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Judicialização razoável como meio de efetivar o acesso à saúde

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4. DO ACESSO À SAÚDE PELA VIA JURISDICIONAL

4.1. Considerações Prévias

A priori, causa certo estranhamento ao leitor a existência de um tópico introdutório ao capítulo que tratará justamente do mérito deste trabalho. No entanto, não se fará aqui uma introdução aos institutos jurídico-dogmáticos e jusfilosóficos pelos quais inexoravelmente versarão os argumentos e posicionamentos colimados nos itens que se seguirão. Ao revés, far-se-á uma conexão necessária com os temas discutidos nos capítulos pretéritos, que servem de substrato cognitivo para o cerne desta atividade monográfica, e uma elucidação geral sobre a polêmica que gravita sobre o tema em apreço.

Estudou-se, no capítulo reputado como termo dies ad quo desta monografia, o Direito Sanitário. Para abordá-lo, considerou-se de suma importância contextualizar o seu surgimento no âmbito dos Direitos Fundamentais. Por conseguinte, para evitar uma lacuna didática, foi, ainda que de modo en passant, dissecado, sob a ótica tanto da historiografia quanto da dogmática jurídica, o instituto dos Direitos Fundamentais, abordando-se a sua categorização clássica, bem como a sua divisão feita pela contemporânea doutrina constitucionalista.

Uma vez conceituado e contextualizado, sob as suas diversas facetas, o Direito Sanitário, passou-se, no capítulo seguinte, ao estudo do Sistema Único de Saúde. Foram abordados, de maneira ilustrativa e observando o nível mínimo de aprofundamento exigido para este trabalho, o seu surgimento – bem como as mudanças trazidas com ele –, a sua previsão na atual Carta Federativa, os princípios e diretrizes que o guiam, a sua estrutura organizacional, a forma como são realizados os seus programas e as suas ações (níveis de atenção à saúde), não se furtando da exposição das mazelas que por infortúnio ainda lhe são inerentes.

Nesse toar, restam pacíficas todas as elementares dúvidas porventura existentes acerca do que seja a saúde (pública), tanto no que tange à análise jurídica de seus institutos, quanto no que pertine ao que se concebe por meios de acesso a ela – explica-se, promovidos pelo poder legislativo, editando as normas regulamentadoras gerais, seja pelo poder executivo, que as executa e as concretiza independentemente das falhas que lhe são patentes.

Consoante visto no item “3.5”, em que pese haja um complexo de princípios e regras dispondo sobre os serviços públicos na área da saúde e que, sob o ponto de vista normativo, o acesso à saúde seja plenamente garantido, a praxis revela que a constitucionalmente idealizada universalização equitativa do acesso torna-se utopia diante dos vultosos problemas que assolam o SUS.

Por conseguinte, uma vez assegurado o direito à saúde, elevando-se o mesmo ao patamar de direito humano fundamental, nasce para todo cidadão (ou indivíduo em trânsito pelo território nacional) e, igualmente, para a coletividade (seja restrita a grupos determinados, seja em caráter geral) a pretensão à sua execução (obrigação de fazer), salvaguarda (obrigações de não fazer) e, quando a ausência da sua garantia concreta gera danos de qualquer natureza, reparação (obrigação de dar, reparar). Eis que, seguindo a esteira dos demais direitos sociais, surge o fenômeno batizado pelo neologismo chamado “judicialização” ou, com mais propriedade, acesso à saúde pela via jurisdicional.

O capítulo presente iniciará as discussões sobre o referido fenômeno – de origem sociopolítica com reflexos imediatos sobre o Direito, seja no meio acadêmico, seja na prática forense – abordando os instrumentos pelos quais deve se utilizar o operador jurídico (leia-se advogado e membro do Ministério Público) para promover o acesso efetivo aos serviços sanitários daqueles que deles necessitam e que se veem impedidos por razões diversas de ordem financeiro-administrativa estatal. Em termos menos eruditos, tratar-se-ão das ações e procedimentos de ordem individual e coletiva existentes em nosso ordenamento jurídico instrumental.

Passada a fase discursiva de ordem meramente dogmático-processual, dar-se-á início a um momento de criticas e reflexões, as quais certamente escaparão ao âmbito puramente científico-objetivo do Direito. Como se sabe, todo binômio direito/garantia – assim como tudo o que existe no universo, inclusive as suas dimensões – é dotado de limitabilidade. Seus limites decorrem de fatores de ordem principiológica, mais precisamente, da ponderação com outros distintos binômios de mesma natureza que venham a entrar em rota de colisão em sua aura de aplicabilidade. Mutatis mutandis, o próprio direito fundamental de acesso à jurisdição, bem como as garantias que lhe são inerentes (frise-se: contraditório, ampla defesa, razoável duração do processo, celeridade processual, juiz natural e imparcial, e efetiva satisfação da pretensão posta sub judice), quando exercido de forma inconsequente, acaba por entrar em conflito com outros direitos e garantias, sobremodo os de cunho coletivo. Assim sendo, críticas ao fenômeno da “judicialização excessiva” se fazem necessárias e decerto serão elas declinadas neste capítulo. No mesmo bojo será confrontada a antinomia existente entre a macro-justiça (representada pelo acesso à saúde a que faz jus toda a sociedade, devendo, em tese, prevalecer o seu interesse) e a micro-justiça (que se concretiza nas decisões e sentenças judiciais, não podendo o magistrado violar direitos assegurados pela própria Constituição).

Feitas as merecidas críticas aos fenômenos advindos da “judicialização” sanitária excessiva, serão expostas possíveis soluções para o problema. Tal solução encontra-se na utilização do princípio da razoabilidade (bem como o da proporcionalidade) como plano de fundo para o estabelecimento de parâmetros a serem seguidos pelos operadores jurídicos nos diversos momentos e papéis assumidos nos processos cuja causa de pedir envolve, ainda que reflexamente, o acesso à saúde. Em primeiro plano, serão declinados os parâmetros de atuação na tutela individual das ações judiciais sanitárias. Em seguida, expor-se-ão os parâmetros em sede coletiva, mais precisamente, no que tange aos procedimentos processuais específicos.

4.2. Meios Processuais de Promoção do Acesso à Saúde

Nesta etapa de trabalho monográfico serão abordados os meios processuais de concretização do direito à saúde. Tais meios materializam-se genericamente no direito de ação, o qual se torna exequível através do processo e do procedimento, visando a satisfazer pretensões e proteger direitos substanciais porventura violados seja a um indivíduo especificamente, seja a um pequeno grupo de pessoas, seja a toda a sociedade difusamente. Seguindo esta linha de raciocínio, serão neste tópico expostos os instrumentos processuais tanto de proteção individual quanto de tutela coletiva.

Antes, porém, de dar início a esta exposição necessária, considera-se de bom alvedrio tecer breves comentários elucidativos acerca dos seguintes institutos jurídicos: tutela jurisdicional, ação (e seus requisitos), processo (e seus pressupostos), procedimento (e a sua ligação epistemológica com o processo), e a distinção entre tutela individual e coletiva.

O direito material, como é cediço, não é capaz de ser exercido sem que haja meios para concretizar a sua exequibilidade. Para atingir este objetivo foram criadas e aperfeiçoadas as normas jurídicas de caráter instrumental, originando os diversos ramos do Direito Processual, dentre eles, o Processo Civil. De todos esses microcosmos da ciência jurídica processual reputa-se como ponto de partida o conceito de tutela jurisdicional, o qual se dissocia do conceito de jurisdição. Para Alexandre Freitas Câmara, aquela consiste numa “modalidade de tutela jurídica, ou seja, uma das formas pelas quais o Estado assegura proteção a quem seja titular de um direito subjetivo ou outra posição jurídica de vantagem[104]”. Para este mesmo autor, deve a tutela jurisdicional ser adequada. Em outros termos, “o Estado só presta verdadeira tutela jurisdicional quando esta é adequada a proteger o direito material lesado ou ameaçado de lesão[105]”. Como bem obtempera Luiz Guilherme Marinoni, “a jurisdição [aqui entendida como tutela jurisdicional] tem por objetivo editar a norma jurídica capaz de dar conta das necessidades do direito material[106]”. Esta forma de proteção dos direitos lesados ou ameaçados de sofrer lesão em sua efetividade divide-se em três espécies: a cognitiva, que visa a definir a existência ou não do direito e da relação processual deduzida (res judicium deducta); a executiva, que visa a satisfazer o direito declarado em uma sentença; e a cautelar, que visa a garantir a efetividade de outra tutela (cognitiva ou executiva).

Pois bem, a tutela jurisdicional, entendida sucintamente como a apreciação de qualquer lesão ou ameaça de lesão a direito pelo Poder Judiciário, constitui direito fundamental de 1ª dimensão, alçado ao nível de norma principiológica constitucional, materializada na Lex Legum de 1988 no art. 5º, inciso XXXV. Ocorre que, para que esta tutela se realize faz-se necessária a provocação do Estado-Juízo para que este aprecie a controvérsia suscitada, em virtude de ser este, por natureza, inerte (nemo judex procedat ex officio). Tal provocação é promovida pelo fenômeno jurídico processual denominado ação. Conceituar este instituto não é tarefa fácil para a doutrina, haja vista haver inúmeras teorias divergindo acerca do seu conceito e da sua natureza jurídica. A doutrina processualista aponta três teorias que conceituam a ação. A primeira delas é a teoria abstrata, a qual “vê na ação o poder de provocar a atuação do Estado-Juiz. Tal poder, efetivamente, existe, e não é negado por qualquer das outras teorias[107]”. A segunda é a teoria concreta da ação, para a qual esta se constitui no “direito de obter um resultado final favorável e se trata de posição jurídica de que só será titular aquele que, no plano do direito substancial, demonstre ter razão[108]”. Por fim, mesclando o objeto das teorias anteriores construiu-se a teoria eclética da ação. Esta define a ação como o “poder de obter um provimento de mérito, poder este que só estaria presente se o autor preenchesse as ‘condições da ação’. A ausência de qualquer de tais ‘condições’ deve levar à extinção do processo sem resolução de mérito[109]”. O legislador infraconstitucional brasileiro assimilou fragmentos das três teorias, reputando-se as condições da ação como fatores que, uma vez ausentes, implicam na extinção do processo sem a análise do mérito. Assim sendo, chancelando a doutrina de Enrico Tullio Liebman[110], o Código de Processo Civil, no art. 267, VI, define como condições da ação a legitimidade (legitimatio ad causam), o interesse de agir e a possibilidade jurídica do pedido.

Consoante assevera Liebman, citado por Marinoni,

Legitimação para agir (legitimatio ad causam) é a titularidade (ativa e passiva) da ação. (...). A legitimação, como requisito da ação, é uma condição para o pronunciamento sobre o mérito do pedido: indica, pois, para cada processo, as justas partes, as partes legítimas, isto é, as pessoas que devem estar presentes para que o juiz possa julgar sobre determinado objeto. Entre esses dois requisitos, ou seja, a existência do direito de agir e a sua pertinência subjetiva, o segundo é que deve ter precedência, porque só em presença dos dois interessados diretos é que o juiz pode examinar se o interesse exposto pelo autor efetivamente existe e se ele apresenta os requisitos necessários[111]. [grifos do autor]

O processualista italiano alhures aludido, ao tratar da segunda condição da ação, qual seja, do interesse de agir, afirma que este se trata de um interesse de caráter secundário (instrumental, processual), auxiliar ao interesse material primário, tendo por objeto “o provimento que se pede ao juiz como meio para obter a satisfação de um interesse primário lesado pelo comportamento da parte contrária, ou mais genericamente, pela situação de fato objetivamente existente[112]”. Prossegue Liebman, considerando que “o interesse de agir decorre da necessidade de obter através do processo a proteção do interesse substancial; pressupõe, por isso, a assertiva de lesão desse interesse e a aptidão do provimento pedido a protegê-lo e satisfazê-lo”. Neste diapasão, a doutrina dissecou esta condição da ação em dois elementos: o interesse necessidade e o interesse adequação. Para Ada Pellegrini Grinover, Antônio Cintra e Cândido Rangel Dinamarco, a necessidade da tutela jurisdicional repousa “na impossibilidade de obter a satisfação do alegado direito sem a intervenção do Estado[113]”, em outras palavras, decorre da vedação da autotutela. A adequação, para os mesmos autores, “é a relação existente entre a situação lamentada pelo autor ao vir a juízo e o provimento jurisdicional concretamente solicitado. O provimento, evidentemente, deve ser apto a corrigir o mal de que o autor se queixa, sob pena de não ter razão de ser[114]”.

A possibilidade jurídica do pedido, em termos gerais, diz respeito à inexistência de óbices no ordenamento jurídico positivo ao direito pleiteado ou à relação jurídica deduzida. Alexandre Freitas Câmara, seguindo a esteira de parte da doutrina, observa que “não só o pedido, mas também o seu fundamento devem ser juridicamente possíveis, sob pena de se ter presente o fenômeno da ‘carência da ação’. Fala-se, então, (...) em possibilidade jurídica da demanda[115]”. E conclui, afirmando que

se deve considerar juridicamente impossível a demanda quando o pedido ou a causa de pedir sejam vedados pelo ordenamento jurídico, não podendo o Estado-Juiz, ainda que os fatos narrados na inicial tenham efetivamente ocorrido, prestar a tutela jurisdicional pretendida.

A análise da pretensão afirmada e da relação jurídica deduzida pelo Poder Judiciário, que atua mediante provocação da parte interessada (ação), ocorre no processo, o qual não pode ser confundido com a ação. Esta – frise-se – consubstancia-se no poder jurídico de provocar o Estado-Juiz para que este, apreciando em concreto as quaestio facti et juri deduzidas, exare, quando juridicamente possível, um provimento de mérito. Também não pode ser confundido com a relação jurídica processual, muito menos com o procedimento (conforme se verá a seguir). Novamente se está diante de um instituto da ciência do direito cuja tarefa de conceituar e definir a sua natureza científica é reputada árdua pela doutrina.

Em sentido amplíssimo, pode-se conceituar o processo como todo procedimento realizado através do contraditório. Ocorre que tal conceito torna-se insuficiente para definir o complexo de atos que permeiam o procedimento em contraditório realizado com o fito de solucionar concretamente uma controvérsia posta em juízo, haja vista existirem, mutatis mutandis, procedimentos de semelhante natureza visando a elaborar em caráter abstrato normas jurídicas positivas (processo legislativo), a resolver questões de ordem de expediente no âmbito dos três “poderes” estatais (processo administrativo lato sensu), e assim por diante[116]. Desta feita, torna-se curial restringir o âmbito epistemológico do instituto em apreço, devendo-se falar em processo jurisdicional. Este pode ser definido como todo procedimento concretizado sob o manto do contraditório e animado por uma relação jurídica processual (formada pelas partes e pelo juízo). Com muito saber, observa Alexandre Freitas Câmara que

Não se confunde, pois, o processo jurisdicional (...) com os demais processos. Não se pode confundir o processo jurisdicional com os demais processos não-estatais, pela simples razão de que nestes não se encontra o Estado no exercício de seu poder soberano. Nem se pode confundir o processo jurisdicional com os demais processos estatais, por faltar nestes o requisito da imparcialidade e equidistância que está presente naquele[117].

Consoante o afirmado alhures, o processo não se confunde com o procedimento. Este é a “forma material com que o processo se realiza em cada caso concreto[118]”. Em outros termos, é o modo pelo qual ele se desenvolve no caso específico, visando à solução do conflito suscitado. Já o processo é o conjunto de atos jurídicos visando a atingir um fim determinado, pouco importando a forma como ele é atingido. É uma entidade complexa da qual é parte integrante o procedimento, juntamente com o contraditório e a res judicium deducta. Tais considerações são suficientes para concluir que não se concebe a existência do processo sem o procedimento. A recíproca não pode ser verdadeira, posto que o procedimento é um conjunto de atos visando a um fim, porém, prescinde da existência de uma relação jurídica processual e da observância do contraditório. O exemplo mais nítido pode ser extraído do Direito Processual Penal: o Inquérito Policial, cuja ausência do contraditório é a sua característica preponderante. Também pode ser tido como exemplo, extraído agora do Direito Processual Constitucional, o processo legislativo, que prescinde da existência de uma relação jurídica.

