4. CONCLUSÃO
Por todo o exposto, conclui-se que o princípio da indisponibilidade ao direito à vida resulta em limite intransponível ao aborto anencefálico sustentado na dignidade da mulher. A anencefalia é corretamente caracterizada, a rigor, pela falta de parte do cérebro e não pela sua totalidade, de modo que se há vida, esta não pode ser tirada, muito menos antecipadamente. A complexidade do diagnótico para estes casos aponta indubitavelmente para a necessária prudência, a exigir cautela ainda maior quando se trata do bem supremo: o direito à vida.
A vida do feto não é bem que está à disposição, nem mesmo da mãe, razão pela qual a interrupção deste tipo de gravidez escapa do âmbito da autonomia da vontade. Há que se ponderar, ainda, o princípio da proteção à família, que reclama amparo ao pai e irmãos, reflexamente atingidos. E conforme debatido, qualquer alteração legislativa, que seja antes para eliminar excludente atualmente lícita, como o seria para o aborto em caso de estupro, do que acrescentar novas. Atualmente, muita ênfase tem sido dada a uma ecologia consciente, com leis que criminalizam maus tratos e dilaceração da fauna e da flora, no sentido contrário, infelizmente, parece caminhar a legislação que defende a vida humana.
O ordenamento jurídico não estabelece medida temporal para fins de disponibilidade da vida, daí porque não poderá haver discriminação de fetos perfeitamente formados em detrimento dos que não gozam de tal privilégio. A tutela do bem da vida independe das eventuais deformidades intra-uterinas. O feto anencéfalo não é "lixo orgânico”, sobretudo diante da ampliação dos direitos do nascituro, resguardados desde a concepção pela ordem jurídica nacional. Pensar diverso resultaria na inconstitucionalidade por arrastamento do art. 2° do Códico Civil de 2002.
O Supremo Tribunal Federal, em decisão proferida nos autos da ADPF n°. 54, além de não observar tais premissas, ignorou o princípio da separação de poderes, atuando como legislador positivo. A utilização da técnica de interpretação conforme à Constituição, como suposto controle de constitucionalidade, revelou-se como criação anômala pelo judiciário de nova excludente de ilicitude ao Código Penal, cuja dicção dos artigos 124, 126 e 128, não comportam margem para interpretação diversa.
A atuação da Suprema Corte gera extrema insegurança jurídica e social, abrindo precedente gravoso para eventuais práticas abortivas irresponsáveis, principalmente ante a ausência de regulamentação própria para o caso de fetos anencéfalos, bem como a fragilidade dos elementos de convicção científica, resultando na possibilidade de aprovações futuras de aborto em diversas outras patologias intra-uterinas que não necessariamente guardem relação à anencefalia, melhor chamada meroencefalia.
A cautela legislativa se faz necessária na exata medida em que, tão mais controvertido o tema, tão mais necessário será a sua submissão à consulta popular. Toda e qualquer representação parlamentar, seja qual for a ideologia, em decorrência da democracia pluralista, a qual não pode se opor a laicidade estatal, goza de legitimidade conferida através do sagrado e universal voto popular, cuja voz não pode ser calada pelo judiciário por vias oblíquas, caso contrário restará mitigado, em última instância, o soberano poder do povo.
A sociedade precisa, pois, ficar diligentemente atenta para, de forma legítima, exigir que eventual discussão que envolva atividade legiferante submeta-se, em respeito à soberania popular, ao crivo privativo dos seus representantes eleitos, reinvidicando o poder que constitucionalmente lhe foi deferido. Ao revés, não se pode admitir atuação judicial em ação de constitucionalidade interposta, como a ADPF n°. 54, por via tortuosa e em foro impróprio, mediante mecanismos artificiosos que, inobstante o brilho aparente dos argumentos que a envolve, resulta em ruptura dos princípios basilares da separação dos poderes e da soberania popular.
Se todas as ponderações, feitas no decorrer do presente trabalho, tiveram por base o feto anencéfalo, seja em virtude do reconhecimento dos direitos a este desde a concepção, seja por decorrência da indisponibilidade do direito à vida, a mesma reflexão, de maneira muito mais veemente, se aplica à eventuais outras excludentes ao crime de aborto que porventura venham a ser cogitadas. A perspectiva de ampliar as práticas do aborto resulta na destruição da própria vida, o que aponta para efetiva regressão social, notadamente pela errônea inversão de valores, pautada em interesses outros que estariam a governar a sociedade acima do bem da vida, em uma hipocrisia lícita utilizada sob o manto do legítimo princípio da dignidade da pessoa humana, cujo real objetivo se faria desvirtuado.
NOTAS
[1] Três teorias protagonizam o debate acerca da personalidade jurídica do nascituro: (a) Teoria Natalista; (b) Teoria Concepcionista; (c) Teoria da Condicionalista). A teoria natalista, adotada pelo CC/2002, é aquela que diz que a personalidade jurídica do nascituro começa com o nascimento com vida. A teoria concepcionista, por sua vez, defende que a personalidade jurídica existe desde a concepção. A teoria condicionalista, intermediária, entende que a personalidade jurídica existe desde a concepção, mas condicionada seu exercício ao nascimento com vida. O Código Civil de 2002 adotou a teoria natalista, mas apesar da controvérsia doutrinária, o fato é que, nos termos da legislação em vigor, o nascituro, embora não seja considerado pessoa, tem ele a proteção legal dos seus direitos, patrimoniais e extra-patrimoniais, desde a concepção.
[2] Comitato nazionale per la bioetica. Il neonato anencefalico e la donazione di organi. 21 giugno 1996. p. 9. O Comitê Nacional de Bioética do governo italiano é composto por estudiosos das mais diversas áreas, em coerência com a natureza intrinsecamente pluridisciplinar da Bioética: médicos, juristas, psicólogos, sociólogos, filósofos. Disponível em <http://www.providaanapolis.org.br/ cnbport.htm>. Acesso em 20/04/2012
[3] Esse argumento é usado por Josef Seifert em seu artigo Brain Death is Not Actual Death: Philosophical Arguments. 3rd International Symposium on Coma and Death. Havana, February 22-25, 2000. Disponível em: <http://www.providaanapolis.org.br/quemeoan.htm>. Acesso em 20/04/2012.
[4] A Teoria da Separação dos Poderes (ou da Tripartição dos Poderes do Estado) é a teoria da ciência política desenvolvida para moderar o Poder do Estado dividindo-o em funções, e dando competências a instâncias diferentes do Estado. O poder é uno, soberano, pertence ao povo, mas o Estado subdivide-se em poderes (funções), ficando sustentado no tripé: executivo, legislativo e judiciário. Cada poder funciona como um limite para a atuação do outro, daí se falar em sistema de freios e contrapesos ("checks and balances system"), decorre o Princípio da Separação de Poderes, cláusula pétrea da Constituição da República Federativa Brasileira.
[5] Todos os trechos dos votos citados dos ministros do STF nos autos da ADPF n. 54, bem como na questão de ordem em sede de liminar, foram retirados de pesquisa jurisprudencial no site do Supremo Tribunal Federal. Disponível em <http://www.stf.jus.br>. Acesso em 16/04/2012. Assim também, as informações referentes aos projetos de leis tramitando sobre aborto no Congresso Nacional foram extraídas de pesquisas nas casas legislativas do Congresso Nacional. Disponível em <http://www.senado.gov.br>; e <http://www.camara.gov.br>. Acesso em 16/04/2012.