3 DOS INSTRUMENTOS DE REGULARIZAÇÃO FUNDIÁRIA URBANA
Realizada a introdução dos pilares da monografia, através dos temas da posse e propriedade, função social da propriedade, direito à moradia e políticas públicas de regularização fundiária; neste segundo capítulo, serão abordados os principais instrumentos de regularização fundiária urbana, disponíveis ao Poder Público e ao cidadão.
O presente capítulo possui o objetivo de expor o embasamento legal da regularização fundiária urbana no Brasil, bem como, tecer considerações acerca da aplicabilidade dos principais instrumentos de regularização fundiária urbana. Inicialmente, serão selecionados alguns instrumentos do Estatuto da Cidade (Lei nº 10.257/01), seguindo pela Lei nº 11.977/07, e posteriormente, com o Projeto More Legal, cujo ordenamento jurídico está alocado no Estado do Rio Grande do Sul.
3.1 O Estatuto da Cidade como diretriz legal para abertura à regularização fundiária urbana do País
O Brasil, durante a maior parte da sua história, foi um país agrícola. O fenômeno urbano está ligado aos ciclos econômicos brasileiros, sobretudo, com a necessidade de o cidadão buscar melhor qualidade de vida. Segundo dados do levantamento do IBGE[20], em 2007, 83,48% da população brasileira vivia em áreas urbanas, enquanto que, em 1960, esse indicador era de 44,67%. Diante desses parâmetros é possível visualizar o crescimento indisciplinado da população brasileira nas últimas décadas. Conforme Pereira (2003, p. 11):
Essa migração do campo para a cidade se deu na busca de melhores oportunidades de vida, de trabalho, de ganhos financeiros e de oportunidades em geral, sendo que o migrante assim imaginava que o movimento de migração era suficiente para atingir estes objetivos. Porém, o que realmente gerou, em volta das cidades cosmopolitas atuais, foi um cinturão de pobreza e miséria, criando a periferia das grandes cidades, em lugares sem as mínimas condições de habitabilidade, vivendo pessoas em condições subumanas sem qualquer dignidade.
Nesse sentido, Silva (2008) analisa que na década de 40 do século passado as cidades eram vistas como a possibilidade de avanço e modernidade em relação ao campo, que representava o Brasil arcaico; na década de 90 sua imagem passa a ser associada à violência, poluição, criança desamparada, tráfego caótico. O processo de urbanização com crescimento da desigualdade resultou numa inédita e gigantesca concentração espacial da pobreza.
Como consequência à ocupação caótica gerada nas últimas décadas do século XX, surgem os loteamentos ilegais:
Foi, de fato, o loteamento ilegal, combinado à autoconstrução parcelada da moradia durante vários anos, a principal alternativa de habitação para a população migrante instalar-se em algumas das principais cidades brasileiras. Dessa forma foram construídas as imensas periferias de São Paulo e Rio de Janeiro. É certo que a Lei Lehman (Lei nº 6.766/1979) pretendeu corrigir essa situação, fechando essa alternativa, que era a única forma de acesso do trabalhador pobre à propriedade urbana, sem lhe abrir outra possibilidade. Por isso, um dos resultados que se aponta com a promulgação da lei é o crescimento de favelas (SILVA, 2008, p. 23).
Conforme relatado, a edição da Lei nº 6.766/79, que dispõe sobre o parcelamento do solo urbano, não tratou com a devida atenção ao problema do crescimento habitacional urbano, visto que os possuidores de terras em periferias continuaram possuindo de forma clandestina. O legislador tentou prestar uma proteção maior ao comprador da área objeto de parcelamento, com a exigência mínima da urbanização das áreas.
Na Constituição Federal de 1988 foi introduzido um capítulo relativo à Política Urbana, através da pressão promovida pelos partidos socialistas e Movimento dos Sem Teto, assim citado por Pereira (2003). O artigo 182, da Constituição, estabelece que a política de desenvolvimento urbano será executada pelo Poder Público Municipal, conforme diretrizes gerais fixadas em lei, tendo por objetivo o pleno desenvolvimento das funções sociais da cidade e a garantia do bem-estar de seus habitantes. No artigo 21, inciso XX, da Magna Carta, declara-se que compete a União instituir diretrizes básicas para o desenvolvimento urbano, inclusive habitação, saneamento básico e transporte público, conforme Silva (2008, p. 58):
Nesses dois textos da Constituição encontramos os fundamentos das duas amplas perspectivas da política urbana: uma que tem como objeto o desenvolvimento adequado do sistema das cidades (planejamento interurbano) em nível nacional ou macrorregional de competência federal; e a outra que considera o desenvolvimento urbano no quadro do território municipal (planejamento intra-urbano) de competência local. De permeio insere-se a competência estadual para legislar concorrentemente com a União, sobre o direito urbanístico (art. 24, I) – o que abre aos Estados, no mínimo, a possibilidade de estabelecer normas de coordenação dos planos urbanísticos no nível de suas regiões administrativas, além de sua expressa competência para, mediante lei complementar, instituir regiões metropolitanas, aglomerações urbanas e microrregiões, constituídas por agrupamentos de Municípios limítrofes, para integrar a organização, o planejamento e a execução de funções públicas de interesse comum.
Da necessidade criada pelo artigo 182, juntamente com os artigos 21, inciso XX e 183, encontram-se os fundamentos constitucionais do Estatuto da Cidade. Instituído pela Lei nº 10.257/2001, estabelece as diretrizes gerais da política urbana, tendo essa definição por força do parágrafo único do seu artigo 1º[21].
A lei possui cinco capítulos: primeiro capítulo – diretrizes gerais; segundo capítulo – dos instrumentos da política urbana; terceiro capítulo – do Plano Diretor; quarto capítulo – da gestão democrática da cidade; quinto capítulo – disposições gerais. Pereira (2003, p. 13, grifo do autor), divide o Estatuto da Cidade da seguinte forma:
O capítulo das diretrizes gerais define o objetivo da política urbana, qual seja, o de ordenar o pleno desenvolvimento das funções sociais da cidade e da propriedade urbana, e traz orientações importantíssimas acerca da forma para se alcançar esse objetivo. Com esta disposição legal, cumpre-se o disposto na Constituição Federal, que delega à União a competência legislativa para instituição de diretrizes gerias para o desenvolvimento urbano.
O capítulo dos instrumentos da Política Urbana regulamenta o art. 182, § 4º da Constituição Federal, que dispõe sobre as sanções a serem aplicadas, quando necessárias, à manutenção de terrenos já urbanizados em ociosidade. Trata-se de regulamentação requerida expressamente pelo Texto Constitucional. Além disso, o capítulo disciplina outros institutos jurídicos relevantes: a usucapião especial urbana (art. 183 da Constituição), o direito de superfície, o direito de perempção, a outorga onerosa, as operações urbanas consorciadas, a transferência do direito de construir e o estudo de impacto de vizinhança.
