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Limites à liberdade de expressão e de informação da mídia face ao direito à honra de pessoas envolvidas no processo criminal

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27/07/2013 às 16:43
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6. LIBERDADE DE IMPRENSA VERSUS DIREITO À HONRA

Aqui, encontra-se uma verdadeira arena na qual direitos e liberdades fundamentais usualmente digladiam-se. Assuntos relacionados à liberdade de imprensa estão diariamente nas pautas de debates acadêmicos, televisivos e jornalísticos, dentre outros. Essa temática é tormentosa, constantemente acirrando os ânimos daqueles que são alvos de publicações ofensivas a seus direitos fundamentais e de jornalistas que alegam, firmemente, estarem atuando no mais puro exercício do seu jus narrandi, atendendo a todos os preceitos éticos de suas profissões. Estando esses indivíduos em lados opostos, numa verdadeira busca pela garantia de seus direitos, equiparam-se a gladiadores, os quais eram capazes de quaisquer coisas para o alcance de seus objetivos.

Nos cânones da ditadura militar, os profissionais da imprensa viviam, inegavelmente, sob grande temor e pressão, pois a eles foram impostas censuras extremamente radicais, processos, perseguições políticas, sem falar nas torturas. Todas essas práticas que acabavam por fulminar o instrumento de trabalho da mídia, qual seja, a palavra livre de qualquer censura prévia, para que a ela seja possível cumprir seu papel informador dentro do Estado Democrático de Direito.

Hodiernamente, todas as liberdades públicas são constitucionalmente reconhecidas, o que dá substrato para a livre atuação da mídia. Talvez, por ter saído de um período em que seu poder de expressão era extremamente tolhido, ao deparar-se, repentinamente, com a ampla liberdade de manifestações de idéias e opiniões, a imprensa restou afoita, considerando-se no direito de publicar tudo aquilo o que quisesse e que servisse de instrumento atraente para a curiosidade do público. E, assim, excessos145 descomedidos passaram (e ainda o são) a ser cometidos, causando o choque de direitos e liberdades possuidores de mesmo patamar no ordenamento jurídico brasileiro.

6.1. CONFLITOS ENTRE AS LIBERDADES - ASPECTOS GERAIS

Ser livre é agir responsavelmente, respeitando os demais indivíduos de uma comunidade Caso contrário, não se falaria em liberdade, mas sim em prepotência, já que o descomedido exercício do livre-arbítrio, desconsiderando os direitos e liberdades alheias, nada mais seria do que o próprio oposto do conceito de liberdade, qual seja, a opressão. Ora, então poder-se-ia inferir que, vivendo envolvida por uma série de conflitos entre as liberdades, a sociedade enfrenta um momento de opressão? Não. Pensar dessa maneira seria cometer tremendo equívoco e exagero, por isso tem por objetivo esse trabalho demonstrar a possibilidade de compatibilização das liberdades fundamentais.

Os conflitos entre liberdades sempre existiram, sendo essa assertiva a mais evidente prova de que há uma linha divisória em meio à moralidade, bem como às escolhas individuais e à ética e escolhas públicas. Essa linha é bastante instável e varia de acordo aos padrões vigentes em dado momento na sociedade. Como diz Salvatore Veca:

“Acredito que uma prospectiva de valores políticos que se baseie sobre igual dignidade dos cidadãos tenha de levar a sério o pluralismo dos valores e, como nosso caso, a variedade dos sentidos, dos usos, do valor da liberdade. Isso quer dizer ser consciente do fato de que a tensão e a colisão entre as liberdades, na contemporaneidade (e, esperamos, no futuro), não são acidentes de percurso ou efeitos perversos com respeito à ‘verdadeira’ liberdade, mas se constituem em um elemento irrecorrível do projeto moderno. Conviver com o pluralismo c continuar pensando em uma sociedade melhor não são atividades incompatíveis, embora tornem a vida e a teoria um pouco mais complicadas”146.

Seria utópico imaginar a existência de liberdades individuais absolutas. Se assim o fosse, certamente voltaria ao período da escravidão, em que os mais fortes atropelariam o livre-arbítrio dos mais fracos, transformando-os em verdadeiros escravos. Se é certo que os direitos, em geral, limitam-se reciprocamente, “de modo que onde acaba o exercício legítimo de um, por oposição, começa o do outro, e vice-versa” 147, e que há uma imprescindível necessidade de interpretação da abrangência das liberdades conflitantes por meio de um juízo de ponderação frente ao caso concreto, com certeza ainda maior pode-se dizer que a imprensa, para cumprir sua função, narra fatos, cita pessoas, estabelecendo conexões, muitas vezes infundadas, entre uns e outros, além de divulgar opiniões e severas críticas.

Logo, não há dificuldade alguma em constatar que, pela atuação da imprensa, conflitos surgirão entre a liberdade de expressão e as liberdades ou direitos individuais. A questão tocante ao conflito dessas liberdades é bastante espinhosa e de difícil solução.

6.1.1. Liberdades como status negativo e liberdades positivas: a realização simultânea.

Ferraz Júnior defende serem as liberdades públicas percebidas em termos de status negativo148. Para fundamentar seu posicionamento, utiliza-se do entendimento apresentando em uma palestra de um advogado americano chamado Kenneth S. Russel, que, ao tratar de um caso de delito de dano à reputação cometido pela imprensa, recomendou que o assunto fosse resolvido no departamento de relações públicas e não nos tribunais. Isso porque neles seriam opostas inúmeras dificuldades para que os postulantes fizessem valer seus direitos, principalmente a necessidade de provar a intenção maliciosa da mídia. Além disso, apontou que o ofendido ficaria exposto à exacerbada exposição durante o curso processual, e que, se caso ao final ele não conseguisse provar a referida intenção, poderia ter a seu desfavor a presunção de veracidade das afirmações feitas pela imprensa.

O autor supracitado afirma ainda que, se as liberdades não se realizam simultaneamente, restam-se enfraquecidas, de forma que uma parte se valha em maior medida de suas liberdades e direitos, ficando, consequentemente, prejudicado o exercício da liberdade pela outra parte. Ele explica o conceito de status negativo da seguinte maneira:

“Se o próprio Estado está submetido à ordem jurídica constitucional, então a subordinação do indivíduo ao Estado (soberania) deve estar limitada ao que a ordem prescreve. Ora, aquilo que resta ao indivíduo, subtraídas todas limitações (leia-se constitucionalmente) estabelecidas para a ação individual, isso constitui a esfera livre do indivíduo. (...) Assim, esvazia-se o conceito das liberdades e dificulta-se a realização jurídica simultânea das mesmas” 149.

Data vênia, o posicionamento de Ferraz Júnior é por demais pessimista e extremista. Não há de ser seguido, visto que sempre se deve levar em consideração o aspecto humano (bem como a dignidade) envolto na questão. Além disso, à sociedade não basta apenas o lado econômico ou comercial no deslinde de um conflito, e sim a resolução dos impasses, com a solução de conflitos e a realização dos direitos fundamentais.

Por possuírem conteúdos a serem observados, as liberdades devem ser consideradas sob uma ótica positiva, para que sejam compatibilizadas, convivendo conjuntamente no sistema jurídico, de forma que, no caso concreto, tenha prevalência a mais condizente com a situação discutida. Rosângela Miranda também é adepta desse posicionamento, defendendo que é possível terem as liberdades uma dimensão positiva, e justamente por isso, surgem entre elas, conflitos a serem resolvidos no caso concreto150. Nos dizeres de Eduardo Nogueira:

“Partindo deste princípio, entendo que o Estado não só tem o direito, como o dever de limitar a liberdade das pessoas. O seu papel é definir as circunferências ou esferas de liberdade que devem rodear cada indivíduo, de forma a impedir que esbarrarem umas nas outras ou se anulem mutuamente. E a política, mais do que tudo, é a arte de gerir esse poder público de limitar a liberdade sem simultaneamente dar cabo dela” 151.

É possível como será adiante demonstrado, que, por alguns meios, realize-se simultaneamente as liberdades (leia-se, compatibilize-se o direito à honra e a liberdade de imprensa), visualizando-as positivamente, com conteúdos a serem respeitados e realizados, sem deixar de fora os traços humanos.

6.2. A COLISÃO DE DIREITOS - CONCEITO

Não há dificuldade nenhuma em constatar que os direitos fundamentais são bastante heterogêneos. Em decorrência da abertura e variabilidade de seus conteúdos, a exata abrangência de suas tutelas geralmente só pode ser aferida em caso de um conflito concreto nas relações recíprocas entre os mesmos ou ainda em situações de confronto com outros valores constitucionalmente assegurados.

Se o caso fosse de um mero conflito entre duas regras não-constitucionais, não haveria grandes problemas para a solução, pois o problema resolver-se-ia pela aplicação da regra válida, com o conseqüente afastamento da outra, inválida, no caso concreto. Mas, na colisão entre direitos e princípios constitucionais, há uma complexidade muito maior para solucionar a questão, devendo-se utilizar de outros métodos, os quais serão abordados nesse trabalho, por possuírem os mesmos igual patamar no ordenamento jurídico.