Procedimentos jurisdicionais (ressalte-se!) e administrativos de diversas espécies podem ser observados na tutela do direito à saúde. Esta pode visar à garantia da efetividade do acesso à saúde por um indivíduo especificamente, ou por um grupo, que pode variar de uma pequena coletividade à sociedade como um todo. Pode-se visar, outrossim, à reparação de um dano resultante da lesão ao direito à saúde, ou se pode recorrer ao Estado-Juiz para evitar a ameaça de lesão ao mesmo.

Neste tópico serão expostos os procedimentos jurisdicionais e administrativos com vistas tanto à proteção individual quanto à coletiva. Em primeiro plano serão declinados os mecanismos processuais de proteção individual. Em seguida, serão abordados os instrumentos jurisdicionais coletivos.

4.2.1. Meios de Proteção Individual

Nesta primeira etapa serão abordados os instrumentos processuais de proteção dos direitos da saúde em nível individual. Como é sabido, inúmeros procedimentos jurisdicionais e administrativos existem para tutelá-los. Inobstante isso, podem-se enumerar em nosso ordenamento jurídico seis maneiras de pleitear a materialização de direitos sanitários obstados[119]: a) o Direito de Petição (previsto no art. 5º, XXXIV, da CRFB/1988); b) o Mandado de Segurança Individual (art. 5º, LXVIII, da CRFB/1988); c) o Mandado de Injunção Individual (art. 5º, LXXI, CRFB/1988); d) o Habeas Data (art. 5º, LXXII, CRFB/1988); e) a Representação Individual ao Ministério Público; f) os meios de defesa dos direitos sanitários inseridos na relação de consumo (Código de Defesa do Consumidor).

O direito de petição é definido por Alexandre de Moraes como “o direito que pertence a uma pessoa de invocar a atenção dos poderes públicos sobre uma questão ou situação[120]”. Este direito está previsto em nossa Carta Federativa, no art. 5º XXXIV, sendo assegurado a todos, prescindindo-se ao pagamento de taxas, para a defesa de direitos, sejam eles decorrentes de ilegalidade ou do abuso de poder. Por se tratar de uma prerrogativa democrática, em que pese se consubstancie em um ato jurídico escrito, não possui forma prescrita ou não defesa em lei, tendo caráter essencialmente informal. É parte legítima ativa qualquer pessoa física ou jurídica, nacional ou estrangeira. A sua finalidade é a de comunicar o “fato ilegal ou abusivo ao Poder Público, para que providencie as medidas adequadas[121]”. O seu exercício não exige o endereçamento ao órgão competente para apreciar a reclamação, devendo, portanto, quem a receber, enviá-la para a autoridade responsável. Trata-se de procedimento administrativo o qual, como é cediço em nosso sistema normativo[122], não impede o ajuizamento de demanda judicial. Assim sendo, na seara sanitária, o direito de petição pode ser endereçado às secretarias de saúde dos Estados ou Municípios, bem como às autarquias ou fundações por elas mantidas, ou ao próprio Ministério da Saúde, a depender de quem seja o responsável pela execução do serviço em questão, em situações como a do não fornecimento de remédios (desde que previstos na lista oficial de medicamentos essenciais[123]), não realização de tratamentos nas situações previstas na legislação específica, ou as lesões decorrentes de problemas de ordem administrativa local.

Não fosse a precariedade da nossa administração pública em resolver problemas de ordem interna certamente deixariam de ser ajuizadas milhares de demandas judiciais cujo cerne das controvérsias diz respeito a medicamentos ou tratamentos básicos que os órgãos e entes vinculados ao Poder Executivo dos Estados e Municípios poderiam fornecer. E, como observado alhures, inexiste qualquer óbice, ao menos normativo, ao acesso à tutela jurisdicional, aparecem em cena os procedimentos judiciais. O primeiro a ser abordado é o Mandado de Segurança. Hely Lopes Meirelles o define como sendo

O meio constitucional posto à disposição de toda pessoa física ou jurídica, órgão com capacidade processual, ou universalidade reconhecida por lei, para a proteção de direito individual ou coletivo, líquido e certo, não amparado por habeas corpus ou habeas data, lesado ou ameaçado de lesão, por ato de autoridade, seja de que categoria for e sejam quais forem as funções que exerça[124] (...).

Este writ constitucional de tutela das liberdades tem sede constitucional, mais precisamente no art. 5º, inciso LXIX[125], da CRFB/1988. A Lei nº 12.016/2009 – Lei do Mandado de Segurança (LMS) – o regulamenta, trazendo em seu art. 1º, o conceito atual deste instituto jurídico-processual:

Art. 1º  Conceder-se-á mandado de segurança para proteger direito líquido e certo, não amparado por habeas corpus ou habeas data, sempre que, ilegalmente ou com abuso de poder, qualquer pessoa física ou jurídica sofrer violação ou houver justo receio de sofrê-la por parte de autoridade, seja de que categoria for e sejam quais forem as funções que exerça.

Trata-se de ação civil submetida a rito especial, a qual pode se dar sob a forma preventiva ou repressiva. A primeira de suas modalidades visa a coibir um ato ilegal ou abusivo que, uma vez praticado, causará lesão a direito. Como obtempera Hely Lopes Meirelles, “não basta a suposição de um direito ameaçado; exige-se um ato concreto que possa por em risco o direito do postulante”[126]. A forma repressiva visa a obstar ou fazer cessar a prática de um ato concreto que já tenha provocado lesão ao direito do impetrante. Consoante se depreende do seu conceito, o mandado de segurança visa a coibir lesão a direito provocada por ato de autoridade. O que se entende por tal ato e quem de fato pode ser enquadrado no conceito de autoridade? Pois bem, reputa-se ato de autoridade “toda manifestação ou omissão do Poder Público ou de seus delegados, no desempenho de suas funções ou a pretexto de exercê-las[127]”. Considera-se autoridade “a pessoa física investida de poder de decisão dentro da esfera de competência que lhe é atribuída pela norma legal[128]”. Vale ressaltar que não é qualquer agente público que responde pelo ato ilegal, ou seja, “o simples executor não é coator em sentido legal; coator é sempre aquele que decide, embora muitas vezes também execute sua própria decisão[129]”. O direito lesado ou ameaçado de lesão, por ora, é o individual (também podendo ser coletivo, conforme se verá adiante). Por direito individual, para fins deste remédio constitucional, reputa-se aquele que “pertence a quem o invoca e não apenas à sua categoria, corporação ou associação de classe. É direito próprio do impetrante[130].” O direito individual protegido não comporta condição (suspensiva ou resolutiva), termo ou encargo, muito menos se confunde com a mera expectativa de direito. Deve ser líquido e certo. “Quando a lei alude a direito líquido e certo, está exigindo que esse direito se apresente com todos os requisitos para o seu reconhecimento e exercício no momento da impetração[131]”, vale dizer, “(...) é direito comprovado de plano[132]”. O Mandado de Segurança é cabível contra ato de autoridade. Porém, o art. 5º da LMS traz algumas exceções, quais sejam: ato que comporte recurso administrativo com efeito suspensivo, independentemente de caução; decisão judicial para a qual haja recurso processual eficaz; e decisão judicial transitada em julgado. Outra exceção está presente no art. 1º, § 2º da mesma lei (atos de gestão comercial praticados pelos administradores de empresas públicas, de sociedade de economia mista e de concessionárias de serviço público). Uma vez cabível e não estando obstado por qualquer das exceções legais à sua impetração, o referido mandamus é meio processual para proteger o direito lesado, ou ameaçado de lesão, daquele que necessita de medicamentos, da realização de tratamento terapêutico ou de intervenção cirúrgica essencial à manutenção da vida, seja em virtude de ser o Estado (leia-se: entidade ou órgão vinculado ou conveniado ao SUS) o único econômica e tecnicamente apto a prover tal necessidade, seja em decorrência da debilidade econômica do indivíduo impetrante. Na jurisprudência encontram-se interessantes argumentos no sentido da utilização deste writ na defesa dos direitos sanitários:

“MANDADO DE SEGURANÇA. DIREITO A SAÚDE. FORNECIMENTO DE MEDICAMENTO. OBRIGATORIEDADE. PODER PUBLICO. DIREITO LÍQUIDO E CERTO. 1 - É dever do poder publico, em qualquer de suas esferas, consoante dispõe o art. 196 da constituição federal, assegurar a todos os direitos a saúde, de modo universal e igualitário, incluindo-se aí o fornecimento de medicamentos a população, na forma prescrita por profissional de saúde. 2 - A omissão do poder público em prestar terapia medicamentosa adequada a pessoa enferma, utilizando-se de entraves burocráticos, constitui ofensa a direito líquido e certo do impetrante, amparável via mandamus. (TJ-GO; MS 16938-0/101; Goiânia; Rel. Des. Zacarias Neves Coelho; DJGO 17/11/2008; Pág. 193) [grifo do autor]

“MANDADO DE SEGURANÇA – LIMINAR CONCEDIDA – FORNECIMENTO PELO SUS DE MEDICAMENTO SOLICITADO – SÚMULA 18 DESTA CORTE – ARTS. 5º E 196 DA CONSTITUIÇÃO FEDERAL – AGRAVO REGIMENTAL – PRELIMINAR DE AUSÊNCIA DE INTERESSE DE AGIR REJEITADA – PRELIMINAR DE AUSÊNCIA DE CITAÇÃO DE LITISCONSORTE PASSIVO NECESSÁRIO REJEITADA – PRELIMINAR DE INCOMPETÊNCIA ABSOLUTA DO JUÍZO REJEITADA – DIREITO LÍQUIDO E CERTO – DEVER DO ESTADO DE FORNECER O MEDICAMENTO NECESSÁRIO À SAÚDE DO AGRAVADO – AGRAVO NEGADO – DECISÃO UNÂNIME. Liminar concedida, em sede de interlocutória, obrigando o Estado a fornecer gratuitamente o medicamento mabthera, 500 MG, necessário ao tratamento de artrite reumatóide, apresentada pelo agravado. Art. 23, II, da Constituição Federal. Preliminares argüidas já atacadas no mandamus e, mais uma vez, rejeitadas. Decisão interlocutória mantida. À unanimidade de votos, negou-se provimento ao recurso.” (TJPE – AgRg 161126-3/02 – Rel. Des. Antônio Fernando de Araújo Martins – DJPE 28.02.2008) [grifo do autor]

“DIREITO CONSTITUCIONAL E ADMINISTRATIVO – MANDADO DE SEGURANÇA – Fornecimento de medicamento pelo poder público - Impetrante portadora de artrite reumatóide de natureza gravíssima - Proteção constitucional do direito à vida e à saúde (art. 196 da carta magna) - Dever do estado - Remédio de custo elevado, inacessível aos necessitados - Súmula 018 do tribunal de justiça de Pernambuco - Direito líquido e certo violado - Segurança concedida à unanimidade de votos.” (TJPE – MS 130302-0 – Rel. Des. José Carlos Patriota Malta – DJPE 08.12.2007) [grifos do autor]

O procedimento do Mandado de Segurança Individual rege-se pelo conteúdo disposto nos artigos 6º a 25 da LMS. Como dito acima, trata-se de procedimento de rito especial, uma vez que não guarda muitas semelhanças em relação aos ritos presentes no CPC, a exemplo dos prazos diferenciados de citação e intimação (art. 7º, I), do reexame necessário no caso da concessão da segurança suplicada (art. 14, § 1º), além do não cabimento de embargos infringentes e da condenação ao sucumbente dos honorários advocatícios – ressalvada a hipótese de litigância de má-fé (art. 25). Ademais, é válido o alerta quanto ao prazo decadencial de 120 (cento e vinte) dias para exercer o direito de requerer o mandado de segurança (art. 23).

Outro remédio constitucional que pode ser usado na defesa dos direitos da saúde é o Mandado de Injunção Individual. Trata-se do instrumento de tutela constitucional das liberdades positivas “posto à disposição de quem se considerar prejudicado pela falta de norma regulamentadora que torne inviável o exercício dos direitos e liberdades constitucionais inerentes à nacionalidade, à soberania e à cidadania[133]”, previsto no art. 5º, inciso LXXI, da CRFB/1988. Este instrumento processual de promoção do acesso aos serviços de saúde direciona-se ao Poder Legislativo e ao Poder Executivo, na sua função secundária de criar normas abstratas. Na prática, o writ em comento pode ser usado como forma de cooptar o órgão legiferante competente a elaborar normas, mormente de ordem administrativa, que possibilitem o acesso do cidadão prejudicado ao serviço sanitário de que necessita.

Outro meio processual de grande valia para a tutela individual dos direitos da saúde é o “Habeas Data”. Este consiste no

meio constitucional posto à disposição de pessoa física ou jurídica para lhe assegurar o conhecimento de registros concernentes ao postulante e constantes de repartições públicas ou particulares acessíveis ao público, para retificação de seus dados pessoais[134].

O referido meio instrumental vem consagrado no art. 5º, inciso, LXXII, alíneas “a” e “b” da CRFB/1988, e é regulamentado pela Lei nº 9.507/97. Tecnicamente, trata-se de um procedimento processual civil que, malgrado regulamentado por lei especial, rege-se pelas normas do procedimento comum (sumário ou ordinário, a depender dos pressupostos processuais da demanda em concreto), o qual pode visar a garantir o acesso a informações relativas à pessoa do reclamante, ou à retificação de dados concernentes ao mesmo. Na prática jurídica sanitária, tem por finalidade assegurar o acesso aos registros presentes nos bancos de dados dos órgãos ou entes públicos responsáveis por serviços de saúde, bem como aos particulares que com eles se relacionem. Observa com prudência Hely Lopes Meirelles que

O habeas data não se confunde com a garantia constitucional de obter certidões, justificando-se pelo simples interesse, que não necessita de maiores motivações, do impetrante que deseja conhecer o teor dos dados e registros e eventualmente retificá-los. A doutrina dominante considera que só cabe a impetração se a autoridade se recusar a prestar as informações ou a fazer as correções em tempo razoável[135].

O indivíduo lesado em seu direito á saúde pode socorrer-se ao Ministério Público a fim de registrar uma reclamação, requerendo que sejam tomadas as providências cabíveis para a solução do problema que o afeta. A representação individual ao parquet decorre das funções institucionais dos diversos ramos dos Ministérios Públicos da União e dos Estados. A sua previsão legal genérica decorre do art. 6º[136] da Lei de Ação Civil Pública (Lei nº 7.347/85). Uma vez formulada a reclamação, o promotor de justiça ou procurador da república (caso o objeto pertença à seara de competências do Ministério Público Federal) realizará a notificação das autoridades responsáveis, bem como realizará diligências investigatórias com o fito de averiguar se de fato há lesão a direito constitucional ou a interesse coletivo ou individual homogêneo. Faz-se mister asseverar que, consoante preleciona o art. 15 da Lei Complementar nº 73/93 (Lei Orgânica do Ministério Público da União – LOMPU), “é vedado aos órgãos de defesa dos direitos constitucionais do cidadão promover em juízo a defesa de direitos individuais lesados”. Explicando melhor, a reclamação individual deverá servir de lastro probatório com vistas a subsidiar a proposição de uma ação civil pública, haja vista ser o direito à saúde um direito fundamental tutelado pela Constituição. Caso fique patente que se trata de interesse individual disponível, mesmo que esteja reflexamente relacionado com o direito à saúde, o titular do direito lesado deverá, caso não possa constituir advogado, ser encaminhado ao representante da Defensoria Pública competente para promover a ação judicial cabível (art. 15, § 2º, da LOMPU).

 Com o advento da Lei 8.078/90 (Código de Defesa do Consumidor – CDC), os serviços de saúde prestados pelo SUS e pelos entes privados a ele conveniados passaram a integrar a relação de consumo. Prova disso encontra-se no art. 6º, inciso X, do CDC, quando dispõe que é direito básico do consumidor “a adequada e eficaz prestação dos serviços públicos em geral”. Mais que isso, o art. 22, caput, do mesmo código consumerista prevê a obrigatoriedade dos órgãos públicos, bem como as suas empresas, concessionárias, permissionárias ou sob qualquer outra forma de empreendimento, de fornecer serviços adequados, eficientes, seguros e, no que tange aos essenciais, contínuos. Assim sendo, nas situações em que a má qualidade dos serviços sanitários provoca danos aos seus usuários é possível o manejo de ações judiciais com a observância das normas presentes nos arts. 81 a 104 do CDC. Vale ressaltar que nesses casos, a tutela será de direitos individuais homogêneos, assim definidos no art. 81, parágrafo único, inciso III do mesmo código. Ou seja, a proteção individual lastreia-se em um interesse coletivo lato sensu.