O capítulo do Plano Diretor traça parâmetros básicos a serem seguidos pelos Municípios no cumprimento da obrigação constitucional de elaboração desse plano.
O Plano Diretor é o “instrumento básico da política de desenvolvimento e expansão urbana”.
O grande ponto do Estatuto da Cidade é a previsão do Plano Diretor como o instrumento básico da política de desenvolvimento e expansão urbana. Todo conteúdo vinculado com o Estatuto da Cidade estará automaticamente vinculado com o Plano Diretor municipal. Nesse sentido, Pereira (2003) argumenta que a Lei nº 10.257/01 não é auto-aplicável, somente será plenamente eficaz no momento em que o Plano Diretor for colocado em prática. Para garantir a participação da sociedade civil na gestão urbana, o legislador criou o capítulo da gestão democrática da cidade.
A função social urbanística é exercida no nível municipal. Para Silva (2010) foi em forma de Planos Diretores municipais que nasceram os planos de desenvolvimento urbano, estabelecendo regras para o desenvolvimento físico das cidades, vilas e outros núcleos urbanos do Município. Segundo Silva (2010, p. 97, grifo do autor):
A concepção de Plano Diretor evoluiu, passando pelas etapas seguintes:
(1) Inicialmente, preocupava-se com o desenho da cidade; sua elaboração significativa a aprovação de um traçado das ruas e o estabelecimento dos lugares onde os edifícios públicos deveriam decorar a cidade; o valor fundamental a realizar e a preservar era o da estética urbana.
(2) Depois, dedicava-se a estabelecer a distribuição das edificações no território, atendendo a funções econômicas e arquitetônicas.
(3) Mais tarde desenvolveu-se a concepção do Plano Diretor de desenvolvimento integrado como instrumento do processo de planejamento municipal destinado a alcançar objetivos integrados nos campos físico, econômico, social e administrativo.
(4) Atualmente, com a Constituição de 1988, assume o Plano Diretor a função de instrumento básico da política urbana das funções sociais da cidade e garantir o bem-estar da comunidade local (art. 182).
Na análise de Silva (2010), o fato de buscar, através do Plano Diretor, a integração do planejamento urbanístico com o planejamento econômico e social, foi responsável pelo quase-fracasso do planejamento urbanístico em nível municipal. Segundo o mesmo autor, os Municípios não possuem competência, nem técnica para tal realização.
O planejamento integrado (urbanístico, econômico e social) só terá êxito quando implantado em diretrizes do desenvolvimento urbano no nível nacional, estruturado num sistema de planejamento urbano global. Nesse sentido Silva (2010, p. 101, grifo do autor):
Essa integração dos aspectos físico-territoriais com os econômicos e sociais só cobrará êxito se se estrututar num sistema de planejamento urbano global, em que também os aspectos físico-territoriais se integrem com o econômico em sentido vertical-horizontal, ou seja, desde que o planejamento econômico e social realizado no nível nacional estabeleça diretrizes do desenvolvimento urbano (interurbano – ou seja, da rede urbana nacional), como aspecto da política de crescimento econômico e da melhoria da qualidade de vida das populações; a essas diretrizes, integradas na política econômica do desenvolvimento, se vincularia a política urbana no nível regional e estadual como aspecto da programação econômica nos mesmos níveis; finalmente, a elas estariam integrados os planos urbanísticos locais, mais concretamente destinados à ordenação do território para o cumprimento das funções urbanísticas elementares (habitar, trabalhar, recrear e circular) – ou, como diz a Constituição, destinados a ordenar o pleno desenvolvimento das funções sociais da cidade (art. 182).
Os instrumentos de regularização fundiária contemplados no Estatuto da Cidade, sob o ponto de vista de Scheid (2008), podem ser divididos em dois grupos: primeiro aqueles que atuam tanto no sentido de disponibilizar áreas que serão objeto de regularização fundiária e recursos para tanto, quanto no intuito de facilitar o acesso à regularização fundiária pela população de baixa renda. Segundo, aqueles destinados à regularização fundiária, propriamente dita, de determinada área.
No primeiro grupo, citam-se: a desapropriação; as Zonas Especiais de Interesse Social (ZEIS); o parcelamento e a edificação compulsórios; o IPTU progressivo no tempo e a desapropriação para fins de reforma urbana; o direito de preempção; a outorga onerosa do direito de construir; as operações urbanas consorciadas; o consórcio imobiliário; e a assistência técnica e jurídica gratuita para as comunidades e grupos sociais menos favorecidos.
No segundo grupo estão contemplados a concessão de direito real de uso; a concessão de uso especial para fins de moradia; a usucapião especial de imóvel urbano; e o direito de superfície.
Na sequência serão analisados os principais instrumentos de regularização fundiária urbana previstos no Estatuto da Cidade, bem como, o instrumento da concessão de uso especial para fins de moradia, previsto na Medida Provisória 2.220/01:
A) Zonas Especiais de Interesse Social (ZEIS)
As Zonas Especiais de Interesse Social (ZEIS) têm previsão no artigo 4º, inciso V, alínea f, do Estatuto da Cidade. Permitem estabelecer uma categoria diferenciada de zoneamento, garantindo à população de baixa renda acesso aos serviços urbanos, à infraestrutura, e à oferta de emprego e serviços, conforme Ministério das Cidades (2010). As ZEIS devem estar previstas no Plano Diretor ou em lei municipal específica, sendo que, naquelas áreas demarcadas será admitida a aplicação de regras especiais de uso e ocupação do solo, visando a preservação do direito à moradia.
As ZEIS podem ser classificadas em ZEIS Ocupadas, áreas em que há assentamentos e necessitam de instrumentos para a regularização fundiária; e as ZEIS de Vazios, áreas vazias ou mal aproveitadas que serão foco de projetos de execução de habitação de interesse social.
As áreas marcadas como ZEIS, segundo Scheid (2008), diminuem o interesse especulativo do mercado imobiliário, impedindo que o morador desse terreno seja assediado para vender sua propriedade regularizada por preço irrisório e termine, novamente, sem moradia.
Os assentamentos urbanos informais gravados pelas ZEIS estarão regularizados urbanisticamente, reconhecendo que essas ocupações integram a cidade, porém a regularização jurídica deve ocorrer pelos demais instrumentos do Estatuto da Cidade, aplicados em cada situação identificada pelas ZEIS e contemplados no Plano Diretor.
