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O juiz e o consumidor torcedor

19/10/2012 às 14:09
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Numa ação indenizatória por danos morais, movida por um consumidor que havia aderido a um pacote de TV por assinatura para acompanhar os jogos de seu time, mais uma vez, um juiz jogou papo de botequim em um ato oficial.

Confesso que refleti bastante antes de escrever este breve texto. Mas, no fim, como estudioso e defensor dos direitos do consumidor, acabei não resistindo.

Foi notícia na internet, principalmente nas redes sociais, a sentença proferida por um juiz de direito da comarca de Cachoeira de Macabu, no estado do Rio de Janeiro (processo nº 0017395-81.2011.8.19.0012). No caso, o magistrado julgou uma ação indenizatória por danos morais, movida por um consumidor que havia aderido a um pacote do Campeonato Brasileiro, a fim de acompanhar os jogos do seu time – o Vasco da Gama. A operadora de TV por assinatura SKY interrompera o sinal do consumidor, ao argumento de que alguns documentos não haviam sido enviados pelo assinante, o que restou afastado pelo acervo probatório. O consumidor venceu a demanda, tendo o juiz condenado a ré ao pagamento de R$2.000,00 (dois mil reais) pelos danos morais experimentados. Em síntese, esse é o caso.

A surpresa, contudo, foi a fundamentação do juiz, que faço questão de transcrever, com destaques para a parte principal:

“O dano moral reside no fato de que o autor teve suas expectativas frustradas, perdeu tempo e se indgnou. É bem verdade que sua pretensão seria assistir os jogos do vaco da gama, o que de certa forma atenua a proporção do dano, pois não é possível comparar a frustração de não poder ver um jogo de times que já frequentaram a segunda ou terceira divisão com aqueles que nunca estiveram nestes submundos. Desta forma, o dano moral deve levar em consideração tais fatos. Exemplificando, se fosse o fluminense, por ter jogado a terceira, valor ínfimo, o vasco e botafogo, por terem jogado a segundona, um pouco maior, já o glorioso clube regatas do flamengo, que jamais frequentou ou frequentará tais submundos, o dano seria expressivo” (sic).

Brincadeiras futebolísticas à parte, a atuação do magistrado, a meu ver (e imagino que também aos olhos de quem leva a sério o direito alheio), nada tem de engraçada, como repercutido na internet. Ao contrário, é verdadeiramente ofensiva, discriminatória; merecedora de exemplar repreensão por parte da respectiva Corregedoria de Justiça.

Qualquer leigo perceberá que o fundamento da decisão permite concluir que torcedores de times como XV de Piracicaba, América de Natal, São Raimundo, Bragantino, Ferroviário, enfim, de times menos expressivos, não sofreriam dano moral, caso tivesse seus direitos de consumidor desrespeitados. São times que disputam as divisões de menor prestígio do nosso futebol. Então, a indigitada operadora de TV por assinatura teria carta branca pra desrespeitar esses torcedores. O que se viu foi: mais uma vez, um juiz jogou papo de botequim em um ato oficial.

Nossa Constituição é inaugurada com um preâmbulo em que se lê:

“Nós, representantes do povo brasileiro, reunidos em Assembléia Nacional Constituinte para instituir um Estado Democrático, destinado a assegurar o exercício dos direitos sociais e individuais, a liberdade, a segurança, o bem-estar, o desenvolvimento, a igualdade e a justiça como valores supremos de uma sociedade fraterna, pluralista e sem preconceitos, fundada na harmonia social e comprometida, na ordem interna e internacional, com a solução pacífica das controvérsias, promulgamos, sob a proteção de Deus, a seguinte CONSTITUIÇÃO DA REPÚBLICA FEDERATIVA DO BRASIL” (destaquei).

Adiante, a vedação do preconceito é estampada no art. 3º, IV, como um dos objetivos fundamentais da República:

“Art. 3º Constituem objetivos fundamentais da República Federativa do Brasil:

(...)

IV - promover o bem de todos, sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de discriminação” (destaquei).

Prosseguindo, lê-se no caput do art. 5º:

“Art. 5º Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes” (grifei).

Certamente, o magistrado em questão se orientou consoante a regra etiquetada no art. 944 do Código Civil, que diz:

“Art. 944. A indenização mede-se pela extensão do dano”.

Imagino que, ao decidir, o juiz pensou ser-lhe lícito utilizar a maior ou menor expressividade de times de futebol como fator apto a mensurar os danos sofridos por alguém em casos como esse. Entretanto, como ele próprio fez questão de registrar, “o dano moral reside no fato de que o autor teve suas expectativas frustradas, perdeu tempo e se indgnou”. E nessa linha de raciocínio deveria ter se mantido, pois é o exato fundamento da decisão.