4.2.2. Meios de Proteção Coletiva

Na etapa anterior, foram expostos alguns instrumentos de proteção judicial dos direitos da saúde. Observou-se naqueles procedimentos alhures declinados que a defesa do direito lesado destinava-se ao indivíduo concretamente considerado, em que pese, como nas hipóteses de representação ao Ministério Público e da observância das normas especiais presentes no Código de Defesa do Consumidor, estivesse sob a tutela mediata o interesse coletivo. Neste momento, ter-se-ão por foco os procedimentos jurisdicionais de natureza coletiva. Antes de declinar especificamente cada procedimento, elucidações didáticas, ainda que breves e superficiais, se fazem necessárias.

O surgimento das ações coletivas tem ligação umbilical com o advento dos Direitos Fundamentais de 3ª Dimensão, quais sejam, os coletivos lato sensu. Estes constituem gênero jurídico que possui três espécies, quais sejam, os Direitos Coletivos “Stricto Sensu”, os Direitos Difusos e os Direitos Individuais Homogêneos. Ao conceituar cada uma das espécies, será feita uma correlação entre elas e o complexo dos direitos da saúde.

A definição de todos eles encontra-se tombada nos incisos do parágrafo único do art. 81 do CDC. Assim sendo, por Direitos Coletivos “Stricto Sensu” reputam-se os

Transindividuais (...), de natureza indivisível, de que seja titular grupo, categoria ou classe de pessoas (indeterminadas, mas determináveis, frise-se, enquanto grupo, categoria ou classe determinável) ligadas entre si, ou com a parte contrária, por uma relação jurídica base[137]

A definição de tal modalidade de direitos coletivos vem consagrada no art. 81, parágrafo único, inciso II, do CDC. Note-se que o interesse deve transpor à esfera jurídica do indivíduo singularmente considerado, sendo, como informa o próprio dispositivo legal que o conceitua, transindividual.  Em decorrência disso, a natureza jurídica de tais interesses não comporta a tutela jurisdicional individual, não se tratando de uma espécie de litisconsórcio multitudinário. Daí a sua indivisibilidade. Tais requisitos, como se verá logo em seguida, na análise dos direitos difusos, não são suficientes para identificar no caso concreto o caráter coletivo em sentido estrito do direito a ser tutelado. Desta feita, o que os identifica é a presença de uma relação jurídica base entre os litigantes. Vale ressaltar que “a relação-base necessita ser anterior à lesão (caráter de anterioridade)[138]”, formando-se entre os membros de uma classe, “quando unidos entre si (affectio societatis, elemento subjetivo que os une entre si em busca de objetivos comuns)[139]”, ou através do vínculo jurídico que os liga à parte contrária. No âmbito dos direitos da saúde, o caráter coletivo em sentido estrito pode se verificar quando, por exemplo, a irregularidade no fornecimento de remédios básicos, assim como a insuficiência de recursos humanos necessários ao atendimento da mínima demanda por consultas, tratamentos terapêuticos, enfim, quando tais problemas prejudicarem um grupo determinado de pessoas. Vale dizer, os membros de uma associação ou de uma determinada localidade.

A segunda modalidade a ser abordada diz respeito aos Direitos Difusos, definida no art. 81, parágrafo único, inciso I, do CDC. Para Fredie Didier Jr. e Hermes Zaneti Jr.,

Reputam-se direitos difusos (...) aqueles transindividuais (metaindividuais, supraindividuais, pertencentes a uma coletividade), de natureza indivisível (só podem ser considerados como um todo), e cujos titulares sejam pessoas indeterminadas (ou seja, indeterminabilidade dos sujeitos, não havendo individuação) ligadas por circunstâncias de fato, não existindo um vínculo comum de natureza jurídica (...)[140].

Percebe-se que na modalidade em estudo a lesão aos interesses não atinge a um indivíduo ou a um grupo deles de forma determinada, mas indistintamente a todos os que integram à relação fática estabelecida por ela. Assim sendo, a péssima qualidade das instalações de um hospital público que assiste pessoas oriundas de diversas localidades (abrangência regional), sendo o único no entorno geográfico a dispor de determinados equipamentos médico-hospitalares, por exemplo, afeta a todos os que fazem uso dos serviços por ele oferecidos, bem como aos que eventualmente possam deles necessitar. Outro exemplo é o de um reservatório de água situado em um terreno particular abandonado, o qual, se não esvaziado ou higienizado, pode servir de habitat para insetos transmissores de doenças (como a dengue, a febre amarela, o mal de chagas, etc.).

A terceira modalidade que se vislumbra é a dos direitos individuais homogêneos, prevista no art. 81, parágrafo único, inciso III, do CDC. Por eles entendem-se “aqueles decorrentes de origem comum, ou seja, os direitos nascidos em consequência da própria lesão ou ameaça de lesão, em que a relação jurídica entre as partes é post factum (fato lesivo)[141]”. Nota-se, porém, que é desnecessário que o fato “se dê em um só lugar ou momento histórico, mas que dele decorra a homogeneidade entre os direitos dos diversos titulares de pretensões individuais[142]”. Enfim, o que esses direitos têm de comum é a “gênese na conduta comissiva ou omissiva da parte contrária, questões de direito ou de fato que lhes conferem características de homogeneidade[143]”. Explicando melhor as ilações acima, toda vez que um fato causar lesão a vários indivíduos, pertencentes a um ou mais grupos de pessoas, nasce a pretensão para repará-la. Tal reparação pode ser pleiteada em sede individual, haja vista ser determinável. Todavia, a tese jurídica geral do pedido individual terá sempre fulcro em uma origem coletiva lato sensu. Conforme anotam Fredie Didier Jr. e Hermes Zaneti Jr,

O fato de ser possível determinar individualmente os lesados não altera a possibilidade e a pertinência da ação coletiva. Permanece o traço distintivo: o tratamento molecular, nas ações coletivas, em relação à Fragmentação da tutela (tratamento atomizado), nas ações individuais. É evidente a vantagem do tratamento uno, das pretensões em conjunto, para a obtenção de um provimento genérico[144].

Imagine-se, para fins de exemplo, que um determinado laboratório que produz medicamentos a serem fornecidos gratuitamente pela rede pública de saúde (SUS), ao fabricar determinado remédio, insira em sua fórmula determinada substância que, por estar presente em quantidade superior ao permitido ou por qualquer outra circunstância, venha a causar efeitos colaterais em diversos pacientes que fizeram uso de tal insumo medicamentoso. Neste exemplo, inobstante tenham os fatos ocorrido em diferentes circunstâncias de tempo e lugar, resta patente que a origem dos danos causados às diversas vítimas é comum.

A causa de pedir em todas as modalidades de procedimentos jurisdicionais e administrativos (“pré-judiciais”) inexoravelmente deve-se pautar na lesão ou ameaça de lesão a direito coletivo, seja em sentido amplo, seja em sentido restrito.

Nas linhas abaixo serão expostos brevemente os seguintes instrumentos de proteção coletiva da saúde: a) Inquérito Civil; b) Ação Civil Pública; c) Ação Popular; d) Mandado de Segurança Coletivo.

O primeiro deles não possui natureza jurisdicional, mas administrativa, de origem pré-processual. Está-se a tratar do Inquérito Civil - IC. Este pode ser conceituado como um “procedimento administrativo investigatório, de caráter inquisitivo, instaurado e presidido pelo Ministério Público, sem maiores formalidades[145]”. Por se tratar de mero procedimento, não é obrigatória a observância do contraditório, embora em alguns casos ela se faça necessária. Seu objeto resume-se na coleta de elementos probatórios ou cognitivos para a atuação processual e extraprocessual incumbida ao órgão do Parquet. Sua finalidade, além da colheita de dados necessários para a propositura de ação civil pública, pode também consistir em facilitar a ocorrência da conciliação extrajudicial em conflitos coletivos, a qual ocorre mediante o Termo de Ajustamento de Conduta (TAC), ou Compromisso de Ajustamento de Conduta, previsto no art. 5º, § 6º, da Lei nº 7.347/85, que também regulamenta a Ação Civil Pública. Uma vez firmado o compromisso, o mesmo deve ser submetido à deliberação e aprovação pelo Conselho Superior do Ministério Público, que pode decidir pela sua homologação, havendo, neste caso, a suspensão do inquérito até o cumprimento das cláusulas definidas no acordo. Além da celebração do Termo de Ajustamento de Conduta, pode também o inquérito civil resultar na propositura da ação civil pública, ou no seu arquivamento, caso fique comprovado não se tratar de objeto que requeira a intervenção ministerial. O rito procedimental do IC é disciplinado nos artigos 8º e 9º da Lei nº 7.347/85.

Na ocasião de o Inquérito Civil não ser extinto ou suspenso, terá o membro do Parquet lastro probatório suficiente para propor uma Ação Civil Pública – ACP. Sua disciplina advém da Lei nº 7.347/85 (Lei de Ação Civil Pública – LACP). Seu conceito pode ser extraído da doutrina de Hely Lopes Meirelles, que, elucidando a conceituação legal, afirma tratar-se do

Instrumento processual adequado para reprimir ou impedir danos ao meio ambiente, ao consumidor, a bens e direitos de valor artístico, estético, histórico, turístico e paisagístico e por infrações de ordem econômica (art. 1º), protegendo, assim, os interesses difusos da sociedade[146].

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O objeto da Ação Civil Pública não se limita aos direitos difusos. Conforme observam os atualizadores da obra de Hely Lopes,

A legislação posterior – especialmente o Código de Defesa do Consumidor – (...) [permitiu que] a ação civil pública viesse a abranger os interesses coletivos, difusos e individuais homogêneos, nos casos dos três primeiros incisos do art. 1º (proteção ao meio ambiente, ao consumidor e ao patrimônio artístico, estético, histórico, turístico e paisagístico), e tão somente os interesses difusos ou coletivos, nos demais casos. Em qualquer hipótese, o ajuizamento de ação civil pública não impede a propositura de ações individuais sobre o mesmo objeto, nem gera litispendência[147].

Interessa ressaltar que o rol trazido nos incisos do art. 1º da LACP é exemplificativo, havendo outras hipóteses previstas tanto de modo esparso na própria Lei nº 7.347/85, a exemplo do art. 12, § 1º[148], quanto em outras leis, a exemplo do CDC, do Estatuto da Criança e do Adolescente, Estatuto do Idoso, e assim por diante. Desta feita, a proteção dos direitos da saúde, quando lesados em nível coletivo, pode ser feita através da Ação Civil Pública. Interessante julgado confirma o que se está a afirmar:

“APELAÇÃO. DIREITO Á SAÚDE. AÇÃO CIVIL PÚBLICA. MEIO ADEQUADO PARA TUTELA DO DIREITO INDIVIDUAL INDISPONÍVEL DA CRIANÇA E DO ADOLESCENTE. MINISTÉRIO PÚBLICO. LEGITIMIDADE ATIVA. PRESTAÇÃO JURISDICIONAL E DISCRICIONARIEDADE ADMINISTRATIVA TIDA COMO DEVER DE PROMOVER O BEM COMUM. VIOLAÇÃO AO PRINCÍPIO DA INDEPENDÊNCIA ENTRE OS PODERES. INOCORRÊNCIA. DIREITO À SAÚDE ASSEGURADO COM ABSOLUTA PRIORIDADE À CRIANÇA E AO ADOLESCENTE. EFICÁCIA PLENA E APLICABILIDADE IMEDIATA. 1. Por atribuição constitucional (CF, art. 127, caput) e expressa previsão legal (ECA, art. 201, V e 208, VII), o Ministério Público é parte legítima para intentar ação civil pública em favor de direito individual heterogêneo de crianças e adolescentes, como, por exemplo, o direito à saúde e à educação. 2. A prestação de assistência à saúde é direito de todos e dever do Estado, assim entendido em sentido amplo, coobrigando União, Estados e Municípios, todos partes manifestamente legítimas a figurar no polo passivo de ação civil pública. 3. Conjugando-se a já sedimentada ideia de dever discricionário e função jurisdicional com a principiologia vertida na Constituição Federal, dando prioridade absoluta aos direitos da criança e do adolescente, estou em afirmar mesmo que não há discricionariedade quando se trata de direito fundamental da criança e do adolescente (vida, saúde, dignidade). Está o poder público necessariamente vinculado à promoção, com absoluta prioridade, da saúde da população infanto-juvenil. 4. O direito à saúde, super direito de matriz constitucional, há de ser assegurado, com absoluta prioridade às crianças e adolescentes e é dever do Estado (União, Estados e Municípios) como corolário do direito à vida e do princípio da dignidade da pessoa humana. Direito fundamental que é, tem eficácia plena e aplicabilidade imediata, como se infere do §1º do art. 5º da Constituição Federal. NEGARAM PROVIMENTO A AMBOS OS APELOS E, EM REEXAME NECESSÁRIO. CONFIRMARAM A SENTENÇA.” (Apelação Cível Nº 70012462099, Sétima Câmara Cível, Tribunal de Justiça do RS, Relator: Luiz Felipe Brasil Santos, Julgado em 05/10/2005).

O art. 5º da LACP traz em seus incisos o rol numerus clausus dos legitimados a propor a referida ação coletiva. Assim sendo, têm legitimidade ativa ad causam o Ministério Público, a Defensoria Pública, os entes federativos (União, Estados, Distrito Federal e Municípios), entes da Administração Pública Indireta (taxativamente enumerados: autarquias, empresas públicas, fundações ou sociedades de economia mista) e associações que estejam constituídas há pelo menos 01 (um) ano e que inclua entre as suas finalidades a proteção dos bens elencados no art. 1º da LACP. Impende ressaltar que a tutela coletiva pode visar a atender à necessidade de uma pessoa individualmente. Nesse sentido segue parte da jurisprudência do Praetorium Excelso:

“LEGITIMIDADE - MINISTÉRIO PÚBLICO - AÇÃO CIVIL PÚBLICA - FORNECIMENTO DE REMÉDIO PELO ESTADO. O Ministério Público é parte legítima para ingressar em juízo com ação civil pública visando a compelir o Estado a fornecer medicamento indispensável à saúde de pessoa individualizada.” (STF, REsp 407902/RS. Relator:  Min. MARCO AURÉLIO).

“AGRAVO REGIMENTAL NO RECURSO EXTRAORDINÁRIO. FOR-NECIMENTO DE MEDICAMENTOS. MINISTÉRIO PÚBLICO. LEGITIMIDADE ATIVA. DEFESA DE DIREITOS SOCIAIS E INDIVIDUAIS INDISPONÍVEIS. PRECEDENTES. 1. A Constituição do Brasil, em seu artigo 127, confere expressamente ao Ministério Público poderes para agir em defesa de interesses sociais e individuais indisponíveis, como no caso de garantir o fornecimento de medicamentos a hipossuficiente. 2. Não há que se falar em usurpação de competência da defensoria pública ou da advocacia privada. Agravo regimental a que se nega provimento.” (STF, RExt 554088 AgR / SC - SANTA CATARINA . AG.REG.NO RECURSO EXTRAORDINÁRIO. Relator:  Min. EROS GRAU).

O procedimento jurisdicional da ACP segue o rito comum ordinário, previsto nos artigos 282 a 475-R do Código de Processo Civil – CPC. Apesar disso, ele possui algumas peculiaridades, a exemplo da admissão de medida liminar suspensiva da atividade do réu, caso seja requerida na petição inicial, desde que estejam presentes o fumus boni júris e o periculum in mora. Outra peculiaridade que deve ressaltada diz respeito aos efeitos da sentença. O art. 16 da LACP dispõe que a sentença fará coisa julgada erga omnes, dentro dos limites da competência territorial do órgão que a prolatar, excetuando-se no caso de o pedido ser julgado improcedente por insuficiência de provas, hipótese na qual qualquer legitimado poderá intentar outra ação com idêntico fundamento, devendo-se valer de prova nova.

Outro instrumento de proteção coletiva da saúde é a Ação Popular. Esta consiste no Meio constitucional posto à disposição de qualquer cidadão para obter a invalidação de atos ou contratos administrativos – ou a estes equiparados – ilegais e lesivos do patrimônio federal, estadual e municipal, ou de suas autarquias, entidades paraestatais e pessoas jurídicas subvencionadas com dinheiros públicos[149].

Tal meio processual está previsto no art. 5º, inciso LXXIII, da atual Lex Fundamentallis, sendo regulamentado pela Lei nº 4.717/65 – Lei de Ação Popular (LAP).

