Conselhos de Saúde são órgãos colegiados compostos por representantes do governo, dos prestadores de serviço, dos profissionais da saúde e dos usuários, possuindo caráter permanente e natureza deliberativa. Tais instâncias colegiadas atuam na formulação de estratégias e no controle da execução da política de saúde na instância correspondente, inclusive nos aspectos econômicos e financeiros, cujas decisões são homologadas pelo chefe do poder legalmente constituído em cada esfera de governo[77].

Além disso, foram posteriormente criados no âmbito do SUS subsistemas, os quais se relacionam com objetos de atuação específicos. O primeiro deles foi o Subsistema de Atenção à Saúde Indígena, incluído na LOS, em seus artigos 19-A a 19-H (Título II, Capítulo V), pela lei 9.836/99. Em seguida, através da lei 10.424/02, foi criado o Subsistema de Atendimento e Internação Domiciliar. Por fim, em 2005 foi criado o Subsistema de Acompanhamento Durante o Trabalho de Parto, Parto e Pós-parto Imediato.

Para finalizar este tópico, tratar-se-ão dos serviços privados de assistência à saúde. Pois bem, o Título III da lei 8.080/90 (artigos 20 a 26), regulamenta o art. 199 da Constituição da República.

No primeiro capítulo, intitulado “Do Funcionamento”, estão contidas as normas gerais que norteiam a atuação dos agentes particulares, de maneira suplementar ao SUS. Assim sendo, o art. 20 descreve que esta atuação se dá por iniciativa própria dos profissionais liberais e das pessoas jurídicas de direito privado, sendo exercida de forma livre[78]. Todavia, estão sujeitos aos princípios éticos e às normas expedidas pelo órgão de direção do SUS para o seu funcionamento[79]. O art. 23 regulamenta a atuação das empresas e capitais estrangeiros. A priori, é vedada a participação destes na prestação de serviços suplementares ao SUS. No entanto, tal regra comporta uma exceção, que consiste nas doações de organismos internacionais vinculados à Organização das Nações Unidas (ONU), a exemplo da Organização Mundial da Saúde (OMS), bem como de entidades de cooperação técnica e de financiamentos e empréstimos[80]. De qualquer sorte, a prestação de tais serviços por estas entidades estrangeiras será fiscalizada pelo Ministério da Saúde[81]. Ademais, pode-se também citar como exceção à regra geral proibitiva citada nas linhas retro os serviços de saúde prestados sem finalidade lucrativa por empresas, para o atendimento de seus empregados e dependentes, sem acarretar ônus para a seguridade social[82].

O segundo capítulo trata “Da Participação Complementar” da iniciativa privada nos serviços assistenciais de saúde. Cabe aqui uma distinção. Nos comentários acima foi abordada a participação suplementar, ou seja, dissociada do SUS, sujeitando-se apenas às suas regras básicas de operacionalização e aos princípios éticos que o regem. A participação de que tratam os artigos 24 a 26 da Lei Orgânica da Saúde significa que as entidades privadas que atuarem desta maneira atenderão aos usuários do SUS, ou seja, não pagantes. Desta feita, quando a disponibilidade dos serviços oferecidos pelo SUS forem insuficientes para garantir a cobertura assistencial à população de uma determinada área, poder-se-á recorrer aos serviços oferecidos pela iniciativa privada[83], cuja participação será formalizada mediante contrato ou convênio, devendo ser observadas as normas de direito público[84] e tendo preferência as entidades filantrópicas e as sem finalidade lucrativa[85].

3.4. Ações e Programas

No tópico anterior foi esmiuçada a estrutura orgânica do Sistema Único de Saúde, ocasião na qual foram expostos os entes personalizados que o compõem, bem como seus órgãos, sendo, de maneira ilustrativa, declinadas as suas principais atribuições constitucionais e legais. Aqui, serão abordadas as ações e os programas executados pelo SUS, com o enfoque dado pela Norma Operacional Básica nº 01/96.