B) Parcelamento ou edificação compulsórios; IPTU progressivo no tempo; Desapropriação para fins de reforma urbana
A previsão desses instrumentos está no artigo 182, § 4º, incisos I, II, e III, da Constituição Federal, respectivamente, e, a utilização dos mesmos, pelo Poder Público Municipal, fica atrelada ao fato de o proprietário não cumprir a função social da propriedade. São medidas que visam impor ao proprietário uma ação positiva para promover uma destinação concreta de sua propriedade.
O Poder Público Municipal embasado no parágrafo quarto do referido artigo, mediante lei específica para área incluída no Plano Diretor, pode exigir do proprietário do solo urbano não edificado, subutilizado ou não utilizado, a promoção do seu adequado aproveitamento, sob pena, sucessivamente, de parcelamento ou edificação compulsórios; imposto sobre a propriedade predial e territorial urbana progressivo no tempo; e, por último, a desapropriação.
No Estatuto da Cidade, estes instrumentos estão dispostos na Seção II – Do parcelamento, edificação ou utilização compulsórios; Seção III – Do IPTU progressivo no tempo; e, Seção IV – Da desapropriação com pagamento em título; todas Seções estão situadas no Capítulo II – Dos Instrumentos da Política Urbana.
O parcelamento ou edificação compulsórios são instrumentos utilizados para combater a retenção imobiliária. Conforme Pereira (2003) busca-se a concretização de dois fatos básicos: o primeiro é relativo à retenção imobiliária, o vazio urbano a espera de uma valorização monetária, para então ir ao mercado e proceder o parcelamento, trancando o crescimento urbano da cidade; e o segundo diz respeito aos imóveis subutilizados, que conforme o parágrafo 1º, do artigo 5º, são aqueles cujo aproveitamento seja inferior ao mínimo definido no Plano Diretor.
O IPTU progressivo no tempo é um instrumento aplicado facultativamente, pelo Poder Público Municipal, àqueles imóveis subutilizados, não edificados, que não estejam cumprindo a função social. Segundo Pereira (2003) é a segunda penalidade para imóveis urbanos que não cumprem a função social, a natureza do IPTU progressivo é extrafiscal[22]. O Congresso Nacional, através da Emenda Constitucional nº 29/00 incluiu o parágrafo 1º ao artigo 156 da Constituição, e, dessa forma, pacificou a questão da progressividade em razão do imóvel e, a aplicação de alíquotas diferentes de acordo com a localização e o uso do imóvel.
Com base no parágrafo 1º, do artigo 7º, do Estatuto da Cidade, a alíquota máxima a ser aplicada é a de quinze por cento, e não excederá a duas vezes o valor referente ao ano anterior. À Administração Pública, é vedada a concessão de isenções ou anistia relativas à tributação progressiva do IPTU, baseado no parágrafo 3º, do referido artigo.
Decorridos cinco anos de cobrança do IPTU progressivo sem que o proprietário tenha cumprido a obrigação de parcelamento, edificação ou utilização, o Município poderá proceder a desapropriação do imóvel, com pagamento mediante título da dívida pública. É um instrumento jurídico e político à disposição do Poder Público Municipal, e encontra previsão no artigo 8º[23] do Estatuto da Cidade. De acordo com Pereira (2003, p. 124):
Digamos que esta modalidade que se espelha muito na desapropriação de imóvel rural para fins de reforma agrária é mais uma penalidade para aquele indivíduo que utiliza a retenção especulativa como forma de acumular fortuna, ou então para aquele imóvel que está sendo utilizado em desacordo com o planejamento urbano e legislação urbanística prevista no Plano Diretor.
Analisando-se o procedimento regrado pelo Estatuto da Cidade, no tocante à desapropriação, podem ser feitas algumas considerações. Primeira, o Poder Público Municipal deve aguardar a cobrança de cinco anos de cobrança do IPTU progressivo sem que o proprietário tenha cumprido a obrigação de parcelamento, edificação ou utilização. Segunda, decorrido o prazo de cinco anos, será realizada a desapropriação do imóvel, com o pagamento de título da dívida pública. Terceira, estes títulos devem ter prévia aprovação pelo Senado Federal, sendo resgatados no prazo de até dez anos, em prestações anuais, iguais e sucessivas, assegurados o valor real da indenização e os juros legais de seis por cento ao ano.
Deste modo, o procedimento da desapropriação acima descrito, ainda, envolve a figura do Senado Federal para poder realizar-se. É cabível ressaltar que não foi revogada a desapropriação ordinária[24]. Sendo assim, não há necessidade do Poder Público utilizar-se unicamente da desapropriação do Estatuto da Cidade aos imóveis que não estejam cumprindo a função social.
C)Usucapião especial de imóvel urbano
A usucapião especial de imóvel urbano encontra sua previsão legal no artigo 183 da Constituição Federal, e está regulamentada, também, na Seção V, do Capítulo II, no Estatuto da Cidade. Diz o artigo que o possuidor que, utilizando como moradia sua e de sua família área ou edificação urbana de até 250 m² (duzentos e cinquenta metros quadrados), com posse ininterrupta, e, sem oposição por cinco anos, adquire o domínio, desde que não seja proprietário de outro imóvel urbano ou rural.
O Estatuto da Cidade, conforme Scheid (2008), inovou, ao recepcionar a forma de usucapião coletiva[25], visto que, a usucapião individual também está prevista no artigo 1.240, do Código Civil. Outra inovação no Estatuto é a possibilidade de reconhecer a posse do antecessor pelo herdeiro, desde que já estivesse morando no imóvel quando do falecimento de seu antecessor. Nos demais requisitos, ambos coincidem com o embasamento do artigo 183 da Constituição.
O legislador, através deste instrumento, pretende dar efetividade máxima ao direito de moradia para a população de baixa renda, localizada em assentamentos urbanos informais, de propriedade privada. Os imóveis públicos não serão objeto de ações de usucapião, deve-se utilizar de outros instrumentos de regularização fundiária àqueles casos, como a concessão de uso especial para fins de moradia ou a concessão de direito real de uso.
A sentença de usucapião deve ser registrada no Cartório de Registro de Imóveis para declarar a propriedade do imóvel ao morador. O rito processual na ação de usucapião será o sumário, visando reduzir os prazos processuais. O autor da ação de usucapião, em se tratando de pessoa de baixa renda, terá os benefícios da justiça e da assistência judiciária gratuita, inclusive perante o Cartório de Registro de Imóveis.
D)Direito de preempção
O direito de preempção está previsto no artigo 25 do Estatuto da Cidade, este instrumento foi inaugurado no referido diploma legal. Na utilização deste, o Município tem a preferência na aquisição de um imóvel contra um terceiro, desde que o imóvel esteja relacionado em lei municipal específica baseada no Plano Diretor, com as destinações previstas nos incisos do artigo 26[26].