A partir desta perspectiva, emerge o problema da colisão entre os direitos fundamentais. Assim, quando o exercício de um direito fundamental por parte de seu titular entrar em choque com o exercício de direito de outrem, também fundamental, ocorrerá a colisão ou conflito dos mesmos152. Após essa breve exposição de algumas noções iniciais, devem-se ressaltar existirem as Colisões Aparentes e Efetivas (ou Reais) dos Direitos Fundamentais, objetos de análise do tópico seguinte.

6.2.1. Colisão Aparente e Colisão Efetiva

Didaticamente, a doutrina costuma dividir a colisão de direitos em aparente e efetiva. Porém, mesmo antes de conceituá-las, urge tecer observação de suma importância. Sabe-se que não há hierarquia entre as diversas normas fundamentais previstas na Constituição Federal, estando todas elas em igual patamar, qual seja, de normas constitucionais. Assoma-se a isso o fato de ser o sistema jurídico um todo harmônico. Logo, infere-se ser o conflito entre as referidas normas meramente aparente (frise-se que está sendo feita uma análise sob ótica normativa). A título de exemplificação, pode-se afirmar não haver choque, no plano normativo, entre as normas garantidoras da liberdade de imprensa e do direito à honra. Assim, mais correto falar em conflitos ou confrontos envolvendo-os, do que na existência de choque entre os mesmos.

Situação diametralmente oposta ocorre no plano fático, em que a incidência conjunta das mesmas em determinada situação é fato gerador de uma colisão real entre direitos fundamentalmente constitucionais. Nesse sentido, também se posiciona Canotilho153, ao distinguir a mera concorrência dos direitos fundamentais da colisão destes. Afirma haver concorrência quando dada pessoa, titular de direitos, preenche os pressupostos de fato de variados direitos fundamentais através de um único comportamento154. Diferentemente, a colisão autêntica de direitos fundamentais ocorre sempre que o exercício de um direito fundamental pelo titular colida com a prática, por outro titular, de direito também fundamental deste. Em suas palavras: “Aqui não estamos perante um cruzamento ou acumulação de direitos (como na concorrência de direitos), mas perante um ‘confronto’, um autêntico conflito de direitos” 155.

Já fora, há tempos, suplantada a tese preconizadora do ideal de possuírem os Direitos Fundamentais caráter absoluto. Atualmente, o que mais se encontra é a figuração desses direitos em pólos antagônicos, emergindo-se, daí, a necessidade de proceder a uma compatibilização entre os mesmos, para que coexistam, em seus patamares, dentro do sistema jurídico, como será demonstrado em título próprio.

Voltando-se à distinção inicialmente proposta nesse tópico, primeiramente será analisada a colisão aparente de direitos. Aqui, revela-se extremamente importante a delimitação dos objetos dos Direitos Fundamentais, no intuito de tornar passível de visualização seus limites (os quais devem ser determinados pelo emprego de aprofundada interpretação), evitando-se, consequentemente, eventuais exageros quando da compreensão e fixação de suas abrangências.

Assim, em face de uma situação de dúvida no tocante à possibilidade ou não de aplicação de determinado direito fundamental em colisão aparente, deve-se, primeiramente, buscar fixar o âmbito de proteção deste, ou seja, estabelecer qual parcela da realidade o constituinte escolheu para figurar como objeto de proteção da garantia fundamental. Simplificando-se: é necessário identificar qual o bem jurídico protegido por dada norma, além da amplitude dessa proteção. Isso porque, há casos nos quais a mera interpretação literal de uma norma de direito fundamental pode gerar o entendimento de que certa situação estaria por ela protegida, a qual, em verdade, partindo-se de uma análise interpretativa mais aprofundada, foge da real abrangência protetora daquela.

Nos dizeres de Mônica Aguiar:

“Se, por um lado, os direitos fundamentais são reais e efetivos e, por isso mesmo, contêm elementos irredutíveis, por outro lado, esse seu ser não pode abarcar tudo o que se pense possível de ser acolhido à sombra de seu enunciado constitucional. Podemos pensar sempre em exemplos caricaturais, mas, na prática, o erro de interpretação muitas vezes navega em águas bem próximas. Como, por exemplo, acreditar-se que o direito à educação seria o direito a diplomas para todos (e diplomas de doutoramento ou mais...), o direito à saúde incluiria o mais sofisticados tratamentos de beleza e cirurgia plástica, o direito de habitação garantiria palácios para quem os requeressem.

(...) O problema é quando deparamos com casos concretos... Aí o caricatural, por já não ser ficcional, mas vivencial, perde os traços exagerados e começamos a considerá-lo apenas como um caso polêmico “156.

Não é tarefa das mais fáceis a fixação do âmbito de atuação dos direitos, posto que eles apresentam-se nas mais variadas formas, além de possuírem conteúdo extremamente aberto. Corroborando este entendimento, diz Gilmar Mendes:

“Não raro, a definição do âmbito de proteção de determinado direito depende de uma interpretação sistemática, abrangente de outros direitos e disposições constitucionais. Muitas vezes, a definição do âmbito de proteção somente há de ser obtida em conflito com eventual restrição a esse direito” 157.

Estes consistem em casos geradores de colisão meramente aparente, visto que neles existe um problema de limitação implícita e não explícita (essa, sim, originária de um real conflito). Logo, não há de se falar em colisão efetiva em situações nos moldes das acima expostas, já que a Constituição Federativa não protege tais formas158 de direitos questionados. Segundo Leandro Bessa:

“Importante se faz o estudo do âmbito de proteção dos direitos fundamentais porque, muitas vezes, determinadas situações, que à primeira vista caracterizariam um conflito de direitos fundamentais, não o são verdadeiramente. O que se observa no caso é uma simples mensuração incorreta do âmbito de proteção. É a chamada colisão aparente. De fato, a colisão não ocorre, mas uma simples aparência de conflito de normas veiculadoras de direitos fundamentais, sanável pela fixação dos âmbitos de proteção de ambos, a fim de que não mais se interpenetrem” 159.

Percebe-se que o problema da colisão aparente é de difícil solução. Assim:

“O problema deve, portanto, ser resolvido como problema de interpretação dos preceitos constitucionais que prevêem cada um dos direitos fundamentais. O que se pergunta em cada caso é se a esfera normativa do preceito em causa inclui ou não certa situação ou modo de exercício, isto é, até onde vai o domínio de protecção (a hipótese a norma). Se num caso concreto se põe em causa o conteúdo essencial de outro direito, se se atingem intoleravelmente a moral social ou valores e princípios da ordem constitucional, deverá resultar para o intérprete a convicção de que a proteção constitucional do direito não quer ir tão longe. E, então, o direito tem de respeitar os direitos dos outros, os princípios fundamentais ou as leis, porque não restringem o seu âmbito, tal como é constitucionalmente protegido” 160.

Em suma, nesses casos, não há de se falar, verdadeiramente, em colisão. Apenas há uma remotíssima semelhança com o real confronto entre direitos, daí a denominação colisão aparente. Admitir-se entendimento contrário seria possibilitar atuações que transbordem o âmbito de proteção constitucional dos direitos e garantias fundamentais.

Já a colisão efetiva, real ou verdadeira entre direitos concretiza-se quando dado direito fundamental interfere, direta e incisivamente, no âmbito de proteção de outro. Assim, embora já tenha sido realizada a devida verificação de suas abrangências protetivas, estes continuam colidindo frontalmente, o que decorre, basicamente, do caráter heterogêneo que os reveste e do fato de possuírem conteúdo aberto e mutável (o que exige, muitas vezes, a análise de uma situação concreta para que se firme suas previsões). Na maioria das situações, um único conflito gera, concomitante, a incidência de dois direitos igualmente fundamentais, os quais passam a competir, em lados opostos, pelo alcance do deslinde mais favorável à garantia de suas proteções.

Cumpre destacar, nas palavras de Leandro Bessa, a enorme semelhança existente nos conflitos que envolvem direito fundamentais e nos entre princípios:

“Vislumbra-se, nos variados tipos de colisão de direitos fundamentais, uma premissa constante: os conflitos que surgem entre direitos fundamentais são idênticos aos conflitos entre princípios. Com efeito, as normas que veiculam direitos fundamentais assumem os delineamentos próprios de princípios, na medida em que apresentam todas as características destes, notáveis principalmente ao serem comparadas com aquelas que enunciam regras” 161.

Exemplo bastante significativo dessa colisão é o conflito sempre existente entre a liberdade de imprensa e o direito à honra, palco em que excessos são descomedidamente cometidos. Isso porque, como leciona Mônica Aguiar:

“Entre a liberdade de imprensa e os bens jurídicos pessoais162 há uma relação intrinsecamente conflitual na medida em que, embora exista espaço no qual a pessoa pode representar-se e agir com plena autonomia à margem de qualquer devassa e intromissão, o ser social, atributo do homem, autoriza uma compreensão de que ninguém pode viver como uma unidade isolada” 163.

Para que haja a regulação desses conflitos, deve-se buscar forma de harmonizar o direito, sendo que, somente depois da análise do caso concreto, será possível determinar que bem prevalecerá164. Assim, para a solução de confrontos entre direitos fundamentais, não se mostra suficiente a mera subsunção do fato à norma, principalmente em decorrência do estado de tensão que envolve os referidos direitos. Logo, jamais se deve pretender solucionar casos deste nível através da análise da validade (em que uma regra é preterida em favor da outra), pelo que uma única norma é aplicada no caso concreto com base em critérios hermenêuticos clássicos, quais sejam, hierárquico, cronológico ou da especificidade.