Esta Norma Operacional foi instituída através de Portaria expedida pelo Ministério da Saúde e a sua finalidade precípua é racionalizar as ações e serviços sanitários a fim de atender aos princípios da equidade e da regionalização, assim como às diretrizes da integralidade, da participação da comunidade e da descentralização, com ênfase na atuação dos municípios. Consoante prevê a própria NOB/SUS nº 01/96, a sua finalidade primordial consiste em

promover e consolidar o pleno exercício, por parte do poder público municipal e do Distrito Federal, da função de gestor da atenção à saúde dos seus munícipes (art. 30, incisos V e VII e artigo 32, parágrafo 1º, da Constituição Federal), com a consequente redefinição das responsabilidades dos estados, do Distrito Federal e da União, avançando na consolidação dos princípios do SUS[86].

Para atingir a sua finalidade, a NOB/SUS nº 01/96 estabelece uma verdadeira reordenação no modelo de atenção à saúde, na medida em que redefine os papéis de cada esfera de governo (sobremodo no que concerne à direção única); os instrumentos de gestão para que os municípios e estados superem o exclusivo papel de prestadores de serviços e assumam seus respectivos papéis de gestores do SUS; os mecanismos e os fluxos de atendimento, reduzindo de forma progressiva e contínua a remuneração por produção de serviços e ampliando as transferências de caráter global com base em programações ascendentes, pactuadas e integradas; a prática do acompanhamento, do controle e da avaliação no SUS, superando os mecanismos tradicionais; e os vínculos dos serviços com seus usuários, dando privilégio aos núcleos familiares e comunitários, criando, por conseguinte, condições para uma efetiva participação e controle social[87].

Além de redefinir os parâmetros que devem ser seguidos pelos órgãos e agentes sanitários, a NOB/SUS nº 01/96 divide a atenção à saúde em três campos de atuação: o da assistência; o da intervenção ambiental; e o das políticas externas ao setor de saúde.

Antes, porém, de tratar destes campos de atuação, considera-se de bom alvitre citar duas entidades colegiadas de articulação criadas pela NOB/SUS nº 01/96, quais sejam: a Comissão Intergestores Tripartite – CIT; e a Comissão Intergestores Bipartite – CIB. A primeira é composta paritariamente por um representante do Ministério da Saúde – MS –, um representante do Conselho Nacional de Secretários Estaduais de Saúde – CONASS – e por um representante do Conselho Nacional de Secretários Municipais de Saúde – CONASEMS, possuindo abrangência nacional. Já a CIB é composta de maneira paritária por representação da Secretaria Estadual de Saúde e do Conselho de Secretários Municipais de Saúde, ou órgão equivalente, do respectivo estado. Essas comissões reúnem-se periodicamente, e nelas são definidas normas específicas de atuação comum dos entes envolvidos, sendo as conclusões das negociações pactuadas nesses encontros formalizadas em ato normativo de competência da direção do SUS específico – no caso das CIB´s, a Secretaria Estadual de Saúde, e no da CIT, o Ministério da Saúde. A criação de tais instâncias de articulação executiva deveu-se à necessidade de integração dos órgãos gestores do SUS, com o fito de harmonizar as ações e programas realizados por suas diferentes instituições, o que é essencial para o aperfeiçoamento do sistema[88].

Nos subtópicos que se seguem serão declinados os campos de ação do SUS, definidos pela Norma Operacional Básica nº 01.

3.4.1. Assistência

A Norma Operacional Básica nº 01/96 estabelece como primeiro grande campo de atenção à saúde o das ações e programas assistenciais. Para explanar melhor, alguns questionamentos se fazem pertinentes. Primeiramente, em que consistem tais ações? Outra questão diz respeito a quem executa mediata e diretamente? As respostas encontram-se nas linhas abaixo.

O campo assistencial de atenção à saúde consiste em atividades que são “dirigidas às pessoas, individual ou coletivamente, em nível ambulatorial e hospitalar, bem como em outros espaços, especialmente no domiciliar[89]”. Em termos singelos, trata-se dos serviços sanitários essenciais de assistência direta e imediata, prestados por entes personalizados (fundações e autarquias vinculadas aos estados e municípios) e órgãos estaduais e municipais, por meio de seus agentes (auxiliares e assistentes técnicos, além dos especialistas nas diversas áreas das ciências da saúde – médicos, dentistas, enfermeiros, nutricionistas, fisioterapeutas, físicos-médicos, etc.), de caráter profilático (e.g., vacinação contra enfermidades causadas por pelos diversos agentes biológicos nocivos, fornecimento de medicamentos, diagnóstico pré-natal, etc.) e curativo (e.g., primeiros socorros, prescrição de medicamentos, realização de intervenções cirúrgicas, etc.).

