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Política pública de distribuição de medicamentos e Poder Judiciário.

Análise crítica das decisões do STF e do STJ

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24/01/2013 às 13:39
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Será abordada a questão da implementação de política pública de distribuição de medicamentos pelo Poder Judiciário, com ênfase na jurisprudência firmada pelos Tribunais Superiores.

Sumário: INTRODUÇÃO. CAPÍTULO 1 - DOSDIREITOS FUNDAMENTAIS. 1.1.  A evolução dos direitos fundamentais e os direitos sociais. 1.2. As funções dos direitos fundamentais: direitos de defesa contra o Estado e direitos a prestações pelo Estado. 1.3. O direito à saúde: direito público subjetivo versus interesse secundário do Estado. 1.4. O direito à vida e a dignidade da pessoa humana e a indissociabilidade do direito à saúde. CAPÍTULO 2 – DA EFICÁCIA DAS NORMAS CONSTITUCIONAIS CONCRETIZADORAS DO DIREITO À SAÚDE E DO CARÁTER PROGRAMÁTICO DO ART. 196 DA CONSTITUIÇÃO. CAPÍTULO 3 – DA JUDICIALIZAÇÃO DE POLÍTICAS PÚBLICAS. 3.1. O Princípio da Separação dos Poderes. 3.2. A Cláusula da Reserva do Possível. 3.3. Os requisitos para a concessão do pedido. 3.4. A possibilidade de bloqueio de verbas públicas e aplicação de astreintes. CAPÍTULO 4 – DA ANÁLISE DA JURISPRUDÊNCIA DO STF E DO STJ. 4.1. SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL. 4.1.1. Recurso Extraordinário 247.900/RS. 4.1.2. Agravo Regimental no Recurso Extraordinário 271.286-9/RS. 4.1.3. Suspensão de Segurança 3073/RN. 4.1.4. Suspensão de Tutela Antecipada 223/PE. 4.2. SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA. 4.2.1. Recurso especial 57.614-8/RS. 4.2.2. Recurso em Mandado de Segurança 11.183/PR. CONCLUSÃO. BIBLIOGRAFIA.


INTRODUÇÃO

No presente trabalho, será abordada a questão da implementação de política pública de distribuição de medicamentos pelo Poder Judiciário, com ênfase na jurisprudência firmada pelos Tribunais Superiores.

Primeiramente, far-se-á um delineamento histórico acerca das prerrogativas fundamentais, traçando suas principais características, bem como a gradativa evolução que sofreram, culminando no reconhecimento da fundamentalidade dos direitos sociais.

Devido à sua imprescindibilidade, a saúde foi elevada à condição de direito fundamental social e foi expressamente prevista pela Constituição de 1988, a qual, por seu caráter indubitavelmente dirigente, determina a instituição e promoção de políticas públicas concernentes à matéria pelos Poderes da República.

Dessa forma, incumbe ao Poder Legislativo, tradicionalmente, a tarefa de legislar sobre o tema, e ao Poder Executivo implementar programas a fim de atingir o escopo almejado pelo Constituinte de 1988. Contudo, a conjuntura atual demonstra inércia total ou parcial dos dois Poderes, fazendo surgir o fenômeno da judicialização das políticas públicas.

Tendo em vista o atual estágio do constitucionalismo, bem como do reconhecimento da legitimidade democrática do Poder Judiciário, admite-se a intervenção judicial no que tange à formulação de políticas públicas quando os outros Poderes deixarem de cumprir os preceitos constitucionais integral ou parcialmente.

Ademais, com o advento do pós-positivismo e a formulação de uma nova dogmática jurídica, pela qual se resgata a força normativa da Constituição, dando-lhe efetividade e conferindo eficácia às suas normas, o Judiciário tem atuado de forma a fazer valer os valores insertos na Constituição.

 Conforme será demonstrado, num processo de ponderação de princípios, têm prevalecido os direitos à vida, saúde e dignidade, posicionamento este que tem gerado algumas críticas, invocando-se transgressão a outros princípios constitucionais, como a Previsão Orçamentária, Separação dos Poderes, Cláusula da Reserva do Possível e o Acesso Igualitário e Universal a toda à população.

O Estado Social e Democrático de Direito deve efetivar, concretizar, conformar as prerrogativas insertas nas cláusulas protetoras dos direitos mais relevantes à pessoa humana, dentre os quais se encontra o direito à saúde, não se podendo admitir um esvaziamento do conteúdo normativo constitucional.