Em tais circunstâncias, os referidos critérios não devem ser utilizados por estarem os direitos fundamentais no mesmo patamar hierárquico, como já afirmado. Dessa forma, necessária se faz a observância de outras modalidades de solução (semelhantes às empregadas na solução de conflitos envolvendo princípios, pois já foi mencionada a semelhança entre os confrontos). Completando esse raciocínio, diz Paulo Branco que “no conflito entre princípios, deve-se buscar uma conciliação entre eles, uma aplicação de cada qual no caso concreto, sem que um dos princípios venha a ser excluído do ordenamento por irremediável contradição com o outro” 165.

Assim, deve-se fazer um sopesamento dos direitos conflitantes, para que reste possível o estabelecimento de qual deles terá prevalência na situação em caso. E, como meio de fugir de indesejáveis hermenêuticas, urge serem traçados caminhos para a solução do extremamente complexo tema da colisão entre direitos fundamentais.

6.2.2. A ponderação de interesses como método de solução

No intuito de concretizar a aplicação de critérios de justiça prática, debruçaram-se a doutrina e os legisladores em estudos objetivando encontrar elementos suficientes e bastantes à solução dos conflitos ora enfocados, o que acaba por minorar a aplicação de meras interpretações subjetivas, muitas vezes não condizentes com o princípio da segurança jurídica. Nesse sentido, cabe falar rapidamente sobre o assunto.

Inúmeras propostas solucionadoras já foram desenvolvidas, porém, muitas delas, por si sós, não se mostraram aptas à solução de todas as modalidades de conflitos entre os direitos fundamentais166. Recentemente, percebeu-se que a técnica da subsunção é limitada e não se mostra suficiente para a resolução de todos os tipos de conflitos entre direitos, o que ainda é mais agravado pela enorme expansão de importância dos princípios. Nesse sentido, é válido transcrever a ilustração trazida por Ana Paula de Barcelos e Luís Roberto em sua obra:

“Imagine-se uma hipótese em que mais de uma norma possa incidir sobre o mesmo conjunto de fatos – várias premissas maiores, portanto, para apenas uma premissa menor –, como no caso clássico da oposição entre liberdade de imprensa e de expressão, de um lado, e os direitos à honra, à intimidade e à vida privada, de outro. Como se constata singelamente, as normas envolvidas tutelam valores distintos e apontam soluções diversas e contraditórias para a questão. Na sua lógica unidirecional (premissa maior – premissa menor), a solução subsuntiva para esse problema somente poderia trabalhar com uma das normas, o que importaria na escolha de uma única premissa maior, descartando-se as demais. Tal fórmula, todavia, não seria constitucionalmente adequada: por força do princípio instrumental da unidade da Constituição, o intérprete não pode simplesmente optar por uma norma e desprezar outra em tese também aplicável, como se houvesse hierarquia entre elas” 167.

Assim, restou claro que nem todos os casos podem ser resolvidos pela simples subsunção, necessitando-se de uma solução mais complexa, que considere cada um dos elementos envolvidos no conflito, analisando a importância dos mesmos em relação ao caso em questão de forma a ponderar os interesses envolvidos. Segundo Alexy:

“Em uma ordem democrática, os princípios freqüentemente entram em tensão dialética, apontando direções diversas. Por essa razão, sua aplicação deverá se dar mediante ponderação: à vista do caso concreto, o intérprete irá aferir o peso que cada princípio deverá desempenhar na hipótese, mediante concessões recíprocas, e preservando o máximo de cada um, na medida do possível. Sua aplicação, portanto, não será no esquema tudo ou nada, mas graduada à vista das circunstâncias representadas por outras normas ou por situações de fato” 168.

Face ao exposto, deve-se tecer comentários a respeito da técnica da ponderação, à qual laçam mãos diversos intérpretes, por ser de grande utilidade frente à necessidade de solução de hard cases169 envolvendo normas constitucionais possuidoras de mesmo grau de hierarquia e generalidade. Pode-se, sucintamente, conceituá-la como um meio ou técnica de decisão jurídica empregada na decisão de casos difíceis, não solucionáveis pela subsunção170.

Ela subdivide-se em três fases. Em primeiro lugar, deve o aplicador identificar as normas relevantes para a solução que estão em conflito. Em seguida, tem de se examinar, detalhadamente, o fato e as circunstâncias concretas do caso, bem como sua interação e repercussão sobre as regras conflitantes171. Por último, quando da decisão, há de se apreciar conjuntamente os diferentes grupos de normas, além da repercussão delas sobre os fatos, em uma verdadeira atribuição de “pesos” aos elementos colidentes, para que, por sopesamento, determinem-se quais devem prevalecer e em que intensidade. Assim, é nessa terceira fase que ponderação será, verdadeiramente, realizada em detrimento da subsunção. Nas palavras de Ana Paula de Barcellos e Luís Roberto:

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“Nessa fase dedicada à decisão, os diferentes grupos de normas e a repercussão dos fatos do caso concreto estarão sendo examinados de forma conjunta, de modo a apurar os pesos que devem ser atribuídos aos diversos elementos em disputa e, portanto, o grupo de normas que deve preponderar no caso. Em seguida, é preciso ainda decidir quão intensamente esse grupo de normas – e a solução por ele indicada – deve prevalecer em detrimento dos demais, isto é: sendo possível graduar a intensidade da solução escolhida, cabe ainda decidir qual deve ser o grau apropriado em que a solução deve ser aplicada. Todo esse processo intelectual tem como fio condutor o princípio instrumental da proporcionalidade, como será visto adiante” 172.

A técnica da ponderação passou a ser utilizada na moderna interpretação constitucional em face das necessidades de solução dos novos conflitos que foram surgindo com o passar dos anos e a evolução tecnológica. Assim, ainda não se conhece exaustivamente a cerca da estrutura interna do raciocínio empregado na referida técnica, sabendo-se apenas estar ela sempre ligada ao sopesamento e balanceamento de interesses, bens, normas e valores. Também não há unanimidade no que tange à sua natureza: se a ponderação trata-se de um princípio autônomo173 ou de um componente mais abrangente do princípio da proporcionalidade174, discussão que não acarreta conseqüências práticas para este trabalho.

Entretanto, essa técnica não pode desvirtuar-se, tornando-se ferramenta para a realização de interpretações totalmente subjetivas (e às vezes tendenciosas) do intérprete. Coadunando com esse entendimento, há autores que criticam utilização da ponderação no que tange a assuntos envolvendo temas constitucionais, sob a alegação de que, face ao seu caráter fundamental, eles não poderiam estar sujeitos à avaliações subjetivas e discricionárias típicas da técnica ponderativa175. Logo, parâmetros à sua utilização devem ser fixados (o quais não são rígidos nem imutáveis, mas tão somente balizas norteadoras da correta interpretação), para que a mesma constitua-se numa inconteste garantia equidade das decisões. Nesse sentido, afirma Ana Paula de Barcellos:

“O propósito da ponderação é solucionar esses conflitos normativos da maneira menos traumática para o sistema como um todo, de modo que as normas em oposição continuem a conviver, sem a negação de qualquer delas, ainda que em determinado caso concreto elas possam ser aplicadas em intensidades diferentes. (...) A construção de parâmetros pela doutrina, a partir de um discurso racional, público e amplamente justificado, está apenas iniciando e exigirá ainda considerável estudo e reflexão, mas é um dos poucos meios capazes de explicar, justificar e controlar a ponderação. E ele carrega em si uma vantagem adicional: trata-se de uma forma de controle puramente persuasivo – a consistência da argumentação é que provará sua eficácia – e não coercitivo, permitindo amplo espaço de determinação ao Poder Judiciário” 176.

Assim, a técnica da ponderação não deve ser desmerecida quando utilizada para a tomada de decisões, visto que, nela, a discricionariedade judicial não é ilimitada, restando sua aplicação adstrita às situações em que o ordenamento jurídico não tenha estabelecido soluções, em tese, para determinado caso, não elegendo, assim, qual interesse ou valor deverá sempre prevalecer. Além disso, pelo exame da argumentação e fundamentação expostas pelo julgador ao proferir sua decisão, é possível que seja exercido um controle de legitimidade das decisões oriundas de juízo de ponderação, forma pela qual é possível garantir a existência de limitação ao subjetivismo do magistrado.

Do exposto, percebe-se existir uma busca por um critério único de solução, passível de aplicação em todos os casos. Como será visto adiante, o princípio da proporcionalidade mostra-se bastante eficaz na solução de conflitos no caso concreto.

6.3. LIBERDADE DE INFORMAÇÃO: CARÁTER NÃO ABSOLUTO

Rememorando-se: o direito à liberdade de informação não tem caráter absoluto, não pode ser exercido a qualquer custo, como estabelecido pelos próprios arts. 5°, incisos IV, V, X e 220 da CF. Sofre limitações, na medida do estritamente necessário, decorrentes da necessidade de salvaguarda de outros importantíssimos direitos, destacadamente, do direito à honra, situação gravosa pelo fato de todos eles constituírem-se em direitos constitucionalmente fundamentais. Nos dizeres de Gláucia Borges:

“Expressão, opinião e informação não se constituem em liberdades constitucionais plenas, posto que a liberdade de imprensa esbarra nos direitos da personalidade que não são passíveis de violação, nem mesmo sob o pretexto de eventual interesse público ou coletivo”177.