A área gravada com o direito de preempção não poderá ser alienada sem antes ser oferecida ao Município. Ao proprietário do imóvel, após ter em sua área a afetação de tal instrumento, não terá muito êxito na venda, sobretudo, muito provável ocorrerá uma desvalorização do patrimônio. O direito de preempção não será extinto quando ocorrer a alienação do imóvel à terceiros.
O direito de preempção gera polêmica entre os doutrinadores, pois, para Pereira (2003, p. 148) “judicialmente não se sustenta o direito de preempção, somente em casos excepcionais em que não haverá reação por parte do proprietário”. Analisando o instrumento, verifica-se que a finalidade é muito próxima da desapropriação, dessa forma, na escolha pelo instrumento adequado deve-se levar em conta as particularidades de cada caso. Por fim, a utilização pelo Poder Público da área em desconformidade com a finalidade declarada acarreta a responsabilização do prefeito ou governador distrital por improbidade administrativa.
E)Concessão do direito real de uso
A concessão do direito real de uso (CRDU) é um instituto que tem previsão legal anterior ao Estatuto da Cidade, qual seja, artigo 7º[27], do Decreto-Lei 271/67. Sofreu alteração com a edição da Lei 11.481/07, acerca da regularização fundiária de interesse social em imóveis da União.
Este instituto pode ser aplicado em terrenos públicos ou particulares para o assentamento da população de baixa renda, ou para regularizar as situações já consolidadas, inclusive de forma coletiva, como prevê o Estatuto no § 2º do artigo 4º[28].
A CRDU através da Lei 11.481/07 tornou-se um direito real, previsto no artigo 1.225, XII, do Código Civil. Caso a pessoa beneficiada der destinação diversa da estabelecida no contrato ou termo, será extinta a concessão pelo Poder Público. O particular não possui a propriedade, mas sim, o direito real de uso do imóvel. Inclusive, poderá ser objeto de hipoteca, tendo por base o artigo 1.473, IX, Código Civil.
F)Concessão de uso especial para fins de moradia
A concessão de uso especial para fins de moradia (CUEM) está prevista no Estatuto da Cidade em cinco artigos, porém todos foram vetados pelo Poder Executivo. O veto ocorreu, principalmente, por não ter sido estabelecido um marco temporal para obtenção do direito.
No mesmo ato do veto, o Poder Executivo reconheceu a importância e validade do instrumento da concessão de uso especial para fins de moradia, e comprometeu em expedir um texto normativo que preenchesse as lacunas e sanasse as imprecisões do Estatuto. Dessa forma, foi expedida a Medida Provisória 2.220/01 regulamentando a CUEM.
De acordo com a Medida Provisória 2.220/01, artigo 1º, tem o direito à concessão aquele que, até 30 de junho de 2001, possuir, por cinco anos ou mais, ininterruptamente e sem oposição, até 250 m² (duzentos e cinquenta metros quadrados) de imóvel público situado em área urbana, utilizando-o para sua moradia ou de sua família, desde que não seja proprietário de outro imóvel urbano ou rural. Os imóveis públicos não podem ser usucapidos, dessa forma, é de extrema necessidade à regularização fundiária dos imóveis públicos informalmente ocupados pela população de baixa renda, aplicando a referida concessão que poderá ser concedida de forma coletiva, com base no artigo 2º.
Por força da Lei 11.481/07, a CUEM tornou-se um direito real, previsto no artigo 1.225, XI, do Código Civil, capacitando o seu titular de agir contra ações de terceiros, e serve como objeto de hipoteca, baseado no artigo 1.473, VIII, do Código Civil. Da mesma forma que a concessão do direito real de uso, poderá ser extinta pelo Poder Público caso o morador usar o imóvel para outro fim ou se restar comprovado que possua outro imóvel. A declaração da concessão ocorre pela via administrativa ou pela via judicial, cuja sentença serve como título a ser registrada no cartório de registro de imóveis. Como regra geral, segundo Alvarenga (2008, p. 67):
[...] o título será expedido pela via administrativa, pelo Poder Executivo. Somente em caso de recusa ou omissão do Poder Público competente é que o interessado deverá ingressar em juízo, e a concessão se dará por meio da sentença judicial.
Pela via administrativa, a Administração Pública não poderá ultrapassar o prazo máximo de doze meses para análise e deferimento da concessão. Alvarenga (2008) entende que a outorga da concessão não exige prévia desafetação, porém em alguns casos o Poder Público, como nas áreas de proteção aos ecossistemas, poderá assegurar o exercício do direito em outros locais, com base no artigo 5º[29], da Medida Provisória 2.220/01.
Após a análise do Estatuto da Cidade, Lei 10.257/01, com a apresentação de alguns dos instrumentos de regularização fundiária urbana previstos naquele ordenamento, passa-se ao segundo ponto do capítulo, em que será analisado a Lei 11.977/09.
3.2 Procedimentos de regularização fundiária urbana na Lei nº 11.977/09
A Lei nº 11.977, de 07 de julho de 2009, dispõe sobre o “Programa Minha Casa, Minha Vida – PMCMV” e a regularização fundiária de assentamentos localizados em áreas urbanas. A função primordial deste programa é facilitar o acesso à moradia para a população de baixa renda e reduzir o déficit habitacional desta classe social especialmente nos casos em que esteja configurado o interesse social, através de recursos do Sistema Financeiro Habitacional.
A lei divide-se em três partes: a primeira relativa ao Programa Minha Casa, Minha Vida – PMCMV, tendo por objetivo criar uma série de mecanismos para produção, aquisição e reforma de unidades habitacionais de interesse social. A segunda parte trata do registro eletrônico de imóveis, que possibilitará a formação de um banco de dados nacional com os atos registrais praticados antes e depois da Lei dos Registros Públicos (Lei nº 6.015/73), bem como define os emolumentos a serem cobrados pelo Oficial do Registro Imobiliário relativos aos atos previstos na lei. No capítulo terceiro é tratada a regularização fundiária de assentamentos urbanos, ponto de extrema importância ao presente estudo, uma vez que, introduz instrumentos para enfrentar o desafio de legalizar milhões de moradias urbanas no Brasil.
No artigo 46[30] é conceituada a regularização fundiária, e em termos gerais, segundo o Ministério das Cidades (2010), é o processo que inclui medidas jurídicas, urbanísticas, ambientais e sociais, com a finalidade de integrar assentamentos irregulares ao contexto legal das cidades. No entendimento de Paiva (2009, texto digital) “a regularização fundiária é um processo para transformar terra urbana em terra urbanizada (com infra-estrutura e integração à cidade)”.