Todavia, defende-se que a atuação jurisdicional deve se ater a parâmetros propostos pela doutrina, bem como atentar-se aos Princípios da Razoabilidade e da Proporcionalidade, sob pena de invasão na esfera de competência de outro Poder.

Ressalve-se que serão analisadas algumas das principais decisões proferidas pelo Supremo Tribunal Federal e pelo Superior Tribunal de Justiça, demonstrando como as mais altas Cortes do País vêm lidando com a relevante questão do fornecimento de medicamentos aos hipossuficientes.

Nesse diapasão, serão expostos os argumentos utilizados e os critérios empregados na concessão dos pedidos, podendo-se adiantar que as decisões têm, em sua maioria, considerado como fundamentos maiores os direitos à saúde e à vida digna, isso tudo com vistas a alcançar a tão almejada justiça social.


CAPÍTULO 1 - DOS DIREITOS FUNDAMENTAIS

1. 1. A evolução dos direitos fundamentais e os direitos sociais

Segundo ensinamento de Perez Luño, os direitos fundamentais podem ser conceituados como

um conjunto de faculdades e instituições que, em cada momento histórico, concretizam as exigências da dignidade, da liberdade e da igualdade humanas, as quais devem ser reconhecidas positivamente pelos ordenamentos jurídicos em nível nacional e internacional [1].

Nessa esteira, a doutrina costuma apontar quatro gerações ou dimensões [2] de direitos fundamentais. Os direitos de primeira geração, tendo por base uma concepção jusnaturalista [3], foram marcados pelo pensamento liberal-burguês do século XVIII, de cunho individualista, podendo ser intitulados “direitos de defesa” por demarcarem “[...] uma zona de não intervenção do Estado e uma esfera de autonomia individual em face de seu poder”[4]. Afirmam-se como direitos de cunho “negativo”, por demandarem uma abstenção estatal. Enquadram-se nessa categoria “os direitos à vida, à liberdade, à propriedade e à igualdade perante a lei” [5], bem como os direitos civis e políticos [6].

Em decorrência dos graves problemas sociais e econômicos gerados pela industrialização, além da constatação de que o caráter “formal” das liberdades preservadas pelo Estado liberal não garantia seu efetivo exercício, imperiosa se tornou a realização de uma reforma econômico-social, que culminou no advento de um Estado interventor e implementador de políticas sociais (Estado Social ou do Bem Estar). Nesse contexto, surgiu a segunda geração de direitos fundamentais, integrada pelos chamados “direitos sociais” (direitos econômicos, sociais e culturais) [7].

Diferentemente dos “direitos-resistência” [8], os direitos sociais caracterizam-se, em geral, como direitos a prestações (saúde, assistência social, educação, trabalho etc.), de cunho positivo[9]. Houve, portanto, a transição das “liberdades formais abstratas para as liberdades materiais concretas” [10].

Não se há olvidar que essa evolução, consistente no reconhecimento dos direitos fundamentais de primeira geração (liberdades públicas) e os de segunda geração (direitos sociais), foi coroada pela Declaração Universal dos Direitos do Homem de 1948 [11].

A terceira geração de direitos compõe os interesses coletivos e/ou difusos ou direitos de solidariedade e fraternidade. Diferenciam-se das outras gerações devido ao fato de reportarem-se não mais ao homem individualmente considerado, mas aos “[...] grupos humanos (família, povo nação) e caracterizando-se, conseqüentemente, como direitos de titularidade coletiva ou difusa”. [12] Incluem-se nesse rol os

direitos à paz, à autodeterminação dos povos, ao desenvolvimento, ao meio ambiente e qualidade de vida, bem como o direito à conservação e utilização do patrimônio histórico e cultural e o direito à comunicação [13].

Embora haja divergência doutrinária quanto à existência dos direitos de quarta geração, interessante se faz mencionar a posição de Paulo Bonavides, segundo o qual essa categoria resulta da globalização dos direitos fundamentais e é composta pelos direitos à democracia direta, à informação e ao pluralismo [14].  Diferentemente, para Norberto Bobbio, os direitos de quarta geração vinculam-se ao campo da bioética [15].