Dessa forma, deve-se sempre buscar compreender a abrangência de um direto fundamental para a determinação de qual deles prevalecerá no caso concreto, visto que essa prevalência varia, em muito, a depender da situação, já que não há a supremacia absoluta de um bem jurídico. Estabelece Zannonni:

“Assim, não necessariamente há de prevalecer a liberdade de expressão sobre a honra ou a privacidade das pessoas, nem vice-versa: a honra ou a privacidade não podem ser consideradas prevalentes, em todos os casos, sobre a liberdade de pensamento” 178.

Lembre-se que a atual Lei de Imprensa foi publicada em 1967, período de plena vigência da ditadura militar com todos os seus excessos e opressões, daí o seu teor autoritário. Só que veio a atual Constituição, institucionalizando a proteção de variados direitos antes não legalmente resguardados, dentre os quais se apontam o direito à honra e à liberdade de informação, mas nova lei de imprensa ainda não foi elaborada, continuando a antiga vigorar em notável contraste com a democrática CF de 88.

Isso, de certa forma, constituiu-se em abrupta transformação, causadora de grande impacto à população. A promulgação da CF ocorreu depois de vasto período ditatorial, no qual censuras políticas, ideológicas e artísticas já faziam parte do quotidiano da sociedade brasileira. Antes, pessoas viviam em constante temor, por verem comumente torturas e demais exagerados “castigos” repressivos sendo rotineiramente aplicados. Esse choque entre as realidades acabou por gerar confusões nas mentes dos indivíduos, de forma que alguns, provavelmente, não conseguiram perceber os limites dos novos direitos consagrados. Daí, talvez, tivessem imaginado que lhes foram atribuídos direitos de fazer qualquer coisa, exprimindo suas opiniões da forma que quisessem, independentemente de eventuais ofensas outros direitos.

Nesse sentido, manifesta-se Edílson Pereira Farias, dizendo que “tem sido um aprendizado duro e difícil para nós, depois de muitos anos de ditadura militar, conviver numa sociedade sem censura oficial do Estado179”. Logo em seguida, questiona que “quem não se recorda dos inúmeros conflitos envolvendo a liberdade de imprensa e os direitos fundamentais verificados nos últimos tempos no país?180”.

A afirmação acima pode ser considerada uma meia verdade, pois, é certo que o Brasil viveu por mais de dez anos sob o manto da censura oficial do Estado ditatorial, mas também é verdade que esse pesado fardo não existe há mais de vinte anos, contados a partir da redemocratização de 1985. Hodiernamente, mais correto seria afirmar que aos profissionais e dirigentes dos órgãos da imprensa faltam maturidade para assumir, com seriedade e responsabilidade, o relevante papel desempenhado pela mídia, evitando eventuais excessos ou distorções.

Para que se justifique a prevalência do direito à informação sobre os demais direitos personalíssimos, é imprescindível a análise de certos elementos que sempre devem ser respeitados. Assim, cumpre verificar se a revelação dos fatos é verdadeira181, bem como se ela diz respeito ao interesse público (tanto no conteúdo da notícia quanto à condição do indivíduo a que ela refere-se), além da pertinência do momento em que foi feita a divulgação (ou seja, se no momento da divulgação ela estava de acordo com os fins da liberdade de informação, qual seja, apresentar ao público fatos relevantes, de forma a possibilitar que ele forme consciência política, cultural e social, dentre outras). Isso porque, não preenchidos esses requisitos, constando-se que a mídia agiu de forma oportunista e sensacionalista, não será reconhecida a licitude de sua atividade, tendendo-se, consequentemente, a conferir maior peso jurídico aos demais direitos conflitantes que estão sendo ponderados. Nesse sentido:

“Assim, se a notícia é verdadeira e socialmente relevante, então, ponderados os valores e interesses concretos em conflito, pode sacrificar-se o direito da personalidade, sem que se afete o conteúdo essencial deste, ou seja, procurando-se preservá-lo no que for possível. Diversamente, sendo a notícia falsa, apesar de relevante para a sociedade, sacrifica-se o direito de informação, ou se a notícia é verdadeira, mas sem relevância pública, sacrificar-se-á igualmente o direito de informação. Mas esta afirmação deve ser aceita com ressalvas, porque com relação à veracidade informativa, por óbvio que outros fatores devem ser sopesados, como por exemplo, a ciência da inverdade da notícia, o fato de o jornalista não tê-la checado devidamente, ter agido de má fé, além de ter que se levar em conta o fato de não se exigir do jornalista a verdade absoluta dos fatos”182.

Face ao exposto, cabe ao juiz, no caso concreto, analisar todos os fatores em questão e decidir pela prevalência de um entre os direitos conflitantes, tendo em vista que a liberdade de informação não possui caráter absoluto.

6.4. EXCESSOS COMETIDOS PELA MÍDIA FACE AO DIREITO À HONRA DO ACUSADO

Nos dizeres de Rui Barbosa, "o jornalista, para o comum do povo, é um mestre de primeiras letras e um catedrático de democracia em ação, um advogado é um censor, um familiar e um magistrado”183. Quis, através dessa afirmação, demonstrar que, no geral, a população aceita como verdade irrefutável tudo aquilo escrito por um jornalista, pessoa sábia, que estudou para aprender a empregar adequadamente as palavras, de forma a transmitir-lhe informações e não a deixar à margem dos acontecimentos políticos, econômicos e culturais do país.

Na prática, sabe-se que qualquer notícia transmitida pela imprensa é absorvida pelo público como verdade absoluta, tamanha a credibilidade que este lhe deposita, até porque, talvez, seja esse o único meio de que ele dispõe para conhecer do fato, não havendo, assim, possibilidade de refutar a informação passada184. É esta é uma das principais razões para que todas as limitações legal e constitucionalmente impostas sejam totalmente respeitadas, principalmente quando o fato repercutir sobre a honra do ser humano, que “é o primeiro dos bens matérias tutelados pelo direito público e o quarto na hierarquia dos bens associados à proteção da vida” 185.

Estabelece a Lei de Imprensa (omissis):

“Art. 27. Não constituem abusos no exercício da liberdade de manifestação do pensamento e de informação:

I - a opinião desfavorável da crítica literária, artística, científica ou desportiva, salvo quando inequívoca a intenção de injuriar ou difamar;

II - a reprodução, integral ou resumida, desde que não constitua matéria reservada ou sigilosa, de relatórios, pareceres, decisões ou atos proferidos pelos órgãos competentes das Casas Legislativas;

III - noticiar ou comentar, resumida ou amplamente, projetos e atos do Poder Legislativo, bem como debates e críticas a seu respeito;

IV - a reprodução integral, parcial ou abreviada, a notícia, crônica ou resenha dos debates escritos ou orais, perante juízes e tribunais, bem como a divulgação de despachos e sentenças e de tudo quanto for ordenado ou comunicado por autoridades judiciais;

V - a divulgação de articulados, quotas ou alegações produzidas em juízo pelas partes ou seus procuradores;

VI - a divulgação, a discussão e a crítica de atos e decisões do Poder Executivo e seus agentes, desde que não se trate de matéria de natureza reservada ou sigilosa;

VII - a crítica às leis e a demonstração de sua inconveniência ou inoportunidade;

VIII - a crítica inspirada pelo interesse público;

IX - a exposição de doutrina ou idéia.

Parágrafo único. Nos casos dos incisos II a VII deste artigo, a reprodução ou noticiário que contenha injúria, calúnia ou difamação deixará de constituir abuso no exercício da liberdade de informação, se forem fiéis e feitas de modo que não demonstrem má-fé”. (Grifos nossos).

Não há nenhuma dificuldade para o entendimento dos citados dispositivos, escritos em linguagem clara, facilmente compreensível mesmo por leigos. Assim, não cabe afirmar que os jornalistas ou demais profissionais liberais atuantes no âmbito da comunicação tenham dificuldade de perceber aquilo o que lhes é lícito fazer no exercício de suas profissões. Se eles seguissem o disposto nesse artigo, não haveria tantos casos de crimes contra a honra e demais direitos personalíssimos abarrotando os tribunais. Entretanto, alguns graduados parecem que se esqueceram, sequer por uma única vez, terem lido as referidas regras, e aos profissionais liberais, urge a leitura das mesmas (se já não os fizeram), de forma que sejam seguidas e tamanhos abusos não continuem sendo cometidos.

Além de explorarem excessivamente os fatos que atraiam maior audiência do público, preterindo outros de igual ou até mesmo maior importância, certos jornalistas tendem a estigmatizar alguns setores menos favorecidos da sociedade, comumente apontando-os como violentos ou perigosos, embotando no imaginário popular que determinados caracteres compõem a maioria dos quadros delitivos, a exemplo de jovens favelados, bairros marginalizados e imigrantes – por alguns estarem envolvidos em tráfico de drogas, dentre outros, sem destacar que, entretanto, nem todos os integrantes desses locais e perfis são criminosos, o que se constitui em notável ofensa à honra daqueles que são indevidamente estigmatizados.

