Com 43 mil mortes no trânsito em 2010 é evidente que não podemos ficar de braços cruzados diante dessa tragédia que dizima 120 vidas por dia, uma a cada 12 minutos. Mas existe um Estado de Direito vigente, que precisa ser respeitado.
Mesmo aplicando a lei seca de 2008 o TJ do RJ vem absolvendo, muito acertadamente, 3 em cada 4 casos de imputação de embriaguez ao volante. Com a lei nova (de dezembro de 2012, com muito mais razão ele vai continuar fazendo o que está fazendo).
Qual é o problema jurídico? Para os agentes da repressão estatal (polícia civil, polícia militar e Ministério Público) bataria dirigir bêbado para a configuração do crime (do art. 306). Não é isso o que diz a lei. Eles interpretam o antigo art. 306 de forma literal, equivocada, para nele ver uma situação (inconstitucional e aberrante) de perigo abstrato puro (presumido). Ou seja: a partir da embriaguez constatada, já se presume que o motorista esteja “sob a influência do álcool” ou “com capacidade psicomotora alterada”. Tudo não passa de mera presunção (contra o réu), em flagrante violação aos princípios constitucionais.
Esse entendimento confunde a infração administrativa do art. 165 com o crime do art. 306. Puro populismo penal repressivo, que nós estamos combatendo no livro Nova lei seca(Saraiva: 2013).
A conivente e tendenciosa criminologia midiática, que segue o modelo do Estado de Polícia desenhado na década de 70 pelo neoconservadorismo dos EUA, ao se encarregar da irrestrita propaganda do desproporcional e atécnico populismo penal, sem nenhuma noção do que é o Estado de Direito vigente, coloca as decisões dos juízes contra o senso comum da população (gerando sua ira, sua revolta, agravando sensação de impotência, ou seja, nosso estado de mal-estar).
Protestando contra a posição amplamente majoritária e lúcida dos juízes do RJ, veja como a jornalista iniciou sua populista matéria (O Estado de S. Paulo, 04.04.13, p. C5): “O entendimento de que beber e dirigir não significa necessariamente risco à segurança do trânsito tem prevalecido no Rio. Levantamento do Tribunal de Justiça do Estado mostra que a maior parte dos motoristas flagrados na lei seca que responderam a processo criminal foi absolvida”.
Nada mais absurdo e incorreto do que esse enviesado enfoque (que não tem outro propósito que o de explorar a reação emotiva gerada pelo crime). Esse é o tipo e jornalismo que não informa, deforma. Qual juiz, especialmente da renomada magistratura do Rio de Janeiro, seria louco de “entender que beber e dirigir não significa necessariamente risco à segurança do trânsito”. Só um mentecapto imaginaria isso.
Beber e dirigir é uma loucura, uma ação que exprime uma das mais baixas vulgaridades do humano na atualidade. Isso se torna ainda mais reprovável num país com 43 mil mortos no trânsito em 2010. Ninguém é contra a punição dos irresponsáveis e inconsequentes motoristas que bebem e dirigem. De qualquer modo, não é verdade que os juízes do Rio “entendem que beber e dirigir não significa necessariamente risco à segurança do trânsito”. Claro que isso representa um grave risco à segurança do trânsito, que precisa ser devidamente sancionado. Aliás, antes, deveria ser evitado.
Mas o que a mídia justiceira não percebe é que é preciso distinguir o que é infração administrativa do que é crime. Essa distinção é que não aparece de forma clara na matéria jornalista citada. Os bêbados que dirigem devem ser punidos, mas é preciso aplicar corretamente a legislação em vigor. O código de trânsito tem dois artigos que cuidam da embriaguez ao volante: art. 165 e 306. O primeiro tem natureza administrativa (multa, apreensão do veículo, um ano sem carteira de habilitação). O segundo tem natureza penal (prisão, de 6 meses a 3 anos). Se existem duas infrações na lei, compete ao juiz (nunca midiaticamente), com lucidez, distinguir o que é um e o que é outro. O juiz é o semáforo do sistema punitivo. É ele que distingue o joio do trigo. Se dá sinal verde para as barbaridades do poder punitivo, se torna conivente com ele.
O que fez acertadamente o desembargador Marcus Quaresma Ferraz (e seus colegas), no caso de Juliano Dias, amplamente noticiado, foi distinguir o que a lei determina. Nem todo mundo que dirige bêbado é criminoso. Ele é um irresponsável, que coloca em risco a segurança viária (e deve sempre ser punido por isso). Ele é um perigoso. Mas não necessariamente um criminoso (tal como supõe a mídia populista). O populismo da mídia assim como de boa parcela dos agentes da repressão (polícia e ministério público) vê delinquência onde não existe crime. Confundem a infração administrativa com a infração penal. Aliás, muitos nem sequer sabem em que consiste essa diferença. Constroem o delinquente que não existe.
Copiando os velhos populistas do positivismo criminológico do final do século XVIII (Lombroso, Ferri e Garófalo), os neolombrosianos criam delinquentes de forma abominável e essa imagem estereotipada do delinquente forjado é espalhada pelo mundo todo pela obtusa e acrítica criminologia midiática, explorando sempre a sensação de impotência que marca o ser humano da pós-modernidade. É criminoso quem dirige o veículo em estado de embriaguez de forma anormal (ziguezague, sobe calçada, passa no vermelho, anda na contramão etc.). É isso que os juízes do Rio estão fazendo (em respeito às leis vigentes e à constituição). É um infrator administrativo quem dirige embriagado, mas de forma normal. Portanto, a distinção está muito clara (nesse sentido, nosso livro Nova lei seca:Saraiva, 2013).
Nenhum bêbado deveria escapar. Todos os irresponsáveis que bebem e dirigem devem ser punidos. Porém, cada um com sua punição. Tudo depende do nível de irresponsabilidade. Há casos de infração administrativa e há casos de crime. Não se pode lombrosianamente ver delinquência onde não existe crime. Sempre que o juiz deixa de funcionar como semáforo do sistema punitivo (Zaffaroni) vem o Estado de Exceção, que frequentemente se desliza para o Estado de Polícia (e aí, o fim do Estado de Direito).