Merece destaque a classificação formulada por José Afonso da Silva, que se baseia no critério do conteúdo e leva em consideração a “natureza do bem protegido e do objeto de tutela” [16]. Vejamos:

De acordo com o critério do conteúdo, teremos: (a) direitos fundamentais do homem-indivíduo, que são aqueles que reconhecem autonomia aos particulares, garantindo iniciativa e independência aos indivíduos diante dos demais membros da sociedade política e do próprio Estado; por isso são reconhecidos como direitos individuais, como é de tradição no Direito Constitucional brasileiro (art. 5º) e ainda por liberdades civis e liberdades-autonomia (liberdade, igualdade, segurança, propriedade); (b) direitos fundamentais do homem-nacional, que são os que têm por conteúdo e objeto a definição da nacionalidade e suas faculdades; (c) direitos fundamentais do homem-cidadão, que são os direitos políticos (art. 14, direito de eleger e de ser eleito), chamados também direitos democráticos ou direitos de participação política e, ainda, inadequadamente, liberdades políticas (ou liberdades-participação), pois estas constituem apenas aspectos dos direitos políticos; (d) direitos fundamentais do homem-social, que constituem os direitos assegurados ao homem em suas relações sociais e culturais (art. 6º: saúde, educação, seguridade social etc.); (e) direitos fundamentais do homem-membro de uma coletividade, que a Constituição adotou como direitos coletivos (art. 5º); (f) uma nova classe que se forma é a dos direitos fundamentais ditos de terceira geração, direitos fundamentais do homem-solidário, ou direitos fundamentais do gênero humano (direito à paz, ao desenvolvimento, comunicação, meio ambiente, patrimônio comum da humanidade) [17]·.

Complementa o mencionado autor que os direitos sociais “[...] constituem, em definitivo, os novos direitos fundamentais do homem” [18].

Tenha-se presente que a positivação dos direitos sociais, ou seja, “o reconhecimento por uma ordem constitucional em vigor” [19], iniciou-se com a Constituição Mexicana de 1917 [20] e a Constituição de Weimar, de 1919, sendo que, no Brasil, a Constituição de 1934 foi a primeira a versar sobre o assunto.

Nesse diapasão, a Constituição Federal de 1988 reconhece, explicitamente, os direitos fundamentais sociais no art. 6º [21]. Vejamos:

Art. 6º São direitos sociais a educação, a saúde, o trabalho, a moradia, o lazer, a segurança, a previdência social, a proteção à maternidade e à infância, a assistência aos desamparados, na forma desta Constituição.

Pode-se concluir que a evolução do Estado Liberal de Direito para o Estado Social de Direito traduziu dado relevante para o reconhecimento da fundamentalidade dos direitos sociais, os quais, uma vez positivados, demandam proteção e efetivação por parte do Poder Público, como medida apta a realizar a justiça social [22].

1.2.As funções dos direitos fundamentais: direitos de defesa contra o Estado e direitos a prestações pelo Estado

De acordo com o critério da funcionalidade, inspirada nas Teorias de Robert Alexy e Gomes Canotilho, os direitos fundamentais podem ser divididos em direitos de defesa contra o Estado e direitos a prestações pelo Estado.

Cumpre analisar, em primeiro plano, os direitos de defesa, que protegem o “[...] indivíduo contra ingerências do Estado em sua liberdade pessoal e propriedade” [23]. São “[...] concretizações do direito de liberdade e do princípio da igualdade (ou da não-discriminação), ou mesmo posições jurídicas dirigidas a uma proteção contra ingerências por parte dos poderes públicos e entidades privadas” [24].

Consoante a doutrina tradicional, os direitos em análise propugnam a abstenção do poder público na esfera dos interesses individuais resguardados pela ordem constitucional vigente. Nessa seara, incluem-se os direitos à liberdade, igualdade, vida, propriedade e igualdade, bem como liberdades fundamentais (locomoção, consciência, manifestação do pensamento, imprensa, associação, reunião etc.), além de outros direitos como liberdade de informática, regras referentes à manipulação genética, transplante de órgãos, não se olvidando dos direitos políticos, das garantias fundamentais e de parte dos direitos sociais [25].

Com relação à função dos direitos de defesa, atente-se à lição de J. J. Gomes Canotilho:

Os direitos fundamentais cumprem a função de direitos de defesa dos cidadãos sob uma dupla perspectiva: (1) constituem, num plano jurídico-objetivo, normas de competência negativa para os poderes públicos, proibindo fundamentalmente as ingerências destes na esfera individual; (2) implicam, num plano jurídico-subjetivo, o poder de exercer positivamente direitos fundamentais (liberdade positiva) e de exigir omissões dos poderes públicos, de forma a evitar agressões lesivas por parte dos mesmos [26].

