Resumo: O presente estudo tem por finalidade a análise dos aspectos controvertidos acerca da responsabilidade civil dos pareceristas jurídicos. É uníssono o entendimento da doutrina de que o parecer jurídico é uma opinião meramente técnica e, desse modo, o advogado público ao emiti-lo, dotado da autonomia inerente à sua função, deverá elaborá-lo em conformidade com a fundamentação e embasamento legal. Nesse sentido, esse artigo pretende analisar as margens de responsabilização desse agente pela medida tomada pelo administrador público e, com base nos estudos e entendimentos diversos sobre a matéria, fomentar a discussão a respeito visando alcançar a resposta para a seguinte questão: até que ponto o advogado público pode ser responsabilizado pelo ato administrativo praticado com base no parecer jurídico emitido?
PALAVRAS-CHAVE: Pareceristas jurídicos; responsabilidade civil; parecer jurídico; advogado público; fundamentação; embasamento legal;ato administrativo.
1.INTRODUÇÃO
A República Federativa do Brasil, consoante ressalta o art. 1°, caput, da Constituição da República de 1988 (CR/88), constitui-se em um Estado Democrático de Direito. O Estado de Direito tem como alicerce e sustentáculo o ordenamento jurídico e o princípio da legalidade, que regulam a vida em sociedade e a atuação do Estado. Nesse modelo, o poder absoluto estatal se retrai perante o domínio dos direitos individuais, de modo que o Estado, além de editar leis, também se submete a elas. Portanto, a função administrativa do Estado deve ser exercida dentro dos limites legais.
O corolário do Estado de Direito tem um braço forte na ideia de responsabilidade civil, penal e administrativa. A responsabilidade civil se traduz na obrigação de reparar os danos patrimoniais que um agente causa a outra pessoa, sendo que, com base em tal premissa, podemos afirmar que a responsabilidade civil do Estado é aquela que impõe à Fazenda Pública a obrigação de compor um dano causado a terceiros por agentes públicos no desempenho de suas atribuições. Trata-se de um sistema, por uma ficção legal, que pretende reparar um dano injustamente imposto a outrem. O objetivo é conseguir retornar ao ‘status quo ante’ - reparar de tal forma o dano ocorrido que, após a reparação, se conseguisse apagar não somente o dano propriamente dito como também todos os efeitos decorrentes do ato lesivo.
Entretanto, não raro, empiricamente, esse objetivo se mostra inatingível. O ato administrativo lesivo ao direito subjetivo nem sempre alcança a reparabilidade idealizada pelo legislador. Nesse sentido, o tema central desse trabalho busca respostas acercada responsabilidadedo pareceristapelas medidas praticadas pela Administração Pública, causadoras de dano ao particular, implementadas em conformidade como parecer jurídico emitido.
Segundo Maria Silva Zanella Di Pietro, parecer “é o ato pelo qual os órgãos consultivos da Administração emitem opiniões sobre assuntos técnicos ou jurídicos de sua competência.”(PIETRO, 2004, p.222) Assim, o parecer jurídico, por tratar-se de uma manifestação meramente técnica que, muitas vezes, é a própria motivação do ato administrativo, se estabelece como fundamento jurídico de inúmeras decisões tomadas no âmbito da Administração Pública. Nesse sentido, em se tratando de um elemento que fundamenta a tomada de decisão, surge a seguinte questão: o advogado público ao emitir um parecer jurídico, que serve de fundamento para a prática do ato administrativo, a despeito da liberdade profissional a ele constitucionalmente assegurada, é responsável civilmente pelos danos decorrentes da medida tomada? Quais seriam os limites para essa responsabilização?
2. PRERROGATIVA DA INVIOLABILIDADE DOS ATOS DO ADVOGADO
Os advogados públicos, aos quais compete o assessoramento jurídico e a representação judicial e extrajudicial do Estado, corriqueiramente se manifestam em pareceres jurídicos técnicos acerca de determinada matéria cuja expressão revela-se necessária. O parecer jurídico, nessa medida, manifesta-se como um ato opinativo técnico ou jurídico a respeito de determinada medida administrativa. Através dele os pareceristas competentes emitem suas opiniões, informando e aclarando entendimentos dos quais o Administrador Público pode valer-se no momento em que pratica o ato administrativo.