É inegável que são os meios de comunicação massivos os principais responsáveis por levarem ao conhecimento público a ocorrência de crimes, bem como todo o percurso dos atos processuais. Porém, não poucas vezes, como já reiteradamente afirmado neste trabalho, a narração dos fatos sai distorcida, o que acaba por não apenas reduzir, mas sim por aniquilar os direitos da personalidade do acusado ou investigado, os quais passam a ser tratados como se verdadeiros objetos noticiáveis fossem, e não como seres humanos. Assim, diz Ana Maria:

“O crime e a justiça penal, até então, presenciados pela população quando da execução da reprimenda, posteriormente revelados pelos periódicos, narrados pelos poetas, representados pelas artes dramáticas, foram transformados em imagens pela mídia, mas uma imagem que não revela os fatos, porém os cria. Pela invasão diária da notícia de crimes, investigações policiais, prisões de acusados por infrações de corrupções etc., podemos perceber que a imprensa hoje possui a característica de gerar ‘imagens-acontecimentos’: é a imagem que se torna acontecimento, fazendo-os coincidir. É, segundo Denry Jeudy, a chamada ‘alucinação do real’, ‘desrealização do mundo’, pois a mídia constrói um efeito de fascinação e ao mesmo tempo reproduz um efeito de contaminação das imagens. Assim, não há mais como se operar uma distinção entre a imagem e o real. Nem mesmo cabe falar em Justiça ‘espetáculo’, porque essa idéia ainda supõe que exista uma certa distância entre a representação e a realidade”186.

Dessa forma, seria até ingênuo imaginar que a imprensa sempre fosse totalmente fiel aos fatos. Logo, pode-se contar apenas parte de um fato, ocultando outro, de forma a influenciar a opinião das pessoas. Daí o acusado, ou até mesmo um mero investigado, é submetido a vexames, à devassa de suas vidas, passando a ser desrespeitado pela população, em decorrência da imprópria atitude da imprensa de expor motivações e detalhes sórdidos do suposto crime, além de traços estigmatizados de personalidade, os quais ela simplesmente supõe, sem nenhuma prova consistente ou decisão judicial.

Noticia-se o inquérito ou o processo através de chamadas sensacionalista, não havendo preocupação com a veracidade das informações muito menos com critérios éticos por parte do profissional, em uma verdadeira demonstração de leviandade e de falta de preocupação com a dignidade das pessoas. Nem os jornalistas e nem as autoridades policiais preocupam-se com os direitos humanos do suspeito, exibindo sua imagem à mídia, como se uma coisa ele fosse. Nada escapa das lentes da imprensa, nem mesmo os mais íntimos detalhes da vida privada (os quais, muitas vezes, em nada influirão no processo), jogando-se no lixo toda a dignidade e a honra do indivíduo perante a sociedade, o que se constitui em imensurável absurdo, pois a condição do indivíduo (investigado, acusado ou réu) não lhe retira o direito de respeito aos seus direitos personalíssimos.

De tanto abordar matérias relacionadas à ocorrência de crimes, enaltecendo-as, a mídia acabar por gerar uma verdadeira tensão social: de um lado, acompanham os espectadores todos os detalhes (exagerados, diga-se de passagem) noticiados pela mídia, como se estivessem assistindo capítulos de uma novela e não diante de uma situação verídica, causadora de sofrimentos e de ofensas a direitos das partes envolvidas; de outro, esses mesmos espectadores, ávidos pela materialização da justiça, clamam pela aplicação de penas aos acusados, antes mesmo de qualquer decisão judicial, pelo simples fato de já terem formado opinião de que se tratam aquelas pessoas de criminosos, merecedores das piores punições, conseqüência, evidentemente, dos pré-julgamentos feitos pela mídia.

Em relação ao referidos pré-julgamentos, deve-se exigir que os profissionais da imprensa evitem realizá-los ao máximo possível, tamanha a sua potencialidade lesiva, pois podem ofender não só a honra e demais direitos do acusado, como também acabar por influenciar no julgamento do poder judiciário, no afã de atender aos clamores populares (como exemplo, pode-se citar a manutenção de uma cautelar indevida como forma de satisfazer a opinião pública). Ressalte-se, ainda, que a exagerada exposição dos acusados, além de agredir suas honras, acaba por colocar em risco suas vidas, pois, muitas vezes, tamanha a pressão e a exploração feita pela mídia, que a população rebela-se contra os mesmo e tenta linchá-los, ameaçando-os de morte, numa demonstração de tentativa de fazer justiça com as próprias mãos. Isso é inconcebível, pois vai de encontro a todos os postulados e garantias do Estado Democrático de Direito.

A situação agrava-se mais ainda quando os acusados são pessoas públicas, possuidoras de notoriedade em razão da função exercida. Se a população, em geral, já tem interesse em tomar conhecimento da intimidade das mesmas em suas vidas quotidianas, no caso de envolvimento delas em fatos criminosos, o interesse é dobrado. A mídia, logicamente, aproveita-se desse fator e publica indiscriminadamente todos os aspectos ligados às celebridades, esquecendo-se que elas também possuem honra e dignidade a serem preservadas.

Também as vítimas e testemunhas sofrem exposições em decorrência das investigações, pois geralmente a divulgação dos depoimentos ressalta aspectos da privacidade dessas pessoas. Fala-se de seus gostos, hábitos, preferências, relacionamentos amorosos, caracteres que nem interessam ao judiciário, mas são importantíssimos para a imprensa, por despertarem a curiosidade do público.

Logo quando da ocorrência do fato, o possível infrator é exposto, estampado nas notícias e capas de jornais ou revistas, tornando-se publicamente conhecido e tido como um ser vil, que merece a mais cruel das condenações. Antes mesmo do julgamento do poder judiciário, em que são respeitados os princípios do devido processo legal, a mídia sentencia o acusado187, sentença esta que é muito mais drástica e cruel, porque irrecorrível, já que não há como se retirar das mentes dos telespectadores todos os detalhes e acusações feitos pela imprensa. Assim, defende Marta Zanchi que:

“Comentários excessivamente sensacionalistas, chativinistas ou parcialmente marcados por preferência ideológicas expostas apaixonadamente não só têm defeitos técnicos, que incidem sobre a qualidade profissional da informação, como contribuem para difundir posturas distorcidas, maniqueístas e agressivas. O cuidado e o esforço de bem-fazer são exigíveis do informador na elaboração das informações, que deve ser de fonte segura e contrastada, documentada e exposta com objetividade. Isso requer um esforço de preparação sobre o tema a tratar e um seguimento de seu contexto e evolução. Afinal, a codificação, marcada por infinitos processos de escolha, é, em grande parte, responsável pela construção da opinião pública sobre os temas selecionados”188.

Consequentemente, pouco importa a honra das pessoas. Vale tudo para a obtenção de lucros, não se levando em consideração os prejuízos que a publicação de um fato indevido venha acarretar na vida de um indivíduo. E a população, em geral, é cúmplice dessa prática, pois se alimenta das mazelas alheias e tem como diversão acompanhar os fatos divulgados pela mídia, por mais violentos que sejam. Tristeza ou não? O que seja! É a realidade da população e da mídia brasileira. Nos dizeres de Ignácio Ramonet, “enquanto mercadoria, a informação está em grande parte sujeita às leis de mercado, da oferta e da demanda, em vez de estar sujeita a outras regras, cívicas e éticas, de modo especial, que deveriam, estas sim, ser as suas” 189. Nessa mesma tendência caminham os programas televisivos e a imprensa em geral. Pela concorrência, cabe tudo, até mesmo transformar em mercadoria um fato que pode trazer conseqüências indeléveis na vida de uma pessoa.

A situação agrava-se muito quando se atenta para o fato de que, mesmo comprovando-se a inocência de uma pessoa ao final de um processo criminal, ela já foi estigmatizada, crucificada pela mídia e pela população, tendo sido seus valores e honra jogados ao lixo, conseqüências essas que transcendem o plano físico e permanecem enraizadas no psicológico, o que acaba por aniquilar moralmente o indivíduo. Posteriormente, mesmo sendo feita uma retratação, esta não consegue desfazer completamente as conseqüências negativas geradas para a pessoa Foi o que aconteceu no conhecido caso da “Escola Base”. Conforme relatado por Ana Lúcia, citando Alex Ribeiro em sua obra “Caso Escola Base: os abusos da imprensa”, naquela ocasião injustiça incorrigível foi cometida:

“Era uma notícia de impacto: crianças de classe média estariam sofrendo abusos sexuais justamente dos responsáveis por uma escolinha, que deveriam zelar pela integridade. Tudo começou com uma despretensiosa conversa entre mãe e filho de quatro anos. De uma frase dita pelo menino, a mãe concluiu, após algumas respostas às suas perguntas, que as crianças da escolinha estavam sofrendo abusos sexuais. Relatou o fato à outra mãe de aluno e levaram a notícia à Delegacia de Polícia. A autoridade policial entrou em ação. Como se a situação requeresse em cima de muito alarde foram feitas outras ‘investigações’. Toda a imprensa já estava de prontidão. As notícias dos ‘indícios’ começaram a ser divulgadas. O delegado do inquérito não só transmitia aos repórteres o que fazia, mas o que pretendia fazer. As averiguações, as buscas, as oitivas das vítimas, o interrogatório dos suspeitos eram acompanhados de perto pela mídia. Em tom de sensacionalismo, todos os atos do inquérito, inclusive os que não existiram, eram divulgados nos meios de comunicação”190.