Conforme infere Hely Lopes Meirelles, este procedimento jurisdicional

É um instrumento de defesa dos interesses da coletividade, utilizável por qualquer de seus membros. Por ela não se amparam direitos individuais próprios, mas sim interesses da comunidade. O beneficiário direto e imediato desta ação não é o autor; é o povo, titular do direito subjetivo ao governo honesto. O cidadão promove em nome da coletividade, no uso de uma prerrogativa cívica que a Constituição da República lhe outorga[150].

Concatenando-se o que dispõem o art. 1º, caput e § 3º, e os arts. 2º a 4º, todos da LAP, são requisitos essenciais para a propositura deste mecanismo processual: a) a cidadania brasileira, que se traduz na capacidade eleitoral ativa, provada através do título de eleitor; b) a ilegalidade ou ilegitimidade de ato ou contrato (arts. 2º e 3º); c) a lesividade do ato ou contrato (art. 4º).

Consoante prelecionam o caput e os parágrafos 1º a 3º do art. 6º da LAP, figuram no polo passivo da demanda popular as pessoas jurídicas de direito público, nelas incluídas os componentes da administração pública indireta, assim como as de direito privado vinculadas aos entes federativos. Além delas, figuram também os agentes públicos que houverem praticado o ato lesivo impugnado ou que, por conduta omissiva, tenham permitido que a lesão viesse a ocorrer, bem como os beneficiários dela. No polo ativo figura, como já dito acima, qualquer cidadão que possua capacidade eleitoral ativa. O § 5º do artigo em apreço possibilita a formação de litisconsórcio ativo facultativo, desde que formado por cidadãos.

No que tange ao rito procedimental da Ação Popular, afirma o caput do art. 7º da sua lei regulamentadora que este seguirá o rito ordinário, previsto no CPC, devendo ser observadas algumas particularidades previstas nos seus incisos. Seguindo a previsão constitucional, é vedada a cobrança de custas processuais, nelas incluído o preparo, não tendo sido, pois, recepcionado o art. 10 da LAP. Os efeitos da sentença assemelham-se aos da proferida em sede de ação civil pública (art. 18) — erga omnes — distinguindo-se daquela no que concerne à sujeição da mesma ao duplo grau de jurisdição (reexame necessário), conforme dispõe o art. 19. Por fim, é curial ressaltar que a pretensão do cidadão para anular ato ou contrato lesivo aos bens tutelados pela LAP prescreve em 05 (cinco) anos (art. 21).

O último dos meios processuais de defesa coletiva da saúde a ser declinado neste subitem é o Mandado de Segurança Coletivo. Aqui as considerações indeclinavelmente serão breves, em virtude de valerem as observações feitas acima quando se tratou do Mandado de Segurança Individual. Assim sendo, cabem alguns questionamentos. Quem possui legitimidade ativa para impetrar o referido mandamus coletivo? E o que se pleiteia com a sua impetração? O inteiro teor do art. 21 da Lei nº 12.016/2009 (LMS) traz as respostas necessárias. Primeiramente, são legitimados para impetrar o Mandado de Segurança Coletivo partido político com representação no Congresso Nacional, na defesa de seus interesses legítimos relativos a seus integrantes ou à finalidade partidária, ou por organização sindical, entidade de classe ou associação legalmente constituída e em funcionamento há, pelo menos, 01 (um) ano, em defesa de direitos líquidos e certos da totalidade, ou de parte, dos seus membros ou associados, na forma dos seus estatutos e desde que pertinentes às suas finalidades, dispensada, para tanto, autorização especial (art. 21, caput).  Os direitos que podem ser protegidos pela via heroica são taxativamente elencados nos incisos do parágrafo único do art. 21 da LMS, assim sendo: a) os coletivos, assim entendidos os transindividuais, de natureza indivisível, de que seja titular grupo ou categoria de pessoas ligadas entre si ou com a parte contrária por uma relação jurídica básica, ou seja, os coletivos “stricto sensu”; b) os individuais homogêneos, assim entendidos os decorrentes de origem comum e da atividade ou situação específica da totalidade ou de parte dos associados ou membros do impetrante. Os efeitos da sentença proferida ao final deste procedimento possui efeitos inter partes, ou seja, limitados aos membros do grupo ou categoria substituídos pelo impetrante (art. 22, caput).

4.3. Críticas à Judicialização Excessiva

No tópico acima, foram explicitadas as maneiras de se tutelar o direito à saúde, tanto em nível individual quanto coletivo. Como se sabe, a saúde é direito fundamental, alçada ao status de cláusula pétrea, tendo a sua principiologia básica origem na Constituição da República e nos diversos documentos internacionais. Viu-se, tanto item “2.3. Conceito de Direito Sanitário”, quanto no que tratou dos meios processuais de promoção ao acesso a este direito, que este se desdobra em três perspectivas epistemológicas: proteção (no sentido de tentar salvaguardar a integridade dos indivíduos contra quaisquer ameaças), alcançada, por exemplo, através do Mandado de Segurança; organização e procedimento (quando exige a elaboração de normas materiais e instrumentais que o tornem exequível), pleiteados através do Mandado de Injunção; e prestação em sentido estrito (na medida em que deve ser destinada a todos os que necessitem), reclamada através das ações individuais e coletivas cabíveis – e. g., representação individual ao Ministério Público, “Habeas Data”, Ação Civil Pública, bem como outras ações submetidas ao rito comum ordinário.

Neste diapasão, falou-se também que o direito à tutela jurisdicional é reputado como parte integrante do rol os Direitos Humanos Fundamentais, possuindo respaldo em nossa Constituição da República e em nossa legislação ordinária. Não há, pois, óbices ao acesso à jurisdição, mormente quando já se encontrarem esgotadas todas as vias extrajudiciais de solução do conflito em concreto, a exemplo recurso administrativo improvido ou não conhecido. Assim, sob o ponto de vista dogmático, o acesso à saúde pode ser feito através do Poder Judiciário nos casos em que o mesmo se torne difícil ou impossível de ser alcançado através dos serviços executados pelo Poder Executivo.

Não obstante isso ficou assentado, ainda nos primórdios desta monografia[151], que direito fundamental é dotado de limitabilidade. Assim sendo, não há direitos fundamentais absolutos, nem mesmo a vida, haja vista ser possível que este bem jurídico seja ceifado do seu titular sem que tal fato resulte em sanção para o ceifador. O exemplo disso são as descriminantes elencadas genericamente nos incisos do art. 23 do Código Penal[152], bem como as dirimentes de responsabilidade previstas no art. 188[153] do Código Civil. O art. 187 do Codex Civilis disciplina o fenômeno que a doutrina batizou de “abuso de direito”, dispondo que “também comete ato ilícito o titular de um direito que, ao exercê-lo, excede manifestamente os limites impostos pelo seu fim econômico ou social, pela boa-fé, ou pelos bons costumes”.

O exercício do direito à tutela jurisdicional, com a consequente satisfação das pretensões demandadas, realizado de maneira inconsequente, havendo sentenças e decisões judiciais concedendo pleitos teratológicos (a exemplo de tratamentos experimentais de valor exorbitante no exterior), indeclinavelmente gera o abuso de direito. Este abuso no acesso à tutela judicial vem sendo chamado pelos críticos de “judicialização excessiva”. Este fenômeno jurídico, de origem sociológica, torna-se palco para o surgimento de uma série de questões polêmicas quando se trata da dos excessos da “judicialização” dos direitos sociais, com mais pesar do Direito à Saúde. A matriz de todas as celeumas é de ordem financeira. Sabe-se que os direitos prestacionais (sociais ou fundamentais de segunda dimensão, como se prefira denominá-los) acarretam vultosos gastos aos cofres públicos e que o orçamento, malgrado possa ser quantificado em valores astronômicos, não é infinito. Assim sendo, nascem os argumentos no sentido de tolher os efeitos da “judicialização abusiva” destes direitos. As críticas a ela, porém, não se restringem à questão orçamentária. Ao contrário, permeiam a seara da Teoria Geral do Direito, quando se imiscui em questões como a ponderação dos princípios e a efetividade dos direitos sociais, bem como outras.

Nos itens que se seguem serão expostos os principais argumentos coletados na doutrina, com respaldo da jurisprudência, no sentido de se opor à judicialização em excesso dos direitos sociais, com ênfase no direito sanitário.

4.3.1. Reserva do Possível

A primeira – e certamente mais eloquente – crítica que se faz à judicialização dos direitos da saúde tem natureza financeira e nasce sob a alcunha “Reserva do Possível”, expressão largamente utilizada no Direito Brasileiro, originada no Tribunal Constitucional da Alemanha. O cerne desta crítica gira em torno da constatação de que os recursos públicos destinados a satisfazer as necessidades sociais serão sempre insuficientes, em virtude de serem as demandas inesgotáveis. Assim sendo, cabe aos gestores da coisa pública a escolha da melhor maneira de alocar as verbas existentes, de forma a estabelecer prioridades. E como a demanda supera em muito a oferta de recursos orçamentários, o legislador e o administrador, com a prudência necessária, deverão realizar “escolhas trágicas”. Como bem obtempera Luis Roberto Barroso, em importante estudo científico sobre o tema,

Os recursos públicos seriam insuficientes para atender às necessidades sociais, impondo ao Estado a tomada de escolhas difíceis. Investir recursos em determinado setor sempre implica deixar de investi-los em outros. De fato, o orçamento apresenta-se, em regra, aquém da demanda social pela efetivação de direitos, sejam individuais, sejam sociais[154]”.

Pela teoria da Reserva do Possível, para uma norma que gera um direito prestacional se tornar efetiva faz-se necessária a implementação de condições de ordem fática e jurídica que garantam a sua efetividade. Tais condições, sem dúvida, decorrem de fatores de natureza financeira, tendo em vista que a concretização de direitos sociais implica elevados dispêndios ao erário. E, como já afirmado, o orçamento público não é inesgotável, o que leva o administrador a destinar as verbas oriundas das diversas receitas financeiras de maneira a atender prioritariamente àqueles que mais necessitam de prestações estatais. Todavia, haverá casos em que a satisfação de uma necessidade individual pode comprometer a necessidade potencial dos outros membros da coletividade. É o que ocorre nos direitos da saúde, mormente no fornecimento de remédios e da realização de tratamentos em pacientes com doenças raras.

Assim sendo, quando um magistrado prolata sentenças deferindo pedidos como o da realização de tratamentos caros ou de fornecimento periódico de remédios de alto custo, algumas vezes não presentes na lista oficial de medicamentos (RENAME) por ainda estar em fase experimental, ele além de imiscuir-se em uma função que pertence ao administrador público (Poder Executivo)[155], acaba também por gerar um caos na gestão orçamentária, posto que para o cumprimento do ato por ele exarado parte da verba destinada para os serviços sanitários fica comprometida. Dessa forma, como o número de demandas com pleitos dessa natureza é grande, deve o órgão judicial ponderar no sentido de guiar-se pela diretriz do acesso universal e igualitário. Em outras palavras, a reserva do possível deve servir de instrumento apto a reduzir, ao menos pontualmente, as desigualdades sociais, e não a privilegiar o interesse de uma minoria necessitada em detrimento da maioria hodiernamente prejudicada. Interessante julgado extraído da jurisprudência fluminense aborda esta questão, veja-se:

“Medida cautelar inominada destinada ao fornecimento de remédio de alto custo indispensável para a sobrevivência de pessoa com deficiência renal. Dada a carência de recurso não pode o Estado privilegiar um doente em detrimento de centenas de outros também carentes, que se conformam com as deficiências do aparelho estatal. Não pode o Poder Judiciário, a pretexto de amparar a autora, imiscuir-se na política da administração pública destinada ao atendimento da população. Manutenção da sentença.” (TJRJ, Apelação Cível 1994.001.01749. Relator Des. Carpena Amorim) [grifos do autor]

É indubitável que o argumento baseado na Reserva do Possível tem respaldo em parte da doutrina e da jurisprudência. Todavia, tal argumento, assim como a própria efetividade do direito à saúde, não pode ser utilizado como subterfúgio para o absenteísmo estatal justificado pela carência de recursos monetários. Definitivamente, não é isso que se vislumbra quando se fala em “judicialização razoável”, posto que em determinados casos o interesse individual, uma vez ignorado pelo Poder Público competente, pode ameaçar a paz coletiva. É então que se torna vital a intervenção do Poder Judiciário, que usando da prudência que lhe é inerente e da coercibilidade da qual são dotados os seus atos, promove a prestação estatal necessária para evitar a avaria de um bem jurídico de interesse supraindividual – a vida.

À cláusula da Reserva do Possível opõe-se o princípio do Mínimo Existencial. Este diz respeito à obrigação do Estado em garantir ao cidadão as condições mínimas para a manutenção de uma vida saudável. Em nosso ordenamento jurídico, tal princípio decorre da dignidade da pessoa humana, prevista no art. 1º, III, da Constituição da República. Em face disso, usar o princípio da reserva do possível como verdadeira escusa à obrigação positiva do Estado de garantir os meios necessários à manutenção de uma vida digna é ir de encontro a toda ordem constitucional vigente. Tal princípio recebe o acolhimento de parte da jurisprudência do STF, conforme se vislumbra do julgado colacionado abaixo:

PACIENTES COM ESQUIZOFRENIA PARANÓIDE E DOENÇA MANÍACO-DEPRESSIVA CRÔNICA, COM EPISÓDIOS DE TENTATIVA DE SUICÍDIO - PESSOAS DESTITUÍDAS DE RECURSOS FINANCEIROS - DIREITO À VIDA E À SAÚDE - NECESSIDADE IMPERIOSA DE SE PRESERVAR, POR RAZÕES DE CARÁTER ÉTICO-JURÍDICO, A INTEGRIDADE DESSE DIREITO ESSENCIAL - FORNECIMENTO GRATUITO DE MEDICAMENTOS INDISPENSÁVEIS EM FAVOR DE PESSOAS CARENTES - DEVER CONSTITUCIONAL DO ESTADO (CF, ARTS. 5º, "CAPUT", E 196) - PRECEDENTES (STF) - ABUSO DO DIREITO DE RECORRER - IMPOSIÇÃO DE MULTA - RECURSO DE AGRAVO IMPROVIDO. O DIREITO À SAÚDE REPRESENTA CONSEQÜÊNCIA CONSTITUCIONAL INDISSOCIÁVEL DO DIREITO À VIDA. - O direito público subjetivo à saúde representa prerrogativa jurídica indisponível assegurada à generalidade das pessoas pela própria Constituição da República (art. 196). Traduz bem jurídico constitucionalmente tutelado, por cuja integridade deve velar, de maneira responsável, o Poder Público, a quem incumbe formular - e implementar - políticas sociais e econômicas idôneas que visem a garantir, aos cidadãos, o acesso universal e igualitário à assistência farmacêutica e médico-hospitalar. - O direito à saúde - além de qualificar-se como direito fundamental que assiste a todas as pessoas - representa consequência constitucional indissociável do direito à vida. O Poder Público, qualquer que seja a esfera institucional de sua atuação no plano da organização federativa brasileira, não pode mostrar-se indiferente ao problema da saúde da população, sob pena de incidir, ainda que por censurável omissão, em grave comportamento inconstitucional. A INTERPRETAÇÃO DA NORMA PROGRAMÁTICA NÃO PODE TRANSFORMÁ-LA EM PROMESSA CONSTITUCIONAL INCONSEQÜENTE. - O caráter programático da regra inscrita no art. 196 da Carta Política - que tem por destinatários todos os entes políticos que compõem, no plano institucional, a organização federativa do Estado brasileiro - não pode converter-se em promessa constitucional inconsequente, sob pena de o Poder Público, fraudando justas expectativas nele depositadas pela coletividade, substituir, de maneira ilegítima, o cumprimento de seu impostergável dever, por um gesto irresponsável de infidelidade governamental ao que determina a própria Lei Fundamental do Estado. DISTRIBUIÇÃO GRATUITA, A PESSOAS CARENTES, DE MEDICAMENTOS ESSENCIAIS À PRESERVAÇÃO DE SUA VIDA E/OU DE SUA SAÚDE: UM DEVER CONSTITUCIONAL QUE O ESTADO NÃO PODE DEIXAR DE CUMPRIR. - O reconhecimento judicial da validade jurídica de programas de distribuição gratuita de medicamentos a pessoas carentes dá efetividade a preceitos fundamentais da Constituição da República (arts. 5º, "caput", e 196) e representa, na concreção do seu alcance, um gesto reverente e solidário de apreço à vida e à saúde das pessoas, especialmente daquelas que nada têm e nada possuem, a não ser a consciência de sua própria humanidade e de sua essencial dignidade. Precedentes do STF. (...)”. (STF,  RExt 393175 AgR / RS. Relator: Min. CELSO DE MELLO)

Antes de passar para a próxima crítica à judicialização sanitária, uma observação se faz necessária. Trata-se da relação entre a reserva do possível, a real alocação dos recursos destinados à manutenção dos serviços prestados pelo SUS e o princípio da universalidade equitativa de acesso à saúde. Como se sabe, o sistema público sanitário brasileiro, ao oferecer uma atenção com vistas à integralidade, acaba por abranger desde serviços de nível assistencial primário (como consultas e intervenções cirúrgicas corriqueiras) a procedimentos de alto nível de complexidade, a exemplo do tratamento de câncer, da AIDS, de males crônicos como o diabetes e doenças degenerativas, como o Alzheimer. Em alguns casos, a exemplo da AIDS, a assistência farmacêutica é prestada quase exclusivamente pelo SUS. Ocorre que tais tratamentos complexos (e dispendiosos) competem com outros níveis de atenção à saúde, a que faz uso a parcela da população mais carente. Nota-se que o nível de atenção à saúde atinente aos procedimentos de alto custo possui uma demanda muito menor que a do nível primário, mas os recursos destinados a este são quantitativamente menores, o que revela a real desigualdade no acesso universal à saúde. Osmir Antônio Globekner, em artigo sobre a equidade no acesso à saúde, ao tratar da “universalização excludente”, observada na prática cotidiana, constata o seguinte:

Entendemos que a “universalização excludente” que resulta de uma tutela formalmente universal, por dizer respeito a todos, mas que, na prática, implica o favorecimento de camadas da população já detentoras de um acesso privilegiado no acesso aos serviços de saúde. Este fenômeno resulta, em parte, na linha que vimos expondo neste trabalho, ao lado de outros fatores, de um provimento jurisdicional acrítico às demandas individualizadas.