A NOB/SUS nº 01/96 estabelece as ações e programas que devem ser executados genericamente pelas gestões estaduais do SUS. Assim sendo, devem elas consistir:

na prestação de serviços próprios ambulatoriais e hospitalares de alto custo, para o tratamento foram do domicílio (intermunicipal) e da disponibilidade de medicamentos e insumos especiais, sem prejuízo das competências dos sistemas municipais; (...); e no componente estadual de assistência farmacêutica; nas políticas de sangue e hemoderivados; (...)[90] (com adaptações).

Para as gestões municipais, as ações de cunho assistencial devem por finalidade maior a garantia:

da prestação de serviços ambulatoriais e hospitalares, ou de encaminhamento para atendimento fora do domicílio; (...); dos serviços de apoio ao diagnóstico e terapia (laboratórios para exames complementares, radioimagem, entre outros); do componente municipal de assistência farmacêutica; das políticas de sangue e hemoderivados; (...)[91]

Podem ser enumerados, exemplificativamente, alguns programas de cunho eminentemente assistencial, instituídos pela direção nacional do SUS e pactuados nos encontros da Comissão Intergestores Tripartite – CIT. O primeiro deles é o Serviço de Atendimento Móvel de Urgência – SAMU 192[92] –, tem como finalidade proteger a vida das pessoas e garantir a qualidade no atendimento emergencial no SUS. Outro que pode ser citado é o Programa Farmácia Popular, implantado em 2004, cujo objetivo consiste em levar medicamentos essenciais a um baixo custo para mais perto da população, melhorando o acesso e beneficiando uma maior quantidade de pessoas[93]. Considera-se igualmente válido mencionar o Programa Brasil Sorridente, o qual faz parte da Política Nacional de Atenção à Saúde Bucal, visando a

garantir as ações de promoção, prevenção e recuperação da saúde bucal dos brasileiros, entendendo que esta é fundamental para a saúde geral e qualidade de vida da população. Suas metas perseguem a reorganização da prática e a qualificação das ações e serviços oferecidos, no marco do fortalecimento da atenção básica, reunindo uma série de ações em saúde bucal, com ampliação do acesso ao tratamento odontológico gratuito aos brasileiros, por meio do SUS[94].

3.4.2. Intervenção Ambiental

O segundo campo de atenção à saúde designado pela NOB/SUS nº 01/96 consiste nas intervenções ambientais. A expressão “intervenção ambiental” deve ser interpretada

no seu sentido mais amplo, incluindo as relações e as condições sanitárias nos ambientes de vida e de trabalho, o controle de vetores e hospedeiros e a operação de sistemas de saneamento ambiental (mediante pacto de interesses, as normalizações, as fiscalizações e outros)[95].

A NOB/SUS nº 01/96 estabelece para a gestão estadual atribuições que devem direcionar-se à concretização:

do componente estadual de vigilância epidemiológica, com sistema de informação que inclua as informações obtidas pela vigilância municipal e pela vigilância sanitária, e ainda, consolide as informações municipais; do componente estadual de vigilância sanitária; do componente estadual da rede de laboratórios de saúde pública; (...); do componente estadual de programas de abrangência nacional relativas a agravos que constituam riscos de disseminação para além do seu limite territorial; (...)[96].

Para a gestão municipal do SUS, a Norma Operacional Básica nº 01/96 estabelece incumbências que objetivam a concretização

do componente municipal do sistema de vigilância epidemiológica com sistema de informação que inclua as informações obtidas pela vigilância alimentar e nutricional e a vigilância sanitária; do componente municipal de vigilância sanitária; (...); dos programas especiais, conforme a necessidade, apontada por indicadores epidemiológicos locais; (...)[97].