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Conforme anteriormente exposto, os direitos sociais adquiriram status de normas fundamentais, razão pela qual também é possível classificá-los em direitos de defesa e direitos a prestações.

Nessa linha, João Luiz M. Esteves enfatiza a tese segundo a qual os direitos sociais, muito embora sejam comumente considerados poderes de exigir uma contraprestação por parte do Estado [27], em determinadas condições, também demandam uma prestação negativa (inércia) por parte do Poder Público, como no caso da organização sindical e da greve [28].

Diversamente disso, os direitos sociais considerados como direitos a prestações vinculam-se à idéia de que o Estado deve implementar condições materiais e jurídicas para a concretização dos direitos fundamentais, demandando, portanto, uma postura ativa por parte do Poder Público.

Ingo Wolfgang Sarlet ensina que

[...] enquanto os direitos de defesa (status libertatis e status negativus) se dirigem, em princípio, a uma posição de respeito e abstenção por parte dos poderes públicos, os direitos a prestações, que, de modo geral, e ressalvados os avanços registrados ao longo do tempo, podem ser reconduzidos ao status positivus de Jellinek, implicam uma postura ativa do Estado, no sentido de que este se encontra obrigado a colocar à disposição dos indivíduos prestações de natureza jurídica e material (fática) [29].

Por sua vez, João Luiz M. Estevez critica a tipologia acima apresentada, baseada na dicotomia “positivo-negativo” dos direitos humanos fundamentais, alegando que

[...] quaisquer dos direitos fundamentais podem ensejar uma ação de inércia ou de agir do Estado para sua efetividade, e portanto é inadequada aquela teoria dogmática para o estudo do exercício dos direitos fundamentais[30].

Impende observar que não há hierarquia entre os direitos de defesa e os direitos a prestações materiais (direitos sociais prestacionais), pois ambos pertencem à categoria dos direitos humanos fundamentais[31].

Várias são as classificações acerca dos direitos a prestações. A primeira leva em consideração o objeto da norma, distinguindo direitos a prestações jurídicas ou normativas e direitos a prestações fáticas ou materiais [32].

Outra classificação divide os direitos sociais em direitos a prestações em sentido amplo, “[...] no sentido de direitos a medidas ativas de proteção de posições jurídicas fundamentais dos indivíduos por parte do Estado, bem como os direitos à participação na organização e procedimento” [33], e direitos a prestações sem sentido estrito (direitos a prestações materiais sociais), “vinculados prioritariamente às funções do Estado social” [34].

Na visão de Ingo Wolfgang Sarlet,

[...] a distinção entre direitos a prestações em sentido amplo e restrito ainda encontra fundamento no argumento [...] de que, enquanto os direitos a prestações em sentido estrito podem ser reportados à atuação dos poderes públicos como expressão do Estado Social (no sentido de criação, fornecimento, mas também da distribuição de prestações materiais já existentes), os direitos a prestações em sentido amplo (que englobam direitos de proteção e de participação na organização e procedimento) dizem respeito às funções do Estado de Direito de matriz liberal, dirigido principalmente à proteção da igualdade e liberdade na sua dimensão defensiva, razão pela qual já houve quem os tenha (corretamente, diga-se de passagem) enquadrado num status positivus libertatis[35].

Ana Carolina Lopes OIsen esclarece que, pelo direito a prestações em sentido estrito ou direito à prestação fática, “[...] deve o Estado adotar determinada conduta a fim de prover ao titular do direito o bem jurídico tutelado pela norma jusfundamental”. [36] Os direitos em sentido amplo ou direitos de prestação de ordem normativa, por sua vez, explicitam “[...] como o Estado vai editar a norma que garantirá a realização do direito fundamental, a qual, por certo, estará submetida ao controle de constitucionalidade material” [37]. Assim, conclui a autora que

Neste sentido, o direito fundamental à saúde tem, na Constituição Federal de 1988, uma regulamentação que lhe permite atribuir posições jurídicas inerentes a direito à prestação em sentido estrito – no caso, o direito ao tratamento em hospitais, e a medicamentos – como à prestação em sentido amplo – como o direito à edição de leis que regulamentem o Sistema Único de Saúde (grifo nosso) [38].