Essa “universalização excludente” está na contramão da função primeira dos direitos sociais, concebidos como forma de promover a inclusão social, compensando as desigualdades existentes na sociedade ou, nas palavras de CAMPILONGO, citadas no início desta discussão, compensando os “déficits e desvantagens que o próprio ordenamento provoca.”[156]

4.3.2. Legitimidade Democrática na Alocação Orçamentária

A próxima crítica que se estabelece à judicialização do acesso à saúde diz respeito ao confronto entre os princípios da separação dos poderes – com a consequente legitimidade democrática na alocação dos recursos orçamentários – e da Reserva do Possível, e os da máxima efetividade das normas constitucionais e do Mínimo Existencial.

Sabe-se que o Estado brasileiro adotou o modelo de organização do poder estatal proposto por Montesquieu, em seu “O espírito das leis”, dividindo-o em três funções estatais: administrativa (a cargo do “Poder” Executivo), legiferante (“Poder” Legislativo) e jurisdicional (“Poder” Judiciário). Importa, a priori, ressaltar a impropriedade da expressão “tripartição de poderes[157]”. O que existe é a divisão de um poder estatal uno e indivisível em funções típicas – descritas acima – e atípicas – quando exercidas na qualidade de atribuição-meio. Porém, para fins didáticos, utilizar-se-á a expressão “poder” para fazer referência ás funções estatais. O princípio da Separação dos Poderes está tombado no art. 2º[158] da Constituição Federal de 1988 e goza do status de cláusula pétrea, consoante se depreende da leitura do art. 60, § 4º, inciso III, da mesma Carta Maior. Assim sendo, ao Poder Legislativo é dada a tarefa de deliberar acerca da maneira como as receitas públicas serão utilizadas e ao Poder Executivo a execução (direta ou indireta) dos serviços estatais. Ou seja, nas respectivas leis orçamentárias (Plano Plurianual, Lei de Diretrizes Orçamentárias e Lei Orçamentária Anual), deliberadas pelos parlamentares, e sancionadas e executadas pelo Poder Executivo, estão contidos os valores e o seu destino na execução dos serviços públicos, dentre eles os prestados pelo SUS e seus conveniados. Tais atribuições constitucionais típicas decorrem da escolha democrática. Portanto, para os defensores da contenção da tutela jurisdicional sanitária, quando o Poder Judiciário impõe ao Executivo (ou a algum ente da administração indireta a ele vinculado) uma obrigação de dar (consistente no fornecimento de remédio para determinado paciente, por exemplo) ele passa a exercer uma atribuição para a qual ele não é democraticamente competente, rompendo, em tese, com a cláusula pétrea da separação dos poderes. Assim, seguindo a esteira deste posicionamento, não deveria o Judiciário imiscuir-se nesta seara, deixando a tarefa de concretamente aplicar o princípio da Reserva do Possível aos poderes competentes.

Não obstante esteja o princípio da separação dos poderes inserido no rol das cláusulas pétreas, ele não é absoluto. Ao contrário, é facilmente mitigado quando posto na balança da ponderação juntamente com outros princípios constitucionais, a exemplo da vida, de onde se origina o direito à saúde. A conclusão pela relatividade deste princípio decorre da regra hermenêutica da Máxima Efetividade das Normas Constitucionais[159], segundo a qual estas devem ter a mais ampla efetividade social. Utiliza-se também o princípio hermenêutico da Concordância Prática[160], que veda a possibilidade de um princípio anular os efeitos de outro quando em rota de colisão, devendo-se aproveitar o máximo da efetividade de cada um deles.

Neste toar, o embate principiológico “separação dos poderes vs. tutela jurisdicional da saúde” traz em seu bojo o conflito entre os princípios da Reserva do Possível, mascarada sob o argumento da separação dos poderes e da legitimidade democrática na alocação das receitas sanitárias, e do Mínimo Existencial, que justifica o amparo judicial do direito à saúde lesado.

Com muita propriedade, Flávia Moreira Guimarães Pessoa e Clara Cardoso Machado, em artigo que aborda o controle judicial das políticas públicas, afirmam que

(...) a Constituição Democrática não consagrou o princípio da separação dos poderes de maneira absoluta, admitindo, pois, o controle recíproco entre os mesmos (check and balances) a fim de se consubstanciar o Estado Democrático de Direito. (...) Com efeito, prioristicamente, cabe ao Poder Legislativo e ao Executivo a deliberação acerca da destinação e aplicação dos recursos orçamentários. Todavia, essa competência não é absoluta, pois encontra seu limite nas normas constitucionais. Assim, a atuação do administrador deve estar umbilicalmente ligada aos direitos fundamentais sociais que exigem prioridade na distribuição desses recursos. Por conseguinte, necessário asseverar que será inconstitucional, por exemplo, a medida de política econômica que retraia a efetividade dos direitos fundamentais[161].

Francisco Viegas Neves da Silva, em trabalho monográfico agraciado com menção honrosa no Prêmio Ajuris, em 2005, ao abordar o cotejo dos princípios do Mínimo Essencial, da Reserva do Possível e da Legitimidade Democrática, conclui no sentido da prevalência do primeiro, assim inferindo:

Na esfera de um padrão mínimo em prestações sociais, também será mínima a restrição na esfera dos princípios conflitantes com a realização dos direitos sociais, afirmando ainda Alexy, que o reconhecimento de um direito subjetivo a prestações sociais básicas, indispensáveis para uma vida com dignidade, sempre deverá prevalecer, no caso concreto, quando em conflito com o princípio da reserva do possível e o princípio democrático, igualmente fundamental, mas não absoluto[162].

A jurisprudência majoritária do STF confirma a prevalência do princípio do mínimo existencial quando em confronto com o da separação dos poderes (e a derivada legitimidade democrática na alocação orçamentária). Vejam-se os seguintes julgados:

“Suspensão de Liminar. Agravo Regimental. Saúde pública. Direitos fundamentais sociais. Art. 196 da Constituição. Audiência Pública. Sistema Único de Saúde - SUS. Políticas públicas. Judicialização do direito à saúde. Separação de poderes. Parâmetros para solução judicial dos casos concretos que envolvem direito à saúde. Responsabilidade solidária dos entes da Federação em matéria de saúde. Ordem de regularização dos serviços prestados em hospital público. Não comprovação de grave lesão à ordem, à economia, à saúde e à segurança pública. Possibilidade de ocorrência de dano inverso. Agravo regimental a que se nega provimento.” (STF, 47 AgR / PE. Relator: Min. Gilmar Mendes).

“Suspensão de Segurança. Agravo Regimental. Saúde pública. Direitos fundamentais sociais. Art. 196 da Constituição. Audiência Pública. Sistema Único de Saúde - SUS. Políticas públicas. Judicialização do direito à saúde. Separação de poderes. Parâmetros para solução judicial dos casos concretos que envolvem direito à saúde. Responsabilidade solidária dos entes da Federação em matéria de saúde. Fornecimento de medicamento: Zavesca (miglustat). Fármaco registrado na ANVISA. Não comprovação de grave lesão à ordem, à economia, à saúde e à segurança públicas. Possibilidade de ocorrência de dano inverso. Agravo regimental a que se nega provimento.” (STF, STA 175 AgR / CE. Relator: Min. Gilmar Mendes).

4.3.3. Direitos Sociais Como Normas Programáticas

Um terceiro argumento que pode ser utilizado para combater a judicialização sanitária lastreia-se no enquadramento do Direito à Saúde na categoria das normas programáticas. Antes de prosseguir na assertiva deste tópico, faz-se mister esclarecer o que se entende por elas.

Para que seja feita a conceituação deste grupo de normas torna-se necessário aludir à classificação das normas constitucionais. A doutrina publicista estabelece diversas classificações. Dentre elas, a que oferece a maior possibilidade de compreensão do que se pretende elucidar nesta etapa é a feita por José Afonso da Silva[163], haja vista ser a mais didática.

O professor da USP enquadra as normas constitucionais em três categorias. A primeira é a das normas constitucionais de eficácia plena (e aplicabilidade direta, imediata e integral), as quais estão aptas a produzir todos os seus efeitos a partir do momento em que são promulgadas, prescindindo de complementação normativa infraconstitucional. A segunda consiste nas normas constitucionais de eficácia contida (ou prospectiva). Estas normas surgem aptas a surtir todos os seus efeitos, porém, eles podem ser mitigados ou parcialmente tolhidos por norma infraconstitucional. Observação pertinente é feita por Pedro Lenza, ao comentar tal categoria de normas, quando afirma que

Além da restrição da eficácia das referidas normas de eficácia contida tanto por lei como por outras normas constitucionais, (...), a restrição poderá implementar-se, em outras situações, por motivo de ordem pública, bons costumes e paz social, conceitos vagos cuja redução se efetiva pela Administração Pública[164].

A terceira das espécies aqui colacionadas é a das normas constitucionais de eficácia limitada, também chamadas de aplicabilidade mediata, reduzida ou diferida. Em geral, elas nascem desprovidas dos meios necessários à sua plena aplicação, necessitando da regulamentação infraconstitucional para que possam surtir seus integrais efeitos.

José Afonso da Silva divide esta categoria em dois grupos: o das normas de princípio institutivo (ou organizativo) e o das normas de princípio programático (ou normas programáticas). O primeiro grupo refere-se àquelas “através das quais o legislador constituinte traça esquemas gerais de estruturação e atribuições de órgãos, entidades ou institutos, para que o legislador ordinário os estruture em definitivo, mediante lei[165]”. Já as normas programáticas são aquelas

através das quais o constituinte, em vez de regular, direta e imediatamente, determinados interesses, limitou-se a traçar-lhes os princípios para serem cumpridos pelos seus órgãos (legislativos, executivos, jurisdicionais e administrativos), como programas das respectivas atividades, visando à realização dos fins sociais do Estado[166].

Dentre as normas pertencentes a esta classe (direitos sociais em geral) está, segundo o doutrinador acima citado, o Direito à Saúde, previsto genericamente no art. 196 da CRFB/1988. Desta feita, para os que adotam este posicionamento, o Direito à Saúde, assim como os demais direitos prestacionais, constituem normas constitucionais desprovidas de aplicabilidade imediata, ou seja, constituem normas instituidoras de princípios a serem seguidos pelos órgãos estatais e que, em virtude disso, têm a sua exequibilidade condicionada à regulamentação ordinária e, quiçá, infralegal, quando para se tornarem plenamente exequíveis exigem a elaboração de normas de caráter concreto (decreto, resolução, etc.) a cargo dos entes federativos competentes.

Data maxima venia, este posicionamento não merece prosperar, haja vista serem os direitos sociais alçados ao nível de direitos fundamentais do cidadão, tendo os limites de sua aplicabilidade definidos na própria Lei Maior, em seu art. 5º, § 1º. E de fato, cada vez mais a jurisprudência e a doutrina caminham rumo à anulação desta justificativa, sedimentando a orientação no sentido de afirmar os direitos sociais, mormente o direito à saúde, como normas constitucionais de eficácia plena. Observa André Feijó Barroso que

A doutrina também não acolhe a tese de que o direito à saúde é uma norma programática sem efetividade imediata, como vemos em Guido Ivan de Carvalho e Lenir Santos (2002): “O direito à saúde não pode se consubstanciar em vagas promessas e boas intenções constitucionais, garantido por ações governamentais implantadas e implementadas oportunamente, mas não obrigatoriamente. O direito à saúde (art. 6º e 196) é dever estatal que gera direito subjetivo público, devendo o Estado colocar à sua disposição serviços que tenham por fim promover, proteger e recuperar a sua saúde[167]”.

Novamente são válidas as considerações feitas pelas professoras Flávia Guimarães e Clara Cardoso, quando rechaçam a visão dos direitos sociais como normas programáticas, quando aduzem que

De fato, em respeito ao princípio da máxima efetividade da Constituição, parece mais consentâneo inclinar-se para a possibilidade de aplicação direta e imediata de todas as normas definidoras de direitos e garantias fundamentais, independentemente de seu grau de eficácia ou de seu objeto (direito de defesa ou de prestação), como bem afirmou Konrad Hesse: “embora a Constituição não possa, por si só, realizar nada, ela pode impor tarefas[168]”.

Nos últimos tempos, a jurisprudência – sobremaneira no Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul e no STJ – tem se posicionado neste sentido, conforme se depreende da leitura dos julgados colacionados infra:

DIREITO CONSTITUCIONAL. DIREITO À SAÚDE. Legitimidade passiva ad causam. A obrigação de fornecimento de remédios, com base no artigo 196 da CF, é de qualquer dos entes federativos, cabendo ao titular do direito subjetivo constitucional a escolha do demandado. Norma autoaplicável. O artigo 196 da CF, por conter todos os elementos necessários à sua aplicação, é norma de eficácia plena. Apelações improvidas. (TJRS, AC nº 597246552, Primeira Câmara Cível. Relator: Des. Tupinambá Miguel Castro do Nascimento).

APELAÇÃO CÍVEL. ECA. MEDICAMENTO. TUTELA ENTECIPADA. PERDA DO OBJETO. RISCO DE VIDA. Direito à saúde. As normas constitucionais sobre o direito à saúde têm eficácia plena e aplicabilidade imediata, e não caráter meramente programático. Procedimento Licitatório A determinação para o cumprimento do dever constitucional dos entes federativos, de garantir o acesso à saúde à população, não implica, de forma alguma, afastar o procedimento licitatório. A realização ou não de licitação para aquisição de medicamento urgente está na órbita do Executivo, ligada a sua organização e planejamento interno. Prova da necessidade do tratamento e da internação. A prova da necessidade da internação e do tratamento médico foi realizada através de atestados médicos. Perda do objeto. Não há perda do objeto só porque se alega ter satisfeito o pedido do fornecimento de tratamento médico em sede de decisão liminar. Importa que para ser efetivado o direito da parte autora fez-se necessário analisar o mérito da ação, o que ensejou a confirmação em sentença do pedido liminar de antecipação de tutela. Urgência e necessidade. A legislação constitucional e infraconstitucional aplicável à espécie não prevê como requisito para a concessão do direito em tela a urgência ou o risco de vida, mas sim, a necessidade de recebimento do medicamento. E a necessidade de receber o medicamento Leponex 25 mg está comprovada nos autos. Separação dos poderes e devido processo legal. Em razão da proteção integral constitucionalmente assegurada à criança e ao adolescente, a condenação dos entes estatais ao atendimento do direito fundamental à saúde não representa ofensa aos princípios da separação dos poderes, do devido processo legal, da legalidade ou da reserva do possível, e não caracteriza ofensa a eventuais restrições orçamentárias. CONHECERAM EM PARTE DO RECURSO E, NA PARTE CONHECIDA, NEGARAM PROVIMENTO. (Apelação Cível Nº 70029328283, Oitava Câmara Cível, Tribunal de Justiça do RS, Relator: Rui Portanova, Julgado em 02/07/2009).