Nessa perspectiva, a regularização fundiária mostra-se de extrema importância para o combate à desigualdade nas cidades, visto que, permite o acesso ao direito à moradia pelo cidadão que se encontra deslocado do contexto legal das cidades, sem o mínimo de dignidade. Conforme a cartilha de regularização fundiária do Ministério das Cidades (2010, texto digital) os principais avanços da Lei nº 11.977/09 na regularização fundiária urbana são:
-definição de competências e responsabilidades dos atores envolvidos nos processos de regularização, em especial, a atribuição expressa de competência aos Municípios para disciplinar os procedimentos de regularização fundiária dentro de seus limites territoriais;
-diferenciação entre regularização fundiária de interesse social e regularização fundiária de interesse específico;
-obrigatoriedade da elaboração de projeto de regularização fundiária, instrumento integrador das dimensões social, jurídica, urbanística e ambiental; componentes do processo;
-possibilidade de compatibilização do direito à moradia e do direito a um meio ambiente saudável, estabelecendo regras para a regularização fundiária de interesse social em Áreas de Preservação Permanente urbanas;
-criação dos instrumentos de demarcação urbanística e legitimação de posse, que agilizam os processos de regularização fundiária de interesse social em situações que anteriormente só podiam ser tratadas por meio de ações judiciais de usucapião.
[...]
-pagamento da indenização em desapropriação de imóveis; e
-registro de parcelamentos irregulares efetuados antes da Lei nº 6.766/79.
A lei instituiu, no tocante à desapropriação, que o valor depositado pelo ente expropriante terá o desconto das dívidas fiscais e das multas do não pagamento dessa obrigação, porém o Município deve ter inscrito o valor na dívida ativa e, proposto a ação de execução fiscal. Tal disposição vem a completar a matéria relativa às desapropriações, que, conforme analisado no ponto anterior, poderá ter por base o Estatuto da Cidade. Os assentamentos irregulares apresentam, normalmente, dois tipos de situações, conforme se vê no texto produzido pelo Ministério das Cidades:
[...] irregularidade dominial, quando o possuidor ocupa uma terra pública ou privada, sem qualquer título que lhe dê garantia jurídica sobre essa posse; e, urbanística e ambiental, quando o parcelamento não está de acordo com a legislação urbanística e ambiental e não foi devidamente licenciado. A efetiva integração à cidade requer o enfrentamento de todas essas questões, por isso a regularização envolve um conjunto de medidas. Além disso, quando se trata de assentamentos de população de baixa renda, são necessárias também medidas sociais, de forma a buscar a inserção plena das pessoas à cidade (MINISTÉRIO DAS CIDADES, 2010, texto digital).
As irregularidades apresentadas acima são as mais frequentes na sociedade brasileira, porém, não se pode afirmar que tais irregularidades restringem somente aos assentamentos populares, existem bairros e loteamentos formados por famílias de classe média e alta, que, dá mesma forma estão fora do enquadramento legal. Nesse sentido, a lei cria condições e instrumentos diferenciados, visto que, os assentamentos populares são formados por moradores que foram obrigados a viver por falta de alternativa, nos demais casos, houve opção pela construção em loteamentos e condomínios irregulares apesar de terem condições de adquirir uma residência legalizada.
Com a intenção de caracterizar os dois tipos de regularização fundiária a lei definiu da seguinte forma:
- regularização fundiária de interesse social: aplicável a assentamentos irregulares ocupados por população de baixa renda em que a garantia do direito constitucional à moradia justifica que se apliquem instrumentos, procedimentos e requisitos técnicos especiais; e
- regularização fundiária de interesse específico: aplicável a assentamentos irregulares não enquadrados como de interesse social. Nesses assentamentos não se podem utilizar as condições especiais desenhadas para a regularização fundiária de interesse social (MINISTÉRIO DAS CIDADES, 2010, texto digital).
Por tratar-se de um processo coletivo, de acordo com a lei, os seguintes atores têm legitimidade para promover a regularização fundiária: a União, os Estados, o Distrito Federal e os Municípios; a população moradora dos assentamentos informais, de maneira individual ou em grupo; cooperativas habitacionais, associações de moradores, organizações sociais, organizações da sociedade civil de interesse público; e entidades civis, constituídas com a finalidade de promover atividades ligadas ao desenvolvimento urbano ou à regularização fundiária.
O loteador, responsável pelo parcelamento irregular do solo, não terá sua responsabilidade retirada em razão da propositura da regularização fundiária por algum dos atores acima expostos. O legislador tomou a precaução de evitar a evasão da responsabilidade do loteador, pois em muitos casos a falta de regularização fundiária foi causada pela inércia proposital do mesmo.
O poder público deve notificar o loteador, em conformidade com o artigo 38, § 2º da Lei nº 6.766/79[31], que responderá por crime contra a Administração Pública, em razão do artigo 50 da Lei nº 6.766/79[32], podendo receber uma pena máxima de 4 (quatro) anos de reclusão e multa de 50 (cinquenta) vezes o maior salário mínimo vigente no País, ou, em caso de conduta qualificada, 5 (cinco) anos de reclusão e multa de 100 (cem) vezes o maior salário mínimo vigente no País.
Na sequência, foram estudados cinco instrumentos de regularização fundiária urbana previstos na Lei 11.977/09:
A) Projeto de regularização fundiária
A lei criou o instrumento denominado de projeto de regularização fundiária, título que será registrado no Cartório de Registro de Imóveis competente. Este instrumento deverá ter elementos mínimos que contemplem as dimensões dominial, urbanística e ambiental, em conformidade com o artigo 51.[33] Não será exigido tal projeto para o registro da sentença de usucapião, da sentença declaratória ou da planta, elaborada para outorga administrativa, de concessão de uso especial para fins de moradia.
O projeto de regularização fundiária é necessário tanto para a regularização fundiária de interesse social quanto para a regularização fundiária de interesse específico. Na regularização fundiária de interesse social, em conformidade com o artigo 53[34] da lei, a aprovação municipal corresponde ao licenciamento urbanístico do projeto, bem como, ao licenciamento ambiental, verificados pelo órgão competente, os parâmetros urbanísticos e ambientais específicos, coerentes com as características da ocupação existente.
A competência para definir os requisitos de elaboração do projeto de regularização fundiária é do Município, no que se refere aos desenhos, o memorial descritivo e ao cronograma físico de obras e serviços a serem realizados, em conformidade com o artigo 51, § 2º. A regularização fundiária, constante do projeto, pode ser implementada por etapas, devendo estar previstas no cronograma físico de serviços e obras vinculado ao projeto.