Vê-se, portanto, que o campo de atenção à saúde voltado para a intervenção ambiental consiste em ações e programas de cunho eminentemente preventivo, que visam ao benefício da saúde coletiva, refletindo diretamente no bem-estar individual. Citam-se como exemplos de tais medidas institucionais programas como o de combate à dengue (de caráter permanente, haja vista ter esta enfermidade potencial lesivo endêmico), de prevenção às inúmeras doenças e agravos, além das campanhas de vacinação contra novos males causados por vírus, bactéria, protozoários e suas mutações.

3.4.3. Políticas Externas ao SUS

O terceiro grande campo de atenção à saúde estabelecido pela Norma Operacional Básica nº 01/96 refere às políticas sociais e administrativas a serem desenvolvidas pelos entes e órgãos componentes do SUS, as quais

interferem nos determinantes sociais do processo saúde/doença das coletividades, de que são partes importantes questões relativas às políticas macroeconômicas, ao emprego, à educação, ao lazer e à disponibilidade e à qualidade dos alimentos[98].

Tais políticas dizem respeito à relação do Sistema Único de Saúde com outros setores das esferas governamentais, bem como com as associações e fundações de direito privado que representam os setores sociais vinculados à área da saúde.

A NOB/SUS nº 01/96, ao estabelecer as funções atribuídas às gestões municipais e estaduais do SUS, elucida com precisão o funcionamento deste campo de atenção às políticas sanitárias. Assim sendo, para as gestões estaduais do SUS, são dadas as atribuições concernentes à concretização

do componente estadual do Sistema Nacional de Auditoria; dos sistemas de informação de produção de serviços e de insumos críticos e processamento de dados; do componente estadual de comunicação social e educação em saúde; da administração e desenvolvimento de pessoal; de ciência e tecnologia; de mecanismos e instrumentos visando a integração das políticas e das ações de relevância para a saúde como aquelas relativas a saneamento, recursos hídricos, habitação e meio ambiente; (...)[99]

Para a gestão a nível municipal, a NOB estabelece como atribuições as referentes

aos sistemas de informação de produção de serviços e insumos críticos; ao componente municipal de comunicação social e educação em saúde; ao componente municipal do Sistema Nacional de Auditoria; à administração e ao desenvolvimento de pessoal; aos mecanismos e instrumentos visando a integração das políticas e das ações de relevância para a população, como aquelas relativas a saneamento, recursos hídricos, habitação e meio ambiente, entre outras; à gerência dos recursos do Fundo Municipal de Saúde; (...)[100]. (com adaptações)

3.5. As Falhas do SUS e os Óbices ao Efetivo Acesso à Saúde

No tópico introdutório ao presente capítulo, discutiu-se o surgimento do Sistema Único de Saúde. Nos tópicos seguintes, foram explanados o seu conceito, os princípios e as diretrizes que o informam, bem como foram abordados com razoável margem de aprofundamento a composição e a divisão de atribuições, além das ações e programas desenvolvidos. Neste diapasão, chegou-se à conclusão de que a normatização sanitária não foi uma novidade introduzida pela Carta de 1988. A novidade se deu na maneira como foi tratado o direito à saúde, o qual foi considerado direito humano fundamental e, na tentativa de concretizá-lo, foi incumbida ao legislador ordinário a criação de um sistema orgânico que atendesse à finalidade precípua de garantir a todo e qualquer cidadão, independentemente de suas condições econômicas, a proteção à sua integridade física (e psíquica, por consequência mediata).

Assim sendo, o SUS representou um considerável avanço na garantia deste direito fundamental, sendo mundialmente reconhecido como paradigma de atuação administrativa, sobremodo nos Estados Unidos e na União Europeia. Em país nenhum, nem mesmo nos da Europa Setentrional, existe, ao menos sob o aspecto normativo-institucional, um modelo de atenção à saúde que institua e articule políticas sociais que vão desde campanhas publicitárias e de vacinação, até ao tratamento de câncer, da AIDS – neste caso, considerado exemplo mundial –, ao fornecimento de medicamentos (para pacientes de doenças crônicas, como a diabetes e hipertensão, e degenerativas, como o mal de Alzheimer), transplante de órgãos, atendimento domiciliar, e assim por diante. Todos esses serviços, não ofertados integralmente por nenhum plano privado de saúde, são oferecidos gratuitamente a todos os que deles venham a necessitar[101].