Na verdade, os direitos a prestações materiais traduzem uma vinculação do Estado na consecução de políticas públicas, sendo imperiosa a distribuição e redistribuição dos bens constitucionalmente tutelados [39]

Ainda, pode-se dividir os direitos prestacionais em derivados e originários, sendo que os primeiros “dependem de prévia existência de um sistema de prestações” [40], enquanto os segundos independem de uma atuação anterior, podendo ser deduzidos direta e autonomamente das normas consagradoras dos direitos sociais prestacionais.

Cabe consignar que as teorias apresentadas são relevantes no que concerne à eficácia das normas constitucionais, tema que será abordado em capítulo próprio.

1.3.O direito à saúde: direito público subjetivo versus interesse secundário do Estado

O direito à saúde foi expressamente previsto pela atual Constituição, conforme se depreende do art. 196. Vejamos:

Art. 196. A saúde é direito de todos e dever do Estado, garantido mediante políticas sociais e econômicas que visem à redução do risco de doença e de outros agravos e ao acesso universal e igualitário às ações e serviços para sua promoção, proteção e recuperação.

José Afonso da Silva explica que “a saúde é um direito fundamental do ser humano, devendo o Estado prover as condições indispensáveis ao seu pleno exercício” [41].

Quanto à natureza jurídica dos direitos sociais (e conseqüentemente do direito à saúde), a doutrina e a jurisprudência comumente designam-nos direitos públicos subjetivos.

Essa é a corrente defendida por Luís Roberto Barroso, que inclui as normas referentes aos direitos sociais na categoria de normas constitucionais definidoras de direitos. Confira-se:

As normas constitucionais definidoras de direitos são as que tipicamente geram direitos subjetivos, investindo os jurisdicionados no poder de exigir do Estado – ou de outro eventual destinatário da norma – prestações positivas ou negativas, que proporcionem o desfrute dos bens jurídicos nelas consagrados. Nessa categoria se incluem todas as normas concernentes aos direitos políticos, individuais, coletivos, sociais e difusos presentes na Constituição [42].

Aduz, ainda, o eminente constitucionalista que

Na prática, em todas as hipóteses em que a Constituição tenha criado direitos subjetivos – políticos, individuais, sociais ou difusos – são eles, como regra, direta e imediatamente exigíveis, do Poder Público ou do particular, por via das ações constitucionais e infraconstitucionais contempladas no ordenamento jurídico (grifo nosso) [43].

Contudo, impende observar o raciocínio formulado por José Reinaldo de Lima Lopes, o qual, após analisar o conceito de direito subjetivo formulado pela Teoria Geral do Direito, afirma que os direitos sociais se diferenciam “em natureza dos antigos direitos subjetivos” [44], não apenas por “serem coletivos, mas por exigirem remédios distintos” [45].  E conclui o referido autor:

Os novos direitos [...] têm característica especial. E esta consiste em que não são fruíveis, ou exeqüíveis individualmente. Não quer isto dizer que juridicamente não possam, em determinadas circunstâncias, ser exigidos como se exigem judicialmente outros direitos subjetivos. Mas, de regra, dependem para sua eficácia, de atuação do Executivo e do Legislativo por terem o caráter de generalidade e publicidade. Assim é o caso da educação pública, da saúde pública, dos serviços de segurança e justiça, do direito a um meio ambiente sadio, o lazer a assistência aos desamparados, e previdência social, e outros [...] [46].

Criticando a tipologia acima apresentada, João Luiz M. Esteves defende a seguinte tese:

[...] a tipologia “individual/coletivo” vem sendo contestada. Conforme já relatado, Sarlet defende a idéia de que todos os direitos são de “titularidade individual, ainda que alguns sejam de expressão coletiva”, exemplificando que é o indivíduo que tem assegurado o direito de voto, à saúde, à assistência social, à aposentadoria etc [47].

Diversamente disso, pertinente a ponderação feita por Dalmo Dallari:

Um ponto que tem suscitado dúvidas, é se o fato de se ter incluído o direito à saúde entre os direitos sociais impede que esse mesmo direito seja tratado como direito individual, e assim possa ser invocado para que uma pessoa determinada tenha garantido o seu direito de acesso aos serviços públicos de saúde. Na realidade, esse é um falso problema, pois a noção precisa de direitos sociais evidencia que são direitos fundamentais da pessoa humana que cabem a muitos ao mesmo tempo e que, por suas peculiaridades, podem, e em certas circunstâncias devem mesmo, ter um tratamento voltado para todo o conjunto dos titulares do direito, visando proporcionar o melhor atendimento e evitar o risco do estabelecimento de privilégios ou exclusões. Mas isso não tira do indivíduo a condição de titular do direito à saúde nem impede que, se não tiver acesso aos cuidados que o sistema de saúde tem o dever de proporcionar, ele peça a proteção do Poder Judiciário [48].