A regularização fundiária de interesse social, conforme Ministério das Cidades (2010), é cabível às parcelas de solo ocupadas por população de baixa renda, nas situações em que exista o reconhecimento legal ou administrativo do direito à moradia. Nesse sentido:
As ocupações devem atender a, pelo menos, uma das seguintes condições:
- preencher os requisitos para usucapião ou concessão de uso especial para fins de moradia[35];
- situar-se em Zonas Especiais de Interesse Social – Zeis; ou
- ser declarada de interesse para a implantação de projetos de regularização fundiária de interesse social, nos casos de áreas da União, dos estados, do Distrito Federal ou dos Municípios (MINISTÉRIO DAS CIDADES, 2010, texto digital).
O preenchimento das condições do parágrafo anterior será auferido pelo ente público promotor da regularização fundiária. Em razão da regularização fundiária de interesse social, a Lei nº 11.977/09 criou instrumentos específicos, que visam facilitar a concretização do direito à moradia. Os três instrumentos são: a demarcação urbanística, a legitimação de posse, e a regularização fundiária em Áreas de Preservação Permanente – APPs.
B) Demarcação urbanística
O instrumento da demarcação urbanística, amparado pelo artigo 56[36], sinaliza, conforme Paiva (2009, texto digital), a possibilidade de aquisição da propriedade imobiliária pela usucapião, mas não constitui título, e não tem o objetivo de proporcionar a transferência de propriedade imobiliária. Será realizada a partir da lavratura de Auto de Demarcação Urbanística pelo órgão do Poder Público interessado em realizar a regularização fundiária de interesse social.
Na demarcação urbanística ocorrerá a delimitação da área ocupada para fins habitacionais, de domínio público ou privado, através da completa descrição dos limites, confrontantes, metragens e localização. As áreas objeto da demarcação urbanísticas, necessariamente, devem estar ocupadas, sem oposição do proprietário do imóvel. Em razão de ser um instrumento de regularização fundiária de interesse social, a ocupação deve ser de população de baixa renda.
A demarcação urbanística será realizada pela União, pelos Estados, pelos Municípios e pelo Distrito Federal. A demarcação em terras particulares poderá ser realizada por qualquer um dos entes públicos, porém, nas terras públicas, qualquer ente poderá fazer a demarcação urbanística de seu próprio domínio. Nesse sentido, a demarcação de terras federais, em consonância com o Decreto-Lei nº 9.760/46, somente será realizada pela União. Ao contrário da demarcação em terras dos Municípios ou Estados, em que poderá qualquer ente realizar a demarcação com a anuência do titular da área, e, desde que não haja vedação em lei patrimonial.
C) Legitimação de posse
A legitimação de posse, conforme o Ministério das Cidades (2010), é um instrumento de regularização fundiária de interesse social, utilizado posterior a demarcação urbanística, tem por finalidade o reconhecimento da posse de moradores de áreas objeto da demarcação urbanística. Em conformidade com o artigo 59, será concedida a legitimação da posse aos moradores que não sejam concessionário, foreiros ou proprietários de outro imóvel urbano ou rural; não tenham sido beneficiários de legitimação de posse concedida anteriormente; e, ocupem lote com área inferior a 250 m².
A posse em questão deve ser mansa e pacífica, sem ter qualquer oposição de parte legítima para questioná-la. Quando o ente promotor da legitimação não identificar as áreas ocupadas por cada possuidor, poderá promover a legitimação de posse de forma coletiva, porém o lote não poderá ultrapassar a regra dos 250 m² de fração ideal para cada possuidor.
A legitimação da posse não reconhece um direito real, mas devidamente registrada, no cartório de registro de imóveis, constitui direito em favor do detentor da posse direta para fins de moradia. Podem ocorrer duas situações: legitimação de posse em áreas privadas e em áreas públicas. Quando realizada em áreas privadas possibilita a aquisição da propriedade através da usucapião administrativa, exigindo 5 (cinco) anos de posse sobre o imóvel após o registro da legitimação de posse, consoante procedimento do artigo 60[37], e, tratando-se de área pública, facilitará o pedido de concessão de uso para fins de moradia, mas por si só, não autorizará a transferência do domínio da área.
O poder público confecciona um título, em nome do morador, dando publicidade às posses identificadas e qualificadas, que estão inseridas em área objeto de demarcação urbanística. Após o possuidor registra o título no cartório de registro de imóveis.
É cabível mencionar que nas hipóteses de área pública, quando o ente promotor da ação é o proprietário da área, é desnecessário realizar a legitimação da posse, visto que, o ente poderá utilizar de outros instrumentos como a concessão de direito real de uso, a doação, entre outros. Faz-se necessário utilizar da legitimação da posse em áreas públicas quando o ente promotor da ação não for o proprietário do imóvel (MINISTÉRIO DAS CIDADES, 2010).
Caso o Poder Público verifique que o beneficiário do título de legitimação de posse não está na posse do imóvel, sem ter ocorrido uma cessão de direitos ao novo possuidor, poderá extinguir o título, em conformidade com o artigo 60-A.
D)Regularização fundiária em áreas de preservação permanente
Considera-se um avanço a possibilidade de o Município admitir a regularização fundiária em áreas de preservação permanente[38]. Porém, este instrumento somente será adotado na regularização fundiária de interesse social, sendo inadmitido nas regularizações fundiárias de interesse específico.
Caso o Município não tenha competência para o licenciamento ambiental da área de preservação permanente, objeto da regularização fundiária, em conformidade com o artigo 54, parágrafo 3º, será o Estado responsável pela emissão deste licenciamento, sendo que o Município permanece na competência de emitir o licenciamento urbanístico.
São requisitos, em conformidade com o artigo 54, parágrafo 1º: decisão administrativa motivada; área ocupada até 31 de dezembro de 2007; ocupação inserida em área urbana consolidada[39]; estudo técnico comprovando que a intervenção implicará em melhoria das condições ambientais em relação à situação de ocupação irregular anterior.
O profissional responsável pela elaboração do estudo técnico deve estar legalmente habilitado, vinculado ao projeto de regularização fundiária, e condicionar no estudo técnico os elementos do artigo 54, § 2º[40].
E) Regularização Fundiária de Interesse Específico
A regularização fundiária de interesse específico é toda aquela em que não está caracterizado o interesse social. Será encaminhada a regularização fundiária à autoridade licenciadora para análise a aprovação do projeto de regularização fundiária, constante do artigo 51. Da mesma forma que o projeto de regularização fundiária de interesse social, dependerá das licenças urbanística e ambiental.