A Constituição Federal de 1988, em seu art. 133, dispõe a respeito da indispensabilidade dos advogados na administração da justiça, assegurando a inviolabilidade de seus atos e manifestações profissionais,enquanto enquadrados nos limites legais. Essa norma garantidora visa assegurar a liberdade e autonomia aos advogados no exercício de sua profissão.Nesse sentido, cabe ressaltar que a inviolabilidade constitucionalmente conferida ao advogado se estende à figura dos advogados públicos, uma vez que estes, a par de serem agentes públicos, não deixam de ser, primeiramente, Advogados. Nesse sentido, o Estatuto da Ordem dos Advogados do Brasil, no § 1º, do artigo 3º, dispõe que "exercem atividade de advocacia, sujeitando-se ao regime desta Lei, além do regime próprio a que se subordinam, os integrantes da Advocacia Geral da União, da Procuradoria da Fazenda Nacional, da Defensoria Pública e das Procuradorias e Consultorias Jurídicas dos Estados e do Distrito Federal, dos Municípios e das respectivas entidades de administração indireta e Fundacional.".
Assentada nesses moldes a inviolabilidade dos atos profissionais do advogado público, cumpre indagar se essa garantia é absoluta ou, noutras palavras, se o advogado público é livre de qualquer responsabilidade por atos praticados no exercício do seu ofício?
Para aqueles que respondem positivamente a este questionamento, a tarefa se encerra aqui. Contudo, segundo a doutrina majoritária e jurisprudência, a resposta para esse questionamento mostra-se negativa.
Nesse caso, tem-se em conflito duas premissas: a liberdade, autonomia e independência no exercício profissional do advogado e o direito da sociedade de controlar e exigir do Estado a responsabilização pelos atos praticados no exercício da atividade pública. Compatibilizar a independência, autonomia ea inviolabilidade profissional com as limitações inerentes à responsabilização do advogado público requer do intérprete o esforço de reconhecer, de antemão, que não há espaço para um exercício de um direito de forma absoluta.
No intuito de aprofundar essa discussão, cabe tratar um pouco mais sobre os princípios da autonomia e independência funcional do advogado público como condição indispensável ao pleno exercício do desiderato constitucional que lhe foi confiado. A autonomia revela-se uma prerrogativa inerente à figura do Advogado Público, que deve atuar livremente afim de atender aos interesses do Estado em observância aos preceitos legais. Nessa medida, tem-se que a autonomia conferida a esse agente permite que ele atue com liberdade, visando, sempre, atender aos interesses públicos, sem receio de desagradar seus superiores hierárquicos ou risco de ser capturado por interesses políticos diversos. Ademais, a autonomia conferida a este agente visa resguardar o exercício da atividade jurídica, uma vez que garante a liberdade necessária ao advogado público para compreender e interpretar o direito. Portanto, a referida autonomia deve ser assegurada e protegida, uma vez que o seu enfraquecimento transformaria a atividade de consultoria jurídica do advogado público mero procedimento burocrático e sem independência, prejudicando a inovação no que tange aos entendimentos jurídicos, elemento este inerente à mutabilidade de uma ciência eminentemente humana como o Direito.
Noutro giro, na qualidade de agente público, o Procurador sofre limitações a esta liberdade assegurada, uma vez que deve observância aos princípios constitucionais da Administração, quais sejam: legalidade, impessoalidade, moralidade, publicidade, eficiência e outros (art. 37, caput, CF/88). Desse modo, o Procurador se submete a um regime diferenciado que, nas palavras do ilustre Ministro Joaquim Barbosa, “mescla características do regime jurídico dessa profissão liberal com as do regime jurídico dos servidores a que se submetem os advogados públicos.”.
Portanto, o advogado público, como todos os advogados, deve atuar de forma autônoma gozando da prerrogativa constitucional de inviolabilidade dos seus atos. Entretanto, essa inviolabilidade não se mostra absoluta, uma vez que não há que se falar em exercício absoluto de direito, o que prevalece é a relatividade, na qual deve-se conviver e desenvolver as liberdades moderadamente. Nesse sentido cabe tratar um pouco mais sobre o tema que é foco desse estudo: responsabilização civil.
3.RESPONSABILIDADE CIVIL
Partindo do pressuposto de que não há exercício de direito de forma absoluta, o que afasta a teoria da irresponsabilidade, que historicamente já foi atribuída ao Monarca “The king can do no wrong”, mas que não subsiste nos tempos atuais, é necessário buscar resposta para a seguinte indagação: quando e em que circunstâncias um advogado público pode ser responsabilizado pela emissão de um parecer jurídico?
Ora, se a norma de inviolabilidade do advogado não se reveste de caráter absoluto é imperioso fixar em que circunstâncias o advogado pode ser responsabilizado no exercício da sua profissão. Para tanto, mostra-se necessário tratar a respeito da responsabilidade civil do Estado.
A referida responsabilidade decorre da responsabilização do Estado pelos atos administrativos praticados pelos gestores públicos que causem danos a terceiros. O ato administrativo é uma declaração unilateral de vontade da Administração Pública que produz efeitos no mundo jurídico. Nesse sentido, o parecer jurídico emitido constitui, inúmeras vezes, a motivação do ato administrativo, de modo que passa a integrar o próprio ato como elemento à sua formação.