APELAÇÃO CÍVEL. DIREITO PÚBLICO NÃO ESPECIFICADO. FORNECIMENTO DE MEDICAMENTO. HERCEPTIN 440 MG. O Município é responsável, solidariamente ao Estado e à União, ao fornecimento de medicamentos, porquanto incumbe ao Poder Público, em todas as esferas de poder político, a proteção, defesa e cuidado com a saúde. Por outro lado, não há afastar a responsabilidade do Município, ora agravante, em fornecer à agravada o medicamento apontado na inicial, sob o argumento de ausência de previsão na lista de medicamentos fornecidos pelo Município. Deve ser mantida absoluta prioridade no tocante à proteção da vida. Para tanto, a Constituição Federal preconiza (art. 196) o dever do Estado e demais entes federativos em providenciar a saúde, através de políticas públicas. Essa norma possui eficácia plena e aplicabilidade imediata, como expressamente prevê o § 1º do art. 5º da Constituição Federal. A alegada ausência de requerimento administrativo perante o Estado do Rio Grande do Sul não afasta o direito da parte autora de receber a medicação, uma vez que a obrigação estatal de garantir o direito à saúde não se limita a determinado procedimento administrativo, considerando a necessidade atestada pelos relatórios médicos mencionados na decisão agravada. NEGARAM PROVIMENTO AO AGRAVO DE INSTRUMENTO. UNÂNIME. (Agravo de Instrumento Nº 70025020371, Quarta Câmara Cível, Tribunal de Justiça do RS, Relator: Agathe Elsa Schmidt da Silva, Julgado em 17/09/2008).

ECA. FORNECIMENTO DE MEDICAMENTOS. RESPONSABILIDADE SOLIDÁRIA DOS ENTES FEDERADOS. Caracterizada a pretensão resistida pela necessidade de intervenção judiciária para a obtenção da tutela pretendida. Demonstração da necessidade financeira dos pais. A responsabilidade dos entes públicos, na efetivação do direito à saúde, é solidária, conforme prevê o art. 196 da CRFB. Precedentes desta Corte e do STF. Normas constitucionais de eficácia plena. Direito à vida que sobrepõem a limitações licitatórias ou orçamentárias. REJEITADAS AS PRELIMINARES. NEGADO PROVIMENTO AO AGRAVO. (Agravo de Instrumento Nº 70018018531, Sétima Câmara Cível, Tribunal de Justiça do RS, Relator: Maria Berenice Dias, Julgado em 05/02/2007)

PROCESSUAL CIVIL. ADMINISTRATIVO. AÇÃO CIVIL PÚBLICA PROPOSTA PELO MINISTÉRIO PÚBLICO FEDERAL. IMPLEMENTAÇÃO DE POLÍTICAS PÚBLICAS CONCRETAS. DIREITO À SAÚDE (ARTS. 6º E 196 DA CF/88). EFICÁCIA IMEDIATA. MÍNIMO EXISTENCIAL. RESERVA DO POSSÍVEL. ACÓRDÃO RECORRIDO QUE DECIDIU A CONTROVÉRSIA À LUZ DE INTERPRETAÇÃO CONSTITUCIONAL. COMPETÊNCIA DO COLENDO SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL. VIOLAÇÃO DO ART. 535, I e II, DO CPC. NÃO CONFIGURADA. (STJ, REsp 811608 / RS. Relator: Min. Luiz Fux)

4.4. Macrojustiça &. Microjustiça

A tutela jurisdicional da saúde além de ser a força motriz de discussões de natureza dogmática e filosófica, é também palco para uma celeuma que não encontra consenso tanto na doutrina quanto na jurisprudência. Trata-se do confronto entre a Macrojustiça e a Microjustiça, que tem raiz no embate entre o interesse individual e o coletivo. Antes de expor os comentários pertinentes a este embate jurídico-filosófico de reflexos práticos, alguns esclarecimentos se fazem necessários.

Prima facie, a discussão em evidência torna-se motivo de polêmica quando são postos em conflito direitos de natureza prestacional. Isto se explica pelo fato de estes imporem ao Estado obrigações positivas que inevitavelmente acarretam gastos. E, como já se afirmou à exaustão neste trabalho, a necessidade dos administrados é infinita e a verba necessária para satisfazê-la é deveras limitada. Não geram tantas divergências as hipóteses em que um indivíduo terá de sacrificar um direito fundamental de 1ª dimensão a fim de preservar o interesse da coletividade (que, indiretamente, refletirá no dele). Assim sendo, o direito de ir e vir (art. 5º, XV, CRFB/1988) de um cidadão poderá lhe ser temporariamente retirado quando este vier a atentar contra a ordem pública cometendo um delito que enseje o seu recolhimento ao cárcere. Igualmente, o direito de propriedade (art. 5º, XXII), cuja limitação de seu exercício encontra-se na sua função social (art. 5º, XXIII). A inviolabilidade domiciliar encontra mitigações em casos como o de desastre (art. 5º, XI). Até mesmo a vida pode ceder ao interesse nacional (soberania), quando é permitida a da aplicação da pena de morte em caso de guerra declarada (art. 5º, XLVI, “a”, da CRFB/1988; arts. 55 a 57, do Decreto-Lei 1.001/1969 – Código Penal Militar). Nesses casos, a prevalência do interesse público sobre o individual ou, como também ocorre, a prevalência deste sobre aquele não trará restrições de ordem financeira ao Estado, tendo os argumentos origem filosófica, religiosa, política, sociológica, e assim por diante. O mesmo raciocínio aparentemente simples não pode ser aplicado quando se trata de direitos prestacionais, haja vista haver situações em que o privilégio de qualquer deles atentará contra a ordem pública e a paz social. Explicações mais precisas serão feitas logo a frente.

Tangenciando qualquer inferência quanto às mazelas existentes em nossa administração pública (corrupção, desvio de finalidade, lesão ao erário, favorecimento pessoal, etc.), é certo que o povo, através do direito de sufrágio exercido pelo voto, escolhe aqueles incumbidos de criar leis que definirão a maneira de aplicar as receitas públicas (Deputados e Senadores) e aqueles incumbidos de gerenciá-las (Prefeitos, Governadores e Presidente da República). Os administradores estatais (rectius, membros do Poder Executivo da cada um dos entes da federação), nomeiam os gestores (ministro da saúde e secretários de governo) que diretamente alocarão os recursos destinados a prover os serviços sanitários. Assim sendo, no uso de suas atribuições, os gestores da saúde, com base em dados estatísticos oficiais e em informações técnicas oriunda de fontes especializadas, escolhe a melhor maneira de satisfazer as necessidades da coletividade. Analisam-se, a título de exemplo, quais as localidades e grupos sociais que mais necessitam de assistência médico-hospitalar; define-se a execução das políticas farmacêuticas, cujo exemplo maior é a escolha dos medicamentos que comporão a Relação Nacional de Medicamentos – RENAME; escolhe-se a melhor maneira de prover os recursos humanos, promovendo, a depender da necessidade e da conveniência orçamentária, a realização de concursos públicos para o provimento de cargos diversos, dentre eles, os de especialistas na área médica, biomédica, odontológica, terapêutica, psicossocial, etc.; gerencia-se a execução das políticas de vigilância sanitária; e assim por diante. Visa-se com isso ao atendimento dos interesses prioritários da sociedade, privilegiando-se aqueles que mais necessitam. Privilegia-se, vale ressaltar, não aqueles mais débeis economicamente, mas aqueles que estão em situação de maior risco à integridade física, independentemente da condição econômica. Realiza-se, com tais medidas, a justiça em nível amplo ou, como se diz com mais propriedade, a macrojustiça.

Acontece que a justiça supostamente concretizada em nível geral, a cargo do Poder Executivo e do Legislativo (gestores do SUS), encontra obstáculos à sua plena realização nas já mencionadas falhas gerenciais do SUS. Sendo assim, o indivíduo, tendo a sua necessidade de assistência médico-hospitalar ou farmacêutica desamparada pelos órgãos competentes, não vislumbra outra solução senão recorrer ao Poder Judiciário para ter a sua pretensão atendida. Este, uma vez convencido da viabilidade jurídica do pedido individual (ou individual lastreado no interesse coletivo lato sensu), profere uma decisão interlocutória (concedendo um pedido de tutela antecipada, por exemplo) ou uma sentença (de procedência) impondo ao ente federativo responsável a obrigação de, no caso concreto, fornecer um determinado medicamento, conceder a realização de intervenção cirúrgica ou de tratamento terapêutico especial. Nesta perspectiva, realiza o Poder Judiciário a chamada microjustiça.

Analisando-se pontualmente cada caso posto sub judice, pode-se concluir de modo simplório que o argumento baseado na reserva do possível cai por terra, haja vista ter o erário condições financeiras suficientes para fornecer, por exemplo, um medicamento cuja dose mensal custa em torno de cinco mil reais. O que são alguns poucos milhares de reais para um orçamento alçado em bilhões? Quase nada, responde-se. O magistrado, ao expedir seus atos processuais, visa apenas à satisfação do caso posto em concreto para a sua apreciação. Assim sendo, em uma conclusão en passant, não restariam dúvidas de que havendo no polo ativo da demanda paciente acometido de mal grave, desprovido de recursos para custear o tratamento do mesmo (exacerbadamente dispendioso) e, tendo em vista a diretriz da integralidade dos serviços sanitários e do acesso universal à saúde, nada justificaria denegar o pedido formulado pelo autor e acolher a tese do requerido (fazenda pública, geralmente) utilizando-se como justificativa a escassez de recursos orçamentários.

Mas o que dizer quando esse mesmo argumento é utilizado para condenar o Estado ou Município a fornecer remédios ou a realizar tratamentos no exterior de valores exorbitantes[169]? Mais ainda. Questiona-se a validade do raciocínio demonstrado poucas linhas acima quando se tem conhecimento da prolação de milhares de decisões e sentenças em todo o país condenando os gestores do SUS a arcar com tratamentos desta monta. Nesta perspectiva o conflito “macrojustiça x microjustiça” torna-se quase um problema sem solução. De um lado tem-se um indivíduo que luta pela sua sobrevivência. De outro, visualizam-se a diretriz da integralidade e os princípios da universalidade e da equidade no acesso – impostas ao Estado-Administrador (gestor do SUS) – ameaçadas de ineficácia absoluta. Como é sabido, não é possível prever nas leis orçamentárias a verba necessária para suprir os gastos com o cumprimento das condenações judiciais, ante a sua necessária imprevisibilidade.

Outro questionamento que se faz é quanto à eficácia social da “microjustiça”. Sabe-se que o acesso à Justiça é assegurado genericamente no inciso XXXV[170] do art. 5º da Constituição da República, sendo garantida a assistência judiciária gratuita àqueles desprovidos de recursos (art. 5º, LXXIV, CRFB/1988), através das Defensorias Públicas dos Estados (DPE´s) e da União (DPU). Não obstante isso, a prática cotidiana revela que o acesso ao Poder Judiciário, assim como aos demais direitos prestacionais (com mais pesar, a saúde), não se dá de forma isonômica. Prova disso é a debilidade financeira e técnica das defensorias públicas, que em muitas comarcas carecem até mesmo de materiais básicos como impressora, computador e papel. O que deveria ser uma instituição independente e forte na defesa dos mais necessitados acaba por se tornar uma atividade de filantropia por parte dos elogiáveis defensores públicos. A praxis revela uma desvantagem dupla da maioria dos usuários do SUS: além de não conseguirem ter acesso a serviços de saúde de qualidade, ainda têm que percorrer uma via crucis para conseguir ter acesso a uma tutela jurisdicional efetiva.

Realidade diversa enfrenta uma pequena parcela dos usuários dos serviços prestados pelo SUS – classes média e alta – que têm acesso à advocacia privada – aos grandes escritórios, ressalte-se. Estes apenas fazem uso do sistema público de saúde para ter acesso a remédios ou tratamentos que os seguros privados de saúde não cobrem. Assim sendo, quando em situações concretas veem-se privados do acesso aos meios de promover a manutenção de sua integridade física, pacientes desta categoria social recorrem aos advogados especializados em demandas judiciais sanitárias e, utilizando-se de um poderoso aparato jurídico, conseguem ter acesso à tutela jurisdicional efetiva. São esses os casos majoritários em que se realiza a “microjustiça”. E é por isso que a sua eficácia social é questionada.

Ainda assim, não se pretende com este trabalho reforçar as críticas à judicialização da saúde. Visa-se, ao contrário, reforçar a necessidade da intervenção judicial nos casos em que a mesma se torna vital. É disso que tratará o tópico que se segue, ao abordar a aplicação do princípio da razoabilidade às sentenças e decisões judiciais, bem como ao estabelecer parâmetros para a atuação do magistrado nas lides sanitárias.

4.5. Judicialização Razoável: Parâmetros de Atuação do Poder Judiciário

Da leitura do tópico pretérito é possível perceber que o controle judicial das políticas sanitárias e os seus reflexos no orçamento que mantém o Sistema Único de Saúde – SUS – geram um conflito hermenêutico que, por mais que haja sugestões dadas pelos doutrinadores para a sua solução, os fatos que subsidiam os princípios e normas em confronto permanecem. Em termos menos singelos, continuam a se proliferar julgados dissonantes ora concedendo a realização de tratamentos ou o fornecimento de remédios de altíssimo valor – apoiando-se no Mínimo Existencial e na prevalência da Microjustiça –, ora denegando-os – com fundamento na Reserva do Possível e na primazia da Macrojustiça. E o pior: longe do ambiente caloroso das discussões jurídicas, as mazelas nos serviços públicos de saúde permanecem e os princípios e diretrizes do SUS tornam-se verdadeira utopia. As palavras de Norberto Bobbio, ao discorrer sobre o dever da coerência na tentativa de solucionar os conflitos entre os critérios de resolução das antinomias normativas, expressam de forma cristalina a dimensão abstrata do problema:

Quando a coerência não é condição de validade, continua a ser condição para a justiça do ordenamento. É evidente que quando duas normas contraditórias são ambas válidas e podem ser aplicadas indistintamente, ora uma, ora a outra, segundo o livre juízo daqueles que são chamados a aplicá-las, são violadas duas exigências fundamentais, em que se inspiram ou tendem a se inspirar os ordenamentos jurídicos: a exigência da certeza (que corresponde ao valor da paz ou da ordem) e a exigência da justiça (que corresponde ao valor da igualdade). Quando existem duas normas antinômicas, ambas válidas, e, portanto, ambas aplicáveis, o ordenamento jurídico não consegue garantir nem a certeza, entendida como possibilidade, por parte do cidadão, de prever com exatidão as consequências jurídicas da própria conduta, nem a justiça, entendida como igual tratamento das pessoas que pertencem à mesma categoria[171].

Face à complexidade deste funesto principiológico, não pode este singelo trabalho monográfico ter a pretensão de solucioná-lo. Do contrário, qualquer conclusão a que se tente chegar com as premissas argumentativas formuladas será inexoravelmente um sofisma. Em compensação, podem-se aproveitar as inúmeras tentativas de solução formuladas pela doutrina e, com base nelas, condensar os possíveis meios de pacificação, mesmo que paliativa, deste conflito teórico de reflexos na praxe cotidiana.

É justamente isso que será feito nos itens que se seguem: estabelecer parâmetros de atuação nas lides que envolvem o direito à saúde, com mais ênfase no fornecimento de remédios e na realização de tratamentos terapêuticos e intervenções cirúrgicas. Estes paradigmas de atuação propostos, sem dúvida, deverão estar lastreados nos princípios da proporcionalidade e da razoabilidade, conforme se verá logo adiante.

4.5.1. Razoabilidade e Proporcionalidade

Os princípios da Razoabilidade e da Proporcionalidade, mais que premissas informativas de um ou outro ramo do Direito, são verdadeiros mandamentos de otimização que embasam a ciência jurídica de um modo geral. São, por assim dizer, Princípios Gerais do Direito. Em face disso, torna-se importante fazer um recorte epistemológico da sua definição e do seu âmbito de abrangência, aplicando-os ao Direito Processual, com mais pesar, à prática judicante. Para tanto, serão feitos os devidos esclarecimentos acerca de cada um desses princípios.