Quando o art. 944 do CC/2002 diz que “a indenização mede-se pela extensão do dano”, não está, absolutamente, autorizando o julgador a adotar exercícios hermenêuticos relacionados às convicções futebolísticas da parte. Sobre o tema, Flávio Tartuce ensina:

“Pois bem, na esteira da melhor doutrina e jurisprudência, na fixação da indenização por danos morais, o magistrado deve agir com equidade, analisando:

a) a extensão do dano;

b) as condições socioeconômicas e culturais dos envolvidos;

c) as condições psicológicas das partes;

d) o grau de culpa do agente, de terceiro ou da vítima.” (TARTUCE, Flávio. Direito Civil v. 2: Direito das Obrigações e Responsabilidade Civil. 7ª ed. São Paulo: Método, 2012, p. 409).

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Recuso-me a crer que o juiz em questão sentiu-se autorizado a julgar conforme o critério da letra “b” acima. Sem pretender atacar ou provocar quem quer que seja, seria, consoante suas próprias conclusões, um contrasenso, pois o torcedor do Flamengo, v. g., deveria receber uma indenização simbólica, caso ajuizasse uma ação da mesma natureza, pois é fato notório que a massa rubro-negra, isto é, a maior parte da torcida do (de fato) grandioso Clube de Regatas do Flamengo, pertence a camadas sociais menos favorecidas. Aliás, sendo o futebol um esporte popular, qualquer massa de torcedores, via de regra, pertence às chamadas classes C e D. Não sejamos hipócritas, por favor! 

Deixando o futebol de lado, imaginemos que houvesse um canal religioso destinado a católicos, somente acessível a quem é assinante da TV paga, e os respectivos fieis decidissem aderir ao pacote que contém o hipotético canal. Ora, um juiz poderia, perfeitamente, argumentar que, em razão do descrédito da religião católica, provocado pelos sucessivos escândalos de pedofilia de que a instituição é acusada, o dano experimentado pelo consumidor seria irrisório, se comparado a outras religiões.

Onde estão os direitos do consumidor?! Agora o dano mede-se pelas preferências e convicções do lesado?! Parece-me que na visão do referido juiz, sim.

Certamente, haverá leitores que pensarão: “mas que cara chato esse tal de Vitor Guglinski! Será que ele não relaxa, que fica vendo chifre em cabeça de cavalo o tempo todo?”

Paciência! E que assim seja. Levo, sim, muito a sério, a vida alheia, os direitos das pessoas, principalmente a liberdade. E penso que todos que investiram e ainda estão investindo anos de suas vidas nos estudo do Direito, provavelmente também pensarão algo semelhante. Fica difícil levar a sério um país onde um dos agentes responsáveis pela defesa e manutenção de uma instituição séria, como a Justiça, simplesmente fundamenta sua decisão com base na maior ou menor expressividade de times de futebol.

Mas, o “campeonato” continua...    

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Sobre o autor
Vitor Guglinski

Advogado. Professor de Direito do Consumidor do curso de pós-graduação em Direito da Universidade Cândido Mendes (RJ). Professor do curso de pós-graduação em Direito do Consumidor na Era Digital do Meu Curso (SP). Professor do Curso de pós-graduação em Direito do Consumidor da Escola Superior da Advocacia da OAB. Especialista em Direito do Consumidor. Membro do Instituto Brasileiro de Política e Direito do Consumidor (Brasilcon). Ex-assessor jurídico do Tribunal de Justiça do Estado de Minas Gerais. Autor colaborador da obra Código de Defesa do Consumidor - Doutrina e Jurisprudência para Utilização Profissional (Juspodivn). Coautor da obra Temas Actuales de Derecho del Consumidor (Normas Jurídicas - Peru). Coautor da obra Dano Temporal: O Tempo como Valor Jurídico (Empório do Direito). Coautor da obra Direito do Consumidor Contemporâneo (D'Plácido). Coautor de obras voltadas à preparação para concursos públicos (Juspodivn). Colaborador de diversos periódicos jurídicos. Colunista da Rádio Justiça do Supremo Tribunal Federal. Palestrante. Currículo Lattes: http://buscatextual.cnpq.br/buscatextual/visualizacv.do?id=K4246450P6

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

GUGLINSKI, Vitor. O juiz e o consumidor torcedor. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 17, n. 3397, 19 out. 2012. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/22846. Acesso em: 18 abr. 2024.

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