No ordenamento pátrio a responsabilidade civil do Estado se fixa objetivamente, nos moldes da Constituição da República (art. 37, § 6º), e se funda nos seguintes elementos: conduta, nexo causal e dano. A responsabilidade civil subjetiva, por sua vez, pressupõe a análise do elemento volitivo do agente causador do dano, ou seja, na vontade deliberada de causar o dano a outrem (dolo), e/ou no comportamento daquele que, por negligência, imprudência ou imperícia, assume o risco de fazê-lo (culpa).
Nesses moldes, resta claro que a responsabilidade do advogado por emissão de parecer pressupõe a culpa do profissional para que a ordem jurídica lhe imponha o dever de indenizar e, portanto, não se fixa objetivamente.Trata-se de conclusão óbvia, visto que todos os agentes públicos que, nessa condição, causem prejuízos a terceiros,poderão responder subjetivamente, em sede de direito de regresso, pelos danos eventualmente causados. Portanto, o Estado responde objetivamente pelos danos que seus agentes causem a terceiros, mas regressivamente pode cobrar o ‘prejuízo’ do responsável pelo dano, caso evidenciado dolo ou culpa. (CF/88, art. 37,§ 6º).
4.O PARECER
Conforme já salientado, cabe ao advogado público emitir o parecer jurídico técnico acerca de determinada matéria consultada. Nesse sentido, o parecer é o ato pelo qual os órgãos consultivos da Administração emitem opiniões sobre assuntos técnicos de sua competência.Desse modo, os pareceres visam elucidar, informar ou sugerir providências administrativas nos atos da Administração.
Nas palavras do autor Carlos Pinto Coelho Motta, o parecer jurídico é a “peça que corporifica e veicula a opinião técnica do advogado acerca da fenomenológica administrativa, tal como é apresentada à sua percepção, acervo técnico e experiência”(MOTTA, 2001, p. 2369).
A função precípua do parecer jurídico, segundo Luciano Ferraz - citando Larenz, consiste em realizar “conexões hermenêuticas” entre aspectos abstratos e a realidade empírica subjacente, uma vez que o jurista tem que ter em mente “os fatos sociais a que se refere uma norma e tomá-los em conta quando a interpreta” (FERRAZ, 2012).
Ademais, o parecer jurídico é peça exigível e necessária no processo administrativo, conforme explícito em inúmeros diplomas legais. A título exemplificativo cabe citar a lei 8.666/93,que no seu artigo 38 exige que a assessoria jurídica da Administração dê seu parecer nos processos de licitação, de dispensa ou de inexigibilidade.
“Art. 38. O procedimento da licitação será iniciado com a abertura de processo administrativo, devidamente autuado, protocolado e numerado, contendo a autorização respectiva, a indicação sucinta de seu objeto e do recurso próprio para a despesa, e ao qual serão juntados oportunamente:
(...)
VI - pareceres técnicos ou jurídicos emitidos sobre a licitação, dispensa ou inexigibilidade;”.
A Lei Complementar nº 101, a chamada Lei de Responsabilidade Fiscal, reserva-lhe papel importante na formalização de atos geradores de despesa (art. 32, §1º), na medida em que estabelece que o ente interessado formalizará seu pleito fundamentando-o em parecer jurídico, demonstrando a relação custo-benefício, o interesse econômico da operação e, ainda, existência de prévia e expressa autorização para a contratação, no texto da lei orçamentária, de créditos adicionais ou lei específica.
Nesse sentido, a síntese de Marçal Justen Filho merece ser transcrita:
“(...) a manifestação acerca da validade do edital e dos instrumentos de contratação associa o emitente do parecer ao autor dos autos. Há dever de ofício de manifestar-se pela invalidade, quando os atos contenham defeitos. Não é possível os integrantes da assessoria jurídica pretenderem escapar aos efeitos da responsabilização pessoal quando tiverem atuado defeituosamente no cumprimento de seus deveres: se havia defeito jurídico, tinham o dever de apontá-lo.A afirmativa se mantém inclusive em face de questões duvidosas ou controvertidas. Havendo discordância doutrinária ou jurisprudencial acerca de certos temas, a assessoria jurídica tem o dever de consignar essas variações, para possibilitar às autoridades executivas pleno conhecimento dos riscos de determinadas decisões. Mas, se há duas teses jurídicas igualmente defensáveis, a opção por uma delas não pode acarretar punição” (Comentários à Lei de Licitações e Contratos Administrativos, 11ª Ed., São Paulo. Dialética, 2007, p. 379.)