Não será objeto de regularização fundiária de interesse específico a ocupação em área de preservação permanente. Poderá ser exigido, pela autoridade licenciadora, contrapartida e compensações urbanísticas e ambientais decorrentes da regularização fundiária. Devem estar previstas em norma municipal, e integrar o termo de compromisso firmado perante as autoridades, como forma de título executivo extrajudicial[41], conforme artigo 62, § 2º[42].
Nas licenças urbanística e ambiental da regularização fundiária de interesse específico deverão estar definidas, pela autoridade licenciadora, as responsabilidades relativas à implantação do sistema viário, da infraestrutura, dos equipamentos comunitários, das medidas de mitigação e de compensação urbanística e ambiental eventualmente exigidas. As responsabilidades podem ser compartilhadas com os beneficiários da regularização fundiária de interesse específico, com base no artigo 62, § 1º[43].
Realizada a apresentação dos instrumentos de regularização fundiária constantes da Lei nº 11.977/09, passará ao último ponto deste segundo capítulo, no tocante aos instrumentos de regularização fundiária trazidos pelo Projeto More Legal IV, ordenamento jurídico-administrativo próprio do Estado do Rio Grande do Sul.
3.3 O Projeto More Legal como procedimento jurídico-administrativo no âmbito do Estado do Rio Grande do Sul
O Projeto More Legal é uma iniciativa do Poder Judiciário gaúcho e tem por objetivo regularizar áreas urbanas e rurais no Estado do Rio Grande do Sul. Surgem ao proprietário do imóvel, como consequência da regularização, todas as faculdades legais vindas do direito de propriedade, tais como vender, hipotecar, alienar fiduciariamente, ou seja, praticar todos os atos que impulsionam o mercado imobiliário.
O imóvel em situação condominial não apresenta a mesma facilidade de venda ou de alienação; dessa forma, nada mais importante que a normatização pelo poder judiciário de procedimentos que propiciem a regularização desses imóveis, sobretudo, prevendo o procedimento extrajudicial, que desafoga os cartórios judiciais e traz agilidade na solução da questão.
O Projeto More Legal foi idealizado pelo Desembargador Décio Antonio Erpen, então Corregedor-Geral da Justiça do Estado do Rio Grande do Sul, e foi editado pela primeira vez em 1995, através do provimento nº 39/1995-CGJ/RS – More Legal I. O projeto pioneiro no país teve por finalidade estabelecer regras simples para a regularização de loteamentos, desmembramentos, fracionamentos ou desdobro de imóveis urbanos ou urbanizados, com a decorrente legalização do exercício da posse mediante registro imobiliário, em situações consolidadas[44], nas quais indicada sua irreversibilidade.
Em 11 de outubro de 1999, o Projeto More Legal foi reeditado, sendo instituído pelo provimento nº 17/1999-CGJ/RS– More Legal II, assinado pelo Desembargador Aristides de Albuquerque Neto, Corregedor-Geral da Justiça. Dentre as considerações do projeto, destaca-se a proteção jurídica dos adquirentes de imóveis, especialmente quando integrantes de loteamentos ou parcelamentos assemelhados. No tocante aos fracionamentos, mesmo quando não planejados ou autorizados administrativamente de forma expressa, geram em muitas hipóteses situações fáticas consolidadas e irreversíveis, adquirindo as unidades desmembradas autonomia jurídica e destinação social compatível, com evidente repercussão na ordem jurídica.
Além disso, o segundo projeto apresenta embasamento na Lei Federal nº 9.785, de 29 de janeiro de 1999, que alterou o Decreto-Lei nº 3.365/41 e as Leis nºs 6.015/73 (Lei dos Registros Públicos) e 6.766/79 (Lei do Parcelamento do Solo Urbano). Na Lei nº 9.785/99 o legislador expressou o interesse público dos parcelamentos do solo, bem como, das regularizações fundiárias, vedando exigências outras que não a documentação mínima necessária ao registro, dessa forma, é nítido o que se busca com o Projeto More Legal, desde o seu início valorizou o direito à moradia com dignidade humana.
O Projeto More Legal III foi instituído pelo provimento nº 28/2004-CGJ/RS, em 28 de outubro de 2004, assinado, da mesma forma que o segundo projeto, pelo Desembargador Aristides de Albuquerque Neto, Corregedor-Geral da Justiça. Este projeto consagra o direito à moradia como direito social fundamental do cidadão, conceito introduzido pela Emenda Constitucional nº 26, de 14 de fevereiro de 2000.
A vigência do segundo projeto foi de pouco mais de cinco anos. Nesse período surgiram novas normas jurídicas que, juntamente com a Emenda Constitucional já referida, vieram a embasar o terceiro projeto, como a Lei nº 10.257 (Estatuto das Cidades), de 10 de julho de 2001, conforme analisada trouxe diretrizes básicas referentes à política urbana, tendo como objetivo ordenar o pleno desenvolvimento das funções sociais da propriedade, o direito do cidadão à terra urbana e à moradia, para as presentes e futuras gerações, bem como, a Lei nº 10.931, de 02 de agosto de 2004, que alterou o procedimento de retificação no registro imobiliário.
O Projeto More Legal IV foi instituído pelo provimento nº 21/2011-CGJ/RS, em 15 de junho de 2011, assinado pelo Desembargador Ricardo Raupp Ruschel, Corregedor-Geral da Justiça. Nesse projeto, considerou-se como embasamento a edição da Lei nº 11.977, de 07 de julho de 2009, que instituiu o Programa Minha Casa, Minha Vida – PMCMV e medidas para regularização fundiária de assentamentos localizados em áreas urbanas, e a Lei nº 11.481, de 31 de maio 2007, prevendo medidas voltadas à regularização fundiária de interesse social em imóveis da União.
Seguindo a linha do projeto pioneiro, Projeto More Legal I, a quarta edição do projeto visa à regularização do lote individualizado, de quarteirão ou da totalidade da área, nos casos de regularizações e registros de loteamentos, desmembramento, fracionamento ou desdobro de imóveis urbanos ou urbanizados, ainda que localizados em zona rural. O objetivo maior desse procedimento de regularização é extinguir os condomínios pro diviso[45] existentes na área maior.
No tocante a regularização fundiária de interesse social, destinada aos assentamentos irregulares ocupados, predominantemente, por população de baixa renda, o Projeto More Legal IV tem por norte a Lei nº 11.977/09, uma vez que no terceiro projeto deste regramento não se fazia presente. Dessa forma, o projeto faz menção que o procedimento registral adotado na regularização fundiária de interesse social terá por base os artigos 47, inciso VI e 53 e seguintes, daquela lei, juntamente com os dispositivos da Consolidação Normativa Notarial e Registral-CGJ/RS (CNNR) no Capítulo XV, Seção III – Da Regularização Fundiária com Projeto Aprovado.