Continuando a narrativa, agora já no tocante às conseqüências, principalmente no que tange à honra dos equivocadamente acusados, disse que:

“A escola foi depredada, os proprietários tiveram que abandonar o emprego, não podiam sair às ruas, pois suas fotos estavam estampadas em todos os locais e, além de poderem sofrer agressões do público, suas vidas corriam riscos. Foram colocados no ‘pelourinho’ da imprensa. Perderam tudo o que tinham, entre bens materiais e morais. E, quando ao inquérito, foi arquivado por falta de elementos que evidenciassem a ocorrência de crimes. Não há indenização que seja capaz de restituir as perdas sofridas pela vítimas da imprensa e daquele que tinha o dever de agir com critério, comedimento e sob o sigilo, uma vez que cabível e justificável in casu. Tarde demais. A violência está consumada. Não contra os alunos, mas contra os acusados”191. (Grifos nossos).

Nas emissoras brasileiras, alguns programas sobrevivem da exploração de temas relativos aos submundos da sociedade, como é o caso do programa exibido pelo apresentador Datena, e, em nível de total excesso e barbaridades, o programa intitulado Se Liga Bocão, em que o apresentador José Eduardo vai diariamente “ao ar” expor cenas drásticas de crimes gravíssimos e cruéis, tratando deles como se dissessem respeito a fatos normais, além de acusar, publicamente, pessoas, apontando-as como assassinas, criminosas, dentre vários outros termos caluniosos192. Já não fosse o bastante utilizar-se de tons sensacionalistas e acusações muitas vezes infundadas, ultimamente tornou-se comum o referido apresentador literalmente mandar a população “passar o rodo” naquele que foi apontado, sem as devidas provas, como criminoso, ou até mesmo chegar a afirmar que “alguém precisa matar aquele indivíduo”, incitando a população ao cometimento de crimes (situação esta, inclusive, tipificada pelo CP, em seu art. 286).

Ressalte-se que o programa é veiculado em horário livre de censuras, sendo, consequentemente, assisto por vários jovens e até mesmo por crianças. Porém, o conteúdo das notícias, e mesmo a linguagem utilizada pelo apresentador, são inadequados ao acima citado tipo de público, pois, em diversas vezes, são exibidas cenas chocantes de mortes, cadáveres, lesões corporais, dentre outras. Não é difícil constatar que o referido programa viola o ordenamento jurídico, através de ofensas ao direito dos presos, ao principio da presunção da inocência, além de incentivos à prática de violência e torturas, tanto por parte da polícia quanto por parte da população.

José Eduardo, geralmente, faz chamadas sensacionalistas de forma a anunciar o cometimento de determinado crime, a exemplo de homicídio, roubo e estupro, dentre outros. Depois de exibir as referidas chamadas por diversas vezes, mostra reportagens feitas no local do crime, ou, quando não o consegue, transmite todo o procedimento de prisão do suspeito, entrando um dos membros de seu programa, conhecido por “Zebim”, nas delegacias, de forma a tentar entrevistar o preso ao vivo. Porém, as reportagens são extremamente ofensivas aos direitos, notavelmente à honra, dos mesmos, exibindo-se a imagem daqueles que estão ali sem nenhuma assistência jurídica (na maioria das vezes, tratam-se de pessoas pobres, que não têm condições de providenciar um advogado para defendê-los dos excessos no momento). Às vezes, quando os presos negam-se a falar, Zebim os persegue com uma câmara, insistindo na obtenção de respostas, sendo que tudo isso será transmitido aos telespectadores, em total desrespeito à honra e demais garantias constitucionais desses cidadãos.

Em notícia publicada pelo Jornal Correio Braziliense:

“Não foi fácil manter-se ligado nos programas Cidade Alerta (Record) e Brasil Urgente (Band), com forte tendência sensacionalista. As matérias contam histórias de homicídios, estupros, roubos e acidentes automobilísticos. Não é incomum se deparar com legendas bem semelhantes nos dois canais: ‘Vizinho é acusado de estuprar e matar estudante’ ou ‘Criança de 3 anos é espancada pelo pai até a morte’. Os apresentadores dos programas, Milton Neves — Cidade Alerta — e José Luís Datena — Brasil Urgente —, intercalam as ‘‘imagens chocantes’’ com comentários ‘construtivos’ do tipo ‘Onde esse país vai parar’ e ‘Essa mulher (a madrasta que ajudou a espancar o enteado) deve mofar na cadeia ou apanhar como a criança apanhou’. Sem falar em clichês do gênero, como, por exemplo, ‘Na maior parte das vezes, o perigo mora realmente ao lado’, citado em tom seríssimo por Datena. Os moldes dos programas da Band e da Record são tão parecidos que as edições diárias trazem as mesmas matérias em ordens diferentes” 193.

Há variados outros programas sensacionalistas na televisão brasileira, em quase todas as emissoras, como é o caso dos programas de Gilberto Barros e de Márcia Goldschmidt da Rede Bandeirantes, dentre tantos que, em uma tentativa de citar todos, levar-se-ia dias e mesmo assim não se sabe se o objetivo seria atingido194. No judiciário, existe uma enorme de quantidade de ações contra os mesmos, tamanhas as ofensas cometidas.

Triste é que, nenhum deles, verdadeiramente informa a população brasileira, sobretudo a de baixa renda, fazendo um péssimo jornalismo e formando opiniões excessivamente equivocadas. O mais lamentável é que se passa ao público aquela imagem como sendo a versão definitiva e fiel aos fatos, de forma que pessoas, muitas vezes indevidamente presas, já foram consideradas criminosas e sentenciadas pela população e pela mídia. A situação agrava-se quando se destaca que os crimes objeto dessas reportagens ainda estão, geralmente, em fase de inquérito policial, não existindo, portanto, nem acusação formulada pelo Ministério Público.

Aí não estão configurados apenas abusos, mas sim verdadeiros crimes que encontram tipificação no Código Penal brasileiro, os quais merecem ser apurados, através das devidas denúncias, para que sejam adotadas as medidas penais cabíveis. Triste é que a população massificada, em geral, deixa-se envolver pela linguagem sensacionalista e continua assistindo a programas desse nível, comportando-se como verdadeiros fantoches que seguem e acreditam fielmente em tudo o que for dito por estes sensacionalistas195, e ainda aprovam e elogiam o vergonhoso trabalho deles. Nesse sentido, observe-se a ementa:

LEI DE IMPRENSA. UTILIZAÇÃO DAS EXPRESSÕES "OPORTUNISTAS", "DECADENTES", "CORVOS" E "PESSOAS DESOCUPADAS" NA DIVULGAÇÃO DA NOTÍCIA. RECEBIMENTO DA QUEIXA-CRIME. NECESSIDADE: - EM SEDE DA LEI DE IMPRENSA AS EXPRESSÕES "OPORTUNISTAS", "DECADENTES", "CORVOS" E "PESSOAS DESOCUPADAS", QUANDO UTILIZADAS NA DIVULGAÇÃO DA NOTÍCIA PELO ACUSADO, JUSTIFICAM A "PERSECUTIO CRIMINIS" JUDICIAL, DEVENDO SER RECEBIDA A QUEIXA-CRIME, POSTO QUE, "IN THESI", CONSTITUEM CRIMES CONTRA A HONRA.

(TACrimSP – Apelação Criminal nº. 1111159/8. Relator: Desembargador Geraldo Lucena. 15ª Câmara. Data do julgamento: 01/10/1998).

Tornaram-se rotineiras as reportagens realizadas por filmagens obtidas através de vôos de helicópteros, de forma a captar e transmitir, em tempo real, os acontecimentos. Quase todos os programas exibidos aos domingos têm essa tática, que, diga-se de passagem, é anti-jornalística, para divulgar notícias com ineditismo. E já, mesmo durante os vôos, a mídia capta e transmite as imagens, persegue os suspeitos, acusando-os de serem os verdadeiros culpados, prejulgando-os, e passando aos milhares de telespectadores uma sentença a respeito deles, em uma verdadeira humilhação “ao vivo” do indivíduo. E, claro, para tornar ainda mais completa e convincente a reportagem, nunca esquecem de apimentá-la com a indignação (muitas vezes falsa) do repórter e/ou apresentador. E assim:

“O jornalismo chulo segue adiante; a desinformação também. O povo, que está embaixo, continuará sofrendo as conseqüências. Compreendem-se os escrúpulos dos jornalões em falar de si mesmo – gente fina costuma ser reservada. Mas por que não lembram do grande jornalista que foi Cásper Líbero e dos seus feitos jornalísticos? Alguém hoje lembra que ao meio-dia, quando a Gazeta começava a rodar, soava uma poderosa sirene para avisar que o jornal já estava indo para as bancas? Alguém sabe o que representou para a cidade o Correio Paulistano, a Rádio Record, a Excelsior? Alguém lembra dos feitos do repórter radiofônico Tico-Tico? Compreende-se que a Editora Abril, por recato, também não queira falar dela mesma, mas em 1954 Victor Civita já iniciava o desmonte do mito de que São Paulo não sabia fazer revistas nacionais – não é assunto? Auto-estima hoje virou lugar comum, panacéia para todos os males e aflições. Mas a verdade é que a nossa imprensa não gosta de olhar-se no espelho. Nem para lembrar os belos traços que já ostentou” 196.