Tratar-se-á, em primeiro plano, do princípio da razoabilidade. Nos manuais e compêndios de Direito Administrativo encontram-se diversos conceitos, haja vista estar este princípio positivado no art. 2º da Lei nº 9.784/99 – regulamentadora do processo administrativo no âmbito da Administração Pública Federal. Para fins do presente estudo, as reflexões acerca deste princípio não incidirão sobre o controle judicial direto da Administração Pública. Ao contrário, abrangerão o controle indireto, quando se condenam as Fazendas Públicas mantenedoras do SUS ao fornecimento de algum bem relacionado à saúde. De maneira simples, mas não por isso simplória, José os Santos Carvalho Filho assim preceitua:

Razoabilidade é a qualidade de ser razoável, ou seja, aquilo que se situa dentro dos limites aceitáveis, ainda que os juízos de valor que provocaram a conduta possam dispor-se de forma um pouco diversa. Ora, o que é razoável para uns pode não o ser para outros. Mas, mesmo quando não o seja, é de reconhecer-se que a valoração se situou dentro dos standards de aceitabilidade[172].

Alguns doutrinadores do seio administrativista afirmam que o princípio em análise é sinônimo da “proibição do excesso”[173] ou da “adequação entre os meios e os fins” . Estes, porém, são aspectos do princípio da proporcionalidade. Maria Sylvia Zanella Di Pietro infere que a razoabilidade decorre da contensão da discricionariedade (administrativa), a qual, se não for controlada, pode se converter em arbítrio[174]. Diogo de Figueiredo Moreira Neto, citado por Di Pietro, ao conceituar o princípio em comento, insere elementos da proporcionalidade em sua definição, assim preceituando:

A razoabilidade, agindo como um limite à discrição na avaliação dos motivos, exige que sejam eles adequáveis, compatíveis e proporcionais, de modo a que o ato atenda a sua finalidade específica; agindo também como um limite à discrição na escolha do objeto, exige que ele se conforme fielmente à finalidade e contribua eficientemente para que ela seja atingida[175].

Nota-se, então, que as considerações feitas em relação aos atos administrativos são plenamente aplicáveis aos praticados pelos demais poderes estatais, mormente o Poder Judiciário. Mas, transpondo o ponto de vista para o campo da hermenêutica jurídica, encontra-se no pensamento de Ricaséns Siches, uma importante contribuição para a tentativa de elucidar este princípio. Ao comentar o livro intitulado Nova Filosofia da Interpretação do Direito, do referido doutrinador, a professora Margarida Maria Lacombe Camargo afirma que para ele,

Os juízes, ao privilegiarem os efeitos concretos do direito na sociedade, muitas vezes se veem diante da necessidade de dissimular a lei para fazer justiça, ou pelo menos evitar a injustiça. Mas, para escapar de qualquer tipo de crítica ou acusação, em virtude de terem agido arbitrária ou negligentemente, ameaçando a ordem e a estabilidade social, precisam elaborar uma justificativa que apresente uma aparência lógica e que seja, portanto, convincente. (...). De toda forma, (...), o problema de se identificar qual é a norma aplicável ao problema concreto não é um problema de conhecimento de realidades, mas um problema de valoração[176].

Prossegue a professora, afirmando que

Sobre a essência da função judicial, que se ampara no logos do razoável, o autor nos remete para o problema da interpretação. A dimensão criadora de Ricaséns Siches, por sua vez, remete-nos à questão da valoração, que se dá na escolha dos fatos e das normas. O método aplicável (...) é o método que leva o juiz à interpretação mais justa, mas infelizmente [o autor] não se aprofunda na questão do método valorativo (...)[177].

Neste diapasão, tendo por paradigma o pensamento de Siches, a razoabilidade pode ser resumida, no tocante à atividade jurisdicional, à necessidade de o aplicador das normas jurídicas escolher dentre elas a mais justa para reger o caso concreto apreciado, devendo usar da sua prudência para, com isso, não fugir à legalidade. Como dito alhures, a razoabilidade é utilizada por parte da doutrina como sinônimo da proporcionalidade, posição não adotada neste trabalho. Luis Roberto Barroso, justificando a cogitada fungibilidade conceitual existente entre eles, pondera em nota de rodapé que

A ideia de razoabilidade remonta ao sistema jurídico anglo-saxão, tendo especial destaque no direito norte-americano, como desdobramento do conceito de devido processo legal substantivo. O princípio foi desenvolvido como próprio do sistema do common Law, através de precedentes sucessivos, sem maior preocupação com uma formulação doutrinária sistemática. Já a noção de proporcionalidade vem associada ao sistema jurídico alemão, cujas raízes romano-germânicas conduziram a um desenvolvimento dogmático mais analítico e ordenado. (...). Sem embargo da origem e do desenvolvimento diversos, um e outro abrigam valores subjacentes: racionalidade, justiça, medida adequada, senso comum, rejeição aos atos arbitrários ou caprichosos. Por essa razão, razoabilidade e proporcionalidade são conceitos próximos o suficiente para serem intercambiáveis[178].

Assim sendo, entendendo-se que a proporcionalidade não é sinônima da razoabilidade, como se poderia, então, defini-la? Novamente é curial valer-se da doutrina publicista, mormente dos ramos do Direito Constitucional e Administrativo para conceituá-la e explaná-la de maneira segura. Segundo Carvalho Filho,

O grande fundamento do princípio da proporcionalidade é o excesso de poder, e o fim a que se destina é exatamente o de conter atos, decisões e condutas de agentes públicos que ultrapassem os limites adequados, com vistas ao objetivo colimado pela Administração, ou até mesmo pelos Poderes representativos do Estado. Significa que o Poder Público, quando intervém nas atividades sob seu controle, deve atuar porque a situação reclama realmente a intervenção, e esta deve processar-se com equilíbrio, sem excessos e proporcionalmente ao fim atingido[179].

Hely Lopes Meirelles, seguindo a esteira doutrinária que entende pela sinonímia conceitual de ambos os princípios, elenca o que se pode entender por proporcionalidade em sentido amplo:

Sem dúvida, pode ser chamado de princípio da proibição do excesso, que, em última análise, objetiva aferir a compatibilidade entre os meios e os fins, de modo a evitar restrições desnecessárias ou abusivas por parte da Administração Pública, com lesão aos direitos fundamentais. Como se percebe, parece-nos que a razoabilidade envolve a proporcionalidade e vice-versa[180].

Classicamente é possível dividir o princípio em estudo em três vertentes fundamentais[181]: a) adequação, que significa que os meios utilizados para a realização de qualquer ato devem ser compatíveis com os fins colimados; b) necessidade, ou seja, a conduta a ser realizada deve ser a necessária ao caso concreto, devendo o agente público escolher, dentre as possíveis maneiras de realizá-la, a que seja menos onerosa e prejudicial aos interessados; c) proporcionalidade em sentido estrito, que significa que o ônus decorrente da prática do ato administrativo (ou judicial) não pode ser maior que o bônus dela derivado, seja para a Administração (ou Jurisdição), seja para o destinatário (“administrado” ou “jurisdicionado”) do ato.

Faz-se mister ressaltar que malgrado os princípios em evidência tenham origem e significados distintos, guardam eles certa semelhança (configurando-se uma verdadeira paronímia). Esta se consubstancia no fato de ambos terem uma finalidade comum: a coibição da discricionariedade ilimitada e do puro arbítrio, os quais muitas vezes vêm mascarados no chamado “livre” convencimento motivado, na “legitimidade” democrática do legislador e nos diversos atos administrativos “discricionários” praticados pelos gestores públicos. Novamente se torna útil socorrer-se da doutrina de Carvalho Filho, que, adotando o posicionamento que pugna pela divergência conceitual desses princípios, faz, com bastante racionalidade, a seguinte consideração:

Examinada, conquanto em síntese, a fisionomia dos princípios da razoabilidade e da proporcionalidade, chega-se à conclusão de que ambos constituem instrumentos de controle de atos estatais abusivos, seja qual for a natureza. (...). Na verdade, “confluem ambos, pois, rumo ao (super) princípio da ponderação de valores e bens jurídicos, fundante do próprio Estado de Direito Democrático contemporâneo (pluralista, cooperativo, publicamente razoável e tendente ao justo)[182]”.

Como dito, os princípios da razoabilidade e da proporcionalidade servem como instrumento de controle dos atos judiciais na medida em que tentam se imiscuir em um campo obscuro e praticamente impenetrável conhecido como “convencimento” judicial. Este, apesar de obrigatoriamente fundamentado, confere grande margem de discricionariedade ao aplicador oficial do ordenamento positivo na solução das lides – o magistrado. Assim sendo, usando dos meios dogmáticos apropriados, pode o julgador, da mesma maneira que pratica atos de ofício que concretamente pacificam as relações sociais conflituosas, proferir também decisões e sentenças que ultrapassam os limites do que se entende por aceitável e tumultuar mais ainda os ânimos já rivalizados.

Nas lides que envolvem a entrega de medicamentos e a realização de tratamentos hospitalares e exames clínicos, decisões arbitrárias e exageradas, sob o manto da prevalência do direito à manutenção da sanidade física e mental dos requerentes, impõem aos gestores do SUS obrigações que lesam o orçamento destinado a atender a todos os usuários do sistema, mormente no nível de atenção primária. Esquecem-se os julgadores da relatividade inerente aos princípios fundamentais e encaram a cláusula do mínimo essencial como uma premissa principiológica absoluta, configurando-se um verdadeiro e inconsequente “livre convencimento” totalitário.

Os operadores das normas jurídicas, quando se deparam com essa questão, muitas vezes posicionam-se da maneira unilateral, seja contra, seja a favor da judicialização do acesso à saúde. Poucos, ao menos em nível doutrinário, são aqueles que se preocupam com os males advindos dos excessos judiciários no orçamento do SUS e tentam harmonizar a dicotomia ideológica existente, estabelecendo parâmetros de atuação. Estes são elencados pontualmente pelos doutrinadores e nos diversos julgado, não havendo, pois, uma uniformidade a ser seguida. Sendo assim, deve o magistrado guiar-se pelo binômio proporcionalidade-razoabilidade e escolher a orientação necessária para fundamentar o seu ato dispositivo. Nos itens finais deste capítulo serão expostas algumas das sugestões encontradas na doutrina para auxiliar o Poder Judiciário na solução dos conflitos de origem sanitária.

4.5.2. Parâmetros de Atuação em Sede Individual

Como visto nas páginas acima, o radicalismo ideológico deve ser evitado quando se trata do acesso à saúde. Afirmar que o Estado-Juiz não deve imiscuir-se no plasma de competências do Estado-Legislador e do Estado-Gestor – salvo quando estes praticam escabrosos abusos – sob o argumento de serem eles os legitimados pelo sufrágio popular para decidir a maneira como deverão ser alocados os recursos do SUS é fechar os olhos para a realidade político-social brasileira, marcada pelo fosso abissal de desigualdades. Afirmar também que o direito à saúde é norma programática é abraçar um posicionamento há tempos superado. Em contrapartida, conferir ao acesso à saúde o status de direito fundamental absoluto e, com base nesta premissa, deferir todo e qualquer pedido é ignorar as limitações orçamentárias e, mais ainda, lesar o interesse público de ter serviços de saúde adequados para todos os que deles necessitem, mormente no nível primário de atenção. Assim sendo, urge o apelo à racionalidade, que, juridicamente se expressa nos princípios da razoabilidade e da proporcionalidade.

Neste tópico serão declinados alguns parâmetros de atuação jurisdicional nas ações individuais, sobretudo nas que versam sobre o fornecimento (ou “dispensação”) de medicamentos – a maioria. Vale inferir que o rol aqui apresentado é deveras exemplificativo, devendo existir outros elencados na doutrina pátria e estrangeira.

O primeiro dos paradigmas a ser expostos diz respeito à observância, por parte do juiz, da pertinência dos medicamentos requeridos às listas oficiais elaboradas pelos gestores nacional, estaduais e municipais do Sistema Único de Saúde. Como é sabido, o SUS é regido pelo princípio do acesso universal e igualitário aos serviços de saúde, assim sendo, para que tal preceito informativo seja observado devem os entes federativos garanti-lo por meio de políticas sociais e econômicas, consoante preceitua o art. 196 da Constituição da República. Estas, no caso do fornecimento de remédios, se materializam na elaboração das listas (ou relações) de medicamentos essenciais a serem distribuídos gratuitamente.

 A Portaria nº 3.916/98, do Ministério da Saúde, estabelece a Política Nacional de Medicamentos, na qual são descritas as atribuições da União, dos Estados e dos Municípios, além do Distrito Federal. Ao gestor federal é incumbida a formulação e a manutenção gerencial da referida política de medicamentos. Cabe também ao Ministério da Saúde a elaboração da Relação Anual de Medicamentos – RENAME – a qual deve servir de base para as listas a serem criadas pelos demais entes da federação. A União, em parceria com os Estados e com o Distrito Federal, encarrega-se da aquisição e da distribuição dos remédios considerados excepcionais (de caráter excepcional[183]), ou seja, os destinados ao tratamento de doenças específicas, as quais afetam a um número reduzido de pacientes, possuindo elevado custo,seja em decorrência do seu uso por período longo, seja em decorrência do valor de cada unidade. Os Estados ocupam-se da definição do relatório de medicamentos a serem adquiridos diretamente por eles, sobretudo os de caráter excepcional. Já os Municípios estão incumbidos primordialmente de adquirir e distribuir os remédios destinados ao nível de atenção básica. Além disso, o gestor municipal deverá estabelecer uma relação de suprimentos farmacêuticos a serem fornecidos, com base no RENAME.

Com base nisso, deve o julgador, ao apreciar um pleito que versa sobre a dispensação de determinado medicamento, verificar o seguinte: a) se o ente demandado é competente para entregar a res objeto da lide, ou seja, se o remédio é considerado excepcional – obrigação de dar incumbida à União ou ao Estado – ou se é essencial, ou seja, destinado à cura ou atenuação de enfermidades ou males que afetam a maioria dos pacientes – obrigação de dar conferida ao município; b) se a droga – quando de alto custo e destinada ao tratamento de doença rara – consta na RENAME e nas listas estaduais de dispensação excepcional. Assim sendo, não tendo o demandado a obrigação de fornecer a droga pleiteada, por ser da competência de ente diverso, deverá o magistrado acolher a preliminar de carência da ação (art. 301, do CPC) suscitada pelo requerido e extinguir o processo sem resolução do mérito com base no art. 267, inciso VI, do CPC, haja vista restar configurada a falta de legitimidade passiva para compor a res judicium deducta. Além do mais, não constando o medicamento em nenhuma das listas deverá o julgador analisar o mérito da demanda, e, cotejando os princípios do mínimo essencial e da reserva do possível, dar preferência ao último, já que o acolhimento do pedido do autor afetaria o orçamento destinado concretizar o previsto nas listas oficiais, elaboradas por órgãos e agentes democraticamente escolhidos para tanto, colocando indiretamente em risco a saúde dos demais usuários do SUS. Deve, pois, rejeitar o pedido do requerente neste segundo caso, extinguindo o processo nos termos do art. 269, inciso I, segunda parte, do CPC.

Luis Roberto Barroso, dissertando sobre o assunto, obtempera que

Esse primeiro parâmetro decorre também de um argumento democrático. Os recursos necessários ao custeio dos medicamentos (e de tudo o mais) são obtidos através da cobrança de tributos. E é o próprio povo – que paga os tributos – quem deve decidir preferencialmente, por meio de seus representantes eleitos, de que modo os recursos públicos devem ser gastos e que prioridades serão atendidas em cada momento. A verdade é que os recursos públicos são insuficientes para atender a todas as necessidades sociais, impondo ao Estado a necessidade permanente de tomar decisões difíceis: investir recursos em determinado setor implica deixar de investi-los em outros. A decisão judicial que determina a dispensação de medicamento que não consta das listas em questão enfrenta todo esse conjunto de argumentos jurídicos e práticos[184].