Na visão de J. J. Gomes Canotilho:

Os direitos sociais são compreendidos como autênticos direitos subjectivos inerentes ao espaço existencial do cidadão, independentemente da sua justiciabilidade e exeqüibilidade imediatas. [...] São direitos com a mesma dignidade subjectiva dos direitos, liberdades e garantias. Nem o Estado nem terceiros podem agredir posições jurídicas reentrantes no âmbito de protecção destes direitos (ex. saúde) [...] [49].

Cabe consignar que o Supremo Tribunal Federal tem proclamado o caráter subjetivo inalienável do direito à saúde, sendo que, em reiteradas decisões, a Corte, adotando o critério da ponderação de princípios [50], tem feito prevalecer o direito à saúde sobre o interesse financeiro e secundário do Estado [51], consubstanciado nos Princípios Orçamentários, na Separação dos Poderes e na Cláusula da Reserva do Possível [52].

As decisões baseiam-se na argumentação que será exposta ao longo deste trabalho, no sentido de que o caráter fundamental do direito à saúde, indissociável do direito à vida e da dignidade da pessoa humana, impõe ao Estado a obrigação de implementar políticas públicas, inclusive sob a forma de distribuição de medicamentos aos economicamente hipossuficientes, razão pela qual privilegia-se o direito em questão [53].

 Trata-se de solução condizente com o estágio atual do direito positivo nacional e estrangeiro, na medida em que preserva a integralidade das cláusulas protetoras dos bens jurídicos mais relevantes da pessoa, estando, dessa forma, em consonância com a concepção de democracia e constitucionalismo [54].

1.4.O direito à vida e a dignidade da pessoa humana e a indissociabilidade do direito à saúde

Cumpre ressaltar que a saúde, além de configurar direito fundamental inerente a todo ser humano, representa uma prerrogativa indissociável do direito à vida (art. 5º, caput), bem como do princípio da dignidade humana (art. 1º, inciso III). Trata-se, portanto, de conceitos interligados, de forma que o desrespeito ao direito à saúde implica em transgressão às normas protetoras da vida e da dignidade [55].

A vida é o mais importante dos direitos fundamentais e deve ser considerada como “direito a um nível de vida adequado com a condição humana, ou seja, direito à alimentação, vestuário, assistência médico-odontológica, educação, cultura, lazer e demais condições vitais” [56].

Nesse diapasão, interessante mencionar as palavras de Uadi Lammêgo Bulos:

Saúde é o estado de completo bem-estar físico, mental e espiritual do homem e não apenas a ausência de afecções e doenças. A Constituição de 1988, pela primeira vez na história brasileira, elevou a saúde à condição de direito fundamental. Seguiu o exemplo da pioneira Carta Italiana de 1948 (art. 321) e do Texto português de 1976 (art. 64).

[...] Isso revela a preocupação de se constitucionalizar a saúde, vinculando-se à seguridade social, pois os constituintes compreenderam que a vida humana é o bem supremo que merece amparo na Lei Maior (grifo nosso) [57].

Alexandre de Moraes ensina que o Estado possui duas obrigações:

- obrigação de cuidado a toda pessoa humana que não disponha de recursos suficientes e que seja incapaz de obtê-los por seus próprios meios;

- efetivação de órgãos competentes públicos ou privados, através de permissões, concessões ou convênios, para prestação de serviços públicos que pretendam prevenir, diminuir ou extinguir as deficiências existentes para um nível mínimo de vida digna da pessoa humana[58].

Dessa forma, “[...] sem que se reconheçam à pessoa humana os direitos fundamentais que lhes são inerentes, em verdade estar-se-á negando-lhe a própria dignidade” [59].