Desta feita, é cediço afirmar que o Sistema Único de Saúde promoveu em concreto o acesso à proteção da saúde individual e coletiva. Todavia, tal mudança no panorama sanitário provocou um aumento significativo na demanda de usuários do sistema e isso é considerado como um dos fatores que geraram os seus incontáveis problemas. São frequentes notícias jornalísticas televisionadas nas quais usuários reclamam de problemas que vão desde as longas filas de atendimento nos postos, da má qualidade do atendimento prestado por alguns profissionais da área, da demora na marcação de consultas, da falta de medicamentos nos postos de distribuição, da precariedade dos instrumentos de trabalho, da falta de higiene em muitos hospitais e maternidades, a casos mais chocantes, como o de gestantes que dão a luz nos corredores dos hospitais em virtude da falta de leitos, das quadrilhas que fraudam a fila de espera no transplante de órgãos, da morte de crianças em maternidades decorrentes de doenças hospitalares causadas pela precariedade higiênico-sanitária das suas instalações, das mortes de pessoas nos corredores dos hospitais de urgência, em virtude da impossibilidade de atendimento por parte do quadro de profissionais disponível, da dificuldade de acesso a produtos essenciais para o tratamento de doenças especiais (e.g., leite especial para crianças acometidas cujo organismo possui intolerância à lactose), dentre outros.

Dados coletados pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística – IBGE – demonstram as dimensões dos problemas causados pelo aumento na demanda por pacientes do SUS. Estima-se que mais de 140 milhões de pessoas (70% da população brasileira) dependem exclusivamente dos serviços fornecidos pela rede pública de saúde. O programa Brasil Sorridente fornece atendimento de saúde bucal a cerca de 82 milhões de pessoas. No que tange às vacinas, as estatísticas[102] indicam que mais de 130 milhões de vacinas são aplicadas por ano, sendo de R$ 84 bilhões é o montante de despesas totais com saúde no Brasil, sendo 48,5% dos gastos feitos pela União.

O SUS, como se percebe, é uma fonte de contradições, seja pelos contrastes existentes nos serviços prestados, seja pelas estatísticas. O contracenso estatístico reside na constatação de que malgrado os gastos com a manutenção do Sistema sejam exorbitantes, o que inclusive motivou o legislador constituinte derivado a criar tributos (a exemplo da CPMF[103]) com a finalidade de cobri-los, os investimentos públicos na saúde suplementar nos últimos anos por vezes superaram os destinados ao setor público. Isto se reflete na maior demanda de usuários de planos privados de saúde, os quais não conseguem atender de forma integral seus pacientes. O resultado é o sucateamento dos serviços originalmente prestados pelo SUS, o que acarreta maiores dispêndios do erário, pois a precariedade dos serviços faz com que muitos pacientes recorram ao poder judiciário para ter acesso efetivo aos serviços sanitários essenciais.

À excessiva demanda de pacientes e ao crescimento dos investimentos públicos na saúde suplementar acrescentam-se problemas gerenciais, sobremodo no âmbito dos municípios. Devido a fatores de ordem política, muitas irregularidades ocorrem nas gestões municipais, seja no desvio de verbas oriundas de repasses orçamentários, seja por fraudes cometidas por agentes públicos responsáveis pela administração dos serviços imediatos de atenção sanitária.

Esse quadro torna-se ainda mais grave quando os problemas do SUS constituem causa de pedir para as incontáveis ações judiciais pleiteando desde o fornecimento de remédios e a realização de tratamentos, até a reparação de danos causados pelas falhas do próprio sistema.

Uma vez solidificados os esclarecimentos acerca do Direito Sanitário e do funcionamento do SUS, bem como evidenciados os seus problemas mais graves, passar-se-á, no capítulo seguinte, à análise do fenômeno crescente chamado “judicialização da saúde”, ou seja, do acesso à saúde através do poder judiciário, das críticas a ele inerentes e os parâmetros razoáveis de sua realização.

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Sobre o autor
Augusto Vieira Santos de Brito

Técnico Judiciário em Aracaju (SE).

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

BRITO, Augusto Vieira Santos. Judicialização razoável como meio de efetivar o acesso à saúde. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 17, n. 3173, 9 mar. 2012. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/21258. Acesso em: 23 abr. 2024.

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