Todas as pessoas que se acobertam sob o falso manto da liberdade de expressão, em verdade, não passam de verdadeiros opressores. “Defendem única e exclusivamente a SUA liberdade, tal como os ditadores defendem única e exclusivamente os seus interesses e a sua maneira de ver as coisas. Tornam-se assim naquilo que tanto criticam quando o vêem nos outros”197.

Os abusos e excessos acima descritos chocam com os princípios fundamentais, bem como com os preceitos trazidos pelo Código de Ética dos profissionais da área. Segundo Gláucia Borges, isso “têm culminado em cerca de três mil ações indenizatórias contra instituições jornalísticas e em face dos próprios profissionais”198. Ela escreveu seu artigo no ano de 2004, logo, a quantidade mencionada, certamente, já aumentou consideravelmente, visto que a cada dia mais ofensas são cometidas.

Hoje, trabalha-se com números ainda mais assustadores, dados esses que vão muito além simples de pleitos de indenizações. Eles retratam, verdadeiramente, a quantidade de ofensas aos direitos personalíssimos das pessoas, que têm suas honras atingidas, o que lhes marca pelo resto de suas vidas, acarretando sérios problemas psicológicos, causadores de desvios de conduta e de transformações na própria personalidade de cada indivíduo.

Diariamente, uma quantidade incalculável de pessoas têm acesso a tudo aquilo o que for transmitido através da imprensa. Assim, imagine-se o dano psicológico de um indivíduo que se viu pejorativamente adjetivado em determinada notícia, sabendo ele que toda a sociedade teve acesso àquela e que a maioria das pessoas, como dito, aceitam como verdadeiras as narrativas da mídia. Trata-se de gravíssima lesão à sua reputação, ao seu nome, ocasionadora, conseqüentemente, de diminuição do respeito social em relação a ele, da mutilação de sua honra. Isso é fatal, ataca diretamente a alma e os sentimentos mais íntimos de um cidadão, pois, mesmo não tendo ele consciência da proporção da ofensa que está sofrendo, certo é que críticas irônicas e comentários maliciosos sempre estarão sendo feitos pela sociedade. Suas imagem e honra ficarão maculadas no imaginário popular, o que muito dificilmente será desfeito.

Frise-se que essa má atuação da imprensa acaba também por comprometer a sua credibilidade, de forma que as notícias passam a ser enxergadas com suspeitas e dúvidas relativas aos seus teores. E mais, não apenas os repórteres, jornalistas ou radialistas têm de ser responsabilizados pelo cometimento de abusos. Essa responsabilização deve ser estendida às diversas pessoas que trabalham na mídia, sem nenhuma formação profissional (muito menos ética), que nada mais fazem do que ocupar, da pior maneira possível, o espaço de trabalho próprio para os profissionais da área de comunicação.

Atente-se que os programas sensacionalistas (exemplos já citados), conduzidos por pessoas interessadas em se tornarem famosas e em auferirem exorbitantes lucros, são problemas que não perpassam apenas pelo desrespeito à honra dos cidadãos, mas, sobretudo, por questões morais, éticas, políticas e sociais da imprensa em geral, depreciando a imagem das empresas de comunicação (que atuam com seriedade) do país. Válido observar parte da decisão de um acórdão do TACrimSP – Apelação Criminal – Relator Juiz Azevedo Franceschini – JUTACRIM 26/287199, dispondo que:

“Constitui difamação a imputação de acontecimento ou conduta concreta e precisa que, sem chegar a caracterizar delito, ofende a reputação ou o bom nome do atingido, expondo-o a reprovação ético – social" (omissis).

Nesse caso, certo jornalista imputou fato ofensivo à reputação de um indivíduo (mencionou ter ele praticado determinado crime), fato esse que foi considerado pela jurisprudência como cometimento de calúnia. Isso porque, toda ofensa feita publicamente, através dos meios de comunicação massivos, rapidamente adquire grandes dimensões. No referido caso, estava presente o elemento subjetivo do tipo, qual seja, o dolo, além do animus difamandi, visto que o cidadão teve sua honra gravemente atingida pela imprensa sem que o responsável pela publicação da notícia tivesse qualquer prova da veracidade daquilo o que noticiou. Como dito em voto do relator dessa apelação, as informações caluniosas foram obtidas através de uma mera carta, cujo autor pediu para que não houvesse divulgação de seu nome pela mídia, face ao que o jornalista, sem ao menos verificar a veracidade dos fatos e autenticidade da fonte, rapidamente redigiu e publicou a noticia, numa atitude de total irresponsabilidade, sem analisar as possíveis repercussões daquela divulgação, que, como visto, foi, ao final, configurada como crime de calúnia.

Hodiernamente, situação muito parecida com a do “Caso Escola Base” vem acontecendo (diferencia-se o atual caso, entretanto, pois não houve, como naquele, o arquivamento do inquérito, e os suspeitos já estão sendo acusados). Trata-se do corriqueiramente chamado “Caso Isabella Nardoni”. Neste triste episódio, uma garotinha de 5 (cinco) anos de idade foi encontrada ferida e inconsciente depois de ter, conforme informações periciais, caído do apartamento de seu pai, chamado Alexandre Nardoni. O referido fato está comovendo todo o Brasil, constituindo-se em um dos casos policiais que a mídia sensacionalista explora como meio de obter alta pontuação no IBOPE. Depois da ocorrência, o pai e a madrasta (Anna Carolina Jatobá) da criança foram chamados a depor na polícia, depoimento que, ao final, voltou-se contra os mesmos. Afirmaram que Alexandre subiu ao apartamento com Isabella, já quase adormecida, colocou-a na cama, trancou a porta e retornou à garagem de edifício para auxiliar Anna Jatobá a subir com os outros dois filhos do casal (meio-irmãos da garota). E assim que retornaram ao apartamento com as crianças, a porta estava aberta, a luz do quarto dos irmãos acesa e a grade de proteção cortada, buraco pelo qual teria sido jogada Isabella. Depois disso, uma série de exames periciais e análises foram feitos, de forma que a versão narrada pelo casal foi contestada em decorrência de várias constatações, dentre as quais: havia vestígios de sangue no apartamento e no chinelo do pai; a criança foi asfixiada antes de morrer; apesar de ter caído do sexto andar, altura muito grande, a menina apenas quebrou o pulso na queda; além de ter um vizinho relatado que ouviu gritos desesperados, em que uma criança dizia “pára, pai, pára pai!”, dentre outros fatores, os quais levaram alguns dos investigadores a acreditar que a menina sequer foi jogada pela janela, mas sim morta e depois colocada naquela posição, como forma de mascarar o homicídio. Em face de tudo isso, a delegada que acompanhou o caso chegou a chamar o pai da criança de assassino quando o mesmo saiu do depoimento.

Somando-se todos os indícios, a população pode ser levada a crer, certamente, serem o pai e a madrasta os responsáveis pela morte de Isabella. Entretanto, a situação agrava-se frente à exploração que a mídia deu ao Caso, chamando os dois de acusados já mesmo no momento inicial das investigações. A jornalista Eliane Cantanhêde, em artigo publicado no Correio de Sergipe, elucidou a maneira sensacionalista através da qual a imprensa está divulgando o caso, afirmando que:

“É como se as câmeras e microfones invadissem um pouco da dor da menina para distribuir e animar a torcida. Apesar desses fatos, a exposição do caso serve de alerta para que todos tenham mais paciência, mais compreensão, e, sobretudo, mais cuidado com as crianças. Seria irreal pedir menos ímpeto da imprensa e o fim da monumental curiosidade mórbida da sociedade. Então, o mínimo que se pode esperar é que, ao vasculhar toda a história, os seus resultados sejam para fazer o bem, não o mal” 200.

Hoje, já na condição de indiciados, o casal tem sofrido um verdadeiro massacre por parte da população de da mídia brasileira, sobretudo em decorrência das matérias televisionadas, já não mais possuindo honra alguma. A audiência tem crescido de forma tão abrupta que o jornal Folha de São Paulo publicou201 informação de que o Caso Isabella estava aumentando a audiência dos telejornais em até 46%. A imprensa está fazendo um pré-julgamento da situação, o que obviamente, está sendo repetido pelos brasileiros. E não pára por aí: repórteres de certa emissora tentaram invadir apartamento do pai de Anna Jatobá; a população ameaça o casal através de bilhetes, tentativas de adentrar o apartamento em que os suspeitos encontravam-se (antes da prisão); enorme quantidade de pessoas fica de plantão em frente aos locais (antes, edifícios, agora, prisões) em que o casal encontra-se; a população carcerária não os aceita nos estabelecimentos prisionais, ameaçando fazer greve se os dois não forem retirados dos locais, comportamentos estes, sem dúvidas, influenciados pela excessiva exploração dada pela imprensa ao Caso.

Ora, não há dúvidas de que um crime como esse é revoltante, não tem como não chocar as pessoas. Mesmo assim, se há um poder judiciário para julgar os indiciados, não cabe à mídia e nem a população fazê-lo. Juridicamente, de acordo aos preceitos trazidos pela CF e pelo CPP, antes da definitiva condenação por parte do juiz, os dois são inocentes. Não se trata aqui de tecer defesa em benefício do casal, mas apenas uma demonstração de que eles não mais precisam sentar no banco dos réus do Tribunal do Júri para ouvir a decisão do magistrado, pois já foram prévia e irrecorrivelmente condenados pelo homicídio de Isabella. Isso porque os jurados são seres humanos comuns, como quaisquer outros, que já ouviram, leram e assistiram a todas as publicações acusatórias da imprensa, motivo pelo qual eles certamente já entrarão no Tribunal convictos a respeito da autoria do crime, bloqueados da influência de qualquer tipo de argumento trazido pela defesa do casal.