A grande novidade do Projeto More Legal IV foi a criação do artigo 526-C na CNNR[46], gerando a possibilidade de regularização de parcelas de imóveis registrados em condomínio, em situação localizada, ou seja, pro diviso, quando não oriunda de loteamento clandestino, pela via extrajudicial. Nesse sentido, trouxe um instrumento de regularização que se consagrou nos imóveis rurais, conhecido por Projeto Gleba Legal - Provimento nº 07/2005, de 12 de abril de 2005, através do qual se torna possível a localização das parcelas em condomínio pro diviso, através de escritura pública, lavrada com a anuência de todos os confrontantes da área à ser localizada, requisito obrigatório.
O Projeto More Legal IV surge como uma alternativa para desafogar as demandas consensuais do Poder Judiciário relativas à regularização de imóvel em situação condominial, uma vez que abre a possibilidade para regularização de imóveis situados nos perímetros urbanos, assim como nos locais urbanizados, ainda que situados na zona rural, em cujos assentos conste estado de comunhão (condomínio), mas que na realidade, se apresentam individualizados e em situação jurídica consolidada há mais de cinco anos, por si ou seus antecessores, poderá ser objeto de escritura pública de localização de parcela, sem necessidade de intervenção judicial.
O Projeto More Legal IV alterou o Capítulo XV e seus artigos na CNNR, apresentando, entre outros, o artigo 512, CNNR[47], como uma forma de regularização judicial aos imóveis em situações consolidadas, permitindo a autoridade judiciária competente autorizar ou determinar o registro acompanhado de documentos imprescindíveis. Conforme análise de Paiva (2011, texto digital) acerca do artigo 512, CNNR:
O dispositivo deste art. 512 destina-se, basicamente, à realização de regularizações de propriedades que possuam alguma forma de titulação, quando esteja sendo processada no âmbito judicial. Sabe-se que para a transmissão da propriedade imobiliária devem estar presentes os requisitos básicos do título e do modo de aquisição, binômio inafastável também enquanto condição jurídica para a realização das regularizações imobiliárias instituídas pelo Projeto More Legal. Assim, o inciso I do art. 512 do Provimento nº 21/2011, continua admitindo a apresentação de cópia da matrícula do imóvel, ao invés do título, nas hipóteses dos parágrafos 3º e 4º desse mesmo artigo, não como substitutivas um do outro, mas em razão de que, na hipótese, a apresentação de cópia atualizada da matrícula destina-se a demonstrar a situação na qual se encontra o registro atual, representativo da situação relativa ao modo, já que os documentos referidos no § 4º, a serem juntados, representam o título ou, pelo menos a situação de regularidade de um título em formação, no contexto de um processo de parcelamento popular com decreto expropriatório já publicado, mantendo-se, dessa forma, o respeito aos requisitos essenciais do binômio essencial à regularização autorizada pelo Provimento nº 21/2011.
Nesse sentido, quando o cidadão não possui a titularidade do imóvel, encontra-se na posse direta do mesmo, poderá realizar a regularização fundiária em conformidade com o artigo 512, CNNR. Na regularização de loteamentos, ainda que possa parecer apenas um benefício direto aos possuidores de lotes em situações irregulares, toda sociedade sairá ganhando, visto que, é uma solução para o enfrentamento do grave problema gerado pelo crescimento desorganizado das cidades (PAGANI, 2009).
O artigo 513, CNNR, da mesma forma que o artigo 512, prevê um procedimento de regularização judicial. Porém, o seu texto ficou inalterado pelo Projeto More Legal IV, visto tratar-se de um procedimento de regularização de imóvel público ou submetido à intervenção do Poder Público, integrante de área especial de interesse social, conforme Paiva (2011, texto digital):
As disposições do art. 513 [...] com o advento da Lei nº 11.977/09 tendem a restar com uma aplicação bastante restrita, que a referida lei, privilegiando a resolução extrajudicial de conflitos, adotou mecanismos administrativos destinados à promoção e implantação da regularização fundiária de interesse social que têm, como atores principais, o ente promotor da regularização (União, Estado, município) e o Registro Imobiliário [...].
O procedimento previsto no artigo 513, CNNR, aplicável à regularização fundiária de imóvel público ou submetido à intervenção do Poder Público, quando integrante da área especial de interesse social, em decorrência das formas de regularização extrajudicial apresentadas no quarto projeto, restará em segunda opção.
Criado em decorrência do Projeto More Legal IV, o artigo 526-B, CNNR[48], estabelece o procedimento judicial de regularização de área em condomínio na situação em que o imóvel apresente estado de comunhão (condomínio), mas na realidade se encontrar individualizado e em situação jurídica consolidada, podendo o juiz autorizar a localização da área observando o seguinte.
O marco de destaque no Projeto More Legal IV, é a previsão do procedimento extrajudicial na regularização de áreas urbanas em condomínio pro diviso, significa um avanço na legislação jurídico-administrativa, visto que, desafoga as demandas consensuais do Poder Judiciário. A base legal, conforme referido anteriormente, encontra-se no artigo 526-C, CNNR, o ato extrajudicial de regularização se dará através dos mesmos procedimentos para a localização de parcela pelo Projeto Gleba Legal - Provimento nº 07/2005, de 12 de abril de 2005, regulado pelo artigo 529 e seguintes, CNNR.
Existe o cuidado do legislador ao prever que não será regularizada a parcela de imóveis urbanos registrados em condomínio oriundas de loteamento clandestino, visto que deve-se ter a infraestrutura básica implantada. O artigo 529, CNNR[49], prevê que a posse do proprietário sobre a parcela pro diviso deverá ter o mínimo de cinco anos. Nos artigos 530 e 530-A, CNNR[50], se têm a forma de instrumentalização do procedimento de regularização extrajudicial, realizada a lavratura pelo Tabelião de Notas de Escritura Pública Declaratória e, após o registro e abertura da matrícula pelo Registrador Imobiliário.
O Oficial Registrador fará a análise do título apresentado pelo requerente, é importante que se tenha um padrão no procedimento de registro para evitar impugnações desnecessárias, nesse sentido, conforme citado acima, é de boa prática instruir a escritura pública com planta do imóvel, memorial descritivo, anotação de responsabilidade técnica, e certidão narrativa do terreno, emitida pela Prefeitura Municipal.
Dessa forma, foram expostos os principais instrumentos de regularização fundiária disponíveis, passa-se ao último capítulo do trabalho, em que será enfrentada a questão da (in)suficiência dos instrumentos de regularização fundiária frente ao problema social do direto à moradia.