Nessa esteira, importante se faz mencionar o conceito de dignidade da pessoa humana proposto por Ingo Wolfgang Sarlet:

A qualidade intrínseca e distintiva reconhecida em cada ser humano que o faz merecedor do mesmo respeito e consideração por parte do Estado e da comunidade, implicando, neste sentido, um complexo de direitos e deveres fundamentais que assegurem a pessoa tanto contra todo e qualquer ato de cunho degradante e desumano, como venham a lhe garantir as condições existenciais mínimas para uma vida saudável, além de propiciar e promover sua participação ativa e co-responsável nos destinos da própria existência e da vida em comunhão com os demais seres humanos [60].

E complementa o mencionado autor:

O que se percebe, em última análise, é que onde não houver respeito pela vida e pela integridade física e moral do ser humano, onde as condições mínimas para uma existência digna não forem asseguradas, onde não houver limitação do poder, enfim, onde a liberdade e a autonomia, a igualdade (em direitos e dignidade) e os direitos fundamentais não forem reconhecidos e minimamente assegurados, não haverá espaço para a dignidade da pessoa humana e esta (a pessoa), por sua vez, poderá não passar de mero objeto de arbítrios e injustiças [61].

A Dignidade da Pessoa Humana foi expressamente prevista na Constituição Federal de 1988, que lhe outorgou a qualidade de fundamento do Estado Democrático de Direito (art. 1°, inciso III, CF). Ademais, o referido princípio aparece em outros dispositivos constitucionais, explícita ou implicitamente (art. 170, caput; art. 226, §6º e art. 227, caput).

Na visão de José Afonso da Silva, a “dignidade da pessoa humana é um valor supremo que atrai o conteúdo de todos os direitos fundamentais do homem, desde o direito à vida” [62]. Nesse sentido, observam Gomes Canotilho e Vital Moreira que

O conceito de dignidade da pessoa humana obriga a uma densificação valorativa que tenha em conta o seu amplo sentido normativo-constitucional e não uma qualquer idéia apriorística do homem, não podendo reduzir-se o sentido da dignidade à defesa dos direitos pessoais tradicionais, esquecendo-a nos casos de direitos sociais, ou invocá-la para construir “teoria do núcleo da personalidade” individual, ignorando-a quando se trate de direitos econômicos, sociais e culturais [63].

Conforme anteriormente citado, a Constituição de 1988 é explícita ao prever que “a saúde é direito de todos e dever do Estado” (art. 196), ao qual incumbe tutelar o direito à saúde de forma igualitária e universal, devendo assegurá-lo de forma eficiente, resguardando o princípio da dignidade da pessoa humana.

Impende observar que, de forma a garantir o direito à saúde e, conseqüentemente, à vida digna, o Estado deve não só disponibilizar os tratamentos inerentes à preservação dos direitos em pauta, como também fornecer os medicamentos imprescindíveis para a conservação dos mesmos [64].

Esse entendimento é corroborado por Luís Roberto Barroso, segundo o qual

O princípio da dignidade da pessoa humana identifica um espaço de integridade moral a ser assegurado a todas as pessoas por sua só existência no mundo. É um respeito à criação, independentemente da crença de que professe quanto à sua origem. A dignidade relaciona-se tanto com a liberdade e valores do espírito como com as condições materiais que o princípio transite de uma dimensão ética e abstrata para as motivações racionais e fundamentais das decisões judiciais. Partindo-se de sua indeterminação a partir de um certo ponto, possuem um núcleo no qual operam como regras, tem-se sustentado que no tocante ao princípio da dignidade da pessoa humana esse núcleo é representado pelo mínimo existencial. Embora existam visões mais ambiciosas do alcance elementar do princípio, há razoável consenso de que ele inclui pelo menos os direitos à renda mínima, saúde básica, educação fundamental e acesso à justiça [65].

Consagra-se, assim, a Teoria do Mínimo Existencial de Dignidade Humana, que “[...] corresponde às condições elementares de educação, saúde e renda que, permitam, em uma determinada sociedade, o acesso aos valores civilizatórios e a participação esclarecida no processo político e no debate público” [66].

Segundo ensinamento de José Afonso da Silva, “[...] a dignidade da pessoa humana reclama condições mínimas de existência, existência digna conforme os ditames da justiça social como fim da ordem econômica” [67].