O segundo critério diz respeito à observância, tanto por parte do patrono do paciente-demandante – ao formular o pedido –, quanto do magistrado – ao apreciá-lo –, do princípio ativo do medicamento pleiteado e não da sua designação comercial. Em termos cristalinos, recomenda-se que o pedido formulado pelo autor especifique a composição química básica da droga prescrita pela perícia médica, ainda que esta faça constar na receita o seu nome comercial. Não é de bom alvitre condenar o ente público a fornecer medicamento produzido por um laboratório específico pois o Estado muitas vezes já disponibiliza remédio com semelhante composição, só que de origem industrial diversa. Assim sendo, pleitear algo que o SUS já fornece sob outra denominação, sem ao menos comprovar óbices de natureza administrativa na entrega do mesmo, é certamente carecer de interesse processual, o que deve levar o magistrado a decidir pela extinção do feito sem apreciação do mérito da demanda. No caso de medicamento de dispensação excepcional, caso o pedido verse apenas sobre determinada droga produzida por um laboratório específico, caso haja coincidência com os medicamentos já distribuídos pelo Estado, deve o juiz acolher o petitório. Do contrário, deve-se ponderar se o custo da aquisição da droga suplicada é compatível com a semelhante fornecida pelo SUS. Em caso positivo, como não se vislumbra grave prejuízo ao erário, deve-se acolher o pedido. Em caso negativo, estará violando tanto a cláusula da reserva do possível quanto o princípio do acesso igualitário, já que comprometerá os recursos destinados a os demais pacientes com necessidades de mesma natureza, dando privilégio a um usuário somente.

O terceiro parâmetro consiste na verificação por parte do magistrado da existência de registro oficial da substância medicamentosa pleiteada. Prima facie, é de bom grado lembrar que todo medicamento prescrito no âmbito do SUS deve ter por base o Formulário Terapêutico Nacional[185] (FTN), o qual serve de norte para os profissionais da área da saúde na utilização e prescrição de produtos farmacêuticos existentes para a comercialização[186]. A disponibilidade para o mercado necessita da aprovação e do registro dos mesmos, atribuições conferidas ao Ministério da Saúde, conforme prevê o art. 12, da Lei nº 6.360/76. O registro pressupõe a conclusão de um processo administrativo específico, realizado no âmbito da Agência Nacional de Vigilância Sanitária (ANVISA), conforme estatui a Lei nº 9.782/99. Sem a observância de tais formalidades, nenhum produto farmacêutico pode ser produzido nem comercializado no país.

Não obstante isso, a comunidade médica brasileira tem conhecimento da existência de substâncias comercializadas em outros países que são eficazes para o tratamento de determinadas doenças, sobremodo algumas de rara incidência. A comercialização de tais drogas é inclusive aprovada pelos respectivos órgãos de vigilância sanitária. No entanto, elas não chegam ao mercado brasileiro formal, em virtude de não terem sido aprovadas pela ANVISA, ou de, no máximo, estarem em fase de aprovação e inscrição no FTN, o que obsta o seu fornecimento pelos entes estatais. Ressalta-se que o processo administrativo que resulta na sua disponibilização em território nacional é moroso, o que levou a ANVISA a expedir uma resolução visando a conferir maior celeridade e transparência na apreciação de petições relativas à aprovação de medicamentos[187]. A demora na tramitação do referido procedimento é justificada pelo risco que algumas drogas experimentais ou mesmo já em circulação em outros países podem causar.

Há muitos processos cujo pedido versa sobre o fornecimento de substâncias medicamentosas ou de tratamentos terapêuticos ainda em fase experimental, alguns disponíveis apenas no exterior. O mais grave é que há registros do acolhimento de pedidos desta natureza, indo de encontro ao ordenamento jurídico sanitário e ferindo a cláusula da reserva do possível. Neste diapasão, é recomendado ao julgador que, valendo-se do binômio principiológico proporcionalidade-razoabilidade, acolha apenas pedidos que versem sobre medicamentos já registrados na ANVISA ou, na pior das hipóteses, que a sua aprovação esteja em andamento.

O penúltimo dos critérios de atuação a serem seguidos pelo Poder Judiciário nas lides de natureza individual diz respeito à verificação da pertinência da receita prescrita ao tratamento do paciente-requerente. Trata-se de um parâmetro essencialmente subjetivo, haja vista não ser possível uniformizar a relação estabelecida entre a droga terapêutica e a cura ou atenuação de certa enfermidade, bem como entre aquela e os efeitos manifestados por cada paciente. Sabe-se que em determinados casos existe uma pluralidade de insumos utilizáveis no trato de uma específica doença. Assim sendo, é de bom alvitre que seja acolhido apenas o pedido que consistir na dispensação da droga comprovadamente (através de prova pericial) eficaz para o combate da enfermidade que acomete ao suplicante, e que, havendo semelhantes produtos disponíveis no mercado, seja dada preferência àquele já fornecido pelo SUS, ou o que tenha o valor mais próximo ao deste.  Não se deve, pois, condenar o Estado a fornecer meios terapêuticos que sejam inócuos para o mal físico que atinge o autor da demanda, nem preferir uma substância demasiadamente cara a uma genérica de menor custo de aquisição. É prudente aferir também se o profissional que prescreveu a receita que originou a res judicium deducta tem habilitação para tanto. Em outras palavras, deve-se averiguar se o mesmo é especialista no assunto, haja vista haver uma presunção relativa de racionalidade e prudência naquele que detém especialização na área específica de estudo sobre a referida enfermidade. Dissertando sobre este parâmetro, Gandini, Barione e Souza inferem que

(...) é prudente que o magistrado verifique, no caso concreto, as peculiaridades do tratamento com a finalidade de impedir que o Poder Judiciário ratifique prescrições negligentes e tratamentos inócuos.

A verificação da habilitação do médico para prescrever o medicamento pleiteado é necessária não só para a constatação da pertinência do tratamento – presume-se que um médico especializado formule prescrições coerentes e racionais – mas também para coibir o uso desvirtuado do processo judicial. (...)[188]

O último critério extraído da doutrina consiste na necessidade de o operador do direito verificar se o insumo medicamentoso pleiteado está incluído nos programas de assistência farmacêutica promovidos pelo Sistema Único de Saúde. Deve-se tomar esta precaução principalmente quando o pedido se tratar da dispensação de medicamento excepcional. A relação oficial de drogas desta natureza não consta da RENAME, mas da Portaria de nº 2.577/2006, do Ministério da Saúde, a qual estabelece o Componente de Medicamentos de Dispensação Excepcional na Política de Assistência Farmacêutica do SUS. No âmbito dos Estados é possível que haja, mutatis mutandis, políticas que se assemelhem à promovida pelo Ministério da Saúde. Em face disso, deve-se pleitear uma substância conste nas listas dos referidos programas, recomendando-se ao magistrado que pondere bastante na escolha de rejeitar ou acolher pleitos que versem sobre medicamentos que não sejam fornecidos por essas políticas públicas, principalmente quando for elevado o custo da sua aquisição. Em todo caso, urge que sejam harmonizados e cotejados os prejuízos ao requerente em nível de microjustiça e ao erário, em nível macro.

Antes de finalizar este tópico uma observação se faz necessária. Como já afirmado páginas acima, os parâmetros de atuação do magistrado na solução de conflitos que envolvem o fornecimento de produtos medicamentosos ou a concessão de exames e intervenções cirúrgicas não podem ser encarados como padrões imutáveis a serem seguidos. Ao revés, são meras recomendações, posicionamentos que podem ou não ser adotados, a depender da prudência do aplicador do direito no caso concreto. É a lide sub judice quem melhor encaminhará o juiz à tomada da solução menos prejudicial tanto ao paciente, quanto à sociedade. Há demandas em que se torna patente a relatividade da cláusula da reserva do possível, devendo esta ser mitigada. Em outras, fica evidente a desnecessidade da intervenção judicial, por variados motivos. Muitas vezes a solução pode surgir da opinião de outros personagens processuais (advogados das partes, peritos e, principalmente, o Ministério Público), emitida nas petições, cotas, pareceres, laudos periciais e peças afins. Em artigo publicado sobre a relação entre as ações judiciais na área da saúde e a necessidade do conhecimento acerca das diretrizes normativas do SUS, Andrea Carla Veras Lins afirma que

É sempre bom enaltecer que o direito à saúde compreende o bem-estar e a melhora do paciente e não só o simples recebimento de medicamento ou a submissão ao tratamento. Quem recorre ao SUS é aquele que realmente não tem condições de custear um plano de saúde ou socorrer-se do médico particular. Mas os recursos orçamentários para a área de saúde não são suficientes para atender toda a demanda existente no país. E isso é uma realidade que não pode ser resolvida apenas no âmbito do Poder Judiciário. Não se está dizendo que o direito à saúde não possa ser objeto de apreciação pelo juiz, mas se indica usar da razoabilidade e dos conhecimentos do funcionamento do SUS, quando da prolação da decisão[189].

Vistos os parâmetros de atuação em nível individual, passar-se-á à exposição daqueles que devem orientar o Poder Judiciário na solução de conflitos que envolvem a coletividade, entendida esta tanto como um restrito grupo de pessoas ligadas por circunstâncias jurídicas (em sentido estrito) quando a todos indistintamente (tutelando interesses difusos).

4.5.3. Parâmetros de Atuação em Sede Coletiva

Discutiu-se no tópico anterior a racionalidade aplicada à solução das lides individuais sanitárias, a qual se verifica na formulação de critérios ou parâmetros de atuação para o Poder Judiciário. Independentemente dos posicionamentos adotados, verificou-se que a satisfação do interesse individual inevitavelmente implica no sacrifício do interesse social. O magistrado, quando aprecia uma lide travada entre um paciente e o ente federativo – ainda que conheça o funcionamento do SUS e que tenha consciência da complexidade existente nos embates principiológicos que gravitam em torno da judicialização da saúde – acaba por ser cooptado a garantir a efetividade do direito individual reivindicado. Salvo nas hipóteses já discutidas, em que fica configurado o “excesso jurisdicional”, o juiz, adstrito ao caso concreto, acaba por promover uma melhoria aferível de maneira pontual na sociedade (microjustiça). Todavia, ainda que eventualmente consigam pacificar um ou outro conflito isoladamente, não possuem as sentenças com efeitos inter partes a capacidade de provocar mudanças estruturais que favoreçam indistintamente a toda sociedade.

Neste diapasão é que desponta a necessidade do ajuizamento de ações coletivas[190], as quais têm por finalidade defender o interesse público (rectius, individuais homogêneos, coletivos em sentido estrito e difusos). A procedência de pedidos formulados em sede de ação popular, ação civil pública, inquérito civil, mandado de segurança coletivo e mandado de injunção coletivo conseguem balancear os efeitos da macro e da microjustiça, pois satisfazem o interesse de determinado grupo (ou da sociedade, no caso do interesse difuso) e evitam que sejam ajuizadas inúmeras demandas individuais para suplicar o mesmo objeto.

Dessa forma, em consonância com os parâmetros sugeridos em sede individual, pode-se estabelecer para as ações coletivas um paradigma geral que consiste na possibilidade de alteração do rol das substâncias que compõem as relações oficiais de dispensação (inclusive a própria RENAME). Luis Roberto Barroso, de cuja obra se extraem os parâmetros aqui colacionados, afirma que

(...) a impossibilidade de decisões judiciais que defiram a litigantes individuais a concessão de medicamentos não constantes das listas não impede que as próprias listas sejam discutidas judicialmente.  O Judiciário poderá vir a rever a lista elaborada por determinado ente federativo para, verificando grave desvio na avaliação dos Poderes Públicos, determinar a inclusão de determinado medicamento. O que se propõe, entretanto, é que essa revisão seja feita apenas no âmbito de ações coletivas (para defesa de direitos difusos ou coletivos e cuja decisão produz efeitos erga omnes no limite territorial da jurisdição de seu prolator) ou mesmo por ações abstratas de controle de constitucionalidade, nas quais se venha a discutir a validade de alocações orçamentárias[191].

Decerto, nos processos de natureza individual, o juiz fica limitado a conceder apenas os medicamentos constantes das listas oficiais (RENAME e as elaboradas pelos Estados e Municípios). De maneira diversa, em uma ação civil pública, por exemplo, é possível discutir se a escolha dos medicamentos que figuram na referida lista oficial foi adequada, ao menos sob o aspecto legal e constitucional, havendo não uma intervenção no mérito do ato administrativo do gestor do SUS, mas sim, uma aferição dos elementos do mesmo (com mais pesar, a finalidade e a competência). Uma vez constatada, através de todos os meios de provas utilizados pelo Ministério Público (ou outro legitimado), que a composição da lista não é condizente com a realidade, é possível que o magistrado conceda o pedido de inclusão de nova substância, ou ao menos, que obrigue o ente responsável a fornecê-la. Uma vez constatado isso, questiona-se: que critérios – razoáveis, frise-se! – devem orientar o julgador na concessão de pedidos que importem na alteração fática das listas oficiais?

O primeiro deles diz respeito à eficácia do medicamento a ser incluído na lista oficial de distribuição. Esta deve ser comprovada[192], devendo-se excluir as substâncias cuja eficácia no tratamento da enfermidade seja discutível. Ou seja, não é aconselhável obrigar o ente a inserir medicamentos que se encontram em fase de experimentação, ou cujos efeitos colaterais sejam mais danosos que os seus efeitos terapêuticos. Também não é de bom alvitre optar por incluir insumos alternativos, os quais se assemelham a alguns já existentes e disponíveis, porém, em virtude de a sua eficiência não ter sido certificada pela ANVISA, é possível que possam a causar danos aos pacientes que deles se utilizarem.

Além da eficácia comprovada, devendo ser mínimo o risco à integridade física dos usuários, torna-se curial que os produtos medicamentosos discutidos em sede coletiva estejam disponíveis no Brasil[193]. Existindo tratamento para o caso no país é desarrazoado obrigar o ente gestor do SUS a custear outro similar disponível no exterior. Tal condenação violaria o princípio do acesso igualitário à saúde, porque garantiria apenas aos suplicantes de uma determinada demanda um tratamento mais caro e desnecessário, priorizando-se desnecessariamente a cláusula do mínimo essencial. Ainda que a substância a ser incluída já tenha sido aprovada por órgãos internacionais, a sua indisponibilidade no território nacional inviabiliza a sua inserção na referida lista, já que obrigaria o Estado a arcar a importação e os demais encargos decorrentes dela. No entanto, a razoabilidade deve imperar. Assim sendo, se não houver tratamento semelhante no país e os enfermos tutelados necessitaram de determinado medicamento ou tratamento disponíveis apenas em outro país, deve o magistrado, com base em forte lastro probatório, ponderar com bastante cautela e decidir se deve ou não deferir a inclusão do mesmo, favorecendo aos pacientes representados pelos entes que detêm legitimidade ativa ad causam. Novamente, o caso concreto determinará a solução mais coerente.

Recomenda-se também que sejam incluídas preferencialmente as substâncias genéricas e de menor custo. Os medicamentos genéricos, consoante preleciona a legislação específica[194], são aqueles que se assemelham aos de referência produzidos pelos laboratórios que patentearam a fórmula original. Sua eficácia é comprovada e constam dos órgãos de vigilância sanitária a autorização para o seu fornecimento, bem como o seu registro. Assim sendo, nada justifica preterir um medicamento genérico, incluindo nas listas de dispensação similares mais caros, posto que a verba gasta para a sua aquisição resultaria na retirada de recursos destinados à realização de outros serviços igualmente essenciais. Novamente, há de compatibilizar o mínimo essencial com o princípio do acesso universal e com a cláusula do possível.

Por último, importa ressaltar que os medicamentos a serem inseridos nas listas oficiais de fornecimento gratuito devem ser indispensáveis para a manutenção da vida daqueles que deles necessitam. Em outras palavras, deve-se discutir, em sede de ação coletiva ou abstrata (e.g., Ação Direta de Inconstitucionalidade, Ação Declaratória de Constitucionalidade e Ação de Descumprimento de Preceito Fundamental) a inclusão de novos medicamentos às listas de dispensação excepcional e essencial, pois estes são primordiais para a sobrevivência daqueles acometidos por doenças raras ou de grave risco para a vida. Dessa forma, devem-se priorizar tais substâncias em decorrência da natural escassez de recursos para custear a demanda de todos os que vierem a necessitar do SUS.

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Sobre o autor
Augusto Vieira Santos de Brito

Técnico Judiciário em Aracaju (SE).

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

BRITO, Augusto Vieira Santos. Judicialização razoável como meio de efetivar o acesso à saúde. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 17, n. 3173, 9 mar. 2012. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/21258. Acesso em: 16 nov. 2024.

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