Como dito, em todo Estado Democrático de Direito a imprensa desempenha papel fundamental, mas ela deve respeitar os limites legalmente impostos à sua atuação, o que não vem sendo feito nesse caso, tudo em nome de audiência e do retorno financeiro por esta trazida. Chega a ser até uma obrigação da mídia noticiar todas as novidades de um caso, mas desde que o faça com objetividade e sem utilizar-se de artifícios sensacionalistas. No Caso Isabella, entretanto, as divulgações transformaram-se em uma tática para a obtenção de IBOPE e de lucro, pois se tratam de coisas bem distintas transmitir ao público acontecimentos, novidades e levar “ao ar”, a cada 5 minutos, chamadas sobre o crime, muitas vezes de conteúdos repetitivos, o que em nada acrescenta aos espectadores e só faz aumentar a fúria dos mesmos, clamando pela punição dos indiciados, como se já sentenciados fossem. Observe-se a Tabela abaixo, publicada no site Blue Bus, que trata do aumento das audiências dos programas exibidos pela Rede Globo, no mês de abril, quando os mesmos davam grande enfoque ao Caso:

Tabela 1: tempo que a Rede Globo destinou ao “Caso Isabella Nardoni” no Fantástico e Jornal Nacional202.

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O mesmo site divulgou informações de que o Caso Isabella apareceu mais vezes na TV do que a Copa do Mundo de Futebol, as Olimpíadas, os desastres aéreos e até mesmo as eleições, quando afirmou que no dia 18/04/2008, analisando o período de seis horas da manhã até meia noite, a Globo levou 07h:29:18 e a Record 08h:35:36 expondo assuntos ligados ao caso, notadamente aos depoimentos do casal Nardoni203. No domingo, dia 20/04/2008, o Programa Fantástico, da Rede Globo, fez inúmeras chamadas sensacionalistas, envoltas por um tom de suspense, para transmitir a entrevista feita com o pai e a madrasta de Isabella. Primeiro afirmava que traria “ao ar” uma novidade, depois falou em divulgação de fatos inéditos, e apenas, quase no meio do programa, revelou que se tratava de uma exclusiva entrevista com o casal, a qual só foi exibida perto do final do programa, numa evidente tática de prender o telespectador na frente de seus aparelhos televisores, o que, de acordo com a coluna Zapping, lhe deu uma média de 31 pontos durante todo o programa, além de um pico de 41 pontos no momento da exibição da reportagem, sendo que o referido programa vinha obtendo uma média de 28 ou 29 pontos em dias normais. Nesse dia, o aumento de audiência certamente gerou grandes lucros à emissora, às custas da divulgação de uma mazela social, qual seja, uma barbárie cometida contra uma inocente criança204.

Na mesma linha, a revista Veja estampou a foto do casal em sua capa, acompanhada da seguinte mensagem: "Para a Polícia, não há mais duvidas sobre a morte de Isabella: FORAM ELES” 205, em uma atitude de explícito julgamento do casal Nardoni, como se, para a Justiça brasileira, o caso já estivesse sido encerrado e aos juízes não houvesse mais nada a fazer. Infelizmente, a referida revista não soube distinguir o termo suspeito da palavra culpado. Segundo Júlio Moreira:

“A entrevista de um psicoterapeuta talvez seja o que mais nos aproxima da realidade, quando tentamos entender o que se tornou o caso Isabella – ‘Este episódio se assemelha a uma minissérie. Todos os dias nós temos um capítulo. As pessoas ficam aflitas, ansiosas em acompanhar dia a dia o que está acontecendo. Há uma confusão muito grande entre o que é fantasia e o que é realidade’, diz o psicoterapeuta João” 206.

É inegável que a morte de uma criança gere tumulto e comoção popular, visto que as pessoas, a assistirem crimes como o ora tratado, acabam sempre imaginando o sofrimento que teriam caso aquilo acontecesse com um de seus familiares. Mas, nesse caso, não há apenas sentimentalismo ou choque, e sim uma verdadeira revolta. Veja-se que não foi a primeira vez que um caso como esse aconteceu no país, mas a mídia o elegeu como fonte lucrativa, geradora de audiência. Assoma-se a isso o fato de o promotor Francisco Cembranelli demonstrar já estar convicto de que eles são efetivamente os culpados, aproveitando-se da situação para ficar conhecido através da imprensa.

Em variados casos semelhantes, é o judiciário, seguindo o devido processo legal, que dá a sentença aos acusados. No Caso Isabella, a mídia já o fez desde as primeiras investigações, em notável ofensa à presunção de inocência, ao contraditório e principalmente à honra do casal. E assim a sociedade, impregnada pelo sensacionalismo, pela manipulação da mídia e pelo gosto pela tragédia alheia segue revoltada apenas face ao que foi pela mídia divulgado. Isso demonstra que as pessoas, em verdade, revoltam-se mais com o “Caso Isabella” do que com a violência que assola o país, visto que se a imprensa tivesse apontado para a inocência do casal, certamente haveria movimentos populares pela sua absolvição. Igor Morete, cidadão brasileiro comum, em seu blog, mostrou-se indignado com toda a situação, ao afirmar que:

“Pular essa etapa – de esperar a decisão judicial – não é clamar por justiça, mas sim por injustiça, passo que não se quer que o Estado venha agir de acordo com as Leis, e sim se tornar um déspota desenfreado contra uma ou outra pessoa específica! Sinceramente, quero mais que esse caso seja elucidado e os culpados sejam punidos. Mas que o judiciário faça isso, e não eu. E também quero que os hipócritas revoltados pelo clamor da mídia – incluam-se aqui os vagabundos que tentaram invadir o prédio do casal ou foram a porta da delegacia – ganhem um pouco de bom senso e tenham cautela nos atos que praticam para não se igualar ao criminoso que eles tanto repudiam” 207.

Através desse relato de um membro do povo, percebe-se que nem toda a população, felizmente, se deixa levar pelos clamores da mídia, que, em situações desse tipo, tende a destacar os casos de maior visibilidade, principalmente envolvendo integrantes das classes média ou alta, explorando o problema da violência familiar brasileira. Frise-se: de acordo com a lei do Brasil, o casal é inocente até o transito em julgado da sentença penal condenatória, independentemente dos clamores populares.

Em meio a todas esses divulgações e discussões, Ana Maximiano parou a refletir se o que hoje acontece repete o “Caso Escola Base”. Ela afirmou que assim que o referido caso foi elucidado, as faculdades passaram a explorá-lo de forma a ensinar aos alunos o que jamais deve ser feito no tocante ao jornalismo policial, para que a honra das pessoas envolvidas em processos criminais não fosse ferida, numa forma de demonstrar que o bom jornalismo sempre pode evitar atuações repentinas, sensacionalistas e intempestivas. Mas, em seguida, disse que aquele exemplo parece já ter sido esquecido pelos profissionais da mídia e que a lição não foi aprendida. Alude que:

“No fundo, estamos diante de uma gênese idêntica ao escândalo da Escola Base, no qual a mídia foi crucificada, com toda a justiça. Mas faltou mais alguém na cruz: o delegado responsável pela investigação do caso. Vamos rebobinar um pouco a fita e analisar as circunstâncias em que se deu a desumana crucificação dos responsáveis pela escola, apontados como abusadores de crianças. Quem detinha, com exclusividade, todas as informações? O delegado. Ninguém mais. Quem repassou as informações aos jornalistas, coletivamente? O delegado. Aos jornalistas, restava um de dois caminhos: duvidar ou acreditar (claro que me refiro aos jornalistas de boa-fé; os que têm índole sensacionalista não precisam acreditar ou duvidar de nada para dar vazão à índole) (...). Agora é um pouco a mesma coisa. O delegado deu entrevista que a Rede Globo, pelo menos, pôs no ar (não vi outros telejornais, mas suspeito que todos o tenham feito). Nem importa, no caso, se vier a se comprovar que o pai é mesmo culpado. Não cabe ao delegado, ao menos nesta fase da investigação, dizer quem é ou não suspeito. Se o pai for de fato culpado, será punido ao fim da investigação. Se for inocente, já está punido e sua honra acabada” 208. (Grifos nossos).

Mas a mídia não parou de explorar ainda o “Caso Isabella”. Entretanto, parece que os espectadores já se cansaram dele, de forma que a audiência dos programas que continuam insistindo na matéria começou a cair209. Independentemente de qual seja o caso ou situação, a mídia não pode continuar ofendendo a honra das pessoas envolvidas nos processos criminais.

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Sobre a autora
Paula Leal Lordelo

Advogada, formada em Direito pela UFBA - Universidade Federal da Bahia. Pós graduação em Direito Processual e Material do Trabalho pelo JusPodivm.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

LORDELO, Paula Leal. Limites à liberdade de expressão e de informação da mídia face ao direito à honra de pessoas envolvidas no processo criminal. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 18, n. 3678, 27 jul. 2013. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/24377. Acesso em: 23 dez. 2024.

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