Ressalte-se que o Supremo Tribunal Federal tem garantido as condições mínimas de existência, compelindo o Estado a fornecer subsídios materiais aptos a concretizar os direitos sociais. Confira-se:

A meta central das Constituições modernas, e da Carta de 1988 em particular, pode ser resumida, como já exposto, na promoção do bem-estar do homem, cujo ponto de partida está em assegurar as condições de sua própria dignidade, que inclui, além da proteção dos direitos individuais, condições materiais mínimas de existência. Ao apurar os elementos fundamentais dessa dignidade (o mínimo existencial), estar-se-ão estabelecendo exatamente os alvos prioritários dos gastos públicos. Apenas depois de atingi-los é que se poderá discutir, relativamente aos recursos remanescentes, em que outros projetos se deverá investir. O mínimo existencial, como se vê, associado ao estabelecimento de prioridades orçamentárias, é capaz de conviver produtivamente com a reserva do possível [68].

Impende observar que parte da doutrina compreende a referida teoria não “[...] como um conjunto de prestações suficientes apenas para assegurar a existência (a garantia da vida humana) [...] mas, mais do que isso, uma vida com dignidade, no sentido de uma vida saudável [...]” [69].

Assim sendo, não basta que o Estado garanta apenas a subsistência do ser humano, devendo conferir-lhe vida e saúde dignas, de acordo com o moderno entendimento sobre direitos humanos fundamentais.

Nesse sentido, Ingo Wolfgang Sarlet, partindo do pressuposto de tanto os direitos de defesa (ou direitos negativos) quanto os direitos a prestações (direitos positivos) correspondem às concretizações do princípio da dignidade da pessoa humana, defende a tese de que este deverá ser promovido, protegido e implementado por “medidas positivas não estritamente vinculadas ao mínimo existencial” [70].

Diferentemente, Ana Paula de Barcellos restringe as prestações referentes ao direito à saúde ao mínimo existencial, afirmando que

O Judiciário poderá e deverá determinar o fornecimento das prestações de saúde que compõem o mínimo, mas não deverá fazê-lo em relação a outras, que estejam fora desse conjunto [71].

Justifica a autora que a referida limitação tem por escopo evitar inércia da Administração Pública, que poderia “eximir-se da obrigação de executar as opções constitucionais na matéria a pretexto de aguardar as decisões judiciais sobre o assunto [...]” [72]. Aponta, ainda, a questão dos custos, aduzindo que

[...] os tratamentos de saúde sofisticam-se cada vez mais e, por natural, tornam-se mais caros. Ora, a prestação de saúde concedida por um magistrado a determinado indivíduo, deveria ser concedida também a todas as demais pessoas na mesma situação. É difícil imaginar que a sociedade brasileira seja capaz de custear (ou deseje fazê-lo) toda e qualquer prestação de saúde disponível no mercado para todos os seus membros [73].

Ademais, é preciso preservar os Princípios da Isonomia e da Razoabilidade no caso concreto, devendo-se conferir tratamento igualitário ao paciente que obteve um provimento judicial favorável e àquele que não acessou a jurisdição [74].

Nesse diapasão, a Ministra Ellen Gracie deferiu em parte o pedido de tutela antecipada formulado pelo Estado de Alagoas, com o fim de limitar a responsabilidade do Estado ao fornecimento de medicamentos previstos em Portaria do Ministério da Saúde. Enfatizou que a Constituição garante o acesso igualitário e universal a toda a população e não a situações individualizadas [75].

Contudo, a jurisprudência dominante da Suprema Corte tem firmado entendimento diverso, no sentido de que é possível a concessão de medicamentos pleiteados individualmente pelos jurisdicionados, sob o argumento de que se trata de dever estatal e direito universal, constitucionalmente assegurado, sendo imperiosa a proteção da integridade da vida e da saúde humana.

Nesse sentido, explicita Luís Roberto Barroso que:

A percepção da centralidade do princípio chegou à jurisprudência dos tribunais superiores, onde já se assentou que a “dignidade da pessoa humana, um dos fundamentos do Estado democrático de direito, ilumina a interpretação da lei ordinária”. De fato, tem ela servido de fundamento para decisões de alcance diverso, como o fornecimento compulsório de medicamentos pelo Poder Público [..] [76].

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Sobre a autora
Luciana Lie Kuguimiya

Bacharel de Direito pela Universidade Presbiteriana Mackenzie. Pós graduada em Direito Constitucional pela PUC/SP

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

KUGUIMIYA, Luciana Lie. Política pública de distribuição de medicamentos e Poder Judiciário.: Análise crítica das decisões do STF e do STJ. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 18, n. 3494, 24 jan. 2013. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/23532. Acesso em: 22 nov. 2024.

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