Nesse sentido, cabe ressaltar que a prática do ato administrativo, na medida em que no âmbito Estatal ao administrador é dado fazer somente o que é legalmente permitido, depende de previsão legal, ou seja, é imprescindível a interpretação da lei por um profissional capaz de expedir opinião sobre a matéria submetida à sua apreciação. Desse modo, em consonância com o entendimento acima esposado,a assessoria jurídica, competente para emitir esse parecer, assume responsabilidade pela manifestação favorável acerca da validade do edital e dos instrumentos de contratação, quando esses atos contenham defeitos que deveriam ter sido assinalados.
Nessa medida, no intuito de estabelecer os casos em que configura-se a referida responsabilização, cabe tratar um pouco mais sobre o conceito de parecer jurídico e suas classificações.
5. PARECER VINCULANTE
Conforme já ressaltado, a lei, sendo regra geral e abstrata, pressupõe atividade hermenêutica no caso concreto. Entretanto, a abstração da lei admite uma multiplicidade de sentidos normativos, e compete ao advogado público emitir para o gestor público sua opinião a respeito daquela determinada matéria técnica que lhe foi submetida.
Assim, novamente surgem questões cuja análise é tormentosa: está o administrador público vinculado à opinião exarada pelo advogado? Caso o administrador pratique o ato exatamente conformepreconiza o parecerista, este pode ser solidariamente responsabilizado com o Administrador pelos órgãos de controle?
No tocante à primeira pergunta encontramos na doutrina e na jurisprudência resposta esclarecedora. Para tanto, cabe tratar sobre a classificação dos pareceres jurídicos em facultativo, obrigatório e vinculante conforme dispõeMaria Sylvia Zanella di Pietro, com base nas lições do mestre Oswaldo Aranha Bandeira de Mello:
“O parecer é facultativo quando fica a critério da Administração solicitá-lo ou não, além de não ser vinculante para quem o solicitou. Se foi indicado como fundamento da decisão, passará a integrá-la, por corresponder à própria motivação do ato.
O parecer é obrigatório quando a lei o exige como pressuposto para a prática do ato final. A obrigatoriedade diz respeito à solicitação do parecer (o que não lhe imprime caráter vinculante). Por exemplo, uma lei que exija parecer jurídico sobre todos os recursos encaminhados ao Chefe do Executivo; embora haja obrigatoriedade de ser emitido o parecer sob pena de ilegalidade do ato final, ele não perde o seu caráter opinativo. Mas a autoridade que não o acolher deverá motivar a sua decisão.
O parecer é vinculante quando a Administração é obrigada a solicitá-lo e acatar a sua conclusão. Para conceder aposentadoria por invalidez, a Administração tem que ouvir o órgão médico oficial e não pode decidir em desconformidade com a sua decisão”. (BANDEIRA DE MELLO, 1979 b, p. 575) citado por DI PIETRO (2005, p. 223)
Portanto, tem-se que no tocante às situações de facultatividadeou obrigatoriedade do parecer estelimita-se a informar, elucidar e sugerir providências de que o Administrador pode, ou não, valer-se no momento da prática do ato.
Nesse sentido, cabe ressaltar a lição do autor Hely Lopes Meirelles:
“O parecer, embora contenha um enunciado opinativo, pode ser de existência obrigatória no procedimento administrativo e dar ensejo à nulidade do ato final se não constar do processo respectivo, como ocorre, p. ex., nos casos em que a lei exige a prévia audiência de um órgão consultivo, antes da decisão terminativa da administração. Nesta hipótese, a presença do parecer é necessária, embora seu conteúdo não seja vinculante para a Administração (...)” (MEIRELLES, Hely Lopes, 1997, p. 177).
Conforme entendimento supracitado, o não oferecimento de parecer obrigatório poderá dar ensejo à nulidade do procedimento administrativo. Nesse sentido, cabe ressaltar que o não oferecimento de parecer obrigatório e vinculante implicará na suspensão do processo enquanto persistir a omissão.
Por fim, cumpre destacar a questão que norteia o conceito de parecer vinculante conforme entendimento do Supremo Tribunal Federal. Segundo Diógenes Gasparini, "o parecer vinculante é, no mínimo, estranho, pois se a autoridade competente para decidir há de observar suas conclusões, ele deixa de ser parecer, opinião, para ser decisão" (GASPARINI, 2003, p. 87).Desse modo, tem-se que o entendimento acerca do conceito de parecer vinculante mostra-se controverso, sendo que parte da doutrina entende pela inexistência dessa espécie e outra parte defende a sua existência sendo que, a despeito de tratar-se de uma opinião técnica,não poderá ser contrariado, uma vez que vincula as medidas a serem tomadas pelo administrador. Dados os entendimentos divergentes descritos mostra-se necessário analisar a evolução jurisprudencial acerca do tema.